Intersecções ibéricas: margens, passagens e fronteiras
Manuela Cunha e Luís Cunha (orgs.)
Intersecções ibéricas:margens, passagense fronteiras
Lisboa, 90º Editora, 2007, 380 páginas.
Esta obra colectiva é o resultado das discussões e debates ligados à ideia de
fronteira, temperada pelas noções de margem e de passagem, que fizeram pulsar o
4.º Encontro Ibérico de Antropólogos em 2007. O volume integra 20 trabalhos de
antropólogos espanhóis e portugueses com uma diversificação de contribuições
que, embora partindo todas elas do mote que é a ideia de fronteira, a
desenvolvem e instrumentalizam de modos e em contextos muito diferentes, desde
trabalhos no âmbito mais estrito da definição clássica de fronteira, como o
território imediatamente a seguir à raia que separa duas nações, até à
abordagem do próprio corpo como forma de demarcação de uma fronteira. Não
obstante esta diversidade, os organizadores mostraram grande perícia no modo
coerente e acertado como arrumaram os contributos.
A sua diversificação constitui simultaneamente desafio e estímulo para pensar a
ideia de fronteira, que é assumida na introdução como conceito central, mas
entendida num vasto espectro, desde a frontier à boundary. Para além de um
cruzamento de fronteiras conceptuais, no seu todo este colectivo também
estimula o atravessamento de fronteiras etnográficas e nacionais, não se
restringindo a terrenos portugueses e espanhóis. Sem querer estabelecer
qualquer fronteira entre os contributos por nacionalidade, fica uma nota para
assinalar a ausência, neste volume, de trabalhos de antropólogos espanhóis em
terrenos portugueses, o que seria de esperar no contexto de um encontro ibérico
sobre fronteiras.
Os trabalhos estão arrumados em quatro partes que se caracterizam pela
predominância de uma orientação de desenvolvimento do tema principal. Será
impossível nestas escassas linhas fazer justiça aos trabalhos aqui assinados
por tantos autores diferentes em 380 páginas. Optei por apresentar o volume por
partes, elas próprias bastante coerentes, destacando o contributo principal de
cada texto para o diálogo colectivo, e dar a oportunidade ao leitor de
vislumbrar cada um dos contributos e compreender ao mesmo tempo a riqueza do
diálogo desenvolvido em torno da ideia de fronteira. O interesse dos textos do
volume vai muito além dos interessados apenas nas temáticas da fronteira e dos
limites em antropologia.
Na primeira parte, os textos exploram o significado de fronteira nos seus
sentidos político, social e cultural, com frequentes diálogos
interdisciplinares com a história e com a geopolítica. Os textos de Luís Cunha
e de Ana Rita Moreira tratam da representação da fronteira e do seu significado
político. Luís Cunha demonstra a ambiguidade envolta na definição dos limites
na fronteira luso-espanhola e o processo de cristalização de uma fronteira
política com influências profundas na identidade nacional. Num regresso à
actualidade, o autor demonstra como a abolição dos controlos aduaneiros
transformou o uso da fronteira, mas não a eliminou, permanecendo um recurso
para a memória e o turismo. O trabalho de Ana Rita Moreira trata da fronteira
europeia e do modo como a localização geográfica de Portugal em relação à
Europa, pela proximidade de África, foi interpretada no período de surgimento
do nacionalismo português de modo a dar sentido à ambiguidade portuguesa entre
a Europa do progresso e a orientalidade africana. Para além do trabalho de
Luís Cunha, que remete para a história da fronteira, os trabalhos de Humberto
Martins e de Paula Godinho também apelam à memória e ao passado, focando o
modo como as populações de um e de outro lado da fronteira norte luso-espanhola
sempre viveram neste atravessamento, mesmo contra a vontade das autoridades
políticas, questionando totalmente a ideia da ocorrência de uma grande mudança
e de uma maior proximidade entre as populações de um e de outro lado da
fronteira apenas depois da recente abertura. Também sobre o atravessamento da
raia entre Espanha e Portugal, mas na zona Sul da península, Rita Gomes Faria
demonstra que, mais do que os portugueses e os espanhóis, são os marroquinos
que vêem e vivem a fronteira entre Portugal e Espanha como um espaço de
continuidade, talvez por não haver sobre ela uma memória de barreira do
passado. Este primeiro conjunto termina com um texto mais clássico, que resvala
para um idioma indianista. O trabalho de Manuel João Magalhães trata de marcas
deixadas por uma fronteira passada num contexto pós-colonial em Goa. O autor
mostra de modo muito interessante como a memória de uma barreira política
passada produziu contestação e luta pelo poder, influenciando a organização dos
limites sociais e, sobretudo, simbólicos.
A segunda parte do livro trata principalmente dos processos de construção,
constituição e exibição de património, sublinhando-se a marginalidade de alguns
locais e o processo da sua constituição como património. Matilde Córdoba
Azcárate, sobre Taramundi nas Astúrias, e Joan Frigolé, a propósito dos
Pirenéus catalães, sublinham a ambiguidade do desenvolvimento económico gerado
pela manutenção de um ideal de ruralidade e de proximidade com a natureza. É
nesta linha de pensamento que Jean-Yves Durand também questiona os processos de
certificação dos produtos de artesanato, que implicam pensar e definir os
limites que do que é o artesanato, por referência a outros produtos, e os
colocam à mercê dos desafios do formalismo legalista. Os efeitos e os limites
da patrimonialização, mas em meio museológico, são tratados nos textos de
Ascensión Brânano Cid e João Alpuim Botelho, ao questionarem as práticas
expositivas, a política cultural e as tendências de coisificação da cultura.
Num registo de diálogo diferente dos anteriores, entre a etnografia e a
produção de memória, situa-se o artigo sobre o Campus do Instituto Superior
Técnico na Alameda, em Lisboa, com uma muito interessante narrativa sobre as
mudanças na apropriação do espaço, as relações de poder e a memória num local
de produção de conhecimento tecnológico.
Na terceira parte, as ideias de limite e de fronteira ganham contornos mais
sociais que nos textos anteriores. Os temas são etnograficamente muito
diversificados, mas fala-se sobretudo de marginalidade, tal como faz Garcia
Garcia ao analisar o duplo estigma enfrentado pelos mineiros pré-reformados que
transportam para o período de pré-reforma os estigmas associados a um trabalho
poluente e arriscado, agora interpretados em termos morais. Destaque também
para o único texto assumidamente metodológico do colectivo, do antropólogo
Jaume Franquesa, que debate abertamente os problemas de investigação e de
enfoque associados à definição de um bairro como unidade de análise
privilegiada numa investigação, nomeadamente em relação à sua delimitação. É
também através do estudo de bairros e dos processos de mercantilização e do
direito à habitação em Berlim que Irene Sabaté Muriel procura expor as formas
de contestação de fronteiras e a marginalização social. Seguindo com o tema da
contestação política no espaço público e direitos sobre o território, Susana
Naroztky etnografou e analisou uma manifestação contra a construção de uma
fábrica de gás em Ferrolterra. A politização da marginalidade foi também
observada por Josep Cucó Giner na transição do discurso do Partido Comunista
Espanhol da defesa dos interesses do operariado para a marginalização e para a
pobreza.
Os três últimos capítulos integram a quarta parte e estão mais próximos das
relações entre a natureza e a cultura. José Maria Uribe trata a diferença
cultural no âmbito do sistema de saúde e, de um modo mais amplo, no contexto
dos sistemas de segurança social. A demarcação de limites através da
alimentação demonstra bem a intersecção entre as fronteiras da natureza e da
cultura no texto de Virgínia Calado. Essas fronteiras são também cruzadas por
Manuela Ivone Cunha e Jean-Yves Durand em torno das preocupações com a
imunização do corpo, a acção sobre ele e os limites da acção do Estado e do
conhecimento.
Intersecções Ibéricas comprova a criatividade e a dinâmica da antropologia
ibérica, num diálogo e aprofundamento conceptual criativo, com textos que
merecem ser lidos para além dos limites naturais da fronteira e do limite.
Irene Rodrigues
ICS ' Universidade de Lisboa