Outros trópicos: Novos destinos turísticos. Novos terrenos da Antropologia
MARIA CARDEIRA DA SILVA (ORG.)
OUTROS TRÓPICOS. NOVOS DESTINOS TURÍSTICOS. NOVOS TERRENOS DA ANTROPOLOGIA
Lisboa, Livros Horizonte, 2004.
Este não é um livro de viagens, apesar de repleto de lugares daqui e dalhures,
nem sobre uma disciplina, embora a problematize em permanência. Outros Trópicos
pode ser lido como uma espécie de breviário das relações entre duas matérias.
Turismo e antropologia são pares ao longo das suas 180 páginas. Maria Cardeira
da Silva, coordenadora da edição, anuncia-o na primeira linha: [e]ste é um
livro acerca do turismo e da antropologia (p. 7).
O volume, que colige algumas das comunicações do painel Turismo, Mobilidades e
Consumo de Lugares do congresso Novos Terrenos da Antropologia, decorrido em
1999, às quais se somam outros textos resultantes de encontros nos corredores
da academia, possibilita uma imagem, ao mesmo tempo, retratual e panorâmica,
das interacções que geram, muitas vezes, efeitos de contraste, homologia e,
até certo ponto, ampliação entre os dois tópicos. Fá-lo, sem subtrair
complexidade, numa dúzia de textos curtos, gizados rés ao lugar, espaço da
coexistência de experiências turísticas e etnográficas. Porque nele, a relação
proposta só equivocamente poderá ser binária, uma vez que convoca pelo menos
três protagonistas: etnógrafo, turista e sociedade receptora.
Se o título Outros Trópicos metaforiza genericamente a actual proliferação de
heterotopias (cf. Michel Foucault, Des Espaces Autres em Daniel Defert e
François Ewald (orgs.), Michel Foucault, Dits et Écrits, 1954-1988 [Tome IV:
1980- -1988], 1994 : 752-762) conceito aqui utilizado no sentido literal e
abrangente, sobrepondo-se ao de espaços de alteridade , a florescência do seu
mercado, a animação dos tráfegos que sincronicamente as exploram e potenciam, o
subtítulo Novos Destinos Turísticos, Novos Terrenos da Antropologia equaciona
dinâmicas e justaposições in situ que diversamente os doze capítulos recobrem.
À medida que se avança no volume, experimenta-se a matriz multiforme e mesclada
do turismo (de pendor variavelmente étnico, patrimonial, recreativo,
excursionista, sexual, terapêutico, natural, gastronómico, ou misto, combinando
vários destes elementos) passível de uma analysis situs etnográfica, aqui menos
interessada na viagem que nos encontros (e processos socais deles resultantes)
que ocorrem nos locais receptores de turistas. Não que se esqueçam os trânsitos
e.g., chegam a e partem de Alte (Loulé, Algarve) autocarros com turistas
americanos de terceira idade (p. 24) como chegam aos e partem dos Caminhos de
Pedra (Rio Grande do Sul, Brasil) ônibus do Rio de Janeiro e de São Paulo com
turistas indiferenciados (p. 125) tão-pouco os próprios transeuntes e.g.,
Mohammed Berriane sociografa o perfil dos veraneantes marroquinos (p. 55) ,
mas o que o olhar antropológico visa apreender são, sobretudo, os princípios
estruturantes e os mecanismos de construção (compreendendo movimentos de
desconstrução e reconstrução) identitária dos lugares de consumo turístico.
Leia-se Maria Cardeira da Silva no texto que abre e apresenta a antologia: [o]
que para mim é estimulante no turismo, é tomar os seus terrenos como campos
laboratoriais estrategicamente interessantes para a antropologia onde ela deve,
e pode, afirmar a sua especificidade, recorrendo, justamente, a uma delimitação
artificial de um lugar (que não é empreendido por ela: os lugares turísticos)
e que pode explorar com um know how específico de atribuição de voz ao local e
de enquadramento mais vasto no seu quadro de produção social (p. 11).
Dotados de grande ressonância de vozes locais e supralocais, os textos fazem
coabitar elementos estatísticos e projecções numéricas e.g., taxa de
crescimento anual do turismo segundo a Organização Mundial do Turismo (p. 34)
, quadros normativos de governança internacional e.g., Declaração de Berlim
sobre Biodiversidade e Turismo (p. 35) , relatos de viajantes e.g.,
Vivendo Volando: um Uomo, gli Affari, le Donne, il Sesso, de Claudio Mattioli
Ross (pp. 108-109) , depoimentos de autóctones e.g., António Carneiro,
presidente da Associação de Melhoramentos, Festas e Feiras de Podence (Macedo
de Cavaleiros, Trás-os-Montes) (pp. 144 e 147) , sendo irredutíveis e
insubordinados a uma única perspectiva.
Esmiuçadas pela microscopia antropológica, as modalidades turísticas adquirem a
sua máxima variabilidade: ora encontros comensais em Alte (pp. 24-26), ora
visitações museológicas em Mértola (Alentejo) (p. 39), ora excursos entre Ntoko
Wu Nsiala (Cabinda, Angola) e o Rio Ditsi (pp. 45-49), ora deslocações e
estadas balneares dos núcleos familiares marroquinos (pp. 54-68), ora passeios
populares no espaço público à beira da represa de Nova Ponte (Minas Gerais,
Brasil) (pp. 73-77), ora visitas aos salões de massagem (p. 106) e a sessões de
peep-shows (p. 107) e tours sexuais em Pattaya, resort perto de Banguecoque
(Tailândia) (p. 106), ou nos bordéis de Ocho Ríos (Jamaica) e Acapulco (México)
(p. 108) ou nos prostíbulos de Fortaleza (Ceará, Brasil) (p. 109), ora
digressões entre o património arquitectónico reabilitado e italianizado dos
Caminhos de Pedra (pp. 125-126) e de Serafina Correia (Rio Grande do Sul,
Brasil) (pp. 131-133), ora fruição duma expressão performativa da cultura
popular de Podence, os caretos (pp. 140-149), ora usufruto sazonal de casas de
férias por estrangeiros e alfacinhas no perímetro contíguo mas exterior à
aldeia de Santa Margarida da Serra (Grândola, Alentejo) (p. 157) e hospedagem
permanente de estrangeiros nos montes vizinhos (pp. 157-159), ora internamento
terapêutico e tratamento termal (p.162), ora jornada monumental e natural em
Sintra e prova gastronómica de queijadas (pp. 172-178).
Para a compreensão destes e doutros casos, manuseiam-se instrumentos analíticos
nada marmóreos e invariáveis, antes dialógicos e processuais, como os de
encenação turística do local de Dean MacCannell (p. 21), etnicidade
reconstruída de Mike Robinson (p. 36), ficção da identidade de Marc Augé (p.
127) e culturas híbridas de Néstor Canclini (p. 143), abatendo valia
compreensiva a concepções avulsas (como cultura) ou contrárias (como tradição
versus modernidade, localização versus globalização, dentro versus fora,
hospedeiro versus visitante, autenticidade versus encenação, integridade versus
contaminação).
Serão desiguais os capítulos (contribuindo para isso inclusive a edição sem
conversão ortográfica dos textos originalmente escritos em português do
Brasil), sem arrumação sensível na colectânea, mas juntos dão bem a medida da
diversidade de perspectivas em presença no subcampo disciplinar da antropologia
do turismo e suas interfaces com outras problemáticas sociais, desde (talvez as
mais comuns) as da cultura, das identidades, das classes sociais, do género até
(talvez as mais exóticas) às das políticas de desenvolvimento local, do
empowerment e da participação pública. Nisto reside a unidade subterrânea da
obra.
Remato, dizendo que alguns dos eixos temáticos se encontram notavelmente
ilustrados pela colectânea de fotografias (da autoria de Maria Cardeira da
Silva) na capa e contra-capa do livro. Não são de somenos, uma vez que a
visualidade amplia a percepção da sociodiversidade do fenómeno turístico e,
desta forma, auxilia sobremaneira a leitura do livro.
Ana Gonçalves
ISCTE