Memória Social em Campo Maior
Luís Cunha
Memória Socialem Campo Maior
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2006.
Esta obra, que corresponde à edição de uma tese de doutoramento em
Antropologia, parte de um trabalho de campo realizado em Campo Maior entre
Dezembro de 1997 e Outubro de 1998. A data de realização deste terreno deve ser
retida por coincidir com um momento charneira na raia luso-espanhola. Por ter
decorrido poucos anos após a abertura da fronteira, esta pesquisa implicou uma
reflexão sobre o seu impacto nos processos de construção da memória e
identidade colectiva, mas permitiu ainda a colecção de um conjunto
significativo de testemunhos orais que viabilizaram o tratamento da memória da
Guerra Civil de Espanha num capítulo autónomo. Por outro lado, este terreno
situa-se num momento de detonação da produção antropológica sobre a fronteira
luso-espanhola.
Memória Social em Campo Maior alicerça-se sobre uma análise dos processos de
articulação entre memória, espaço e tempo potenciados pela fronteira.
Dividindo-se em seis capítulos, nos primeiros três são abordadas questões
metodológicas, categorias analíticas como tempo, espaço, memória e fronteira,
bem como a especificidade da fronteira em Campo Maior e das culturas de
fronteira. São, contudo, os capítulos seguintes que merecem relevo, uma vez que
é neles que tem lugar o tratamento de espaço, tempo e memória enquanto objectos
empíricos.
No capítulo 4, intitulado Espaços, práticas e representações. A memória e a
sua recomposição, Luís Cunha procede à análise dos modos de inscrição da
memória no espaço e no tempo. No espaço, através do mapeamento dos lugares de
memória em Campo Maior e da sua análise enquanto signos que remetem para
valores específicos ou para clivagens sociais. No que concerne ao tempo, com
base nos discursos dos seus informantes, o autor distingue dois tempos: o tempo
do antes, marcado pelo domínio de grandes proprietários rurais ' com Dr. Gama
à cabeça, o mais proeminente latifundiário da vila ' vs o tempo do agora,
marcado pelo poder dos industriais da torrefacção do café ' emblematizado por
Rui Nabeiro, que controla agora as regras de acesso ao trabalho ao empregar
mais de 50% da força produtiva do concelho (p. 143). A sucessão destes dois
senhores da vila consiste assim na substituição de uma elite de
latifundiários por uma elite de industriais descendentes de contrabandistas,
substituição esta que pode ser lida como o desagravo dos humildes sobre os
poderosos (p. 327), e que concorre para a imagem de herói que Rui Nabeiro
adquiriu nesta vila. Neste capítulo deve ser destacada a evocação do
patrocinato feita pelo autor. Possivelmente não caberia no âmbito desta obra
uma análise mais detalhada do patrocinato, contudo revelar-se-ia seguramente
fecunda.
O capítulo 5, dedicado à memória do contrabando, não tendo a pretensão de
traçar o longo itinerário desta actividade, refere alguns aspectos que se
prendem com o estabelecimento, evolução e policiamento de barreiras
alfandegárias, focalizando a fronteira enquanto espaço de oportunidade para as
populações que nela vivem e o contrabando como a seiva que alimentou a
relação (p. 171) entre os vizinhos dos dois lados da raia. Desvendando as
lógicas de organização desta actividade em Campo Maior, são estabelecidos dois
marcos de mudança nos processos de organização desta actividade: 1) no fim da
II Guerra Mundial, o café torna-se a mercadoria mais contrabandeada,
uniformizam-se as práticas e assalaria-se a mão-de-obra; 2) na década de 70, o
transporte ilegal de café para Espanha passa a ser feito em camiões, diminuindo
assim o número de homens mplicados no contrabando.
Nesta análise da memória do contrabando em Campo Maior, são destacados pelo
autor alguns aspectos que devem ser valorizados. Tanto a codificação dos modos
de narrar o contrabando, que lhes imprime um carácter consensual, exacerbando
as dimensões de aventura e estratégia, quanto a permanente avaliação moral do
comportamento de autoridades e de contrabandistas face à ausência de avaliação
moral da actividade em si, resulta, segundo o autor, do facto do contrabando
ter adquirido uma legitimidade simbólica com a abertura das fronteiras e com
o êxito da indústria de torrefacção de café gerada pelo contrabando.
Estabelecendo um paralelo entre a proposta de análise elaborada por Comas
d'Argemir sobre o tabaco contrabandeado em Andorra, enquanto facto social total
(Comas d'Argemir, 1999), Luís Cunha afirma: devemos sublinhar que também em
Campo Maior o café se constitui como facto social total', quer dizer, elemento
articulador de várias dimensões sociais locais, desde a política à economia,
entroncando nele também referenciais identitários, tão significativos na vila
como o clube de futebol ou as Festas do Povo (p. 239).
Ao contrário da consensual memória do contrabando, a memória da Guerra Civil de
Espanha, tratada no 6.º e último capítulo, surge dicotomizada pela clivagem
social, não sendo a sua evocação tão espontânea, uma vez que remete para um
universo de silêncio e trauma. O núcleo da memória da Guerra consiste na
memória sobre os refugiados que, como refere o autor eram a própria guerra
entrando no quotidiano da vila (p. 259). Muitos destes refugiados, que
começaram a chegar a Campo Maior em Agosto de 1936 na sequência dos
acontecimentos de Badajoz, foram presos pelas autoridades portuguesas e
concentrados na prisão da vila e nos celeiros da Federação de Produtores de
Trigo. Muitos deles terão sido entregues às forças nacionalistas e executados.
À invisibilidade decorrente da situação de clandestinidade das pessoas que
fugiram de Espanha por razões políticas e que conseguiram permanecer em Campo
Maior escondidas em sótãos ou abrigos para animais, contrapõe-se a visibilidade
de um contingente de pessoas que diariamente atravessava a fronteira em busca
de alimentos. A miséria extrema destas pessoas, o grupo de Duro refugiado em
Referta de Ouguela, os bombardeamentos de Badajoz, os fuzilamentos na praça de
touros, a que assistiram portugueses, a violência do exército de África, a
polarização ricos vs pobres, constituem alguns dos temas centrais da memória da
Guerra trabalhada pelo autor.
O funcionamento da memória sobre a Guerra Civil de Espanha não constitui o tema
central desta obra. O autor assume, de resto, o carácter fragmentário do
capítulo, bem como a sua renúncia ao desejo de uma abordagem mais profunda
(p. 254). Todavia, o tratamento de alguns dos temas acima referidos teria ganho
com uma recolha mais exaustiva de testemunhos e com a consulta de outro tipo de
materiais. No que concerne, por exemplo, à análise da memória sobre o grupo de
Duro, adjectivado de abusador e cruel, teria sido oportuno investigar a
hipótese de esta adjectivação negativa poder decorrer de processos de
silenciamento e revisionismo impostos de fora (veja-se, sobre este assunto,
AA.VV., 2004, O Cambedo da Raia. Solidariedade galego-portuguesa Silenciada.
Asociación Amigos da República).
Defendendo que aquilo que hoje distingue comunidades de fronteira como Campo
Maior, não são já as referências culturais do presente, mas aquelas que a
memória produz (p. 319), Memória Social em Campo Maior constitui um valioso
contributo para o conhecimento da fronteira luso-espanhola, provando a
persistência e reafirmação da fronteira através da memória.
Eduarda Rovisco
Centro de Estudos de Antropologia Social (ISCTE)
Bolseira da FCT