Apresentação
Apresentação
Jean-Yves Durand
Universidade do Minho, CRIA
Embora digam praticar uma disciplina agora deliberadamente virada para a
contemporaneidade, continua a ser algo raro ver antropólogos participarem em
debates cidadãos na sua qualidade de cientistas sociais. A presença da
disciplina na esfera pública é muito variável consoante os países e os
momentos. Em Portugal, a sua imagem pública (para quem tem uma) continua a
evocar em exclusivo o universo rural ou mundos exóticos, tribos e
tradições, crenças e artesanato Há uma certa ironia no facto de ter sido
em relação a um objecto ligado a parte desta nebulosa, o Museu de Arte Popular
(MAP), que vários antropólogos portugueses deram recentemente a cara, mesmo se
alguns deles (João Leal, Vera Marques Alves e Sónia Vespeira de Almeida)
mostram precisamente que o passadismo associado ao MAP tem de ser reavaliado. E
deve ser por ter dirigido um estudo sobre os lenços de namorados, objectos que
foram aproveitados com criatividade pelos defensores do MAP, que fui solicitado
várias vezes para participar no protesto contra a decisão do governo
(apresentada nos artigos seguintes). Acontece que a minha posição era muito
mais matizada. Claro, num mundo perfeito, seria possível musealizar o MAP como
testemunho de um momento cultural marcante do século XX em Portugal. Ou talvez
não. Num mundo perfeito o Estado Novo nunca teria existido e, portanto, o MAP
também não.
Mais seriamente, será que uma tal metamusealização historicista, cujo interesse
documental não se discute no absoluto, faz sentido no contexto económico,
cultural e museológico actual (Paulo Ferreira da Costa)? (O interesse, no mesmo
contexto, de um museu Mar da Língua Portuguesa destinado a MAP é outro assunto
que importa discutir independentemente.) O argumento de que hoje tudo é
património (João Leal) chega realmente para justificá-la do ponto de vista de
uma ciência social crítica confrontada com a vertigem patrimonializadora das
sociedades contemporâneas? A continuidade da ligação entre as colecções e a sua
cenografia (Vera Marques Alves e Sónia Vespeira de Almeida), quando esta pode
ser registada, é realmente necessária? Fazer do MAP um pólo de dinamização
directa da criatividade cultural e talvez económica: mas como, concretamente?
Não há inúmeras outras instituições com este papel? Já que passaria assim a
distinguir-se de um museu tal como entendido habitualmente, o que seria então?
Este último ponto é -talvez o mais estimulante de toda a questão: num momento
em que numerosos países europeus estão a repensar, com dificuldade, o papel dos
seus museus etnográficos, o caso do MAP pode espoletar uma reflexão comparável
em Portugal (Paulo Ferreira da Costa), onde parece cada vez mais urgente e
inevitável.
A Etnográfica não tem vocação jornalística, mas achámos importante acompanhar e
reagir, com a celeridade possível por parte de uma revista académica, aos
acontecimentos da vida de um museu que nos diz directamente respeito (toda a
situação mudou durante o Verão, com a reabertura do processo de classificação
do edifício). Fortes constrangimentos de calendário e de espaço não permitiram
dar ao dossiê todo o desenvolvimento desejado, começando por esta brevíssima
apresentação, que se previu inicialmente como um artigo inteiro: as opiniões
contraditórias e as interrogações apontadas aqui estão longe de ser exaustivas.
A Comissão Editorial espera vivamente que sejam o ponto de partida para um
debate alargado entre os nossos leitores, cujas contribuições são agora
esperadas.