Of alien kings and perpetual kin: contradiction and ambiguity in ruwund (lunda)
symbolic thought
Manuela Palmeirim
Of alien kings and perpetual kin: contradiction and ambiguity in ruwund (lunda)
symbolic thought
Wantage (Oxon), Sean Kingston Publishing, 2006, 175 páginas.
Não deixa de ser interessante que tenha sido no ano do centenário de
LéviStrauss que tive oportunidade de ler esta obra. O esforço mitológico que
este autor realizou na América teve pouco eco em África. Com poucas excepções,
entre as quais a mais significativa é sem dúvida a do antropólogo belga L. De
Heusch, poucos autores se dedicaram a estudar o mito em África como Lévi-
Strauss o fizera na América. Para tornar mais complicada a recepção do estudo
estrutural do mito em contextos africanos, o trabalho de De Heusch despertou um
debate, por vezes visceral, com o seu conterrâneo historiador J. Vanisa, para
quem os exercícios estruturalistas de De Heusch representavam um obstáculo para
o estudo do valor histórico das tradições orais.
Manuela Palmeirim toma partido pela visão estruturalista, na qual o valor do
mito de origem e dos heróis culturais radica na sua capacidade de oferecer um
modelo através do qual a sociedade se pensa a si própria. O livro trata do mito
de criação dos Aruwund e do poder legitimador que o mito confere ao seu rei, o
Mwant Yaav. Os Aruwund vivem no Sul da República Democrática do Congo (ex-
Zaire), onde a autora realizou trabalho de campo em 1987-88 e em 1992 quando
realizava a sua tese de doutoramento em antropologia na School of Oriental and
African Studies de Londres. Como outros povos centro-africanos, os Aruwund,
hoje habitantes da província de Katanga, apresentam um modelo de realeza divina
no qual o rei é fundamental para o bem-estar da terra e da comunidade, embora
coexista com outros mecanismos de poder governamental dependentes de Kinshasa.
O estudo de Palmeirim é importante não só porque constitui uma análise muito
detalhada do pensamento simbólico, mas também porque Katanga, com uma história
marcada por episódios e reivindicações independentistas, é uma região muito
problemática no contexto de um país cuja estrutura territorial é
particularmente volátil.
O livro não só oferece um exemplo paradigmático de análise estruturalista
aplicada à realeza divina, como é também uma excelente introdução ao debate
sobre o mito e a história que atravessa a literatura historiográfica e
antropológica africanista dos últimos 50 anos, sobretudo no capítulo 2. Aqui a
autora debruça-se sobre os heróis que articulam a memória dos dignitários reais
em torno de Mwant Yaav, exercício que revitaliza o clássico tema do culture
heroe (neste caso, um caçador) e da invenção da civilização, uma temática
anteriormente analisada, na mesma região, por De Heusch, com quem a autora
mantém um constante diálogo e também algumas discrepâncias interpretativas.
Para além dos temas míticos e metodológicos, o trabalho mostra o grande valor
analítico que tiveram no passado (e que a autora re-actualiza no presente) os
modelos culturais, ligados ao parentesco, do perpetual kinship, segundo I.
Cunnison (o modelo segundo o qual os grupos sociais mantêm uma relação de
parentesco baseada em relações entre indivíduos de gerações passadas) e da
positional succession, segundo A. I. Richards (o modelo onde o antepassado
falecido é substituído por uma outra pessoa que ocupa o seu lugar e, como tal,
torna irrelevante a sua morte). O conhecimento destes modelos, presentes no
pensamento simbólico e na cultura política dos povos centro-africanos, ajuda a
análise das situações políticas contemporâneas, em concreto o paradoxo do rei
(o centro do livro): o paradoxo segundo o qual o rei é um de nós e ao mesmo
tempo um estrangeiro.
A opção por considerar o mito e as suas variações (todas igualmente válidas
segundo Lévi-Strauss) como modelos para pensar e não conjuntos de dados
factuais sobre a história, leva a autora (capítulo 4) a introduzir um breve e
penetrante ensaio sobre a hierarquia. Na sua opinião, a distinção entre
hierarquia e igualitarismo não separa ideologias de diferentes tipos de
sociedade, como L. Dumont argumentara. Esses são, sim, modelos complementares
que uma mesma sociedade pode invocar, por vezes de forma simultânea e usando
diferentes recursos (autoctonia e invasão, para citar dois exemplos
contraditórios), para explicar a sua história e produzir o que a autora
denomina um efeito caleidoscópico pelo qual a hierarquia e a igualdade são
ambas importantes para a constituição da realeza (p. 88).
O livro, assim como a pesquisa etnográfica sobre o qual se constrói, apresenta
um grande rigor, detalhe e honestidade científica. Embora a síntese seja sempre
bem-vinda, neste caso talvez a autora tenha sido demasiado breve na
contextualização dos Aruwund no Zaire pós-colonial e se precipite na análise do
mito e das suas variações e transformações. Na minha opinião, o principal
problema de um estudo simbólico deste tipo é torná-lo relevante para a
compreensão da actual política africana (embora pense que, precisamente, devia
ser mais relevante). Com a situação no Congo e com os debates científicos em
torno do crescente valor ' como recurso cultural e político ' da autoctonia
numa África neoliberal (pensemos nos trabalhos recentes de Bayart e Geschiere,
por exemplo), assim como com o regresso mais ou menos democrático das chamadas
autoridades tradicionais em quase todos os países do continente, é pena que a
autora não tenha aproveitado o seu incomparável conhecimento da sociedade do
Katanga (um dos casos em que a autoctonia não é uma metáfora mas um discurso
real sobre a emergência telúrica dos habitantes) para dialogar com outros
autores e tornar o seu fascinante material muito mas relevante para os debates
mais recentes. Mas isto é também efeito da sua honestidade intelectual e da
fidelidade ao modelo com que construiu a sua narrativa. Talvez o diálogo com
outros autores sobre a politização da autoctonia, sobre a revitalização das
realezas divinas em África, sobre a descentralização política e sobre outros
aspectos em relação aos quais ela terá, certamente, muito a dizer fique para
ulteriores pesquisas. Esperemos que assim seja, e que sejam realizadas com o
mesmo rigor e detalhe com que realizou o trabalho agora publicado.
Ramon Sarró
Instituto de Ciências Sociais (UL)