Immediate Struggles: People, Power and Place in Northern Spain
Susana Narotzky e Gavin Smith
Immediate Struggles. People, Power and Place in Northern Spain
Berkeley, University of California Press, 2006, 251 pp.
Tendo por terreno etnográfico uma área da Comunidade Autónoma Valenciana, em
Espanha, e casando o passado do pós-guerra civil com o presente das
(des)regulações complexas de uma economia regional, esta é uma obra de
alcance importante em muitos sentidos. Primeiro, porque constitui um excelente
exemplo de reconstrução contemporânea do projecto etnográfico, reconstrução
essa que deixa decididamente para trás a atmosfera de crise disciplinar em
torno da antropologia, ainda não totalmente dissipada, sem com isso propor um
impossível regresso ao statuquo ante. E se o seu registo nada tem de backlash,
é precisamente porque não se equivoca quanto aos desafios que se levantam a
esse projecto nos dias de hoje. Não só os identifica com rigor e lucidez, como
alia a esta identificação uma reflexividade aguda, menos centrada no/
a etnógrafo/a e nas questões de autoria a esse nível a reflexividade não é
enunciada: é praticada, criteriosamente, ao longo do texto do que nas
categorias usadas para descrever a realidade.
Nenhuma dessas categorias é jamais dada por adquirida. Antes de mais, no que
diz respeito à maneira como recortam a realidade. Veja-se, para um exemplo
entre muitos possíveis, o par localidade / transnacionalismo e o modo como tais
categorias são susceptíveis de obscurecer, ou deixar de lado, os processos
através dos quais se produz um lugar (place). O enfoque da obra nas
economias regionais prende-se com efeito, na sua origem, com a
problematização da questão do lugar no contexto do capitalismo
contemporâneo, isto é, com uma modalidade específica de ressurgimento da
localidade num mundo globalizado. O objecto propriamente dito diz respeito,
tal como o formulam os autores, às relações sociais produzindo um factor
económico que tem vindo recentemente a ser descrito como capital social e a
ser associado a determinados espaços e territórios, associação esta contida em
expressões como economia regional ou distrito industrial. A reflexividade
que referi é uma das características mais estimulantes deste trabalho: a de
levar-nos constantemente a mudar de ângulo, a recuar perante binarismos
descritivos sedimentados e, sobretudo, a prescindir deles não a partir de
posições de princípio, mas a partir da compreensão de práticas e processos
específicos, processos esses em que os pólos de uma dualidade muitas vezes
jogam, afinal, de maneira dialéctica.
Mas a reflexividade que é exercida em torno das categorias analíticas não é
apenas de ordem conceptual. Ela é, também, de natureza política ao expor as
poderosas implicações destes conceitos. É permanente a atenção dada ao modo
como certas categorias descritivas são passíveis de vir, depois, a repercutir-
se na realidade vivida pelas pessoas, incorporando-se nela e alterando-a, quer
por via do quadro legitimador que fornecem ao desenho de determinadas políticas
no caso, políticas europeias e programas de desenvolvimento económico
apoiadas numa ideia de cultura local e capital social , quer por via da
adopção destas mesmas categorias pelos próprios actores para definir
normativamente a realidade. Acontece que nem todos os actores sociais estão
posicionados da mesma forma para corresponder a essas definições normativas e
às suas correlativas essencializações culturais, tais como o valenciano
empreendedor. Estão sim envolvidos numa malha de relações desigualitárias, de
poder e de exploração económica, entramado esse tanto mais complexo quanto
muitas vezes é feito de relações comunitáriasde parentesco, amizade e
vizinhança, quer dizer, precisamente o tipo de relações locais consideradas
fulcrais para a vitalidade do tecido económico e do desenvolvimento segundo o
modelo, agora hegemónico, de economia regional. Ora o modelo de vida social
nele contido e para o qual concorreram cientistas sociais com alguns dos seus
conceitos é um modelo de tipo corporativo que vela e escamoteia exactamente
esta ordem de conflito pulsando nas relações sociais e económicas.
É neste sentido que esta etnografia reclama a centralidade da noção de classe
como categoria da realidade capaz de captar o conflito presente nessas
relações, os processos históricos que as constituem, e de fornecer uma
perspectiva sobre o poder que as atravessa, ao mesmo tempo que deixa exposta a
insuficiência de abordagens confinadas a um afloramento da identidade, da
experiência e da vida quotidiana. Essas não deixam de ser reconhecidas como
dimensões importantes e são exploradas com subtileza na etnografia realizada,
mas sem que sejam descurados aspectos decisivos da reprodução social num
contexto capitalista. Como os autores fazem questão de notar, por muito que
tenhamos entrado numa condição pós-moderna ou numa sociedade pós-industrial,
estamos longe de ter saído duma sociedade em que a reprodução da vida
quotidiana assenta na produção de mercadorias produzidas através de um sistema
de circulação de capital regido pela lógica própria da rentabilidade e do
lucro. Essa e outras correntes de força que subjazem à experiência do dia-a-
dia, geradas na história ou em esferas de poder longínquas, vêm cruzar-se numa
abordagem multidimensional e a várias escalas que integra, de maneira sempre
dialéctica, desde as práticas sociais observadas aos modelos teóricos e
conceitos construídos.
Estas são algumas das razões que fazem com que a reconstrução do projecto
etnográfico aqui referida de início seja feita nos termos daquilo a que os
autores chamam de realismo histórico, designação essa que denota também o
reconhecimento da necessidade de embeber a história na observação do presente,
e de encarar para todos os efeitos cada pessoa como um sujeito e agente social
historicizado. Mas este modo de fazer antropologia arranca antes de mais da
porventura contra-intuitiva convicção convicção essa argumentada também ela
historicamente no domínio temático próprio da obra de que a abordagem
etnográfica é particularmente adequada e se encontra especialmente bem colocada
para a compreensão da economia e da sociedade no mundo complexo e fracturado de
hoje.
Manuela Ivone Cunha
Universidade do Minho NEA, CEAS, IDEMEC