Somos todos marítimos: uma etnografia das (in)visibilidades do poder na
representação social do passado local em Ílhavo
We're all seafarers: an ethnography of the (in)visibilities of power in the
social representation of the local past in Ílhavo
Abstract
Taking as an empirical basis the process of construction of a memory of the
sea in Ílhavo, with particular emphasis on cod fishing, this paper discusses
how notions of identity and belonging are constructed by establishing selective
images of a past which is activated according to the power agendas of certain
groups. In the example analyzed here, the local identity is articulated by a
narrative of maritime evocation that reproduces the class identity held by
people occupying dominant positions in the hierarchy of the activity now
represented. By making their past ostensibly visible, these people have made
invisible the extreme asymmetries involved in the practice of this activity,
thus claiming themselves its main protagonists.
KEYWORDS: memory, identity, class, power, visibility, Ílhavo.
Em 1925 Maurice Halbwachs introduziu formalmente o conceito de memória
colectiva no léxico das ciências sociais. Segundo Halbwachs, o passado é uma
construção social moldada pelos interesses, pelas aspirações, pelas ansiedades
manifestadas em cada momento histórico. Como refere no prefácio de Les cadres
sociaux de la mémoire: Os quadros colectivos são [ ] os instrumentos
utilizados pela memória colectiva para reconstruir uma imagem do passado em
concordância, em cada época, com as ideias dominantes da sociedade (Halbwachs
1992 [1925]: 40 ' tradução minha). As ideias que temos em relação ao passado,
os juízos que fazemos sobre acontecimentos pretéritos e, inclusivamente, os
aspectos ou ângulos do passado que decidimos colectivamente deter e transmitir
para o futuro são profundamente contingentes com as condições presentes a
partir das quais a recordação colectiva se articula. À medida que as condições
presentes mudam, também mudam as interpretações do passado.
O passado, quando articulado pela memória tem, portanto, pouco valor
intrínseco; o seu valor depende antes dos significados que lhe são atribuídos
pelo presente (ou por sucessivos presentes) como reflexo de um conjunto de
relações sociais e de posições de poder observáveis num determinado contexto
histórico. A memória, tanto colectiva como individual, é sempre selectiva,
envolvendo tanto de recordação quanto de esquecimento. Esta selecção de
elementos do passado, que nuns casos se faz deliberada e noutros
inadvertidamente, cumpre geralmente propósitos instrumentais e procura
satisfazer as necessidades representacionais de grupos específicos. Por via da
activação de determinadas versões do passado ou por via da subversão de
anteriores versões dominantes, estes grupos asseveram ou reforçam o seu
respectivo posicionamento simbólico numa escala de valorizações sociais
grupais. A memória detém, portanto, um valor instrumental ao serviço do
incremento de um poder táctico, tal como conceptualizado por Eric Wolf, ou
seja, o poder que controla os cenários nos quais as pessoas podem exibir as
suas potencialidades (Wolf 2001: 384 ' tradução minha) e, assim, adquirir
vantagem sobre outros ou controlar a sua acção.
Os aspectos do passado que são recordados e a forma como são recordados
revelam, portanto, questões importantes acerca do poder, pois as representações
do passado comportam consigo a evidência de quem detém os capitais (económico,
social, cultural) necessários para assegurar uma posição dominante num
determinado contexto social. Como refere Richard Terdiman, A memória é o
mecanismo pelo qual a ideologia se materializa (1993: 33 ' tradução minha),
validando as narrativas dos grupos ou das culturas dominantes, e suportando e
consolidando as desigualdades (pre)existentes num determinado tecido social. É
comum que o desenvolvimento de uma determinada memória pública, através de
museus, de memoriais, da paisagem construída ou de comemorações, envolva o
nivelamento das desigualdades existentes no seio de um determinado grupo ou o
naturalizar das tensões que tais desigualdades geraram. A história contada pela
memória é uma história linear e harmónica, pois da sua coerência, conseguida
mediante a exclusão ou omissão de aspectos perturbadores, depende a sua força
como motor de coesão grupal. É a partir desta coerência que os grupos desenham
uma imagem de continuidade sobre o seu percurso no tempo (Connerton 1989:
12).
A memória, ao tornar-se pública, arrasta consigo um conjunto de significados
associados que correspondem às visões do mundo, aos objectivos e às
necessidades dos grupos que detêm o poder suficiente para activar uma
determinada versão da história. Quando assim é, a cultura material seleccionada
e / ou erigida para testemunhar a fiabilidade da memória é convertida em
objectos sagrados aos quais os envolvidos, mesmo aqueles cujas histórias
foram omitidas, são chamados a prestar culto, fornecendo uma validação
colectiva à narrativa dominante. A sua importância na estruturação das relações
de poder e nas hierarquias e sistemas de classificação dominantes resulta de
uma ponderação subtil dos termos do binómio visibilidade / invisibilidade dos
significados veiculados por estes objectos de culto. Ao serem inseridos na
esfera pública, os objectos do passado tornam-se visíveis. Convertem-se, bem
como os significados neles implícitos, em focos da atenção colectiva (Dayan
2005: 55 ' tradução minha). Dito de outro modo, atestam a eficácia
mobilizacional da posição cultural central (Turner 1975: 146 ' tradução minha)
ocupada pelos grupos que, em cada momento, detêm o poder dominante no seio de
determinado grupo ou sociedade. Esta condição faz com que visões alternativas
do curso da história sejam automaticamente secundarizadas devido à sua natureza
não pública, ou seja, à sua invisibilidade. Por outro lado, as narrativas de
dominação e as relações de poder perpetuadas pelos actos e pelos objectos da
memória são tornadas invisíveis pela linearidade, pela coerência e pela
harmonia do passado representado.
As representações do passado na esfera pública reflectem, portanto, sempre as
relações de poder presentes num determinado contexto histórico e traduzem a
tentativa de determinados grupos de se apropriarem estrategicamente de um
espaço representacional privilegiado relativamente aos demais grupos presentes
no tecido social. Não quer isto dizer que os discursos sobre o passado sejam
fixos ou que os agentes da sua representação sejam inalteráveis. O carácter
dinâmico e conflitual da memória faz com que as versões do passado sejam sempre
provisórias e contingentes com as condições de cada presente. Neste sentido, as
questões de quem selecciona o passado, com que razões e em benefício de quem,
apresentam-se como fundamentais para uma leitura do passado conforme é
formulado por cada presente. São estas as principais questões colocadas no
estudo de caso tratado neste artigo, que incide sobre os processos de activação
de uma memória pública observados em Ílhavo.
O CONTEXTO DA MEMÓRIA
Sendo constituído por apenas quatro freguesias,
[1]
o concelho de Ílhavo é, porém, um concelho muito heterogéneo. Essa
heterogeneidade deve ser explicada, antes de mais, pela localização do concelho
na região litoral centro-norte de Portugal, uma região que se consolidou, a
partir de meados da década de 1970, como um espaço industrial, sob a égide do
centro comercial e industrial que a cidade do Porto representa (Reis 1993).
Situando-se na faixa litoral do país, participando das dinâmicas associadas à
sua localização geográfica, usufruindo de bons eixos viários, e inserindo-se
numa aglomeração urbana alargada,[2]já qe é contíguo ao concelho de Aveiro, o
que lhe permite beneficiar do factor de polarização exercido por dois
equipamentos públicos de elevado potencial de expansão ' a Universidade de
Aveiro e o Porto de Aveiro ', Ílhavo evidencia dinâmicas de crescimento urbano
e processos de diferenciação socioespacial que são próprios das cidades médias.
Com efeito, em 2001 residiam no concelho de Ílhavo 37.209 indivíduos, tendo-se
registado um crescimento populacional muito elevado no período de uma década,
bastante superior ao registado no país.
[3]
Trata-se de variações muito positivas, que inverteram as perdas populacionais
da década de 1960, devidas à emigração, reflectindo as migrações do interior
para o litoral do país e as tendências de crescimento demográfico em toda a
região, mas também o carácter periférico de Ílhavo face ao centro urbano de
Aveiro, o que potenciou as migrações pendulares.
Este crescimento populacional resulta numa pressão considerável sobre o
território. Ocupando o concelho uma área de apenas 73,5 km2, a densidade
populacional cifra-se em 506 habitantes por km2, o que faz dele o mais
densamente povoado da região, registando-se uma significativa tendência de
crescimento do parque habitacional, destinado quer ao alojamento familiar, quer
ao alojamento de residência sazonal ou secundária, e localizado sobretudo nas
zonas balneares do concelho ' Costa Nova e Barra.
Inserido numa vasta região lagunar ' a ria de Aveiro ' e dispondo de uma faixa
costeira considerável, historicamente as actividades económicas do concelho
eram aquelas ligadas à pesca e à agricultura, num sistema produtivo misto que
tirava partido dos recursos do mar e da ria, complementado com explorações
agrícolas de carácter familiar e com outras actividades de natureza industrial,
como a construção naval, a marinha mercante e a exploração salina. A indústria
cerâmica tem também uma implantação antiga no concelho, desde a criação da
fábrica de cerâmica da Vista Alegre em 1824.
Nas Gafanhas desenvolve-se um sistema produtivo misto, que tira partido dos
recursos do mar e da ria e que se complementa com a actividade agrícola. Nas
povoações de Ílhavo e da Costa Nova, há uma dedicação mais exclusiva às
actividades marítimas, existindo uma hierarquização simbólica do território,
que ainda hoje é expressiva e que resulta de uma maior valorização social
daqueles que eram exclusivamente marítimos, não sendo, por isso, de espantar
que o elemento mais marcante da identidade local seja a percepção de uma
relação privilegiada com o mar.
Os primeiros pescadores da zona terão sido os da arte da xávega que, na época
própria, saíam para a pesca da sardinha, guardando durante o resto do ano as
suas alfaias nos palheiros que se erguiam sobre estacas nos areais do litoral.
Mas a actividade piscatória de Ílhavo deve essencialmente a sua singularidade à
importância que a pesca do bacalhau adquiriu na localidade, sobretudo entre os
anos 30 e 70 do século XX, os anos da Campanha do Bacalhau do Estado Novo. O
fim da protecção do Estado ao sector, em 1974, mas também a sobrepesca do
bacalhau e a crise dos stocks, que resultaram na imposição de medidas radicais
em termos de redução das capturas, fazem com que o sector entre em ruptura.
Como resultado, do final da década de 1980 até à actualidade Portugal viu a sua
quota de pesca do bacalhau reduzida para um décimo e, apesar dos apelos dos
armadores, que reclamam um tratamento diferenciado pelo facto de Portugal ser o
maior consumidor mundial per capita de bacalhau, o país perdeu quase 70% da sua
capacidade produtiva no sector (Dias et al. 2001). No entanto, e apesar destas
dificuldades, o importante sector industrial local da transformação não foi
afectado. Em Ílhavo, o abate das embarcações foi compensado com investimentos
nos circuitos importadores e na modernização das unidades industriais de
transformação do pescado, mantendo a competitividade da indústria local neste
sector.
Devido a estas transformações, a estrutura do emprego no concelho tem sofrido
uma assinalável e rápida mutação, verificando-se um decrescimento acentuado do
emprego no sector primário, um surto, em décadas recentes, do emprego
industrial, e uma tendência recente de forte terciarização da economia local.
Face a estas tendências, a Câmara Municipal tem procurado assumir-se como um
agente da mudança, tomando a questão da qualificação e do desenvolvimento do
concelho como sendo de competência autárquica. Neste sentido, estabelece como
eixo estratégico de desenvolvimento do concelho uma aposta no terciário
superior como motor e sustentáculo duradouro da economia local (Câmara
Municipal de Ílhavo 2002: 7), com especial destaque para os sectores turístico
e imobiliário.
O COMPLEXO MNEMÓNICO
Em Ílhavo, as autodefinições identitárias locais estão fortemente ancoradas
numa idealização de um estilo de vida diferenciado, associado à vida marítima
que, no passado, as populações do concelho levavam. Este modo específico e
particular de ser ilhavense, baseado na sua muito antiga e autêntica
tradição marítima, espelha o que Balibar e Wallerstein designam ilusão
retrospectiva (1991: 86 ' tradução minha), segundo a qual a sucessão de
gerações no seio de um território retrospectivamente definido é percepcionada
como transmissão de uma essência inalterada que toma por designação a de
comunidade. Esta definição essencialista do local, enquanto concreta, evidente,
não problemática e a-histórica, ainda que baseada numa forte componente
vivencial, é tecida no decurso de um diálogo simbólico (Whelan 2005: 61 '
tradução minha) estabelecido entre os diversos agentes (elites, poderes
instituídos, grupos de interesse) presentes no território e os símbolos que os
identificam. Deste diálogo travado ao longo do tempo, resulta um complexo
mnemónico, contingente e de limites difusos e incertos, que inscreve o discurso
sobre a pertença no tempo da tradição.
Em Ílhavo, a tradição que serve para definir o que é ser ilhavense é,
sobretudo, a tradição do mar, sendo muito comum os seus habitantes definirem a
localidade, quer em espaços privados quer na esfera pública, como uma terra
maruja. O próprio slogan institucional de Ílhavo promove-o como o concelho que
tem o mar por tradição. Contudo, a esta representação dominante e
aparentemente homogénea subjaz uma grande diversidade de expressões materiais e
uma polissemia de sentidos do que se pode entender por terra maruja. Não só
todo o território é caracterizado por uma grande heterogeneidade, o que
evidencia que as actividades nele desenvolvidas não se resumem às marítimas,
como também estas mesmas actividades se revelam diversas e fragmentárias.
Esta representação prevalecente consubstancia-se como um complexo de memórias,
incorporando um conjunto de elementos dispersos remotamente conectados entre si
por uma ligação difusa e arbitrária a uma entidade simbólica que se designa por
mar, muito embora seja claramente discernível uma hierarquia simbólica entre
os elementos seleccionados. As actividades da apanha e da pesca local, por
exemplo, porque sazonais e não exclusivas, ou seja, acumuláveis com outras
actividades como a lavoura (no passado) ou o turismo (hoje), são as que detêm
menor valor simbólico. Além disso, estão associadas a uma representação de
pobreza e de marginalização social que não é compatível com a imagem
prevalecente da comunidade como uma terra de heróicos marinheiros, como
tantas vezes a localidade me foi descrita no decurso da pesquisa.[4]
Do repertório mnemónico da terra maruja faz também parte um conjunto de
objectos patrimoniais consagrados que acrescentam um sentido de pitoresco à
representação prevalecente. É o caso do trabalho das salinas, dos palheiros da
Costa Nova com o seu peculiar cromatismo, ou dos barcos moliceiros da ria.
Embora não existindo uma ligação coerente entre estas expressões patrimoniais,
pois a cada uma delas correspondem actividades concretas muito díspares, todas
são integradas na narrativa marítima predominante do ser ilhavense como
manifestações diferentes de uma única essência: o sal porque é extraído do mar
e porque é fundamental para a salga e conservação do pescado; os palheiros
porque originalmente serviam de suporte para a actividade da pesca e hoje
porque são habitações balneares; os moliceiros porque evidenciam a mestria no
que toca à construção naval e às artes de navegação, sendo ostensivamente
desvalorizada a complementaridade existente entre as artes de pesca e de
navegação da ria e as actividades agrícolas que dependiam do moliço para a
fertilização das terras. Embora estas actividades sejam integradas no complexo
mnemónico local, a sua ligação difusa ao mar, bem como o facto de serem
expressões patrimoniais previamente apropriadas pelo vizinho (e por vezes tido
por rival) concelho de Aveiro na sua própria imagética local, fazem com que as
mesmas detenham um estatuto simbólico mais ambivalente em Ílhavo.
Ao contrário dos casos anteriores, no topo das hierarquias simbólicas da
memória local estão aquelas actividades univocamente ligadas ao mar, que
pressupõem uma dedicação exclusiva, e às quais corresponde um estilo de vida
próprio, com tempos, espaços e relações sociais claramente diferenciados. A
pesca de largo, em especial a pesca do bacalhau, está entre as actividades que
detêm maior valor simbólico.
A exclusividade da ocupação, a distância e a ausência que as campanhas de pesca
implicam, a dureza da própria actividade, bem como a noção de sacrifício a ela
associada são factores que contribuem para a sacralização, quer das actividades
em si mesmas consideradas, quer dos seus participantes ou protagonistas. Como
me referiu um informante que herdou esta memória dos seus antepassados, o
orgulho que se sente é tanto maior quanto maior foi o sacrifício, a odisseia e
a epopeia dos familiares no mar. Esta representação é sublimada pela ênfase,
subtil mas constante, colocada na navegação em detrimento da pesca. O homem de
Ílhavo é um navegador, um marinheiro, ou um mareante. Não é um pescador.
A auto-imagem ideal da localidade é, assim, suportada pela evocação de uma
memória de tom épico, que identifica Ílhavo como uma terra que tem um percurso
histórico ímpar, feito por uma gesta de bravos mareantes. Não é por isso de
estranhar que a pesca do bacalhau, sobretudo a pesca do bacalhau à linha, pela
sua poética evocativa e pela sua riqueza iconográfica, forneça os motivos
definitivos para a exaltação desta memória épica. A dureza das condições em que
era praticada, com uma frota de veleiros brancos que largavam nos mares gelados
da Terra Nova e da Gronelândia embarcações (dóris) de um só homem que procediam
à captura do pescado, confere a esta pesca, apelidada faina maior, uma aura
épica que faz com que adquira um lugar de destaque no imaginário colectivo
local. Tendo a actividade da pesca do bacalhau implicado, em Ílhavo, largos
contingentes populacionais, a própria população reclama para a localidade o
estatuto de terra do bacalhau ou capital do bacalhau em Portugal.[5]
Mas deste complexo mnemónico fazem parte não só estas actividades concretas,
mas também um conjunto de possibilidades imagéticas associadas a um estilo de
vida próprio e diferenciado, com as suas correspondentes formas de organização
social. A memória do mar de Ílhavo não se resume às actividades de pesca e / ou
de navegação nas quais se aloja a representação do passado, mas antes se amplia
para incluir o que se percepciona serem as visões do mundo, o carácter, e o
destino, de quem faz a vida no mar. Desta memória intangível faz parte, por
exemplo, a estereotipagem de determinadas formas de organização social, tidas
como próprias das populações marítimas. É o caso da recorrente identificação de
Ílhavo como terra do matriarcado, assinalando a predominância do papel da
mulher na comunidade devido às prolongadas ausências dos homens.[6]
A memória local consubstancia-se, portanto, como um complexo de limites
incertos e difusos, ora ancorando-se em actividades concretas que lhe fornecem
corporização, ora entranhando-se no tecido social mediante um quadro de valores
e de princípios socialmente observados, ora ainda inscrevendo-se no que Rudy
Koshar designou Erinnerungslandschaft (2000: 9) para se referir às qualidades
mnemónicas presentes nos lugares do quotidiano ou na própria paisagem natural.
Este complexo fixa, através de fronteiras simbólicas de contornos flexíveis, os
limites da comunidade de pertença.
OS ACTOS DA MEMÓRIA
Embora estabelecendo uma interacção entre passado e presente, a memória não é o
mesmo que o passado; é antes, como refere Andreas Huyssen, um passado
articulado para ser memória (Huyssen 1995: 3 ' tradução minha). Este processo
de articulação do passado como memória é um processo performativo que depende
de uma sucessão de actos da memória, tal como definidos por Mieke Bal (1999:
vii ' tradução minha). Sendo a memória uma construção social, este actos
sucedem-se no tempo, com cada novo acto a acrescentar-se aos actos que o
antecederam. Apesar de rupturas e cortes representacionais, a construção social
do passado faz-se sobreas formulações mnemónicas anteriormente activadas,
acrescentando-se novos elementos e descartando-se outros. O que muda são,
sobretudo, os actores e os que se reclamam, em cada momento, proprietários
dessa representação.
Em Ílhavo, o complexo da memória do mar observado começou a ser activado nas
primeiras décadas do século XX, quando um conjunto de eruditos locais elege a
tradição do mar como essencialmente definidora do carácter distintivo da
localidade. Com este propósito, foram organizadas conferências, redigidos
poemas e publicados artigos de opinião no entretanto fundado jornal O
Ilhavense, a voz pública mais activa ao serviço da construção da tradição
local, e foi constituída uma colecção museológica com forte ênfase nos temas
marítimos. É também deste período a criação do brasão d'armas do concelho de
Ílhavo que, por fixar indelevelmente os limites tradição local, é aqui
considerado um acto da memória especialmente significativo.
Não dispondo o concelho de insígnias identificativas, a Comissão Executiva da
Câmara Municipal de Ílhavo decide criar um brasão d'armas para o concelho no
início da década de 20 do século passado. Devido à sua comprovada erudição,
solicita a António Gomes da Rocha Madaíl, um distinto membro da elite local, a
criação do dito brasão.
[7]
A comissão municipal havia demonstrado a intenção de que este brasão fosse o
da família dos donatários da Vila de Ílhavo, mas Rocha Madaíl prefere eleger o
mar como ícone do concelho. Neste sentido, adoptou uma galera fenícia como
símbolo, tendo por base uma tese não comprovada de que os fenícios teriam
fundado Ílhavo. Embora ressalvando não existirem evidências seguras que
fundamentem esta suposta origem fenícia, Rocha Madaíl considera, porém, existir
uma semelhança entre os ditos fenícios e a tradição marítima e mercantil do
concelho, suficiente, a seu ver, para justificar a escolha do símbolo. Desta
forma, Rocha Madaíl inauguraria uma definição do ilhavense enquanto
essencialmente marítimo, em detrimento da expressão das demais actividades
existentes no concelho, fixando de forma deliberada e intencional o conteúdo de
uma tradição do mar. Como referiu: O brasão d'Ilhavo, é a sua antiquíssima
vida marítima, é o próprio mar, e nele está a sua tradição maior. Porque não
havemos, pois, de acolher esta tradição e fixá-la? Fazendo-o, seremos sinceros,
e seremos ilhavenses (Madaíl 1922: 25).
Ao longo dos anos, muitos outros actos públicos da memória se sucederam, todos
eles animados por um grupo restrito de eruditos locais, do qual faziam parte
médicos, publicistas, professores, intelectuais e artistas, que tomam as
expressões do povo para estabelecer a sua propriedade sobre a tradição. Foi
entretanto criado um museu, instalado num edifício próprio construído de raiz,
com destaque para os temas marítimos, embora outras temáticas, como a cerâmica
e a pintura sobre motivos locais, fossem também muito valorizadas. De forma a
traduzir a ênfase na temática marítima, mas não excluindo a sua vertente local
e regional, o novo museu recebe a designação de Museu Marítimo e Regional de
Ílhavo.
Mas, a partir da década de 80 do século passado, um conjunto de acontecimentos
precipita uma mudança na forma e no conteúdo da representação do passado local.
Esta mudança deveu-se à introdução e posterior sublimação de uma nova temática
marítima que se acrescenta e se sobrepõe às demais: a pesca do bacalhau. Até
este momento, esta modalidade de pesca não dispunha de um espaço
representacional próprio na esfera pública local, embora à escala nacional a
pesca do bacalhau tivesse sido objecto de um cuidado investimento simbólico,
sobretudo durante os anos das campanhas do bacalhau do Estado Novo, iniciadas
em 1934 com o objectivo de relançar a frota bacalhoeira portuguesa (Garrido
2003). Procurando exercer um controlo absoluto sobre o sistema, ao regular a
produção, a importação e os preços deste produto, o Estado corporativo passa a
dirigir a acção de armadores, produtores, pessoal de mar e comerciantes. Passa
também a ter uma intervenção directa sobre a frota, condicionando as artes e o
tipo, dimensão e capacidade dos navios, privilegiando-se claramente a grande
tradição de navegação à vela (embora por vezes com motor auxiliar) e a pesca à
linha com dóris, embarcações miúdas que se espalhavam à volta do navio-mãe e
eram ocupadas por um só homem, que procedia à captura artesanal do pescado com
uma linha de mão.
A imagem mítica da White Fleet, assim imortalizada pela cor com que os navios
portugueses se distinguiam dos demais durante a II Guerra Mundial, bem como a
singularidade da pesca à linha com dóris de um só homem, conferem a esta
modalidade de pesca, que só foi abandonada depois de 1974, um tom épico
frequentemente sublimado pelo aparelho propagandístico do regime. Mediante
rituais públicos e comemorações litúrgicas, o Estado Novo converte, assim, a
pesca do bacalhau à linha em revivificação da grandeza marítima do povo
português, germinando e alimentando a imagem hiperbólica das gentes do
bacalhau como marinheiros' e novos cruzados (Martins 2001: 182-183).
Certamente que este conjunto de sugestões ideológicas e de encenações épicas em
torno desta modalidade de pesca ficaria inscrito no imaginário colectivo local.
Tanto mais que os pescadores e suas famílias eram frequentemente chamados a
participar nas liturgias públicas encetadas com vista à glorificação das
campanhas de pesca do Estado Novo. É o caso, por exemplo, das bênçãos dos
bacalhoeiros que ocorriam em Lisboa entre Abril e Maio de cada ano antes da
largada dos navios para mais uma jornada de seis meses nos mares do Canadá e da
Gronelândia.[8] Contudo, até anos recentes, haviam sido raras as expressões
públicas celebratórias desta actividade no meio local. Com efeito, sendo o
Museu de Ílhavo um dos principais instrumentos de articulação da memória local,
este praticamente não concedia um espaço representacional próprio a esta
modalidade de pesca. Só quando efectivamente a pesca do bacalhau começa a
entrar em ruptura é que a cultura material e as vivências associadas a esta
actividade começam a ser objecto de estratégias representacionais. É a partir
de então que o mar, em geral, e a pesca do bacalhau, em particular, ganham
univocidade no contexto das formulações mnemónicas públicas locais.
Com efeito, o discurso local em torno das grandes fainas do bacalhau apenas se
inaugura após a pesca com dórister sido abandonada, em 1974, e, mais
concretamente, nas vésperas da entrada de Portugal na Comunidade Económica
Europeia, quando um conjunto de políticas restritivas precipitaram o declínio
da actividade. São organizados colóquios e palestras sobre a pesca do bacalhau
à linha, é realizado um documentário intitulado À Glória Desta Faina, são
concebidas exposições itinerantes sobre a temática, e é inaugurada uma
exposição temporária no museu a ela dedicada. Por fim, a exposição temporária
acaba por converter-se em definitiva, tornando-se o eixo temático fundamental
do museu. No processo, para ganhar o espaço expositivo necessário no território
museológico e identitário local, empurra para as reservas / esquecimento outros
elementos identitários antes considerados fundamentais, mas agora tidos por
anacrónicos, como é o caso da colecção de porcelanas da Vista Alegre ou da
colecção de pintura.
Os principais agentes desta mudança são Francisco Correia Marques, antigo
capitão de navios de pesca à linha nos tempos áureos das campanhas do bacalhau;
Ana Maria Lopes, professora do ensino preparatório e secundário, proveniente de
uma família de capitães e de armadores e, mais tarde, directora do Museu de
Ílhavo, sendo responsável por uma alteração substancial na sua linguagem
expositiva; e, finalmente, Aníbal Paião, dirigente da Associação de Armadores
da Pesca Industrial e administrador da empresa Pascoal & Filhos, uma
empresa com longa tradição na pesca do bacalhau, também ele detentor de um
vasto capital geracional associado a actividades ligadas ao mar. Como admite:
Eu não posso negar de onde venho. Afinal de contas o meu pai era capitão, o
meu avô era capitão, todos os meus familiares são capitães e eu tenho a vida
que tenho, não é?.
Estes novos actores assumem, então, a propriedade do passado local, afastando
progressivamente do palco da memória os seus anteriores protagonistas. Assumem
a liderança do Grupo dos Amigos do Museu, uma agremiação constituída para
angariar verbas para a sua gestão, e convertem-no em associação, ampliando
substancialmente o seu número de sócios e procurando, sobretudo, reunir pessoas
ligadas ao mar e chamar os antigos capitães à participação. Remodelam o
discurso expositivo do museu, estabelecem parcerias institucionais e lançam
projectos para a remodelação do museu local e para a aquisição de antigos
navios bacalhoeiros a funcionar como pólos museológicos do núcleo central.
Muitos destes projectos não foram então realizados devido a falta de verbas. A
sua posterior concretização seria apenas tornada possível pela intervenção do
executivo municipal no domínio da memória local. Em 1997, o engenheiro Ribau
Esteves é eleito presidente da Câmara Municipal de Ílhavo com maioria absoluta
pelo Partido Social Democrata. A sua acção no domínio da cultura local cedo se
revela, ao contrário da dos seus antecessores, bastante enérgica, logo
manifestando a intenção de se ocupar dos destinos, quer dos equipamentos
culturais do concelho, quer da memória por eles veiculada. Em contrapartida,
disponibiliza os meios requeridos por recurso a fundos comunitários, e fornece
a moldura institucional necessária para a concretização dos projectos lançados
pelo grupo de Paião, Lopes e Marques. A partir de então, a propriedade
exclusiva que estes detinham sobre a memória local viria a ter de ser negociada
e partilhada.
Como resultado da entrada em cena deste novo actor, verifica-se uma operação de
monumentalização da memória local sem precedentes. Desta operação fazem parte a
aquisição, através de um contrato de mecenato cultural, do navio arrastão Santo
André, a funcionar como pólo do Museu de Ílhavo, a edificação de uma estátua
evocativa dos trabalhadores do mar, intitulada Homem do Mar, a ser colocada
numa das principais artérias da cidade de Ílhavo, numa praça junto ao museu, e
a definitiva remodelação do Museu de Ílhavo.
Em 21 de Outubro de 2001, em pleno período de pré-campanha eleitoral, seria
inaugurado o novo museu, com quadro de pessoal próprio e agora definitivamente
apelidado Museu Marítimo de Ílhavo, não deixando dúvidas quanto à sua ênfase
temática.[9] A imponência e arrebatadora arquitectura do novo museu, muito
Expo'98, como me referiu Aníbal Paião, tão destoante das demais edificações
que caracterizam a paisagem construída da localidade, não deixam de interpelar
quem se lhe depara. Neste mesmo período é também adoptado o slogan promocional
para o concelho, Ílhavo: o mar por tradição, e é alterada a designação do
Museu Marítimo e Regional de Ílhavo, que passa a ser o Museu Marítimo de
Ílhavo. Estas acções reflectem nitidamente a intenção de se reforçar uma
imagem, simbólica e política, diferenciada para o território. Mas, para além
disso, reflectem também a intenção de se reclamar a propriedade sobre a
paisagem da memória local, designando não a evidência da história, mas antes o
processo ideológico subjacente pelo qual a história se tornou evidente.
AS VISIBILIDADES DA MEMÓRIA
Os actos que instauram o complexo mnemónico local apoiam-se em suportes ou em
lugares que conferem visibilidade à memória socialmente construída. Esta
visibilidade refere-se, como defendido por Jenks (1995), não apenas às
expressões materiais da cultura pública, mas também aos significados nelas
contidos.
Em Ílhavo, o passado que é tornado visível incide especialmente sobre a
essência marítima da localidade, convertendo uma determinada visão do passado
na história de um povo, enquanto suporte da identidade ideal da localidade.
Este modo vernáculo de representar o passado celebra as realidades vividas,
situadas, comuns, das sociabilidades quotidianas, forjando uma representação
identitária eminentemente igualitária, na qual todos se podem rever,
naturalizando as tensões de classe, as contradições e os conflitos que emergem
no tecido social. São os discursos mnemónicos que tornam esta unidade visível,
transformando a localidade numa comunidade arquetípica.
A visibilidade concedida à ideia de povo é bem marcada em todos os actos da
memória que incidem sobre o passado local. Logo aquando das primeiras
formulações mnemónicas da década de 20 do século passado, o que era relevado
era uma determinada essência marítima cujos resíduos, que subsistiam nas
práticas comuns do povo, urgia preservar antes que se perdessem
definitivamente. Influenciada pelo Romantismo, esta ideia de povo está
fortemente associada a um idílio tradicional que resistia ao progresso
acelerado que marcava o desenvolvimento das cidades, e cujos saberes e práticas
vulgares detinham um valor que tinha de ser diligentemente preservado pela mão
de quem nunca tinha sido povo.
Este modo igualitário de representar o passado que toma como base a ideia de
povo é retomado com a introdução da temática da pesca do bacalhau. Mas é
actualizado para enfatizar a ideia de comunidade ocupacional, que
corresponde, na forma como é representada, a uma classe igualitária de
diligentes trabalhadores do mar que, independentemente da sua respectiva
posição hierárquica a bordo dos navios bacalhoeiros, empenham o seu esforço
para tirar o bacalhau dos mares. Como me relatou o capitão Francisco Marques,
todos, oficiais e pescadores, se sentiam obrigados pela ânsia de ter o porão
cheio até acima. Esta ânsia constituía uma fraternidade de homens unidos por
uma força de carácter, por um fito preciso, pela fé em Deus, e pelo respeito ao
capitão.
A exposição dedicada à faina maior no Museu Marítimo de Ílhavo
[10]
ilustra bem como esta narrativa igualitarista é estruturada e ficcionada. A
mostra organiza-se em vários sectores distintos. Ao centro, exibe-se uma
réplica à escala de um navio tradicional da pesca do bacalhau à linha. No
convés podem observar-se os dóris, o parque de pesca onde o pescado era
preparado antes de ser transferido para o porão da salga, e todos os
instrumentos utilizados numa cadeia de operações mecanizada. Permite-se, assim,
ao visitante o privilégio de subir a bordo e recriar na sua imaginação o
ambiente físico e material desta modalidade de pesca. Longitudinalmente existem
dois planos de exposição. Do lado direito da sala são documentados, através de
fotografias, os bota-abaixo[11] e as largadas dos navios, e são expostos,
numa estrutura criada para o efeito, instrumentos de pesca e algumas
curiosidades. Do lado esquerdo, o visitante pode observar o que falta ao navio,
percorrendo os principais espaços que ficavam sob o convés: a câmara dos
oficiais e o camarote do capitão, o porão, os beliches, o rancho e a cozinha.
Numa extremidade desta ala, é ainda dedicado um espaço à representação da
construção naval, recriando-se um estaleiro de construção do dóri e estando
também patente uma maqueta que procura ilustrar uma seca do bacalhau. A mostra
é completada com um filme realizado no tempo áureo da pesca do bacalhau à
linha, documentando a actividade da pesca em alto mar e em que predominam as
imagens de dóris repletos de pescado e de pescadores no decurso da sua
actividade.
A poética da mostra exibida permite, desta forma, mediar o acesso do
visitante ou do espectador ao domínio do invisível e do ausente (o passado),
fazendo-o metonimicamente visível (e presente) (Pomian 1990). Para conseguir
este efeito, o discurso expositivo articula a memória da pesca do bacalhau à
linha em torno da representação material das estruturas físicas implicadas na
prática da actividade. A representação do passado privilegiada é, sobretudo, a
da exibição do património vivido e vernáculo do pescador comum, oferecendo,
assim, uma base para a recordação colectiva que articula as diferenças
culturais e sociais através do ponto de vista de um estilo de vida comum
(Dicks 2000 ' tradução minha), estruturado em torno de uma sobrevalorização do
indivíduo, do engenho, da sorte, do trabalho árduo, da sublimação das artes de
navegação em detrimento da pesca, da protecção divina e da saudade, e na
articulação entre uma identidade exclusivamente masculina no mar e
exclusivamente feminina em terra.
A expressividade desta representação permite relacionar uma identidade marítima
detida por um grupo particular com a população local em geral, exprimindo uma
auto-representação do ilhavense como uma comunidade ocupacional com uma
identidade muito própria. Como me referiu um informante local, de certa
maneira, somos todos marítimos.
AS INVISIBILIDADES DA MEMÓRIA
Os actores e os proprietários da memória detêm um poder que é neutralizado e
nivelado pela invisibilidade conferida pela própria visibilidade das
formulações mnemónicas que criam. Ou seja, é o carácter ostensivamente visível
dos objectos e dos conteúdos do passado que torna invisíveis as estruturas de
poder a eles subjacentes. Em Ílhavo, a visibilidade conferida à ideia de povo
ou de comunidade igualitária de marinheiros, não só relega para o
esquecimento um conjunto de expressões culturais locais que não se conformam
com a representação prevalecente, ou seja, as associadas àquelas actividades
que não são actividades marítimas, como também torna invisíveis as estruturas
de poder presentes no seio de uma sociedade local profundamente assimétrica e
de actividades profissionais fortemente hierarquizadas.
A principal diferenciação que a representação igualitarista dissimula é a que
existe entre oficiais e marinheiros, um princípio de diferenciação marcante que
traduz as diferentes posições de classe e de estatuto a bordo dos navios. Esta
hierarquização é bem patente na mostra, já referida, dedicada à pesca do
bacalhau patente no Museu Marítimo de Ílhavo, traduzindo-se na sobre-
representação de uma matriz de poder composta pelo navio (que representa o
poder do capitão e do armador), pelo estaleiro do dóri (que representa o
importante sector da construção naval), e pela seca (que representa toda a
indústria de transformação do pescado), enquanto que o pescador solitário é
representado como uma figura alegórica, sem que o seu verdadeiro domínio, o
dóri, assuma no contexto expositivo a importância que realmente teve.
Com efeito, na mostra patenteada o dóriencontra-se acondicionado no convés do
navio, ou seja, em situação de inactividade, sendo difícil para o visitante
captar a função que o pescador desempenhava na pesca do bacalhau, ou mesmo
apreender a forma como o bacalhau era efectivamente pescado. Por outro lado, o
filme mostrado limita a representação do pescador à figura de trabalhador do
mar, feliz por entregar a generosidade que o mar lhe ofereceu à mão diligente
do capitão e do seu armador. Além disso, em comparação com a monumentalidade do
navio que figura no centro da exposição, as imagens desgastadas e envelhecidas
da película, a par da total inexistência de textos de sala informativos, tornam
difícil a contextualização da importância do papel do pescador na prática da
actividade.
Tal como o emudecimento do pescador, a representação dos principais espaços que
ficam sob o convés, dispostos sequencialmente na ala esquerda da sala, reflecte
bem as fronteiras físicas, sociais e humanas que existiam entre diferentes
posições de classe: em primeiro lugar, para quem entra na sala, surgem a câmara
dos oficiais e o camarote do capitão, de seguida o porão de salga, e só depois
os beliches, o rancho e a cozinha, onde comiam e dormiam os pescadores. A
ordenação dos objectos no contexto expositivo reproduz, assim, a hierarquia que
existia a bordo, bem como as fronteiras físicas entre os seus espaços. No
entanto, embora seja evidente na narrativa patenteada no museu, esta hierarquia
é tornada invisível, quer pela ausência de informação capaz de contextualizar a
prática da actividade, quer pelo esvaziamento da moldura humana que enquadrava
as estruturas físicas exibidas. Desta forma, o passado é mostrado como um todo
coerente, que não só incorpora eventuais versões dissonantes num único passado
que é apresentado como natural, como também se expande a toda a comunidade,
fixando uma identidade colectiva fortemente condicionada pelas visões detidas
por uma classe particular. Esta transposição do universo de referências
particular detido por uma classe de capitães para todo o território geográfico
é bem patente na frequente identificação de Ílhavo como uma localidade de onde
é originária a maior parte dos oficiais da pesca do bacalhau, traduzindo uma
hierarquização simbólica dos lugares, das práticas e das pessoas que melhor
definem a essência do ser ilhavense. Como refere Aníbal Paião, na década de
50 todos os navios da frota eram comandados por gente de Ílhavo. E não eram só
capitães. Capitães, mestranças e tal. Curiosamente, o que nunca tivemos foi
pescadores. Tivemos sempre gente de formação.
Mas não só o universo de referências do pescador está ausente da representação.
Totalmente ausente está também qualquer alusão à forma como a pesca do bacalhau
à linha se inseriu no quadro da política de abastecimentos desenvolvida pelo
Estado Novo, bem como os contornos ideológicos que envolviam a prática da
actividade, optando-se apenas por reproduzir algumas imagens litúrgicas de
bênçãos de bacalhoeiros como forma de preservar o elevado misticismo e sentido
religioso que comummente se atribui à comunidade.
Através deste aparato representacional, não só são obliteradas as implicações
ideológicas da prática da actividade, como também é iludido o primitivismo do
trabalho e a precariedade da vida dura que se levava ao bordo nos tempos da
pesca à linha do bacalhau, caracterizada por aspectos como a falta de higiene e
de condições mínimas de salubridade a bordo dos navios, a deficiente
assistência médica, a precária habitabilidade dos navios, os acidentes,
lacerações, feridas e infecções que a tripulação sofria e, sobretudo, a forma
como a pesca era realizada, despejando pescadores solitários para um oceano
gelado capitaneando uma pequena embarcação à vela a partir da qual procediam à
captura do bacalhau, um a um, com uma linha de mão e durante longas jornadas de
trabalho. Ausentes estão também as constantes tensões a bordo entre os membros
da tripulação, recrutados em pequenos aglomerados piscatórios espalhados pelo
litoral português e que viam na pesca do bacalhau a oportunidade de obter um
rendimento mais certo capaz de compensar os magros ganhos da pesca costeira ou
local, ou então de fugirem à tropa, já que embarcarem nos navios da frota
bacalhoeira os isentava do serviço militar e da guerra colonial. Oculta-se
ainda a tensão surda que se estabelecia entre oficiais e pescadores, resultado
do exercício da firme autoridade do capitão e da imposição de ritmos de
trabalho árduos, muito embora, com excepção da greve dos bacalhoeiros ocorrida
em 1937, não haja notícia de qualquer tipo de sublevação a bordo.
Tudo isto é omisso na esfera pública da representação. No âmbito da memória
pública, a pesca do bacalhau é a expressão maior, a idealização, de uma
essência marítima que se toma para definir toda uma comunidade. Neste processo,
aqueles que ocupavam posições de poder nos tempos da pesca do bacalhau à linha,
sobretudo capitães e demais oficiais e armadores, preservam o seu estatuto
simbólico no seio da comunidade, ainda que a actividade que lhes conferiu esse
estatuto tivesse cessado e, portanto, anulado o seu poder de facto sobre
indivíduos e colectivos. Gozando de um elevado prestígio no seio da localidade,
pelos rendimentos que auferiam, pela sua capacidade de recrutamento das
tripulações e pelo poder que exerciam a bordo das embarcações ou era assinalado
por determinadas práticas exclusivas, esta classe procura proteger os valores e
asseverar as visões da realidade derivadas da sua experiência dos eventos que
protagonizaram.
A apropriação desta memória por parte do executivo municipal, mais interessado
em utilizar a imagética associada ao mar, em geral, e à pesca do bacalhau, em
particular, ao serviço da capitalização da imagem promocional do concelho e da
performance política dos dirigentes autárquicos, viria a contribuir, porém,
para uma crescente banalização do passado representado. A ânsia do passado,
provocada pelo trauma do desaparecimento abrupto da actividade, cede lugar à
nostalgia. O presente fica saturado de imagens do passado, utilizadas para
legitimar a acção dos eleitos municipais e enaltecer a sua imagem política, ou
para diferenciar o território político, tornando-o atractivo para investidores
ou eventuais turistas.
AS DISSIDÊNCIAS DA MEMÓRIA
Será interessante perguntar como se relacionam os excluídos do passado com a
memória dominante. Como referiram Graham, Ashworth e Tunbridge, o passado é um
campo de conflito e tensão social (2000: 5 ' tradução minha), pelo que a
memória é sempre inerentemente dissonante, sendo permeável a múltiplas
interpretações e utilizações, alterando-se à medida que se alteram os poderes e
os interesses representacionais. Os que são excluídos, por vezes, procuram
subverter a história dominante construindo contramemórias (Foucault 1977 '
tradução minha). Outras vezes, procuram concessões representacionais por parte
da memória dominante, embora não a desafiando abertamente. Ainda noutros casos,
versões não conformes com a memória consensual subsistem, se não na esfera
pública, no domínio do privado, através do escárnio, do rumor, da maledicência,
nutrindo uma resistência anónima, mas activa, às interpretações dominantes
(Scott 1990). Estas leituras alternativas são reactivadas em conversas de café,
transmitidas geracionalmente através da convivência familiar, ou preservadas em
pequenas recordações, objectos banais que testemunham outros passados.
Em Ílhavo, aqueles que são excluídos da memória pública persistem em guardar a
sua versão do passado, mas raramente o fazem fora da sua esfera privada de
convivência social, parecendo não deter os capitais necessários para construir
a sua própria representação. Embora frequentemente discordem da forma como o
passado em que participaram é fixado publicamente, a sua contramemória parece
restringir-se ao domínio do privado, ainda que neste denunciem abertamente a
dureza do passado e escarneçam a classe dos capitães. A invisibilidade pública
da sua versão do passado é, portanto, mais o resultado dos atributos da sua
própria posição social, que conferem menor poder para representar o passado, do
que o resultado da observância de uma versão unívoca da história da pesca do
bacalhau. A forma solícita como tantos destes intervenientes se prontificaram a
fornecer-me um testemunho sobre o seu passado é disso evidência. Um antigo
pescador, que fez quarenta viagens ao bacalhau, quando lhe pergunto se gosta de
rememorar este passado, diz-me: Gosto, mas gosto de contar a realidade. Isto
não era um mar de rosas, nem de rosas nem de cravos. Aquilo era uma escravidão.
Isto é a realidade, eu não estou a inventar nada. Ainda que esta representação
não seja tornada expressa na esfera pública, a sua permanência na esfera
privada, bem como a consciência da existência de uma versão dos acontecimentos
que não é conforme com a versão pública autorizada, consubstancia-se como uma
forma de contra-memória que poderá, eventualmente, ser publicamente activada.
Mas não só aqueles que detiveram posições subalternas na pesca do bacalhau
discordam da representação prevalecente. Também alguns oficiais criticam
abertamente a forma como o passado local é articulado. Expressiva a este
respeito é a visão detida por um antigo capitão da pesca do bacalhau à linha.
Para ele, esta pesca representava um regime escravizante, assente na
disponibilidade de mão-de-obra barata, que tirava partido da debilidade
socioeconómica em que viviam as populações litorais portuguesas. Na sua
opinião, os homens delas saídos sujeitavam-se a condições de vida a bordo
degradantes, ao autoritarismo de alguns capitães, a horas ininterruptas de
trabalho, à arbitrariedade do sistema de recrutamento, ao jugo dos armadores.
Tudo ao serviço de um regime que procurava retirar os maiores dividendos da
actividade ao menor custo. Como refere:
Eu responsabilizo o Salazar pelo fomento da pesca escravizante, anti-
económica e desumana que era a pesca do bacalhau à linha.
Responsabilizo não só o Salazar mas também os ideólogos do
corporativismo, que resulta da Constituição de 1933. E a alma danada
da corporação das pescas foi o Pedro Teotónio Pereira, foi um dos
responsáveis, um dos grandes ideólogos do corporativismo.
Embora estas visões dissonantes não sejam incorporadas nas visões autorizadas
sobre o passado local, e por isso se desvaneçam nos enlevos da transmissão
oral, elas fornecem, não obstante, um reservatório de memórias passível de ser
activado caso novas condições contextuais façam justificar uma revisão da forma
como o passado local é tornado público. O aberto criticismo que é dirigido
pelos pescadores à classe dos capitães e a denúncia da precariedade das
condições de trabalho e de vida nos tempos da pesca do bacalhau à linha são já
evidências da forma como a recordação colectiva se articula em torno de uma
mnemónica clara e coerente, neste caso, o antagonismo entre pescadores e
capitães. O passado é um campo de batalha entre diferentes visões dos
acontecimentos pretéritos que se embatem e renegoceiam com o objectivo de
redefinir as posições de influência na hierarquia social. É, neste sentido,
sempre uma circuito dialógico entre dominação e resistência.
CONCLUSÃO
A visibilidade da memória depende de um processo de metonimização do passado,
mediante o qual apenas uma parte dos eventos pretéritos são seleccionados para
representar o todo que, sem as contradições da realidade vivida, se apresenta
de forma coerente e estável. A natureza selectiva da memória é intrínseca à
forma como o significado é produzido, articulado e negociado no contexto da
experiência quotidiana de atribuição de valor a determinadas categorias em
detrimento de outras. Esta experiência é altamente contingente, variando
conforme as ansiedades de cada presente, e é, por natureza, mutável, na medida
em que, em cada momento, existem sempre várias alternativas possíveis e
diferentes pontos de vista podem emergir. Não obstante, as selecções operadas
pela memória denunciam sempre as relações de poder presentes num determinado
tecido social, pois, não só quem detém o poder tem a capacidade de activar uma
determinada versão da história, e de a consensualizar na esfera pública, como
também a sua acção no domínio da memória reflecte uma necessidade de afirmação
e fortalecimento da respectiva posição de poder.
Contudo, o poder de representar não se resume ao produto de uma emanação
centralizada, unívoca e unilateral. Existem limites ao exercício deste poder,
que está sempre acompanhado de múltiplas e dispersas redes e é ponderado por
variadas e conflituais fontes de oposição. À medida que diferentes agendas
grupais competem entre si para definir o que a cultura é, ou deve ser, novas
versões dos passados colectivos emergem no tecido social, validando e
legitimando os interesses representacionais dos grupos que as propõem ou
patrocinam. Não há, portanto, versões definitivas dos passados colectivos, pois
a natureza situacional das memórias públicas faz com que estejam sempre em
fluxo.
No entanto, cada nova versão do passado não deixa de estar informada pelas
versões que a antecederam. Estas, embora possam ser, em muitos aspectos,
diferentes das ulteriores, fornecem um repertório de possibilidades a partir do
qual a recordação colectiva é articulada. É claro que este repertório também
não é fixo nem estático, pois as alternativas disponíveis em cada momento
gerarão novas possibilidades. Neste processo, novos passados se acumulam,
conflituam ou se substituem aos anteriores, num processo criativo e plástico de
imaginação e reimaginação do passado em cada presente.
Por outro lado, apesar de a memória se apresentar publicamente de forma
unívoca, a permanência de visões alternativas ou dissidentes do passado na
esfera privada é evidência de que a memória nunca pode ser totalmente
convencionada. Como referem Fentress e Wickam (1992), as pessoas recordam-se de
certas vivências específicas porque estas vivências foram significativas para
elas, acusando o peso detido pela própria subjectividade na forma como
percepcionam o passado. Podem, por isso, contestar ou simplesmente serem
indiferentes às versões públicas autorizadas. Podem, também, vir a resgatar da
sua própria experiência pessoal novas leituras do passado que actualizem as
anteriores, caso o próximo presente forneça as condições contextuais favoráveis
a tal revisão da memória.