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EuPTHUHu0873-65612006000200016

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National varietyEu
Country of publicationPT
SchoolHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN0873-6561
Year2006
Issue0002
Article number00016

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Entre a Dádiva e a Mercadoria: Ensaio de Antropologia Económica Adolfo Yáñez Casal, Entre a Dádiva e a Mercadoria. Ensaio de Antropologia Económica.

Lisboa, edição do autor, 2005, 254 pp.

A pertinência que a economia deve assumir para a antropologia justifica-se, pelo menos, a quatro níveis: por não se tratar de uma simples questão entre muitas outras, mas sim de uma questão que ocupa um lugar privilegiado na nossa sociedade, assumindo-se cada vez mais como a condição de funcionamento de tudo o resto; por causa da relativa contenção da denominada antropologia económica; porque o redireccionamento da atenção antropológica para os fenómenos económicos exige, mais que um conjunto de investigações empíricas precipitadas, uma cuidadosa contextualização teórica; e, enfim, porque não será apenas como etnógrafos da economia, como narradores dos seus agenciamentos, dos seus fluxos, das suas turbulências, que os antropólogos são convidados a intervir neste debate, mas igualmente como seus críticos.

Assim se poderiam resumir os ensinamentos contidos no ensaio de Adolfo Yáñez Casal, Entre a Dádiva e a Mercadoria, de acordo com uma leitura pessoal e particularmente sensível. O autor está bem consciente do risco de desmesura e uniformização que envolve a produção e a troca de mercadorias num contexto de globalização, bem como do papel subsidiário desempenhado pelas relações políticas, sociais e culturais face a uma economia cada vez mais autonomizada e incentivadora de desigualdades, referindo-se sem ambiguidades a um domínio epistemo­lógico do paradigma economicista sobre o pensamento sócio- antropológico em geral (p. 44) e, genericamente, a uma sobreposição do económico sobre o social (p. 49).

A seu modo, o livro assume-se como uma reacção à predominância do economicismo, propondo a recuperação de um paradigma caro à antropologia e que antes havia sido utilizado com o mesmo fim: o paradigma da dádiva, exposto no célebre ensaio de Marcel Mauss. A necessidade do retorno a este texto seminal não deixa de reflectir uma certa crise da antropologia e até do conjunto das ciências sociais face à preponderância da ciência económica, dado que o alcance das conclusões de Mauss e, na sua esteira, das de Adolfo Casal, vai muito para além das compartimentações interdisciplinares. Também o respeitável arcaboiço teórico de Entre a Dádiva e a Mercadoria capaz de desencorajar alguns leitores habituados à fluência das descrições etnográficas , acaba por apontar no mesmo sentido de reorganização das referências com vista ao lançamento de um novo programa. Aqui ou ali, fica a impressão de que a estratégia literária se aproxima demasiado de um mero encadeamento de fichas de leitura (limitação da qual o autor está consciente), mas as digressões pacien­tes e bem alinhavadas que Adolfo Casal efectua por uma mão-cheia de obras influentes permitem perceber quão afastada tem andado a antropologia destes debates. Vale portanto a pena seguir as pistas oferecidas pelo autor e redescobrir todo um domínio de problemas mais ou menos oculto, mais ou menos esquecido.

É a presença da dádiva em diversos sectores da sociedade mercantil contemporânea que começa por intrigar e inspirar o autor: Todos somos protagonistas e beneficiários da dádiva. Mas para identificar e compreender a dádiva num universo de relações mercantis, não a podemos pensar nem sobre o prisma exclusivo da equivalência dos objectos dados e recebidos o prisma de valores económicos, de mercadorias , nem sobre o prisma exclusivo da pura gratuidade (p. 9). E acrescenta: A dádiva deve ser pensada antes de mais e em qualquer caso, como relação, como relação social, como a relação social por excelência (ibid.). A ideia de que a dádiva cria a sociedade, estabelece alianças, cimenta uniões é recorrente, assentando num duplo paradoxo inerente ao próprio acto de dar: o paradoxo da gratuidade e da incondicio­nalidade, por um lado (a dádiva implica retribuição e reconhecimento, mas não pode efectivar- se com essa intenção); e o paradoxo da liberdade e da obrigação, por outro (a dádiva é, em princípio, um gesto livre, mas não totalmente, contendo também uma dimensão institu­cional, ritual, formal) (p. 19). Sem este par de contraditoriedades, a dádiva não poderia ser apresentada como aquilo que verdadeiramente aproxima os indivíduos e assegura a constituição da sociedade.

Na primeira parte do livro, Adolfo Casal debruça-se sobre dois paradigmas rivais, o individualismo e o holismo, ambos estranhos à dádiva. Revisita nomes clássicos do pensamento utilitarista (como Jeremy Bentham, Bernard de Mandeville e Adam Smith), considera em seguida o processo histórico da emancipação da esfera económica nas sociedades ocidentais (a partir dos trabalhos de Max Weber, Albert O. Hirschmann e Karl Polanyi) e termina com uma revisão das perspectivas de três autores que defenderam a existência de uma razão cultural e simbólica por trás da razão económica (Sahlins, Baudrillard e Bataille). A estrutura do texto revela-se algo rígida, limitando-se o autor a um papel de divulgador, aliás cumprido de forma escorreita e clara, dado que os seus resumos se afiguram autênticos instrumentos de trabalho para estudantes, e não .

A segunda parte principia com uma exposição detalhada do conteúdo do Ensaio sobre a Dádiva, detendo-se especialmente nas ideias maussianas de facto social total (pp. 119-120), paradoxo da dádiva (pp. 118 e 129) e na obrigação de retribuir (pp. 120-123). Seguem-se dois capítulos dando conta das reacções suscitadas pelo Ensaio, levando vários autores a procurar explicações alternativas para o fenómeno da dádiva: Lévi-Strauss, Marvin Harris, Sahlins, Christian Geffray, Derrida, Bourdieu e Godelier aparecem neste lote, sendo as suas interpretações expostas com idêntico rigor e ocasionalmente sujeitas a uma crítica mais severa. Ao longo deste percurso, Adolfo Casal aproveita para regressar várias vezes ao texto originário de Mauss, protegendo-o das investidas e desvios sofridos e submetendo certas passagens como o célebre relato do informante maori Tamati Ranaipiri (pp. 121-122, 131-132, 145-148, 152-153) a um tratamento quase filológico, o que indiscutivelmente contribui para ampliar o nosso entendimento do Ensaio sobre a Dádiva.

A terceira parte do livro, consagrada à actualidade da dádiva, abre com um retrato seco do estado a que chegaram as sociedades desenvolvidas, cada vez mais submetidas aos imperativos de competitividade impostos pela economia e que se resumem, na prática, a uma redução geral das despesas improdutivas, a um declínio dos sistemas de segurança social, à flexibilização e precarização do emprego e ao aparecimento de um desemprego cada vez menos conjuntural ou provisório e mais estrutural (p. 192), e ainda à progressiva degradação do meio ambiente. É neste quadro que o apelo ao espírito da dádiva se começa a tornar premente (p. 197), sendo a mesma dádiva uma condição objectiva e socialmente necessária para a própria reprodução social (p. 202). No capítulo VII, o mais empírico de todos, Adolfo Casal descreve algumas ocorrências da dádiva nas sociedades contemporâneas, em particular nas redes familiares (pp.

203-210) e na solidariedade prestada a desconhecidos através do voluntariado, da filantropia, da ajuda humanitária, das doações de sangue e órgãos ou da adopção (pp. 210-214). A respeito das redes familiares, demonstra que o seu funcionamento não se reduz a princípios mercantis, jurídicos ou mesmo de reciprocidade, assentando sobretudo num princípio de endividamento positivo, em que um membro da rede reconhece ter recebido muito sem, por isso, sentir a obrigação de retribuir (p. 208) o que sente, ao invés, é um desejo de dar, tornando-se ele próprio um doador (p. 209). O raciocínio é deveras atraente, não por dissolver a obrigação de retribuir mas também porque encara o endividamento, nestas circunstâncias, não como uma responsabilidade, uma dificuldade ou uma calamidade mas, pelo contrário, como uma condição benéfica.

Admitindo que a verdadeira dádiva não pede uma retribuição nem constrange o donatário a uma contra-dádiva, antes o incentiva a dar por sua vez (p. 220), retoma-se a ideia central de que a dádiva cria a sociedade, aproxima e une os homens. Adolfo Casal propõe então que a mesma dádiva seja tomada como modelo de compreensão das trocas em geral, incluindo das trocas de mercadorias, quebrando a hegemonia do princípio explicativo do interesse utilitário e juntando-lhe os princípios da reciprocidade e da confiança. Ao considerar que entre a dádiva e a troca não existe uma separação mas sim um continuum graduado na base do intervalo temporal da reciprocidade e do rigor da equivalência (p. 240) , sugere que a troca de dádivas (arcaica ou moderna), seja vista como um processo de cooperação entre parceiros que consiste em última instância numa combinação entre: 1) o interesse e o gratuito; 2) o interesse e a obrigação; 3) o constrangimento e a espontaneidade (p. 242).

Que isto seja suficiente para abalar o quadro teórico da economia neoclássica, ninguém duvida. Que chegue para explicar a economia, como se ela pudesse ser reconduzida por inteiro à matriz umbilical da dádiva, será talvez mais discutível. Adolfo Casal está ciente de que uma argumentação deste tipo fica muito perto de legitimar uma equiparação entre a troca de dádivas e a troca de mercadorias (aliás subentendida no título da obra), o que seguramente tem pouco a ver com a mensagem original de Mauss e Malinovski (p. 237). Mais: o autor nem sequer ignora o critério que permite separar a troca arcaica da troca mercantil a concorrência (pp. 238-239) , mas pressentimos que alguma coisa terá ficado por dizer em relação a este assunto. O que não passa de um pequeno reparo a uma obra de elevado mérito, dotada da maior actualidade e primando pela notável capacidade de revisão teórica e de reequacionação de problemas.

Daniel Seabra Lopes Bolseiro de doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT)


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