Uma imagem da nação: traje à vianesa
António Medeiros, Benjamim Pereira e João Alpuim Botelho
Uma imagem da nação: traje à Vianesa
Viana do Castelo, Câmara Municipal de Viana do Castelo, 2009, 392 páginas.
Luís Cunha
CRIA / UM
O que esteve na origem da elaboração de Uma Imagem da Nação: Traje à Vianesa
serve como prova adequada, não apenas da relevância do que a obra nos mostra,
mas também da abrangência e transversalidade simbólica daquilo que a motivou: o
traje à vianesa. A pretexto da comemoração dos 750 anos da outorga do foral a
Viana do Castelo, a edilidade municipal decidiu desafiar Benjamim Enes Pereira
para a realização de um estudo dedicado àquela que ao longo de muitas décadas,
e ainda hoje, constitui uma forte marca identitária da região. A justificação
desse convite tem tanto de simples como de revelador em relação ao que se
jogava no projecto. Como nota o presidente do município na Apresentação da
obra, trata-se de dar relevo a um símbolo reconhecido, desde há muito
associado a Viana do Castelo, mas que, apesar dessa antiguidade, permanece vivo
e dinâmico. A escolha do traje a pretexto de um acontecimento histórico tão
remoto como a atribuição de um foral no século XIII é reveladora da
importância que o município lhe atribui na configuração de uma identidade
regional e seu reconhecimento nacional. Mas essa escolha mostrou também que,
apesar de tudo quanto se escreveu sobre o tema, havia ainda uma história para
contar ' ou recontar, pouco importa para o caso. Uma história feita de datas e
acontecimentos, mas também de discursos que configuram desejos e conflitos,
visões e objectivos, ora contrastantes, ora confluentes. Foi com estes
materiais, abundantes mas difusos, que os autores se abalançaram à escrita de
Uma Imagem da Nação: Traje à Vianesa. Concretizaram-no como um trabalho de
equipa, partindo de diferentes focalizações, mas certos de encontrar uma
complementaridade que assegurasse um resultado final adequado às elevadas
expectativas de que a proposta partiu.
Lendo Uma Imagem da Nação: Traje à Vianesa, percebe-se com clareza a divisão de
tarefas e através dela a lógica formal que enformou o trabalho. António
Medeiros, no capítulo a que chamou Um traje da nação, retoma algumas
questões que trabalhou em outros lugares e ocasiões, procurando dar conta do
modo como se foram construindo as representações em torno do traje e, mais
amplamente, do modo de imaginar o Minho. O contributo de Benjamim Pereira, em
O traje dito à vianesa tem um sentido diferente, alicerçando-se,
fundamentalmente, num enorme conhecimento técnico e atenção ao detalhe para
elaborar uma verdadeira etnografia do traje, que vai desde o cultivo das
matérias-primas às diferentes formas de uso do produto acabado. Finalmente, da
parte de João Alpuim Botelho, é-nos oferecido um outro olhar sobre o mesmo
objecto, no caso através da construção de uma cronologia extensa, que nos
oferece uma panorâmica sobre o modo como o traje foi sendo usado e pensado ao
longo do tempo, tendo como pano de fundo a história regional, nacional e mesmo
internacional.
Destes três contributos, julgamos poder dizer que os dois primeiros dialogam
efectivamente entre si, enquanto o terceiro, muito embora revele um
significativo trabalho de recolha de dados, acaba por surgir de uma forma algo
desgarrada, quase como um apêndice ao trabalho. Voltaremos a esta questão.
António Medeiros vale-se do seu vasto e consistente conhecimento da realidade
minhota para construir uma visão diacrónica, não só do traje vianense ou à
lavradeira, mas também das envolventes sociais e políticas que lhe dizem
respeito. Trata-se de uma abordagem útil e esclarecedora, pois permite perceber
o processo de fixação de um determinado padrão de traje e as diferentes forças
e interesses que nele se envolvem. Percebemos, assim, as dinâmicas e as
estratégias privilegiadas nesse longo processo, sejam elas os desfiles de
trajes e cortejos etnográficos que gradualmente, e a partir do modelo
desenvolvido em contexto urbano, contaminam as freguesias rurais (p. 39), ou
o crescimento dos ranchos folclóricos em todo o concelho. Muito embora esta
seja uma obra pensada para o grande público e com intuitos essencialmente de
divulgação, a verdade é que isso não obsta à convocação de questões de maior
profundidade, como podem ser as do diálogo entre tradição e modernidade ou as
decorrentes de um olhar para outras realidades nacionais, igualmente marcadas
pela promoção do traje no processo mais amplo de afirmação das identidades
nacionais.
O capítulo escrito por Benjamim Pereira constituirá, certamente, um marco
importante para uma etnografia do traje à vianesa. Dividido em três partes, o
seu contributo oferece-nos, em primeiro lugar, uma panorâmica geral sobre o
tema, recorrendo a escritos fundacionais, como os que nos legaram Ramalho
Ortigão ou Cláudio Basto. Por outro lado, e ainda nesta parte introdutória, o
autor traça algumas distinções no traje usado em diferentes regiões de Viana.
Na segunda parte, Benjamim Pereira ocupa-se das matérias-primas usadas na
confecção do traje, dando-nos a conhecer os ciclos da lã e do linho e o modo
como se foram modificando ao longo do tempo ' e não apenas isso, note-se, mas,
por exemplo, também o modo como se tem procurado recuperar, através de práticas
performativas, a tradição do linho (p. 148). A parte final deste capítulo é
dedicada a mostrar o modo de produção dos tecidos e de confecção dos trajes, de
uma forma que apenas um conhecimento profundo do terreno, como é o de Benjamim
Enes Pereira, possibilita.
Como dissemos, estas duas partes complementam-se e articulam-se de uma forma
que nos parece bastante pertinente. Em ambos os casos, o olhar constrói-se numa
lógica diacrónica, sempre atenta, por isso, às dinâmicas sociais e políticas
que levaram à fixação do traje à vianesa e à sua promoção a emblema regional e
mesmo nacional. Neste sentido, o terceiro capítulo de Uma Imagem da Nação:
Traje à Vianesa acaba por se mostrar nalguns casos redundante e, noutros, algo
irrelevante. Percebe-se a dificuldade da proposta. Conseguir criar uma
cronologia pertinente, que desse conta, simultaneamente, do percurso do traje
à vianense e dos acontecimentos da história nacional e mundial (p. 238), seria
sempre tarefa complexa. Para lá dos critérios usados, inevitavelmente
discutíveis, colocar-se-ia também a questão do equilíbrio entre os diferentes
registos convocados. Nada disto põe em causa, evidentemente, o enorme esforço
de recolha e sistematização de material, nem mesmo o que essa recolha significa
no enriquecimento da obra e se oferece como um corpus incontornável para
futuras abordagens deste tema. É na economia da obra, na sua arquitectura
interna, que este contributo revela as fragilidades a que aludimos.
Estamos perante um trabalho profundo, que consegue, todavia, conciliar o rigor
com uma linguagem apelativa, capaz de suscitar interesse num público vasto,
habitualmente distanciado da linguagem e das problematizações marcadamente
académicas. Este não é, certamente, o menor dos méritos desta obra, pois é esse
compromisso, entre a divulgação e o rigor, que permite a afirmação de qualquer
disciplina para lá dos muros, demasiadamente fechados, da universidade. Trata-
se, como vimos, de uma obra compósita, que junta contributos de diferentes
autores, que não só se distinguem pela forma como abordam o tema, mas também
pelos diferentes percursos pessoais e profissionais de cada um deles. Poderia
resultar daqui uma manta de retalhos, mas não é isso que sucede. Para lá do que
já foi dito, e que decorre da conceptualização da obra, há ainda um outro
factor a considerar na eficácia do resultado final. Trata-se das ilustrações
que enriquecem Uma Imagem da Nação: Traje à Vianesa e são, pode dizer-se, a sua
alma. Reveladoras de um exaustivo trabalho de recolha, elas conseguem, quase
sempre, um efectivo diálogo com o texto, funcionando, por essa razão, como o
cimento que sustenta o edifício e lhe dá consistência. Com as inúmeras
fotografias, cartazes e reproduções pictóricas, consegue-se ainda um outro
efeito importante, uma espécie de elisão do tempo ' o que não deixa de ser um
efeito algo paradoxal, atendendo a que toda a obra se constrói numa lógica
diacrónica. As fotos actuais, mais ou menos encenadas, dialogam com as antigas,
nas quais a encenação, quando existe, tem um outro sentido. As diferenças, que
evidentemente existem, são subsumidas nas semelhanças, que criam a ilusão de
estarmos perante uma realidade quase imutável, uma insuspeita atemporalidade
marcando o uso deste traje. É neste sentido que falamos de elisão do tempo,
fenómeno que nos parece bastante sugestivo para discutir os processos de
patrimonialização e a actualização das narrativas que dão sentido a tais
processos.