A rua: espaço, tempo, sociabilidade
Graça Índias Cordeiro e Frédéric Vidal (orgs.)
A rua: espaço, tempo,sociabilidade
Lisboa, Livros Horizonte, 2008, 174 páginas.
Em finais de 2005, no âmbito de um projecto de investigação, realizou-se no
ISCTE um colóquio intitulado O lugar da rua: cidade, tempo, sociabilidade. Em
2008, com organização da investigadora principal e de outro investigador desse
projecto, foi dada à estampa a presente obra, que recupera algo do título do
colóquio e das suas participações.
O livro reúne contribuições sobre um mesmo tema: a rua. O tema escolhido é
enganadoramente fácil. Como acontece com cultura (quem não sabe o que é
cultura...?), a palavra rua (quem não sabe o que é a rua...?) encerra em si
uma polissemia que é fruto do facto de não ser encarada unicamente (se é que de
todo o é) como um elemento-tipo da estrutura urbana. As polissemias são
desafios interessantes: o investigador não só tem de dar conta dessa riqueza do
real evitando focalizar uma única componente, como terá de lidar com o facto de
que as realidades polissémicas são frequentemente contraditórias em si mesmas e
são marcadas por fluxos e refluxos e ângulos de visão múltiplos em função de
agenciamentos situados, quer no tempo, quer no espaço. Da dificuldade da
definição da unidade de análise social rua está a organização do livro bem
ciente, quando afirma tomar a rua como problema a identificar e não como
unidade definida a priori (p.9). A rua como espaço social poderá ser definida
como tudo aquilo que está fora de/da casa. Mas as fronteiras entre um espaço
social e o outro são, mais que fluidas, porosas. Facilmente estes -espaços (o
exterior/a rua o interior/a casa) se -colocam nas coordenadas um do outro. As
contribuições deste livro são todas olhares que se focam no lá fora e, vindas
de saberes diferentes, produzem um volume que fornece a quem o ler
possibilidade certa de enriquecimento intelectual, quer seja gente da academia
quer gente com um interesse curioso por alguns do terrenos retratados e
analisados, neste caso, Lisboa, pois se há coisa que sobressai neste volume é o
facto de a maioria desses terrenos (sete de entre os nove apresentados) serem
nesta cidade, o que faz com que este livro seja (também) um livro sobre Lisboa.
Dos treze autores listados, seis são antropólogos, quatro são historiadores,
dois são sociólogos e um é arquitecto. E, no entanto, corre-se o livro sentindo
que se está sempre no mesmo universo intelectual, numa quadratura que, sendo
constituída por multiplicidades, não deixa nunca de se construir em teia de uma
mesma -arquitectura de curiosidade e busca intelectual de cunho
antropologizante. No entanto, o livro não resulta nunca em algo próximo de um
somatório de textos que se poderiam -sentir até avulsos, porque, mais do que a
rua que partilham (que é sempre tão diferente de um texto para o outro '
riqueza máxima do livro), há uma eficaz Introdução que vai tecendo malhas de
ligação por entre os textos do livro.
Falar de rua implica falar de cidade. Agier fala de uma cidade profundamente
actual: os campos de refugiados. Abre pois o livro com um texto que pode
parecer paradoxal, pois fala de cidade por relação a algo (aglomerações de
indivíduos deslocados e despojados não só de bens mas, principalmente, de
direitos, de entre os quais o menor não será certamente o da liberdade) que
parece ser a objectificação da negação do facto de civilização (p.17) que a
cidade se supõe ser. Negando o seu interesse em olhar os campos em função [ ]
da forma de cidade conhecida como organização do espaço (p.21), Agier
espicaça-nos a fazer uma antropologia da mundialização que não se fique pelo
abstracto dos fluxos que parecem não ter uma realidade empírica (p.20).
Sabendo-se que estes campos são mecanismos de controlo de sujeitos e sabendo-se
que há realidades aqui na nossa Europa que são isso mesmo, não pode o
pensamento não se lembrar de Foucault e da sua historiação dos modelos de
vigilância e punição que fomos construindo desejamos que Agier tivesse tentado
elaborar para além de Foucault, mas com Foucault, o que este não chegou a
conhecer no grau que hoje conhecemos e que constitui tema da contribuição de
Agier.
Da aparente des-formalidade da rua dos campos de deslocados passo para a
absoluta formalidade da rua da cidade europeia do século XIX. Aqui, duas
contribuições de historiadores, Gribaudi e Vidal, e duas cidades, Paris e
Lisboa. O primeiro traça a cidade não dominante, a cidade que a nova
modernidade dos boulevards haussmanianos foi eclipsando, antes de a fazer
efectivamente desaparecer. A Paris intersticial que Gribaudi retira das brumas
do esquecimento histórico é marcada pelo desejo de salubridade, quer higiénica
quer social, que guiou a acção regulatória da cidade dominante (burguesa/
capitalista) sobre estes espaços profundamente vitais (a reconstituição
histórica das actividades profissionais de uma só rua mostra-o). A Lisboa de
Vidal é-nos mostrada também em mutação: uma cidade que vai sendo regularizada
(que se auto-regulariza?), como nos mostra a análise (brilhante na sua
capacidade de ir para além do puramente factual, alcançando o sentido simbólico
e vivenciado do espaço) de algo aparentemente banal: a organização da posta
diária. A história que nos arranca do esquecimento a humanidade desaparecida é
boa história, e a Paris e a Lisboa que estes historiadores nos fornecem são
colocadas perante os nossos olhos profundamente vivas, lembrando o trabalho do
geógrafo A. Pred com a Estocolmo do século XIX. Como Pred, o que Gribaudi e
Vidal nos mostram é como a lógica do capitalismo inicial vai moldando as
cidades, fazendo emergir essa regulamentação e ordenação funcional dos espaços
e gentes, requisito central do sistema que se instala.
Regulamentação e re-organização urbana estão também nos textos de Nunes e -
Baptista, de Farina e de Pujadas. Se no primeiro ainda encontramos alguma da -
Lisboa da industrialização inicial (construção por especuladores imobiliários
do Bairro do Rego), com o bairro de Olivais Sul entramos numa realidade urbana
metropolitana que tem já vasos comunicantes com a apresentada por Farina
(habitação Matriz H em Chelas). Pujadas aborda questões que se inserem num
universo metropolitano de alta modernidade, em que os chamados centros
históricos se constituem foco de atenção/intervenção por parte do poder
público. Nunes e Baptista, embora tenham uma abordagem muito morfológica da
rua, permitem-nos ver como centro e periferia (enquanto conceitos simbólicos e
não geométricos) se vão constituindo por relação um ao outro. Farina remete-nos
para uma abordagem mais ecológica e um olhar mais atento ao detalhe
arquitectónico, ao tentar decifrar as apropriações e des-apropriações das
estruturas idealizadas pelos arquitectos naquilo que é uma unidade de habitação
social. Do que é referido por relação a Olivais Sul e à Matriz H, pode
claramente ver-se como as vizinhanças, enquanto conjunto de relações que se
constroem ao longo do tempo, são algo não potenciado por estes conjuntos
habitacionais, que continuam a ser uma cidade pouco cidade, onde predomina a
função de dormitório, limitando os tempos de socialização efectiva na
densificação e construção de uma tessitura vicinal viva. Tessitura vicinal viva
é aquilo que se encontra nos centros históricos, e Pujadas mostra-nos no Raval
e na Madragoa como estas populações (normalmente nas margens da cartografia
social porque envelhecidas, com rendimentos económicos muito baixos e porque
etnicamente diversas devido a migrações cada vez mais marcantes) são deslocadas
pelas intervenções urbanísticas sobre (e para a apropriação da) urbe
patrimonializada, provocando assim graus de fractura social e défices de
coesão (p.152). O texto de Sieber, que surge após o de Agier, fala também da
cidade da alta modernidade que Pujadas refere, mas a intersecção destes dois
textos vem fundamentalmente da emergência da cidade-região e da sua imersão em
redes globalizantes (a intervenção no Raval é relacionada com os Jogos
Olímpicos de Barcelona em 1992 e Sieber aborda as ruas do recinto da exposição
mundial de Lisboa de 1998 contrapondo-as à sua rua de Alfama).
Particularmente interessante é a reflexão que Sieber faz sobre o carácter
oposto do sentido da rua enquanto local de vivência no universo norte-
americano e no europeu (Sul da Europa), sendo que o carácter público das
vivências realizadas neste último não tem a conotação de marginalidade que tem
no primeiro. A rua como exterioridade, como espaço simbólico construído pelas
vivências que aí se desenrolam é o que nos mostra o texto de Durão, que nos dá
uma etnografia cuidada de três tipos de policiamento de uma esquadra na Lisboa
de hoje, interligando-os com exercícios de poder diferentes e diferenciados,
desvendando uma tessitura complexa sob algo de aparência linear.
Vivência da/na rua une as contribuições de Cachado e de Ferreira. Separa-as o
tempo em estudo, a proximidade/distância (trabalho de campo etnográfico/Cachado
documento histórico/Ferreira) e a escala (bairro da Quinta da Vitória o país).
Mas em ambas temos a rua como palco de celebrações (comunidade hindu liberais e
miguelistas) em que o sentido público e publicitado dessas celebrações serve
como factor de ajustamento de relações de poder. Termina o livro com as
palavras do comentário final de Y. Lequin no colóquio que originou este volume.
Devido à nota marcadamente oral do texto, têm o valor de testemunho histórico
de um momento.
Além da riqueza e qualidade das abordagens presentes, há a referir o facto de
esta ser a concretização editorial de um encontro científico, alargando assim
os públicos do mesmo e cumprindo com uma obrigação fundamental da academia: a
divulgação do saber que produz. Entende-se assim que este é um livro que marca
o panorama português das publicações sobre estudos urbanos, sendo leitura útil
aos que se interessam por esta temática.
Paula Mota Santos
Universidade Fernando Pessoa