Uma proposta antropológica para o futuro do Museu de Arte Popular
Uma proposta antropológica para o futuro do Museu de Arte Popular
Sónia Vespeira de Almeida e Vera Marques Alves
FCSH-UNL, CRIA / CRIA
Nos anos 80, James Clifford (cf. 1988: 229) regozijava-se com o abandono do
projecto de modernização da Boas Room of Northwest Coast Artifacts do Museu
Americano de História Natural. E isto porque essa sala, com a sua configuração
e atmosfera datadas, desvendaria um momento particular do interesse pelos
objectos não ocidentais. Aliás, adiantava ainda Clifford, qualquer exposição de
antropologia deveria tornar visíveis as condições históricas que levaram à
constituição da colecção exibida. Este posicionamento evidenciaria, antes de
mais, a forma como antropólogos, artistas e públicos se coleccionavam a si
próprios e ao mundo.
Em 2006, o Ministério da Cultura anunciou o encerramento do Museu de Arte
Popular (MAP) de modo a instalar no seu edifício o Museu da Língua Portuguesa.
Neste artigo apresentamos alguns argumentos que explicam porque é que esta
decisão é um erro. A extinção do MAP, mantendo, por um lado, a integridade
exterior do edifício, implicaria, por outro, a ocultação dos murais que decoram
as suas paredes interiores, o armazenamento de parte do seu mobiliário original
noutras instituições e a deslocação da sua colecção para o Museu Nacional de
Etnologia (MNE). Desmembrar-se-ia, assim, uma unidade museológica que se
mantivera quase inalterada desde os anos 40, cujos diferentes elementos '
arquitectura, decoração interior, arranjo expositivo e colecção ' foram
concebidos em conjunto, só ganhando significado em relação mútua.
Tal como Clifford defendeu a -necessidade de manter a configuração inicial da
Sala Boas, também nós propomos a preservação do MAP, sugerindo a sua -
musealização de modo a dar a ver as ideias e valores que estiveram subjacentes
à sua criação. O museu pode, assim, tornar-se não só um lugar de reflexão sobre
as conotações ideológicas da arte popular durante o Estado Novo, mas também um
instrumento decisivo para a compreensão de outras etapas do interesse
intelectual e ideológico pela cultura demótica ao longo dos séculos XIX e XX.
Em última instância, é a própria ânsia contemporânea pelo autêntico e pelo
genuíno através do popular que pode ganhar um espaço ideal de interrogação
crítica.
Só recentemente começou a perceber-se a complexidade de sentidos que o MAP
incorpora. Durante longos anos, o museu foi vítima de um processo de
negligência, de ordem museológica e científica, que resultou na ausência de
informação, quer sobre os Mecanismos que acompanharam a constituição da sua
colecção, quer sobre o contexto intelectual e político que lhe conferiu um
determinado formato. Inaugurado em 1948 pelo Secretariado da Informação,
Cultura Popular e Turismo (SNI) ' o órgão do Estado Novo responsável pela
propaganda e política cultural do regime ', o MAP tem sido várias vezes
reduzido a um produto acabado da ideologia ruralista e passadista de Salazar,
imagem que empobrece e lesa a compreensão do que é o museu e do que foram as
ideias e processos históricos que explicam o seu aparecimento. O MAP veiculava
uma imagem do povo que ia ao encontro do projecto social e político do regime,
mas essa imagem não devia menos à vivência modernista e cosmopolita de António
Ferro, primeiro director do SNI.
Com efeito, o MAP foi o culminar de uma política folclorista que começou a ser
concebida por Ferro ainda nos anos 20, tendo sido depois sistematicamente
desenvolvida no quadro da actividade do . A grande preocupação que orientou
essa política, e nessa medida o projecto do próprio museu, foi a da afirmação
de Portugal como uma nação moderna, mas distinta de todas as outras. No -
desenho dessa distinção, a arte popular portuguesa teria uma vantagem em
relação ao culto das glórias do passado pátrio: falaria de uma nação plena de
vitalidade que não vivia apenas da grandeza pretérita (cf. Alves 2008). É neste
contexto que a colaboração dos artistas modernos nas acções de carácter
etnográfico do é tão significativa. Colocando o arranjo expositivo e pinturas
murais interiores do MAP nas mãos da equipa de pintores decoradores do e
atribuindo ao arquitecto modernista Jorge Segurado a responsabilidade da
transformação da estrutura da Secção da Vida Popular da Exposição do Mundo
Português no edifício do museu, António Ferro impedia assim que a arte popular
fosse um mero sucedâneo do culto das antiguidades históricas. Por isso, separar
os objectos expostos no museu do seu contexto original, relegando-os para outro
espaço, prejudicaria profundamente a capacidade de compreensão das ideias que
estiveram subjacentes à criação daquela colecção.
A aproximação de António Ferro à arte popular ' em que o moderno e o
tradicional se misturavam ' era já patente em 1921, quando o escritor promovia
a constituição de bailados modernos portugueses -inspirados nas danças e trajos
populares. Ganharia novo fulgor no encontro de Ferro com os modernistas
brasileiros na Semana Moderna de São Paulo, na sua vista às Exposições
Internacionais dos anos 20 ou nas suas viagens a Barcelona e Bucareste em 1929
(cf. Alves 2008). O MAP testemunha, de resto, uma opção que esteve longe de
constituir uma estratégia isolada de Portugal, mas que, pelo contrário, dominou
vários processos de afirmação nacional nos anos 30 e 40 (cf., por exemplo,
Whisnant 1983). Para a sua compreensão é tão importante ter em conta as
condicionantes da vida cultural e política portuguesa da I República e do
Estado Novo como, por exemplo, a influência do pensamento de intelectuais
franceses de entre-guerras, como Valéry ou Duhamel, para quem a grande
preocupação era a diluição das diferenças culturais no âmbito de uma
modernização supostamente massificadora (cf. Peer 1998).
Recuperar o museu não seria, assim, devolvê-lo à morte lenta em que o mesmo se
encontrava, mas transformá-lo num instrumento de pensamento crítico e
reflexivo, através da manutenção dos vários elementos que o compõem, bem como
de numa agenda sólida de exposições temporárias que ajudasse a desvelar o
variado conjunto de relações entre ideias, pessoas e instituições que
contribuíram para a constituição daquela colecção.
O museu conduz-nos desde logo à complexidade de usos ideológicos a que a
cultura popular foi submetida na primeira metade do século XX, no âmbito quer
dos projectos de afirmação nacional, quer dos processos de construção social
das elites e das classes médias. A política folclorista do SNI incorpora uma
tendência mais ampla da história cultural do século XX, que se traduz na
integração dos objectos da arte popular ' e também os da arte primitiva ' na
vivência de certos grupos intelectuais e da burguesia cultivada, tornando-se
essencial para o estudo deste processo.
Por outro lado, o MAP serve como pano de fundo para iluminar outros momentos da
história das apropriações do popular em Portugal. Desde logo, o Museu de Arte
Popular tem de ser relacionado com o movimento de -descoberta da arte popular
que começou em finais do século XIX, com escritores como Ramalho Ortigão e
historiadores de arte como Joaquim de Vasconcelos, e sobretudo com a I
República. A colecção de objectos de arte popular apresentada foi de facto
reunida com base num trabalho de inventariação prévio, realizado pela
etnografia dos anos 10 e 20 (cf. Leal 2006; Alves 2008).
O MAP convida, também, à reflexão em torno das opções do grupo de Jorge Dias e
de todo um conjunto de agentes que durante o Estado Novo empreenderam buscas
pelo popular ' e que desafiaram a imagem cénica da nação ', como, por exemplo,
os agrónomos do Inquérito à Habitação Rural lançado no final dos anos 30, os
artistas e escritores do movimento neo-realista, os arquitectos do Inquérito à
Arquitectura Popular nos anos 50 (cf. Leal 2000), não esquecendo as recolhas de
música de Lopes Graça e Michel Giacometti.
Mas o museu permite-nos ir mais além, na medida em que constitui como que uma
plataforma de indagação de todo um conjunto de movimentos em torno do povo,
empreendidos nos anos agitados e urgentes da revolução de 1974, que procuram
fazer a ruptura com a concepção estadonovistada cultura popular (cf. Almeida
2009). Destas iniciativas destaca-se o Plano de Trabalho e Cultura coordenado
por Michel Giacometti no âmbito do Serviço Cívico Estudantil (1974-1977), que
assumidamente procurou combater a imagem idílica e pacífica da ruralidade
exibida nas salas do Museu de Arte Popular (cf. Branco 1993).
É neste contexto que o MAP nos situa perante as mundividências de um conjunto
de agentes diferenciados num arco temporal alargado que se prolonga até à
actualidade. A sua colecção confronta-nos deste modo com a agência e os
trânsitos de um conjunto particular de objectos. Dos seus locais de origem
foram transportados para as salas do Museu de Arte Popular, habitando agora o
Museu de Etnologia. São objectos viajantes que ocupam as páginas dos jornais
nacionais, como um exemplar da cerâmica de Nisa que foi convocado para ilustrar
a entrevista de Joaquim Pais de Brito ao Público(9 de Julho de 2009). Nesta
fotografia, ampliada, podemos observar uma etiqueta com indicações manuscritas
resultantes do processo de inventariação levado a cabo pelo MNE. Desta nova
morada esperamos que a colecção, com cerca de 25.000 objectos, regresse ao
edifício do Museu de Arte Popular para que, no futuro, possa dialogar com os
outros usos do popular.