Outros Destinos: Ensaios de Antropologia e Cidadania
Miguel Vale de Almeida
Outros Destinos: Ensaios de Antropologia e Cidadania
Porto, Campo das Letras, 2004, 253 pp.
( ) Dei por mim a olhar para a estatueta de São Sebastião que tenho no meu
escritório. Sempre me fascinou como naquela imagem se misturam feminilidade e
masculinidade, dor e prazer, sofrimento pelo presente e esperança pelo futuro.
Sebastião lembrou-me da razão porque escrevo publicamente sobre sexualidade e
não me restrinjo à vida académica: porque é um assunto político. E quando
comecei a escrever umas linhas tímidas sobre sida, foi sempre sobre os
fantasmas culturais que a sociedade cultiva em torno de e a propósito da sida:
os comportamentos que não sejam os da família heterossexual, reprodutiva,
monógama. Como antropólogo sinto que tenho a obrigação de mostrar que nem
sempre as coisas foram como são, e nem em toda a parte são como entre nós. (p.
237)
É talvez injusto escolher como abertura do presente comentário ao último livro
de Miguel Vale de Almeida (MVA) uma citação retirada de um dos poucos
capítulos, de um total de catorze, cujo texto original não é dirigido à
academia. Mas, justamente, identificar uma hierarquização entre o texto
académico e o texto para fora da academia talvez faça pouco sentido na forma
como a tarefa do antropólogo é apresenta por MVA: Para um antropólogo é
provável que a cidadania constitua uma responsabilidade acrescida, pois a
prática de uma ciência social é caracterizada por dois traços complexos: por um
lado, ela é reflexiva, isto é, o conhecimento produzido pelo cientista social é
incorporado pelos actores sociais, mudando o comportamento destes, gerando
assim um infinito círculo hermenêutico; e por outro lado, a natureza do objecto
de estudo é parte integrante dos interesses e preocupações do antropólogo
enquanto membro de uma sociedade, isto é, enquanto cidadão. (p. 45)
Outros Destinos ' Ensaios de Antropologia e Cidadania é um caso raro na
antropologia produzida em Portugal de voo rasante, intenso e honesto (à falta
de melhor expressão) a um percurso de investigação. Uma viagem que percorre
praticamente todos lugares, ou destinos para parafrasear o título ,
visitados por este antropólogo ao longo de uma prática já com duas décadas.
Esta revisitação de paragens através da reunião de textos dispersos (inéditos e
publicados em revistas e colectâneas nacionais e internacionais) constitui uma
oportunidade para perceber subtilezas, insistências, compromissos e reflexões
do seu autor, por um lado, mas igualmente, percebê-las como reflexo da
multiplicidade de níveis e abordagens que a prática antropológica, em
particular, e as ciências sociais, em geral, implicam. Talvez um dos aspectos
mais interessantes neste traçar dos mapas geográficos dos projectos de
investigação seja a forma como, mais uma vez, damos conta da complexidade,
polifonia e capacidade de regeneração reflexiva dos resultados do trabalho de
campo antropológico (que surgem em Outros Destinos sob a forma do registo
pessoal, do diário de campo, da etnografia recuperada ou mesmo reciclada, do
diálogo com outras áreas de saber/discursivas e com públicos diversos). A
concentração de produção dispersa e alguma já publicada e traduzida exige
necessariamente a definição de um fio condutor que lhe confira novos sentidos e
pertinências. Esse trabalho assume aqui duas vias: por um lado a afirmação da
prática antropológica como lugar de cidadania pelas possibilidades acrescidas
de experiência ética que convoca; por outro, e mais indirectamente, a ideia de
que em cada projecto de investigação antropológica há desvios, vias paralelas
e, por vezes, reencontros que vale a pena serem revisitados.
Mas voltemos à citação de abertura e às razões da sua escolha. Para quem vem
acompanhando o trabalho de MVA, não surpreende esta capacidade de pensar a
partir de si, mais como partilha e impulso ético de compromisso pessoal com o
mundo e com a antropologia, do que como forma de autocentramento pessoal. Nesse
sentido, a imagem que nos oferece (a da figura de S. Sebastião no seu
escritório que o leva à reflexão sobre a necessidade de utilizar a
sensibilidade e instrumentos de cientista social para problematizar temas
socialmente relevantes) remete-nos para o que esta obra tem, a meu ver, de mais
central: a concretização de um estilo e de uma forma incorporar a antropologia
que, embora não seja isolada e inigualável, destaca-se no panorama actual.
Outros Destinosencontra-se estruturado em quatro partes que abarcam ensaios que
resultam das grandes áreas de investigação de MVA: 1) A Antropologia, a
cidadania e os desafios do mundo contemporâneo; 2) Etnicidade, política da
identidade e hegemonia cultural; 3) Género e sexualidade; e 4) O projecto
crioulo.
O texto de abertura é, a meu ver, exemplar das mais-valias deste projecto.
Intitulado Antropologia: tomar balanço para o século XXI, trata-se de um
ensaio que resultou de uma memorável conferência proferida na Culturgest a
propósito do ciclo O fundamental do século XX, organizado por António Pinto
Ribeiro em 1996. Embora com dez anos, é um texto útil para pensar as
preocupações surgidas nos finais dos anos 90 e entretanto algo atenuadas, ou
mesmo secundarizadas, pela própria viragem do milénio e pelos embates criados
pela sucessão de acontecimentos arrebatadores que o inauguraram. Seguindo a
proposta do contexto que lhe deu origem, é um texto de balanço, mas com
projecção para diante, já que MVA aproveita a revisão para afirmar a
importância da disciplina pelas suas especificidades clássicas como uma das
mais produtivas formas de entendimento das complexidades e perplexidades da
contemporaneidade: O futuro da antropologia está na recuperação da herança
etnográfica e desse carácter híbrido ou bastardo do tipo de conhecimento
especial obtido nesse encontro. Assumindo os aspectos políticos do passado da
sua fundação, o seu futuro poderá e deverá ser mais engajado na elucidação das
relações entre os sistemas de dominação ou constrangimentos (incluindo as
gramáticas culturais) e as acções das pessoas e grupos na busca de sentido para
as suas vidas. (p. 25).
Nos restantes capítulos desta primeira parte temos oportunidade de perceber
(cap. 2) a mitologia pessoal deste antropólogo e de como ele descobriu (nas
prateleiras de uma biblioteca municipal americana) uma ciência que dava espaço
à construção e questionamento identitário do próprio cientista (pela mão das
cartas de terreno de Margaret Mead). E ainda uma interessante visão pessoal
sobre a antropologia portuguesa na viragem democrática. É também nestes
capítulos que surge de forma mais presente o cruzamento entre objectividade/
cidadania/engajamento (cap. 3); ou que são ensaiadas formas mediatizadas de
material etnográfico (cap. 4).
A segunda parte cruza igualmente capítulos de discussão teórica com reflexões a
partir da revisitação de material etnográfico. No ensaio de abertura (cap. 5)
MVA procura cruzar duas noções a de Estado-nação e a de multiculturalismo
com o objectivo de sistematizar as semelhanças entre os dois artefactos
culturais a que deram origem o nacionalismo e o colonialismo que se
encontram na base das comunidades instáveis e contestadas (p. 82) em que
vivemos durante todo o século XX. Um preâmbulo importante para os textos
seguintes que se centram sobretudo na etnografia recolhida no Brasil (Ilhéus,
Bahia) sobre políticas de representação cultural e etnicidade. A experimentação
das periferias da etnografia surge mais uma vez na abordagem da figura de
Gabriela de Jorge Amado (cap. 7) ou na análise de recortes de jornais (cap. 8).
A terceira parte percorre algumas questões cruciais do trabalho de MVA em
torno da construção social do género e da sexualidade. Mais diversificado no
tipo de textos, na extensão do período das pesquisas abarcadas e nas formas de
abordagem, o conjunto de cinco capítulos reflecte uma abordagem de etnografia
diversificada ao serviço da já conhecida posição do autor: Ora parece-me que
o género é precisamente um processo de objectificação das relações sociais,
simplificando a sua complexidade e localizando em homens e mulheres
características de agência e poder que não lhes são inerentes. Importa pois
identificar esses habitus que, sediados no sujeito incorporado, reproduzem o
género e o potenciam a falar' do poder noutras relações sociais, como o
trabalho, a política, as expressões emocionais. (p. 180).
A última parte de Outros Destinos é integralmente dedicada a uma discussão
sobre a noção de crioulo e crioulidade a partir da produção antropológica
de Almerindo Lessa sobre o Cabo Verde colonial. Uma reflexão que aborda
simultaneamente a história da disciplina, as fragilidades da antropologia
portuguesa de enfoque colonial e que denuncia a construção, culturalmente
enraizada, das teorizações sobre a crioulidade.
Apesar de a grande maioria dos textos publicados em Outros Destinos não serem
inéditos e assentarem em dados etnográficos em parte já conhecidos a partir de
outras obras de MVA, o exercício da sua compilação em torno de uma clara linha
de abordagem antropológica, o esforço de reinvenção e compromisso com a
etnografia que reflectem, tornam este projecto um importante fruto de
maturidade académica.
Teresa Fradique
Escola Superior de Artes e Design de Caldas da Rainha