Outros nomes, histórias cruzadas: apresentando o debate
Outros nomes, histórias cruzadas: apresentando o debate
João de Pina Cabral
Instituto de Ciências Sociais
Universidade de Lisboa
Março de 2008
Em Grande Sertão: Veredas, João Guimarães Rosa mostra-nos como, nos nomes
pessoais, a língua portuguesa é parte da constituição de cada um de nós (2001
[1956]). Nos nomes dos jagunços cujos traços o autor segue pelas veredas desse
sertão, nas pessoas com quem eles se cruzam, assistimos à forma como a emoção
constrói pessoas usando nomes, através de um processo dialogal de criação
identitária em fluxo. A obra gira em torno a uma tragédia – a tragédia de um
amor com três nomes. No jogo de identidades, valores e emoções que esta
sucessão de nomes congrega, o escritor deita luz sobre processos de relevância
universal: Reinaldo – nome de herói guerreiro, cuja face pública esconde algo;
Diadorim – nome de confiança entre dois, cuja privacidade revela uma diferença
sem revelar qual, nome que desliza congregando uma complexidade de inomináveis;
Maria Diadorina – nome de morta cujo amor foi um desafio trágico à vida e cuja
morte põe em causa o que foi preciso pagar para sobreviver.
[1]
Em Todos os Nomes, José Saramago (1997) explora um armazém de nomes – um
labiríntico cartório onde ficam os nomes dos que vivem, mas onde essa vida se
vai perdendo em memórias que são, afinal, esquecimentos; em vidas que acabam
sempre em mortes. O nome de cada um de nós é seu mas, ao mesmo tempo, insere-
nos em relações de socialidade que nos ultrapassam em muito e que têm poder
sobre nós. O nome é nosso, porém, só na medida em que pertence também aos
outros que o identificam connosco. Nas deambulações sombrias do personagem
principal assistimos a todo um caminho entre a vida e a morte, entre o público
e o privado: entre o cemitério – onde estão os nomes dos mortos –, o cartório –
onde os nomes dos vivos se tornam nomes de mortos – e a escola – onde os nomes
dos vivos se tornam nomes públicos. O autor aprofunda esse jogo de vida e
morte, de público e privado, em torno ao poder que os nossos nomes têm sobre
nós.
Um olhar rápido à literatura em português revelará que a questão dos nomes é
inesgotável e, pelos dilemas que lança, está muito viva. Em Moçambique, com
João Paulo Borges Coelho (2004); no Brasil, com Ariano Suassuna (que, sobre o
tema, tem grandes lições a dar, 2007 [1971]); em Angola, com OVendedor de
Passados de José Eduardo Agualusa (2004) ou com A Gloriosa Família de Pepetela
(1997)… Ora, esses nomes (mesmo os que originam noutras tradições linguísticas
– Mandimba, Wesley, Machel…) são nomes cujo referente linguístico básico é o
português – essa língua que tanto nos vai unindo como separando dos dois lados
do Atlântico, dos dois lados de África, por esse mundo fora...
Porque é que ainda ninguém se tinha perguntado: então, será que há algo de
comum a todos nós que usamos nomes em contextos sociais onde o português é a
principal língua de referência? É que, dessa forma, nós todos partilhamos um
mesmo pano de fundo linguístico, histórico e cultural por relação a algo que,
afinal, para todos nós, é tão essencial: saber quem somos!
Ser António Manuel da Silva Costa em São Paulo, no Vale do São Francisco, em
Lisboa, no Alentejo rural, em Moçambique (Inhambane), em Goa, em Macau ou em
Timor… será a mesma coisa? Em que medida é que esse nome terá o mesmo
significado em todos esses tão distintos contextos? Será ele sempre o mesmo
nome? Quando é que surgiu historicamente este modo de nomear pessoas que hoje
identificamos com a lusofonia?
[2]
Que implicações sociais transporta essa tradição? Este é o desafio que fizemos
aos autores do actual número temático da revista Etnográfica.
A presente recolha é o resultado de um esforço conjunto afro-luso-brasileiro no
sentido de lançar um diálogo sobre uma questão que, afinal, é comum a todos
nós: os nomes de pessoa em português. Organizado conjuntamente pelo Instituto
de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e pelo Pagu – Núcleo de Estudos
de Gênero (Unicamp, Brasil) em Setembro de 2006, o Simpósio Internacional Nomes
e Pessoas: Género, Classe e Etnicidade na Complexidade Identitária
[3]
reuniu uma série de especialistas – nas áreas da antropologia sociocultural,
da história e da sociolinguística – para discutirem este tema. Do simpósio
resultaram duas colectâneas: uma tratando mais directamente das relações entre
os nomes pessoais e alguns dos principais vectores de diferenciação social
(género, etnicidade e família – vd. Pina Cabral e Viegas 2007); e a presente
recolha, onde se aborda explicitamente a questão da antroponímia lusófona,
tanto na sua perspectiva histórica como comparativa.
[4]
Nomes de pessoa
Estudamos, pois, nomes. Mas não um tipo qualquer de nome – nomes de coisas,
nomes de actos, nomes de lugares… não. Vamos tratar de algo que nos fascina a
todos especialmente: o nossopróprio nome, nome de pessoa. Ora, estudar nomes de
pessoa é estudar a pessoa – um dos conceitos analíticos mais abrangentes e
consensuais que hoje possuímos para abordar, numa perspectiva universalizante,
o ser humano enquanto ser sociocultural.
[5]
As considerações seguintes inspiram-se na afirmação de Wittgenstein de que “As
palavras só têm sentido no fluxo do pensamento e da vida.” (em Needham 1985:
25) Urge, pois, prestar especial atenção à forma como os nomes pessoais são
realmente usados em contextos linguísticos determinados, pelo que a abordagem
que de seguida proponho é essencialmente antropológica.
Nomes são elementos da linguagem que “estão por objectos”, no sentido que
captam a singularidade de um objecto determinado sem, no entanto, o
descreverem.
[6]
Os nomes de pessoa são “nomes próprios”; quer dizer que, por meio deles, é
designado um objecto singularmente determinado e não um tipo de objectos. Há
que distinguir os nomes próprios, portanto, dos “nomes de espécie” mas também
dos “nomes contáveis” – quer dizer, quando um nome próprio é apropriado para
referir uma espécie (como, por exemplo, quando digo “ele é um Hitler”); ou
ainda dos “termos de massa” (nomes como “ouro”, “água”, etc.) que, em sentenças
de identidade, funcionam como nomes de espécie.
Assim, quando tratado como um todo, o nome integral de uma pessoa lusófona (p.
ex., António Manuel da Silva Costa) é um “nome próprio”. Contudo, há que
sublinhar que as tradições euroasiáticas distinguem, no interior do nome de uma
pessoa, entre nomes individuais e nomes familiares (sobrenomes).
[7]
Os primeiros são propriamente “nomes próprios” (e por isso nos referimos assim
a eles) enquanto que os segundos são “nomes de espécie”. Dito isto, ressalva-se
que a forma de utilização conta. Assim, quando alguém se refere ao hipotético
sujeito acima como “o Silva Costa”, o sobrenome está a ser usado como um nome
próprio.
O processo referencial que liga o nome ao objecto (neste caso um agente humano)
é sempre provisório e rectificável e depende de todo um mundo de outras
referências. Consideremos a tradicional pergunta que o padre faz aos padrinhos
– “Que nome dar a esta criança?” Aí, “esta” é um termo ostensivo e “criança” é
um termo descritivo. Mas, para que a comunicação funcione entre os vários
agentes do ritual, eles têm que ter partilhado previamente uma série
indeterminada de categorias: tanto sobre como identificar o que é “esta” por
oposição a, por exemplo, “aquela”; quanto sobre como identificar o que é uma
“criança” por oposição aos outros seres presentes. Ao apontar para a criança, o
padre não está a apontar para o fatinho de renda, para a cruz peitoral, para a
pia, para a pele da criança ou para os seus ossos, mas para o todo que
constitui uma “criança” – um ser humano vivo que, portanto, integra uns e não
outros destes aspectos mas não é redutível a qualquer um deles.
De facto, a comum experiência perceptiva de um qualquer objecto indeterminado
não basta para assegurar a nomeação, porque não garante que seja possível
identificar ou reidentificar futuramente esse mesmo objecto. O que constitui um
objecto é a predicação – isto é, a sua relação com outros aspectos do mundo.
[8]
Só que uma predicação que não esteja associada a uma indicação é cega
(criança, “qual?”), da mesma forma que uma indicação sem predicação é vazia de
significado (esta, “esta quê?”). Como insiste Adriano Naves de Brito, “Para ser
baptizado, um objecto tem que estar suficientemente distinguido na
multiplicidade dos dados da percepção. Não se pode baptizar um objecto para o
qual não haja clareza sobre a sua identidade.” (2003: 189)
Em suma, o uso dos nomes próprios presume uma série indeterminável de
significados e é parasitário deles. Na verdade, como afirmou W. V. Quine, “não
há enunciados singulares” (em Brito 2003: 125 e 195), pelo que, tal como as
palavras nos dicionários, todos os conceitos são definidos por relação a outros
conceitos. Se eu posso nomear alguém com sucesso é porque eu já partilho muitos
outros significados com a pessoa com quem estou a comunicar. O que resulta
disto é que a disposição a encontrar significado antedata a própria
constituição individual dos significados particulares. Na verdade, os processos
de constituição de significado presumem dois factores anteriores: a socialidade
e a partilha de um mundo comum. Como explica Donald Davidson,
“A crença, a intenção e as outras atitudes proposicionais são todas sociais na
medida em que são estados em que uma criatura não se pode encontrar sem ter o
conceito de verdade intersubjectiva, e este é um conceito que não se pode ter
sem partilhar um mundo com alguém, e saber que se partilha, assim como uma
forma de pensar sobre esse mundo.” (2001: 121)
Ora, como estamos a tratar especificamente de nomes próprios de pessoas, há que
concluir que a constituição das pessoas individuais depende deste mesmo
processo. Todo o conhecimento que possamos ter de nós próprios enquanto pessoa
identificável por um nome próprio resulta da nossa inserção numa
intersubjectividade que, por um lado, é socialmente constituída e, por outro,
depende da partilha comum de um mundo ostensivo. A criança é baptizada antes de
saber falar. Quando chega a conhecer-se a si própria, portanto, já se conhece
por um nome que (por muito que, em algumas culturas, seja um nome de infância
temporário) lhe foi sempre atribuído por outrem num contexto particular
intersubjectivamente partilhado. Assim, “Não é importante se a referência é
fixada por meio de descrições ou ostensão. A causalidade que liga os elos da
cadeia de usos é relativa às intenções dos falantes no uso dos nomes próprios.”
(Brito 2003: 77)
A pessoa humana, portanto, não preexiste à sua condição social – tanto no
reconhecimento corporal de si mesma como no seu “eu” (self, o seu sentimento de
integração pessoal). Nesse sentido, a pessoa torna-se um sujeito activo no todo
social na medida em que apela e é sujeita a apelação. O significado dos nomes
pessoais para cada um de nós está directamente associado a uma dialéctica do
comparecimento – i. e., o ter estado face a face com outros seres humanos
nomeados, partilhando intersubjectivamente um espaço / tempo. Essa partilha
nunca reduz a alteridade essencial da pessoa; a identidade de cada um está
sempre ameaçada pela natureza necessariamente social do processo de
constituição de significado. Nomear, por isso, é desde logo reivindicar – fazer
exigências da pessoa (o que ressalta, por exemplo, do exemplo que nos é
apresentado neste volume por Alcida Rita Ramos).
Voltemos ao baptismo, até porque, pela importância histórica que o cristianismo
teve nos contextos de lusofonia, não corremos o risco de ser levados por
distorções etnocêntricas. Ao responder ao padre, atribuindo um nome à criança,
os pais ou padrinhos estão a realizar um acto constitutivo com um elevado teor
de criatividade.
Constitutivo porque estão a criar um novo processo de reconhecimento de pessoa.
Até há bem pouco tempo, aliás, o carácter constitutivo do baptismo era
explícito – a criança não-baptizada não só se encontrava numa situação de
grande instabilidade física como era tratada como sendo ainda pré-humana (cf.
Pina Cabral 1989: 141-143).
[9]
Mas a situação não se altera quando, em vez de eu baptizar, estiver
simplesmente a atribuir a alguém uma nova alcunha ou um novo hipocorístico
[10]
derivado do seu nome oficial. Também aí há constituição por meio de
recontextualização. Nunca mais me esquecerei da fúria com que a minha tia
reagiu quando, em criança, tentei atribuir um hipocorístico menos feliz ao meu
primo mais jovem no decurso dos nossos jogos infantis. Essa fúria era a medida
da natureza constitutiva do gesto que eu intentara.
Criativo porque as opções de escolha são sempre muito elevadas. Mesmo em
Portugal, onde a série dos nomes próprios mais usados é relativamente pequena
face a outros contextos lusófonos, a liberdade de escolha continua a ser
considerável. O aspecto principal de criatividade, porém, é o facto de a
escolha transportar sempre implicações semânticas – não só na etimologia do
nome, na referência hagiográfica ou histórica ou na referência às modas
vigentes mas, e sobretudo, pelo facto de a escolha de um nome criar
serialidades (intergeracionais, no caso português em que as pessoas recebem o
nome dos avós, dos padrinhos ou dos actores da moda; intrageracionais, no caso
brasileiro em que os nomes de uma série de irmãos ou primos partilham todos de
um elemento comum). Neste sentido, a tradição socioantropológica a que Robert
Rowland se refere no início do seu ensaio (presente volume) e que tende a
abordar os nomes pessoais como denotativos, reduzindo a relevância do seu teor
conotativo, distorce profundamente o processo.
[11]
Por exemplo, se escolho João Pedro ou Uólace para nome do meu filho,
[12]
tal prende-se com o que eu “acho” sobre esses nomes, com a forma como os
contextualizo semanticamente, com o futuro que desenho para o meu filho. O nome
pessoal, em suma, é “significativo”.
Mais uma vez a literatura fornece-nos exemplos úteis. No seu ensaio clássico
sobre “Proust et les noms”, Roland Barthes chamou a nossa atenção para o facto
de os nomes dos personagens do grande escritor francês serem sempre
“significativos” (1967). Através de uma série de processos (no caso de Proust
relativamente discretos), o autor indica ao leitor algo sobre a natureza do
personagem; evitando assim – ou, pelo menos, contornando – longas descrições
possivelmente tediosas. O recurso ao humor ou à formalização sobre as
características físicas ou sociais dos personagens é parte integrante da
tradição moderna do romance realista. Ana Maria Machado leva a cabo uma exegese
dos nomes das personagens de João Guimarães Rosa e aponta que tal poderia ser
feito com proveito para os romances de muitos outros escritores famosos (1991
[1976]: 138).
Para a autora, o que ressalta da análise do processo é que o nome das pessoas
ficcionais de Guimarães Rosa é polissémico e hipersémico. Quer dizer, há um
processo cumulativo e cruzado de referências que leva a que os “ecos” dos nomes
não são logo imediatamente patentes, nem fixos para todo o sempre, e continuam
a reflectir-se refractariamente através do romance (ibidem: 19). Não só não
existe um sentido único a decifrar, como o processo de decifração nunca está
terminado. A recriação dos ecos nominativos, como poderíamos chamar ao
processo, é constante através do romance e está sujeita a alterar-se em
releitura.
Ressalvadas as devidas diferenças, creio que há muito a aprender com esta
análise no referente aos processos de nomeação não-ficcional. No caso de
alcunhas, o processo é em tudo semelhante. Já no caso dos nomes oficiais – os
que recebemos no baptismo e / ou no registo civil – poderá parecer que os
efeitos de eco nominativo são menos notórios ou, pelo menos, menos conscientes.
Contudo, na minha própria investigação sobre nomes de pessoa, em Portugal, no
Brasil e em Macau, acabei por compreender que, por trás da resposta “Escolhi
esse nome para o meu filho porque é um nome de que eu gosto” ou “porque é muito
bonito”, existe todo um mundo de referencialidades submersas. Por vezes, a
“incapacidade” para explicitar claramente esses ecos nominativos por parte dos
agentes parecia funcionar até como uma maneira de proteger os nomeados contra a
usura causada pelo facto de, ao dar uma resposta, se estar a excluir muitas
outras – isto é, a necessidade de preservar a hipersemia.
As escolhas dos romancistas alertam-nos, portanto, para algo que é porventura
menos explícito nos processos de nomeação pessoal quotidianos mas que está lá
presente. Nesse aspecto, a conclusão principal que Ana Maria Machado retira do
seu estudo dos nomes em Guimarães Rosa tem um significado, creio eu, universal.
O nome próprio, diz ela, deve sempre ser visto como uma reminiscência. Para
compreender o que pode estar a ser dito com este comentário vale a pena
relembrar a definição do termo: “recordação vaga e imprecisa, em que predomina,
geralmente, a componente afectiva” (Dicionário da Academia das Ciências).
Nas entrevistas que fizemos a jovens mães na Bahia sobre os nomes que escolhiam
para os seus filhos, observámos dois aspectos centrais nas suas escolhas que
remetem para o conceito de reminiscência: por um lado, a natureza vaga e
imprecisa, submersa, dos ecos nominativos; por outro lado, a sua carga
afectiva. Enquanto reminiscência, portanto, o nome pessoal viabiliza três
processos identitários da máxima importância: o nome essencializa, na medida
em que dá existência externa e durável a um processo de identificação pessoal
que é sempre necessariamente evanescente; o nome cita, na medida em que remete
sempre, de uma forma ou outra, para casos anteriores; e explora, na medida em
que, através do processo constante de recontextualização dos ecos nominativos,
se abrem novas pistas identitárias.
Nomes em português
Ao abordar a antroponímia lusófona, os autores reunidos no presente número
temático são necessariamente levados a pôr o enfoque sobre a alteridade: como
divergem os nomes? como eram os nomes antes? que é que os faz diferentes entre
si? que outros nomes há? como se conjugam e combinam as diferenças? Um elemento
que os une é a procura de respostas a estas questões através do recurso a uma
conjugação mais ou menos ajustada ao tema que cada um escolheu entre
metodologias analíticas de cariz antropológico e metodologias de análise
histórica.
O primeiro grupo temático, referente à história das práticas nominativas
modernas em português, integra os ensaios de Robert Rowland e Nuno Gonçalo
Monteiro. Conjuntamente, os autores abrem todo um novo campo do estudo
historiográfico até aqui inexplorado entre nós. No primeiro caso, são estudadas
as mudanças que ocorreram no sistema nominativo português na passagem da Idade
Média para a Época Moderna; no segundo caso, as alterações que ocorrem em
Portugal e no Brasil com a chegada ao poder da burguesia nacional na segunda
metade do século XIX e inícios do seguinte.
Com estes estudos podemos compreender pela primeira vez como as mudanças nos
sistemas de nomeação pessoal lusófonos acompanharam as grandes mudanças
civilizacionais que instituíram novos regimes legais e políticos. Torna-se
possível perceber que estas mudanças de regime, no sentido político da
expressão, foram também mudanças no regime de constituição da pessoa humana –
elas estão associadas a novas formas de integração no relacionamento entre a
pessoa e o Estado, a Igreja, a família e a sociedade em geral.
Temos em seguida cinco ensaios que exploram a forma como o sistema de nomeação
pessoal lusófono se relaciona com outras tradições, chegando a coabitar com
elas de forma complexa e criativa. Passamos de um modo historicista de
caracterização da tradição lusófona, para um modo contrastivo. Dois ensaios
estudam casos de relacionamento com as tradições ameríndias brasileiras em
contextos profundamente distintos: Alcida Rita Ramos observa como os Sanumá
(Yanomami) usam os seus nomes “sob rasura”, o que levanta particulares
problemas quando estes se confrontam com formas lusófonas de usar nomes como
objectos públicos; Susana de Matos Viegas, por outro lado, mostra como as
práticas nominativas entre os índios Tupinambá da Bahia reflectem os processos
de integração de diferentes tradições antroponímicas, por um lado, e de
reivindicação de direitos sociais, por outro.
Os dois ensaios seguintes estudam casos de relacionamento entre o sistema
lusófono e sistemas africanos: Wilson Trajano Filho, num magnífico ensaio de
pendor tanto histórico quanto comparativo, coloca o enfoque sobre os processos
de crioulização ocorridos no início do século XX na costa da Guiné, mostrando
como os nomes que as pessoas usam reflectem e, ao mesmo tempo, produzem
processos de intercâmbio e mutação sociocultural; por seu lado, Gregório
Firmino estuda a forma como, durante os períodos tardo-colonial e pós-
colonial, os Vatonga de Inhambane (Moçambique) criaram formas de nomeação que
integram tanto as lógicas patrilineares nativas como os novos processos de
nomeação associados à modernidade. Em seguida, no seu ensaio sobre Timor, Rui
Graça Feijó apresenta material até hoje totalmente inédito sobre a forma como
os timorenses reagiram à mudança política e social adoptando e manipulando
distintos tipos de práticas nominativas.
Os três ensaios finais abordam a questão da diferença antroponímica de um outro
ângulo: estudando processos de nomeação pessoal paralelos ao sistema oficial.
Assim, Heloisa Pontes explora no seu ensaio a relação entre género e
modernidade através dos nomes públicos das actrizes brasileiras da primeira
metade do século XX. Piero de Camargo Leirner, por seu turno, mostra como os
nomes de guerra dos militares brasileiros se inserem dentro de um sistema
nominativo que é, de facto, global e, nessa medida, ultrapassa por completo as
lógicas nacionais e lusófonas, sendo estruturado pela postulação abstracta do
Inimigo. Finalmente, Mark Harris discute o potencial transgressivo das alcunhas
que constituem veículos de continuidade cultural no Pará brasileiro dos
períodos colonial e imperial.
O artigo final é uma tentativa de operacionalizar a já tão velhinha, mas ainda
tão rica, metodologia antropológica da “comparação controlada”. Aí, à luz de
uma longa experiência etnográfica em vários contextos sociais onde a lusofonia
é, por assim dizer, posta à prova do confronto com a diferença, eu próprio
tento analisar quais as grandes linhas de força que integram o universo
antroponímico lusófono como um universo de reminiscência.
Um destino de abertura
“Na obra de Guimarães Rosa,” diz-nos Ana Maria Machado,
os Nomes formam um sistema global de significação e, dessa maneira, desempenham
um papel classificador. Ao mesmo tempo, significam em seu sistema a própria
existência da significação, provando que não é possível falar em um sentido
único para um texto, mas obrigando à incorporação de uma pluralidade de
leituras – o que é completamente diferente de uma diversidade de
interpretações, e é a manifestação do destino de abertura do texto. (1991
[1976]: 141)
Creio que, imersa nesta frase, está uma importante lição para compreendermos a
forma como todos nós, através das nossas vidas, usamos nomes de pessoas: como
recebemos os nossos nomes; manipulamos os nossos nomes; atribuímos nomes a
outros; compreendemos os nomes deles; e, finalmente, alteramos os seus ecos
nominativos através do uso. Em todas essas práticas, como demonstram os textos
incluídos na presente recolha, manifestamos também um destino de abertura.
Os nossos nomes desempenham uma função classificatória, está claro; que seriam
senão isso as listas telefónicas? Contudo, a importância que estas detinham há
uns anos atrás como forma de situar uma pessoa numa cidade (e quantos de nós
passámos horas debruçados sobre listas telefónicas?) parece ter-se finalmente
esvanecido com os search motorsinternéticos. A procura de situar uma pessoa
através de um sistema classificativo uninominal – que era um elemento
integrante de tantos romances policiais e tantos romances de vida... durante
toda a segunda metade do século XX – parece-nos hoje algo do passado.
Isto permite-nos até compreender com mais facilidade que um nome oficial não é
um destino – compreender a natureza aberta da nominação. Mas há muito mais na
lição dos romancistas. A pluralidade de leituras a que um nome se sujeita é um
fenómeno aberto em constante recriação. No nosso quotidiano, deparamo-nos com
uma diversidade de interpretações, claro. Ninguém interpreta o nome de outrem
da mesma forma; há muito a saber para compreender o nome de qualquer um de nós.
Aliás, por isso mesmo, quase todos gostamos tanto de falar sobre os nossos
nomes; elaborando exegeses complicadas à mínima provocação; manipulando os seus
ecos nominativos.
Há mais que isso, porém. É que os nomes de pessoas são por natureza
enigmáticos. Todos sabemos que não sabemos tudo sobre o que levou à atribuição
de um nome pessoal particular ou ao que outra pessoa poderá ler nele. Aí, a
questão da hipersemia dos nomes de pessoa é da máxima relevância. A tal
diversidade de interpretações é, afinal, muito mais que uma mera diversidade,
ela é uma abertura.
Por contraste com a literatura, porém, no caso dos nomes de pessoas vivas, não
se trata unicamente do destino de abertura de um texto; trata-se, outrosim, do
destino de abertura de uma vida, ou melhor, vidas – já que, no jogar da
interpretação de um nome (e esse jogo é permanente), está em causa a vida de
quem é chamado mas também a de quem chama. Não é só a literatura que é “uma
exploração do Nome”, como dizia Barthes; também a nossa vida pessoal acaba por
revelar esse constante jogo de reminiscência: os nomes exploram, citam e
essencializam as pessoas.
“Eu chamo-me João” e “o meu nome é João”: respondo a esse nome e sou
proprietário desse nome. Mais que isso, porém, “eu sou o João”. Em inglês, esse
elemento essencializante é ainda mais patente quando nos identificamos dizendo:
“This is João.” Sem o nome seria difícil integrar a “coisa”; por isso, em
praticamente todos os contextos socioculturais humanos até hoje conhecidos pela
antropologia ocorrem cerimónias públicas de nomeação pessoal durante a primeira
infância. Nessa medida, o nome tem um significado constitutivo que o diferencia
radicalmente das outras formas policiais de “identificar” uma pessoa – como as
impressões digitais, o desenho das pupilas ou o ADN.