Rio de Janeiro: Cultura, Política, Conflito
Gilberto Velho (org.)
Rio de Janeiro: Cultura, Política, Conflito
Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2008, 228 páginas.
Num estilo ecléctico, abrindo muitas portas de entendimento e sublinhando as
potencialidades de um método, o etnográfico, esta obra está entre aquelas que
merece ser lida por muitos. Trata-se de uma colectânea que resulta da
articulação de dois factores: a já maturada pesquisa de Gilberto Velho em torno
dos temas da antropologia urbana e das sociedades complexas e a edição de
pesquisas em curso, levadas a cabo por alunos do Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social do Departamento de Antropologia do Museu Nacional / UFRJ. É
uma obra de síntese de temas muito variados mas que tem como pano de fundo a
cidade do Rio de Janeiro, em particular, e os universos urbanos, em geral.
Há muito que Gilberto Velho assumiu como responsabilidade a abertura de um
campo de estudos antropológicos dos fenómenos complexos que observava na
sociedade brasileira e em detalhe na cidade carioca. A lista de publicações é
hoje muito extensa e foi inaugurada por essa grande inquietação intelectual que
representa O Desafio da Cidade (Campus, 1980). Na última década, porém, o autor
tem-se dedicado insistentemente à questão da violência no Brasil contemporâneo,
por exemplo em Cidadania e Violência (FGV, 1996), Mudança, Crise e Violência
(Civilização Brasileira, 2002).
Em Rio de Janeiro: Cultura, Política, Conflito, no texto de abertura escrito
pelo autor, Metrópole, cultura e conflito, podemos sublinhar dois aspectos
principais para uma análise crítica contemporânea da vida urbana no Rio.
Primeiro, a forma como descreve a transformação rápida de uma cidade em
metrópole. Segundo, G. Velho insiste no argumento de que a convivência
interidentitária, a coexistência e interacção entre diferentes segmentos
sociais ' base mesmo da vida nas cidades ' parecem hoje encontrar-se
comprometidas. Neste sentido, o autor recorre aos estudos de G. Simmel para
diferenciar conflito (presente em todas as sociedades) e violência (dimensão
não generalizada da vida social), defendendo que no Rio se desenvolve uma
verdadeira cultura da violência que ultrapassou largamente os limites da
conflituosidade social.
O texto lança o mote que serve de âncora aos restantes textos do livro: a
cultura é o eixo privilegiado da investigação. As diferenças em termos de
visões de mundo e estilos de vida entre categorias sociais que convivem e
interagem cotidianamente não são sempre óbvias ou facilmente identificáveis
(p. 12). Assim, propondo uma abordagem etnográfica, um esforço intelectual de
estranhamento do familiar, os restantes textos lançam-se na procura desses
traços culturais que fazem do Rio de Janeiro a cidade que ela é, a cidade como
ela é, para parafrasear o famoso cronista Nelson Rodrigues.
Os textos que se seguem são olhares próximos, etnografias situadas, que partem
da reflexão de vários problemas e fenómenos que têm expressão na cidade e que
oscilam criativamente entre: os bailes funk; os showmícios da política; redes
sociais de músicos e professores da Baixada Fluminense; mulheres do samba;
boates, estilos de vida gay e práticas homoeróticas; o mundo do heavy metal de
várias zonas do Rio; camelôs e pontos de venda ambulante. Este é um aspecto a
louvar só por si. Nesta obra temos a possibilidade de entrar directamente em
realidades que não tendo sido etnografadas se mantiveram amplamente
desconhecidas para grande parte de académicos e do público leitor em geral.
Tal como os temas, também os estilos narrativos são variados. Por exemplo, o
texto de F. Piccolo, Os jovens entre o morro e a rua , propõe-se tratar as
questões de negociação do estatuto no acesso ao terreno de estudo (o morro de
Vila Isabel, na zona norte do Rio), desenvolvendo e demorando-se sobre a sua
categoria de outsider e sobre como se foi construindo uma certa familiarização
com as pessoas do contexto estudado. Era não só a jovem mulher branca, não
identificada como residente ou oriunda do mesmo segmento social das pessoas com
quem se relacionava, mas uma recém-moradora do Rio de Janeiro, oriunda de um
outro Brasil, do Rio Grande do Sul, e amplamente desconhecedora dos morros
cariocas.
Talvez em sentido inverso, o texto de S. Costa, Vertigem em Nilópolis ,
aproveita a sua experiência etnográfica para revelar, num tom confessional,
desenvolvimentos autobiográficos associados à experiência de regresso ao lugar
onde cresceu e de onde saiu para a ele voltar, mas agora perspectivando-o de
modo antropológico. Ao olhar para a vida cultural na Baixada Fluminense, o
espelho identitário mostrou-lhe conflitos subjectivos e uma certa transformação
progressiva do que é familiar em estranheza e que, num momento seguinte, foi
necessário deslindar.
Já M. Burns, em A dona da voz e a voz da dona , opta por descrever uma vida,
a da compositora e sambista Dona Ivone Lara, à medida que vai sugerindo
interpretações sociológicas. Por sua vez, P. Lopes, em Mundo heavy metal no
Rio de Janeiro, leva-nos no seu ombro numa viagem a vários clubes, ambientes
underground, rixas e aparato simbólico destes rockeiros. Enquanto isso, procura
explicar como se formulam identidades juvenis, zonas de gosto e o seu próprio
interesse pessoal na escolha deste objecto de estudo.
Os textos da obra não se centram apenas nas questões que à tecnologia da
produção antropológica dizem respeito, e talvez por isso sejam tão
interessantes.
Ao usarem ferramentas disponíveis para conhecer e descrever o que observam, ao
usarem quer modalidades narrativas mais introspectivas e autobiográficas, quer
visões menos atravessadas por envolvimentos pessoais, os textos vão oferecendo
dados relevantes para a interpretação das plurais e multi-situadas realidades
urbanas.
O texto de A. Barreto, Sobre palanques e palcos é, quanto a mim, dos mais
bem conseguidos na articulação entre a proposta metodológica e a interpretação
dos dados. Usa uma metodologia criativa para observar na sua extensão e
plasticidade o papel dos showmícios na vida política-partidária local. Ao mesmo
tempo, o texto é relevante para evidenciar as relações entre dinamismos
políticos, culturais e económicos da cidade.
Outro texto bem conseguido é o de M. Benítez, Buraco da Lacraia , na medida
em que evidencia a presença do corpo e das marcas de raça, classe, género,
idade e estilos nas interacções interpessoais e, em particular, nos
intercâmbios homoeróticos estabelecidos.
Por fim, P. Mafra, em Camelôs cariocas, oferece uma pitada do que pode vir a
ser uma boa etnografia, circulando com os vendedores ambulantes do Rio de
Janeiro e que, sendo alvo de políticas restritivas e de controlo policial,
evidenciam uma actividade que não cessa de crescer. Seria certamente muito
interessante, todavia arriscado, penetrar os canais de influência e de expansão
local / global dos pequenos e grandes camelôs.
O que se revela atraente nesta obra é como a sua estrutura e organização
reflecte em grande medida o que é perceptível para a maioria dos cariocas e
para quem com eles convive um dado período da sua vida. Se, por um lado, é
inegável uma geografia da violência, terrenos e itinerários dos problemas:
crescendo de violência armada e ligações opacas entre política, crime, polícia,
por outro lado, o Rio de Janeiro é uma cidade que não cessa de fervilhar nas
suas opções culturais, de sociabilidade múltipla, nas trocas de experiências e
de estilos de vida e até mesmo na afirmação de novos mercados locais e de
possibilidades, formais ou informais, que fazem da economia e da sociedade
brasileira um exemplo de dinamismo no mundo.
Assim, qualquer retrato sociológico do Rio de Janeiro que não contemple pelo
menos o cruzamento entre estas duas leituras da realidade quotidiana ' que para
simplificar se poderiam determinar como uma mais crítica e outra mais aberta à
surpresa ' não pode oferecer um quadro coerente do que ali se passa.
Susana Durão
Investigadora auxiliar do ICS-UL