Os lenços de namorados: frentes e versos de um produto artesanal no tempo da
sua certificação
Jean-Yves Durand (org.)
Os lenços de namorados: frentes e versos de um produto artesanal no tempo da
sua certificação
Vila Verde, Município de Vila Verde, Proviver EM, 2008, 2.ª ed. (revista e
aumentada), 302 páginas.
Os lenços de namorados constituem um tipo de produção artesanal certificada
recentemente no âmbito do Programa para a Promoção dos Ofícios e das
Microempresas Artesanais (IEFP), bem como da legislação de enquadramento em
vigor desde 2001 / 2002, sendo objecto de regulamentação a área de produção, as
matérias-primas e os processos técnicos e decorativos admissíveis para a
confecção dos lenços, mas também as próprias formas e dimensões destes.
Foi ao desafio colocado por este processo de certificação, liderado por várias
entidades de promoção do desenvolvimento local, que a equipa organizada por
Jean-Yves Durand procurou responder, caracterizando o universo dos lenços de
namorados, e é precisamente desse estudo e reflexão que o livro aqui em apreço
dá conta e de que veio a resultar, já em 2007, a reformulação dos critérios de
certificação anteriormente aplicados aos lenços.
No processo de interrogação e caracterização desta produção têxtil, o trabalho
da equipa liderada por Jean-Yves Durand descobriu um universo verdadeiramente
polimorfo, contraditório dos discursos sobre ele construídos às escalas local,
regional e nacional, sobretudo desde as décadas de 1980 / 1990, e cuja ampla
diversidade ' de ordem tipológica, técnica, artística, territorial e funcional,
mas também quanto às diferentes ordens de valores de que os lenços são
investidos e aos seus âmbitos sociais de produção e consumo ' parece ela
própria contraditória de qualquer esforço de regulamentação do que pode ou não
ser designado e reconhecido como lenço de namorados.
Para além do trabalho etnográfico junto de bordadeiras (e bordador), a
caracterização deste universo resultou, em grande medida, da análise material
de um grande quantitativo de lenços ' não apenas da produção contemporânea
destinada ao mercado e de exemplares privados observados em trabalho de
terreno, mas de diversas colecções, privadas e de museus ' amplamente
documentado nas 291 imagens que ilustram o livro.
Muito diversificadas, as colaborações do livro estenderam-se para além da
perspectivação antropológica. Conta-se entre estas o importante esboço
historiográfico de Ana Pires, que situa as incógnitas das origens dos lenços de
namorados por relação com outros tipos de bordado em Portugal, bem como o que
estes revelam em termos de organização do trabalho, questões de género e
diferenciação social, retomados por Jean-Yves Durand para o presente e
pretérito etnográficos dos lenços. A contribuição de Adriano Basto, centrada
sobre os textos reproduzidos nos lenços e o que eles revelam de norma e desvio
linguístico, é também recentrada e desenvolvida por Jean-Yves Durand a
propósito de um dos vectores de legitimação da genuinidade dos lenços de
namorados.
Responsável pela análise da bibliografia de referência produzida sobre os
lenços desde finais do século XIX e do que a mesma foi revelando das imagens e
discursos eruditos construídos em torno desta produção, Clara Saraiva aborda
este universo a partir de perspectivas como os ritos de passagem, a lógica da
dádiva e a construção social dos géneros e das respectivas emoções. Analisa
ainda os processos de emblematização, identitária e / ou mercantil, de que os
lenços têm vindo a ser objecto, transportando-nos inclusivamente para algumas
das dimensões psicológicas da actividade de bordadeira. Mónica Pinho, por seu
turno, é responsável pelo capítulo onde se transcreve parte das entrevistas por
si realizadas junto das bordadeiras (e bordador), que nos remetem, em discurso
directo, para essa multiplicidade de percursos e de soluções, que os lenços
espelham e que constitui uma das principais razões para as dificuldades da sua
classificação morfológica.
Cerzindo, e frequentemente sistematizando os diversos problemas e planos de
análise suscitados pelos demais elementos da equipa, a vasta contribuição de
Jean-Yves Durand desenvolve-se a partir da certificação dos lenços,
designadamente enquanto motor e reflexo de processos de patrimonialização e
mercadorização da cultura popular. Desconstrói discursos e imagens em diversas
escalas e contextos e interroga em permanência as lógicas e os fundamentos (de
ordem económica, financeira, social, identitária, psicológica, etc.) desse
processo de certificação. Identifica, inclusivamente, problemas passíveis de
serem colocados a esse processo num futuro próximo, mas, não obstante, pondera
posições (maximalista vs. minimalista), propõe soluções e sugere o
estabelecimento de parâmetros específicos para a concretização dessa
certificação.
Elaborado em equilíbrio entre o discurso académico e a divulgação científica,
este trabalho é particularmente importante para pensar os princípios e os
dilemas éticos inerentes à sua realização ' aos quais Jean-Yves Durand dá
recorrentemente voz ' e que decorrem do facto de que, sendo resultado de uma
interrogação da realidade social dos lenços de namorados, ele é, simultânea e
assumidamente, um dos instrumentos no processo de (re)construção dessa
realidade.
Trata-se, em suma, de um olhar distanciado sobre um processo de
patrimonialização que identifica, inclusivamente, as contradições desse mesmo
processo, quando, por um lado, potencia novos mercados e novos consumos e, como
tal, promove a revitalização desse produto, mas, por outro, cristaliza os
parâmetros da sua produção, reduzindo as possibilidades da sua inovação no
âmbito de uma realidade social em permanente mudança. É, contudo, um olhar
sobre um processo de patrimonialização em que a própria equipa participou, com
efeitos nas próprias dinâmicas sociais inerentes à produção, consumo e
valoração dos lenços.
Neste sentido, a importância do livro não se esgota apenas no seu objecto e
conteúdos, sendo igualmente bom para pensar processos de patrimonialização
inerentes à revitalização de técnicas populares e tradicionais e à
revalorização dos respectivos produtos, em particular no âmbito de processos de
certificação artesanal.
Sendo um bom exemplo do papel que os antropólogos podem desempenhar fora do
âmbito académico (designadamente em terrenos de reflexão sobre objectos
tradicionais da disciplina, contribuindo com as suas competências específicas
para a programação e aplicabilidade de tais processos de patrimonialização /
certificação e habilitando de forma qualificada as decisões de ordem política,
económica, ou outras, que lhes darão execução), Os Lenços de Namorados:
Frentes e Versos de um Produto Artesanal no Tempo da Sua Certificação é, em
particular, um importante contributo para pensar os desafios que se colocam à
antropologia no recente contexto de valorização da cultura popular tradicional,
quer a partir dos campos da economia, do desenvolvimento e do turismo, nos
quais se centram os processos de certificação artesanal, quer estritamente no
campo patrimonial, no recém-constituído domínio do património cultural
imaterial.
Paulo Ferreira da Costa
Instituto dos Museus e da Conservação