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EuPTHUHu0873-65612012000100012

EuPTHUHu0873-65612012000100012

National varietyEu
Country of publicationPT
SchoolHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN0873-6561
Year2012
Issue0001
Article number00012

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Archeologie del Trauma: Un'Antropologia del Sottosuolo Roberto Beneduce, Archeologie del Trauma: Un'Antropologia del Sottosuolo. Roma- Bari, Laterza Edizioni, 2010, 218 páginas, ISBN: 978-88-420-9249-0.

Roberto Beneduce, Corpi e Saperi Indocili: Guarigione, stregoneria e potere in Camerun. Torino, Bollati Boringhieri, 2010, 407 páginas, ISBN: 978-88-339-2050- 4.

Chiara Pussetti CRIA-IUL, Portugal, chiaragemma.pussetti@gmail.com

Para conseguir pôr em diálogo as duas recém-publicadas monografias de Roberto ­Beneduce, é necessário considerar o percurso académico do autor. Psiquiatra e psicoterapeuta de formação, Beneduce começou em 1988 a desenvolver pesquisa no Mali sobre os sistemas terapêuticos locais, trabalhando ao lado de curandeiros como investigador e aprendiz. O diálogo constante entre saberes diferentes, o da biomedicina, de um lado, e do outro as práticas de cura que Beneduce ia frequentando, antes no Mali e depois nos ­Camarões, torna-se o elemento de distinção do centro de apoio psicológico para imigrantes e refugiados que ele funda em Turim em 1996, o Centro Frantz Fanon. Continua ao mesmo tempo o trabalho clínico e a investigação, indagando a relação complexa entre sofrimento, memória, violência, práticas terapêuticas e retóricas humanitárias.

Editadas ambas em 2010, as publicações que decidi apresentar nesta recensão espelham as duas almas de Beneduce. No primeiro dos dois livros, Archeologie del Trauma, fala mais o terapeuta, as suas dúvidas e inquietações face a dores, feridas e memórias impossíveis de reduzir ao perímetro estreito de um único conceito: o de trauma. Roberto Beneduce interroga aqui modelos e categorias que, no seio de retóricas humanitárias e do saber ­psiquiátrico, ignoram muitas vezes as diferenças, as responsabilidades, as dimensões político-económicas e os enigmas da memória num terreno de histórias sofridas.

No segundo livro, Corpi e Saperi ­Indocili, acompanhamos mais o trabalho do antropólogo, numa etnografia minuciosa que indaga as experiências da doença e da cura na África contemporânea, através de uma análise profunda dos saberes e das práticas dos curandeiros banto do Sul dos ­Camarões. Explorando as linguagens subterrâneas da feitiçaria e as práticas obscuras dos senhores da noite, Beneduce analisa outras técnicas e outras representações do mal, do sofrimento e da morte. O autor acompanha o leitor nesta viagem, revelando outros imaginários e indicando caminhos alternativos: percorremos assim também as novas racionalidades da doença e da cura representadas pela medicina dos brancos, as definições morais de culpa e pecado introduzidas pela epopeia missionária, as lembranças do período colonial, as ambições e as figuras do desejo que caracterizam a contemporaneidade africana.

Estes dois volumes estão a ser apresentados em conjunto não somente por causa da simultaneidade da sua saída no mercado editorial, mas sobretudo por resumirem de forma emblemática o percurso intelectual de Roberto Beneduce, pois é possível identificar esta mesma dialética ao longo de toda a sua produção editorial anterior. Suspenso entre o fascínio por uma África que ele define como tradicional e cujas dinâmicas da contemporaneidade indaga, mas sempre piscando o olho aos temas típicos das monografias africanistas de matriz clássica (feitiçaria, possessão, rituais iniciáticos), e o olhar clínico com o qual acompanha os seus pacientes no Centro Frantz Fanon e interroga as categorias de diagnóstico da psiquiatria, através de uma abordagem arqueológica, Beneduce poderia constituir um belo caso de dupla personalidade.

Mas é possivelmente este mesmo posicionamento oblíquo que lhe permite evidenciar, por um lado, as transformações dos repertórios simbólicos da tal medicina tradicional africana face às influências da colonização e da evangelização e, por outro, os desafios e as contradições de uma modernidade incerta, caracterizada por mobilidades, desigualdades e violências. Conhecendo pessoalmente o autor e a sua extraordinária sensibilidade como etnógrafo e, em particular, como terapeuta, poderia afirmar que, no fundo, ­Beneduce se interroga incessantemente sobre os mesmos temas: a memória e os seus dilemas, a história e as suas feridas, a dor e as suas expressões, através de uma análise crítica dos modelos hegemónicos da cura. Todavia, os seus textos distanciam-se notavelmente um do outro, quer pelos objetos e sujeitos do estudo, quer pela postura metodológica e epistemológica adotada pelo autor ' diferenças que sobressaem e que se revelam estimuladoras de análise crítica.

Em Corpi e Saperi Indocili Beneduce indaga, como o subtítulo bem resume, as relações entre cura, feitiçaria e poder nos Camarões. O texto apresenta-se como uma monografia etnográfica de matriz clássica, se considerarmos o estilo organizativo e argumentativo proposto ao longo do texto, que denota a vontade de abordar da forma mais completa e abrangente todos os aspetos envolvidos na experiência do mal e da cura no contexto analisado (a zona da cidade de Sangmélima na área Bulu dos Camarões). Mas nas primeiras linhas da introdução o autor entrelaça esta aventura particular com as tramas da sua própria biografia, cruzando interrogações e experiências, projetos e metodologias diversas, e delineando itinerários geográficos complexos, entre a Eritreia, ­Moçambique, a República Democrática do Congo e Itália. Mais uma vez cenários que o veem em ação, ora como antropólogo, ora como psiquiatra, sempre suspenso entre a etnografia e a clínica. Cada um destes âmbitos de reflexão, todavia, sublinha o autor, ilumina reciprocamente todos os outros, evidenciando limites e sombras e permitindo perceber aspetos que podem tornar-se invisíveis por um hábito académico que muitas vezes impõe cesuras forçadas: entre observação objetiva e partilha do quotidiano, entre interpretação e dados de campo, entre ­teoria e prática, entre o antropólogo e o terapeuta. O trabalho conduzido com pacientes imigrantes em Itália enriquece-se através das observações, das considerações e das perguntas que vêm do terreno em África. Os mesmos relatos, violências e dissídios mas olhados de perspetivas diversas. O posicionamento duplo, instável por vezes e certamente delicado, do autor, permite-lhe pôr em diálogo universos sociais e simbólicos diferentes, horizontes de significados e epistemologias aparentemente incomunicáveis. A pesquisa em África que lhe permite o acesso ao imenso património de saberes do qual os curandeiros detêm a custódia do segredo, assim como os quinze anos de clínica com pacientes imigrantes permitem a Beneduce repensar de forma crítica as categorias de diagnóstico que constituíam a sua ferramenta de trabalho como terapeuta e elaborar uma análise complexa, nutrida pela experiência etnográfica, das outras linguagens do sofrimento e idiomas do corpo. Assistente e aprendiz, Beneduce mantém uma distância próxima com os seus interlocutores no campo e o encontro etnográfico transforma-se rapidamente numa relação complexa entre terapeutas carismáticos, chamados pelo desejo de curar a um mandato especial: tratar a dor dos outros, lutar contra o mal. Mais uma vez Beneduce põe em jogo as suas identidades coexistentes: professor, médico, psiquiatra, psicoterapeuta e antropólogo, forçado a olhar através das lentes da história o objeto da sua pesquisa, num diálogo constante com as mais amplas dimensões económicas e políticas, cujas assimetrias tantas vezes se traduzem em sintoma.

Contando da sua África, que ele define como fantasma, ambígua e indócil, parafraseando Michel Leiris (L'Afrique fantôme, 1981), Georges Balandier (Afrique ambiguë, 1957) e Achille Mbembe, Afriques indociles, 1990), Beneduce fala-nos da doença da incerteza, da vulnerabilidade e do abuso, fala da violência e das suas vítimas. É desta mesma África subsaariana que, na sua maior parte, chegam os pacientes ao Centro Frantz Fanon, e é com esta mesma incerteza que ele se confronta na prática clínica, explorando aquela zona de sombra, que ele define como subsolo, na qual se ligam a vida psíquica, a história e a violência. Tentar praticar uma antropologia do subsolo é o desafio que Beneduce enfrenta em Archeologie del Trauma. O livro confronta-nos com uma reflexão crítica capaz de abalar algumas ideias instaladas sobre as experiências psicológicas das vítimas de tortura, dos refugiados e dos imigrantes em geral, que dominam não a literatura especializada, mas também a linguagem comum, os discursos sobre trauma e vulnerabilidade, as retóricas humanitárias e as representações da violência e das suas vítimas. Sempre empregando as suas múltiplas competências, Beneduce observa as histórias dos pacientes acompanhados ao longo dos anos através de lentes diferentes, criando um diálogo estimulador entre disciplinas e perspetivas teóricas diversas, como sejam a das ciências da saúde, das ciências políticas, da história e da psicologia, além da antropologia. Não sem uma certa ironia, lutando contra o que ele define como o exército dos peritos psicotraumatólogos, profetas de um novo evangelho no qual as categorias de diagnóstico têm a força de fórmulas mágicas, Beneduce critica os projetos terapêuticos que esquecem as matrizes locais do sofrimento e da cura, sublinhando a importância de devolver valor às experiências particulares do mal-estar. Beneduce usa palavras duras: fala de imperialismo cultural da psicologia da emergência, de imposição de retóricas humanitárias e modelos psicológicos rígidos que acabam por ­contribuir para aquela anestesia moral e impunidade, características de contextos de terror e arbitra­riedade. Parte destas considerações para a sua provocatória análise ­arqueológica do conceito de trauma, da hegemonia da categoria de perturbação de stresse pós-traumático (PTSD), distanciando-se de uma psiquiatria à procura de um consenso tão rápido quanto superficial.

A provocação de Beneduce, especialmente considerando entre os seus leitores um eventual público de profissionais da área da saúde, é ousada: não podemos esquecer que a ciência soberana no que diz respeito à questão do trauma continua a ser a psicanálise, que à volta deste conceito construiu uma complexa teoria do tempo, da dor, da memória e da verdade. Com a legitimidade e a força do seu ' no mínimo ' duplo posicionamento, de médico psiquiatra mais do que antropólogo, Beneduce reprova não as categorias e os modelos que pretendem definir a arquitetura secreta do sofrimento, mas também critica duramente as técnicas terapêuticas que elidem a questão moral e promovem uma alienação da história. Por um lado, define ironicamente as categorias psiquiátricas como práticos conceitos prêt-à-porter, que concorrem para eclipsar a história em nome de outras verdades (as do inconsciente ou das leis da neuropsicologia).

Por outro lado, piscando o olho a ­Foucault, define as intervenções psicológicas destinadas a trabalhar os dilemas e as chagas da memória como tecnologias do self, operações engenhosas de controlo dos sujeitos. Na onda foucaultiana, Beneduce convida então o leitor a considerar as noções de trauma ou de PTSD de uma perspetiva genealógica, em primeiro lugar reconstruindo a sua constituição de um ponto de vista histórico. Os dois conceitos constituem, afirma o autor, ícones perfeitos da história: permitem finalmente anestesiar ou anular o escândalo da dor através da linguagem neutral da ciência. A analgesia moral e política derivada do emprego destes conceitos gera-se, em particular, quando estes evocam um substrato comum (biológico ou psíquico), um mecanismo neuropsicológico universal, que permite não considerar eventuais diferenças de condição, projetos e relações de força. Mais se fala de trauma ou de PTSD, mais se tenta reconduzir à realidade orgânica e objetiva uma alteração persistente do sistema nervoso central, mais se torna invisível a história. Olhar para estas noções de uma perspetiva arqueológica significa, por outras palavras, indagar o que conceitos criados no interior de um saber definido tornam pensável e o que, pelo contrário, acabam por esquecer ou mascarar.

No decurso do livro, Beneduce tenta investigar através de lentes múltiplas as relações entre violência, memórias, poder, sofrimento e suas configurações históricas, sem nunca reproduzir os modelos universalistas do trauma e da cura que apagam muitas vezes as especificidades sociais, culturais e históricas e que conduzem à proliferação de vítimas genéricas, expulsas da história e ignoradas como sujeitos políticos e morais capazes de agir e escolher. Nesse sentido, este é um trabalho relevante, na medida em que nos permite, através da experiência ao mesmo tempo clínica e antropológica do autor, ter acesso a algo que costuma ser muito difícil de captar: o modo como se manifestam e são negociados no quotidiano muitos dos dilemas, ambivalências e ambiguidades que caracterizam aquele espaço delicado onde as histórias dos refugiados, dos requerentes de asilo, dos imigrantes e as suas memórias tangenciam a história dos serviços para eles vocacionados. Mantendo-se em equilíbrio naquela zona subtil de interface entre os utentes e os serviços, Beneduce apresenta uma reflexão sobre as relações que os que habitam os espaços da exclusão ' os indesejáveis dos quais fala Michel Agier (Gérer les indésiderables, 2008), indivíduos indefinidos, social e juridicamente expostos a qualquer forma de arbitrariedade ' constroem com o passado, o poder, a dor e a própria subjetividade. Falando com a consciência de quem frequenta na prática profissional quotidiana os serviços vocacionados para os sem-Estado, os não- cidadãos, Beneduce examina lucidamente o governo contemporâneo dos indesejáveis, um governo que fala em nome dos que não somente vivenciam uma dupla ausência, como indicava Sayad falando em geral da condição dos imigrantes, mas também um duplo desenraizamento: do tempo e do direito. A questão do apoio social, da ajuda humanitária e das suas formas ocultas de poder relembra, segundo a perspetiva de Beneduce, as tentativas de civilização e de medicalização do outro da época colonial, a história da planificação do desenvolvimento como missão pedagógica, na direção de uma humanidade moderna e livre, segundo uma lógica liberal. É a partir destas considerações que o autor instiga os colegas a desenvolver uma análise crítica das práticas do humanitarismo e do apoio social, como dinâmicas de reprodução da autoridade, ideologias políticas produzidas em nome dos outros, mas sem o consentimento deles. Como do conceito de trauma, também da categoria de vítima Beneduce tenta uma análise arqueológica, desvelando o seu caráter omnívoro, noção mais moral do que política, cujos confins plásticos englobam a humanidade em excesso, da qual nos falava Bauman (Wasted Lives, 2003), as tais vidas desperdiçadas geridas pelo warfare management.

A condição de vítima representa portanto o pré-requisito essencial para se ser recetor de ajuda e assistência. Não apenas isso, sublinha Beneduce, mas o requerente de asilo não tem acesso à esfera da cidadania, isto é, não é reconhecido como refugiado senão enquanto vítima. O acesso aos direitos ou ao reconhecimento do asilo político depende da possibilidade de poder demonstrar ser vítima através de uma reevocação performativa das memórias da violência e do trauma, uma condição definida por outros autores como cidadania humanitária, isto é, a constituição de sujeitos detentores de direitos e responsabilidades com base numa condição social específica (cf. V.-K. Nguyen, Antiretroviral globalism, biopolitics, and therapeutic citizenship, em A. Ong e J. Collier (orgs.), Global Assemblages, 2008). Sublinhando então a força política dos conceitos de trauma e de PTSD, o autor justamente sublinha a diferença fundamental entre refugiados e requerentes de asilo, mostrando como ser um refugiado significa em primeiro lugar tornar-se um refugiado, ser reconhecido juridicamente como tal. Parafraseando Simone de ­Beauvoir quando dizia, a respeito da construção de género, que Ninguém nasce mulher, torna-se mulher, o refugiado constitui-se enquanto tal como consequência do olhar de terceiros, que o define como vítima impotente e necessitada de ajuda. Estamos a falar daquela experiência de disempowerment que Muhammad Ali Khalidi (em The most moral army in the world?: the new ‘ethical code' of the Israeli military and the war on Gaza, Journal of Palestine Studies, 2010) definiu como neocolonialismo ou imperialismo humanitário, isto é aquela relação de poder específica veiculada pela ajuda, que cria identidades colonizadas, sujeitos incapazes, por outras palavras, de se imaginar senão como sujeitos passivos, beneficiários, dependentes e vulneráveis. Os vulneráveis, as vítimas têm que aprender a utilizar muito bem a linguagem do sofrimento e do trauma, único capital simbólico de que dispõem para se poderem tornar quase-cidadãos. O livro de Beneduce evidencia de forma clara os aspetos mais dramáticos desta relação: primeiro, a forma paradoxal como o poder é suprimido ou atribuído às pessoas; segundo, a apropriação, por parte das instituições que criam as condições para que o sofrimento tenha lugar, das teorias salvíficas sobre a utilidade do sofrimento com vista a um bem-estar maior e futuro da humanidade (a violência do zelo de Lock, em The quest for human organs and the violence of zeal, em Das et al. (orgs.), Violence and Subjectivity, 2000); finalmente, a ­evidên­cia de quanto a assistência, o cuidado, o ­Estado-social, a proteção humanitária e até os direitos podem ser manipulados e imbricados na definição e organização das modalidades de pertença ou exclusão nacional. A relação burocrática da assistência é definidora de novas identidades sociais, é, portanto, uma relação polarizada entre vítimas e benfeitores, indivíduos passivos e sujeitos agentes, recetores e doadores. Se considerarmos a intuição antropológica de Marcel Mauss, que no Ensaio sobre a Dádiva (1925) afirmava que a dádiva define as relações de poder e status entre quem doa e quem recebe o dom, podemos afirmar que as relações que se baseiam na dádiva nunca são neutras, mas, especialmente na impossibilidade da reciprocidade, constroem o outro como vítima, passivo, dependente, infantilizado. Incapazes de devolver o dom, na lógica da reciprocidade, os refugiados ficam bloqueados na posição de subordinados: o que se espera deles é a prestação de comportamentos dóceis e de reconhecimento em relação aos benfeitores, e uma total ausência de agency que os transforma em vítimas mesmo quando o não são. O livro de Beneduce constitui, neste sentido, um passo importante na direção de uma melhor integração e de um atendimento diferente dos imigrantes não documentados, dos refugiados e requerentes de asilo. Não se afirma que os que são excluídos dos direitos não necessitam de apoio. ­Evidentemente que sim. O problema que neste livro se levanta com grande sensibilidade é acerca do tipo de ajuda que recebem, da forma como esta ajuda é oferecida e sobre o papel que eles são obrigados a assumir para poder beneficiar desse apoio. O que significa, por outras palavras, que é preciso demonstrar ser uma vítima real para se ser reconhecido como cidadão. O humanitarismo define o que poderíamos qualificar como uma ordem do discurso: os seus enunciados, as suas relações e os efeitos de verdade. Os sem-Estado não podem evocar condições de pobreza, falta de emprego, instabilidade ou exploração económica para ter acesso aos direitos, mas devem mostrar as feridas da violência na memória e no corpo. Devem tornar-se pacientes, através de uma biomedicina que opera como um verdadeiro dispositivo de cidadania, transformando a violência política e o sofrimento coletivo em doença individual. É uma forma, se quisermos, de biopolítica presente nos decretos legislativos, na postura das instituições e dos profissionais que nestas colaboram, que está presente, por outras palavras, em todas as pequenas monarquias que podem decidir quem pode ficar na Europa-fortaleza.

Política da prova, política do testemunho, política da verdade e da dúvida como recurso para obter um direito: é neste eixo que o livro de Beneduce se abre a novas interrogações sobre o setor da assistência e do apoio, como estímulo para pesquisas futuras. E é neste ponto que os nossos interesses, os do Beneduce, o autor do livro, o médico psiquiatra, o professor de antropologia médica e os meus, como leitora e ­ex-aluna, mais uma vez se aproximam. O ponto a que me refiro é o setor do cuidado, care, que vai do assistencialismo, do apoio social, ao humanitarismo. São duas práticas distintas mas que, no fundo, constituem duas faces da mesma moeda: o primeiro, nas suas facetas piores, reproduz um paternalismo de cariz colonial, justificado pela força do domínio (cf. A. Ong, Buddha is Hiding, 2003) e do ethos da compaixão (D. Fassin, Compassion and repression: the moral economy of immigration policies in France, Cultural Anthropology, 2005); o segundo, capaz de silenciar paradoxalmente as vozes dos atores em jogo, descontextualizando as suas histórias e sofrimentos, transforma-os sempre mais em objetos de assistência e sempre menos em agentes políticos. O mesmo poder que concorre para criar as condições que favorecem a exclusão social entra em jogo para oferecer respostas institucionais e políticas de intervenção adequadas ao sofrimento que se propõe aplacar. Julgo, com Beneduce, que, atualmente, um dos maiores desafios da pesquisa antropológica que se queira caracterizar como crítica consiste em investigar as políticas contemporâneas, não tanto nas suas instituições e técnicas, mas sobretudo no ethos que as anima. Trata-se de políticas que, em nome da virtude moral da compaixão, se empenham em aliviar o sofrimento, afastando todavia o olhar das suas próprias causas e contribuindo para criar sujeitos assistidos e torná-los vítimas, mesmo e especialmente quando não o são. Os sentimentos morais ' ou as tais boas intenções que se autojustificam enquanto tal face a qualquer tentativa de crítica ' encontram-se hoje na base das políticas públicas contemporâneas: nutrem os seus discursos e legitimam as suas práticas, especialmente quando estas são destinadas aos oprimidos, aos dominados, aos excluídos. O vocabulário do sofrimento, da vitimização, assim como o da compaixão e da solicitude humanitária fazem hoje parte da nossa vida política. A intervenção de George Bush em 2002, na qual define o esforço contra a pobreza como um trabalho de compaixão (<www.whitehouse.gov/news/releases/ 2002/04/20020430-5.html>), ou o discurso de Sarkozy para a França que sofre em 2006 (<http://www.u-m-p.org/site/index.php/s_informer/discours/ nous_allons_faire_revivre_l_espoir>) são dois bons exemplos desta postura: uma linguagem que se impõe e é capaz de criar consenso com uma força tal que permite justificar e legitimar qualquer tipo de intervenção ou decisão política (cf. D. Fassin e M. Pandolfi, Contemporary States of Emergency, 2010). Como sublinha muito bem Didier Fassin (em La raison humanitaire, 2010), esta política da compaixão é, em primeiro lugar, uma política da desigualdade e, em segundo lugar, uma política de solidariedade: a relação humanitária é, portanto, profundamente assimétrica. E esta assimetria é mais política do que psicológica: parafraseando Fassin, não se trata tanto de uma crítica da compaixão pela postura de superioridade que implica, mas porque supõe uma relação de diferença social. A compaixão é dirigida de cima para baixo, dos que detêm o poder (ou o saber) para os vulneráveis, os marginais, os frágeis. A política da compaixão é portanto um governo humanitário das vidas precárias. E a antropologia não é estranha a esta lógica, especialmente a postura de uma certa antropologia médica crítica na qual eu muito me reconheço e que certamente caracteriza o estilo dos livros de Roberto Beneduce ' uma antropologia que a partir dos anos 90 começa a delinear-se pelo seu interesse pelos miseráveis, os excluídos, os traumatizados, as vítimas. Expressões como sofrimento social e violência estrutural tornam-se ícones desta particular representação das misérias do mundo (cf. Pierre Bourdieu, La misère du monde, 1993), à qual as ciências sociais aportam a autoridade da reflexão teórica e das pesquisas empíricas. Legitimada pelos dados etnográficos e pelo discurso da ciência, esta visão das coisas impõe-se com a força da evidência. Talvez seja isso o que mais caracteriza estes dois livros de Beneduce: uma certa postura de acusação de todos os mecanismos que contribuem para silenciar os que não têm voz, para ocultar a história e as suas heranças, a política e as suas ­motivações. neles uma vontade de intervenção que comove o ­leitor, que acompanha esta viagem envolvente entre a denúncia do que foi e está a ser feito em direção a uma suposta forma certa ou, pelo menos, melhor de cuidar dos oprimidos, e uma tensão genuína para compreender e aliviar os múltiplos sofrimentos dos aflitos que acaba por reconfirmar em parte o ethos da compaixão, ou melhor, a economia moral que caracteriza a contemporaneidade.


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