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EuPTHUHu0873-65612012000200005

EuPTHUHu0873-65612012000200005

National varietyEu
Country of publicationPT
SchoolHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN0873-6561
Year2012
Issue0002
Article number00005

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Coreografias de evasão: segregação e sociabilidade entre os jovens do break dance das favelas da Maré

Revisitando o conceito de favela Desde que a categoria favela se generalizou para descrever certo tipo de aglomerado habitacional, está associada a ideias de carência, pobreza, ilegalidade e espaço sem lei e sem ordem.[1] Representadas como território urbano dos miseráveis, as favelas são vistas como local de ausência, uma área destituída do mínimo possível para a habitabilidade. Ou seja, a favela é a expressão, por excelência, do espelho invertido de civilização (Zaluar e Alvito 2006: 12), um território à parte, sem Estado, sem urbanidade e local de moradia das chamadas classes perigosas.

Tais caracterizações retiram qualquer margem para se pensar a diversidade sobre os espaços favelados e sobre aqueles que habitam estes territórios. O universo plural das favelas é reduzido a uma categoria una e homogénea, e as suas diferenças, inclusive internas, são negadas, criando-se uma representação caricatural de ocupações ilegais em morros, sem serviços públicos e marcadas pela desorganização social. Foi no contexto da ampliação das pesquisas e dos debates académicos sobre as favelas cariocas[2] nas décadas de 1960 e 1970 ' em que a teoria da marginalidade social e a ideia de cultura de pobreza[3] passaram a ser articuladas ' que algumas dessas convicções ganharam maior sustentação teórica (Rosa 2009; Valladares 2008). A favela não seria apenas um território particular, como também produziria uma cultura específica e condicionadora dos comportamentos dos seus habitantes (Valladares 2008). A banalização dessas perspetivas consolidou uma visão dualista da cidade, ­manifesta nas oposições entre asfalto e favela, cidade legal e cidade ilegal, ou centro e periferia.

Na década de 1990, o enfoque na desorganização social das favelas foi substituído pela associação direta ao crime violento (Silva 2008). A chegada do tráfico internacional de cocaína às metrópoles brasileiras fez aumentar exponencialmente o lucro e o poder dos traficantes, que passaram a utilizar as favelas como territórios privilegiados para a distribuição final da ­mercadoria ilícita.[4] Assistiu-se a um recrudescimento das lutas entre bandos armados pelo monopólio do comércio de estupefacientes, tal como da violência policial.

A consequência desse processo foi um crescimento extraordinário dos assassinatos na década de 1980, principalmente entre os jovens, quando o número de homicídios na região metropolitana do Rio de Janeiro triplicou em menos de dez anos (Zaluar 2006). Essa transformação repercutiu-se no modo de representar a favela, que passa a ser vista como fonte da violência urbana, e os seus moradores vistos como bandidos ou quase bandidos, reeditando o fantasma das classes perigosas e consolidando-a como o lugar do outro da cidade.

Situando a Maré nos discursos sobre a favela Nas favelas da Maré vivem mais de 130 mil pessoas, distribuídas numa área aproximada de 4,3 quilómetros quadrados (CEASM 2003). Formam o maior complexo de favelas da cidade (Jacques 2002). O uso da palavra complexo para designar um conjunto de favelas é muito comum no vocabulário da polícia e dos meios de comunicação. No entanto, esta palavra possui uma conotação estigmatizante, por ser utilizada originalmente para nomear agrupamentos penitenciários, como é o caso do Complexo Penitenciário Frei Caneca. Por esta razão, optei, ao longo do texto, por empregar a expressão conjunto de favelas da Maré ou, simplesmente, Maré.

Localizada na zona norte do Rio de Janeiro, está comprimida entre alguns dos seus principais eixos viários: Avenida Brasil, Linha Vermelha e Linha Amarela.

Deste modo, a Maré possui uma localização estratégica, pois quem chega à cidade pelo aeroporto internacional acaba por passar a poucos metros de distância do bairro.[5] Construídas em diferentes momentos, as várias favelas da Maré possuem uma forte heterogeneidade territorial, habitacional e populacional. Até ao início da década de 1980, a Maré reunia seis favelas, a maioria delas fruto de ocupações: Morro do Timbau (primeira localidade a ser ocupada), Baixa do Sapateiro, Parque Maré (as construções iniciais datam da década de 1940), Parque Rubens Vaz e Parque União (década de 1950) e Nova Holanda (Vieira 2002).

[6] A implantação do Projeto Rio,[7] lançado em 1979 pelo Banco Nacional de Habitação (BNH), alterou profundamente a paisagem dessa região. Não dotou a Maré de infraestruturas básicas (água, eletricidade, instalações sanitárias, pavimentação) como erradicou as suas palafitas (barracas de madeira suspensas sobre as águas da Baía de Guanabara). Estas foram substituídas por conjuntos habitacionais construídos na própria Maré, o que deu origem a novas localidades: Vila do João, Vila do Pinheiro, Conjunto Pinheiro e Conjunto Esperança.[8] A implementação de projetos estatais voltados para o reordenamento do espaço urbano, aliada à organização e participação comunitária dos habitantes da Maré, proporcionaram uma considerável melhoria nas condições de vida dos moradores do bairro. Atualmente, a maior parte da Maré é dotada de infraestruturas básicas, a generalidade das suas residências são construções em alvenaria, sendo raras as ruas não pavimentadas ou sem sistema de esgotos. Os efeitos da urbanização nas favelas, porém, não alteraram as representações dominantes, que continuam a defini-las sobre o eixo da ausência. Não estaríamos diante de um território sem Estado, mas de uma área carente de uma ação estatal eficaz. A urbanização sem qualidade como solução para enfrentar a desigualdade urbana teve como consequência reeditar muitos dos antigos problemas que o Estado queria solucionar (Rosa 2009).

A Maré é indiscutivelmente um bairro habitado pelas classes populares, isto é, por famílias com renda abaixo da média dos moradores da cidade do Rio de Janeiro. No índice de desenvolvimento humano (IDH) municipal, que abrange mais de uma centena de bairros, a Maré estava na quarta pior posição.[9] ­Todavia, não se pode pensar nos moradores das favelas, designadamente na Maré (na minha perceção, dotada de melhores equipamentos e infraestruturas que a maioria das favelas), como pertencentes, exclusivamente, às classes mais baixas da sociedade, sob pena de não compreender os inúmeros processos de mudança que a pobreza e a habitação atravessaram nas últimas décadas no Brasil. A existência de pequenos e médios comerciantes no bairro, ou mesmo de indivíduos que se tornaram proprietários de vários imóveis, muitos dos quais fizeram da verticalização das suas casas um bom negócio, negam as teorias que generalizam para todos os moradores das favelas o estatuto de pobres. A presença de muitos estudantes universitários na Maré é outro dado que ajuda a desmistificar as representações hegemónicas das favelas, caracterizadas como berço de analfabetos e de pessoas com pouca instrução.[10] Rompendo as amarras: fronteiras e segregação na Maré A Maré não é dividida em diferentes favelas ' com histórias de ocupação originais ', mas também em áreas de influência das várias fações do tráfico de droga. Basta entrar na Maré para notarmos a presença de bandos armados, sempre atentos à entrada da polícia e à presença de quadrilhas inimigas em seu território,[11] e pressentirmos a conflitualidade a que estão submetidos os seus moradores. Mas os conflitos não podem ser atribuídos exclusivamente às fações criminosas, dado que a polícia é um importante agente na promoção da violência e no sentimento de insegurança daí advindo. Na opinião de muitos moradores, a polícia realizaria investidas sem qualquer planeamento, desencadeando tiroteios que não raras vezes provocam a morte de residentes que nada têm a ver com o tráfico.[12] Mas não da droga vive o tráfico. Segundo funcionários de algumas ONG locais, os traficantes aproveitam o seu poder para controlar o mercado de ligações clandestinas de televisão por cabo e Internet (a que os moradores chamam TVGato e GatoNet, respetivamente), que proporcionam importantes somas financeiras. Também cobram taxas ilegais aos comerciantes locais, impõem um tributo na venda de botijas de gás e participam nos lucros advindos da venda de imóveis na favela e do transporte alternativo realizado através de carrinhas de dez lugares (chamadas vans ou kombis) e do serviço de moto-táxi.

Os constantes confrontos entre traficantes e a ação violenta da polícia ­produzem fortes efeitos na mobilidade e na construção das redes de amizade dos moradores da Maré, tal como acontece em muitas outras favelas cariocas. Um dos mais evidentes é a dificuldade de livre circulação pelo bairro. As divisões territoriais impostas pelas diferentes fações do tráfico forçam grande parte dos moradores, particularmente os jovens, a evitar áreas sob o controle de bandos rivais. Por um lado, receiam ser confundidos com membros de uma fação inimiga ou mesmo com investigadores da polícia, o que poderia pôr em risco a sua vida. Por outro, sofrem uma submissão, inclusive simbólica, que restringe as suas redes de amizade. A influência que essas quadrilhas exercem sobre os jovens pressiona-os a não se relacionarem com outros do mesmo bairro, apenas pelo fato de viverem em localidades dominadas por fações diferentes e rivais.

Neste processo, o jovem do lado de é classificado como alemão, isto é, uma pessoa não confiável, não merecedora de respeito e malfeitora. A consequência desse processo é a intensificação da experiência de confinamento territorial (Silva 2008: 13) vivida pelos moradores das favelas. O medo se reifica, e familiares que vivem em lados diferentes das fronteiras (do tráfico) evitam frequentar as respetivas casas; o percurso para certas regiões do bairro é alterado de modo a não atravessar áreas fronteiriças; tradicionais espaços de lazer e de encontro passam a ser evitados, sufocando as redes de convivialidade e de vizinhança.

Embora os moradores da Maré (e de muitas outras favelas cariocas) sejam obrigados a conviver com o tráfico de droga, a ideia de conivência é amplamente sugerida pelos meios de comunicação social. São vistos como cúmplices do tráfico, o que justificaria uma determinada política de segurança pública que não distingue claramente os criminosos dos moradores não envolvidos, sendo estes últimos a esmagadora maioria da população do bairro. A ideologia de que o Rio de Janeiro viveria uma guerra civil passa a desculpabilizar a morte de inocentes e os excessos da polícia, entendidos como inevitáveis no combate ao crime. Simultaneamente, o extermínio de integrantes das quadrilhas do tráfico, maioritariamente jovens e adolescentes, passa a ser legitimado por uma criminalização da pobreza sem precedentes (Silva e Barbosa 2005).

A forte segregação vivida pelos moradores das favelas, reforçada pelas representações estigmatizantes de que são alvo, dificulta o desenvolvimento dos seus plenos direitos sociais e políticos. No domínio da segurança pública, a parcialidade dos direitos dos moradores das favelas é flagrante, dada a ­diferença de tratamento que recebem da polícia, dos média e no acesso à Justiça. Exemplo dessa situação é o facto de o Estado não reconhecer os moradores de favelas e as suas organizações como legítimos representantes dos seus interesses, pois os discursos que os associam ao tráfico de droga são constantes. Essa ­criminalização prévia retira-lhes o poder da palavra e visa o seu isolamento. A segregação intensifica-se ainda por estar relacionada com a diferença de classe ' fator ao qual pode ser acrescentada a discriminação racial quando se trata de negros ', o que provoca uma privação múltipla que restringe o acesso dos moradores à cidade (Fridman 2008: 81). Outros pesquisadores adotaram a ideia de cidadania de geometria variável (Silva e Leite 2008: 54) para pôr em causa a suposta univocidade de direitos que existiria no Brasil. Referem que o reconhecimento da cidadania varia conforme o nível salarial, espaço de moradia, a cor da pele e a escolaridade, entre outros atributos.

Os jovens são os mais atingidos, tanto pelos discursos que demonizam as populações das favelas como pela repressão policial e arbitrariedade do tráfico. As dificuldades e os perigos enfrentados para frequentarem localidades dominadas por fações rivais à da sua área de residência são muito maiores.

Contudo, são os jovens que estão a desenvolver as estratégias mais imaginativas para fintar os dispositivos de confinamento territorial que existem no seu meio. Utilizam as práticas culturais e artísticas para terem legitimidade de circulação em diferentes favelas e fazem dos estilos juvenis instrumentos que reclamam o uso do espaço público e o acesso à Justiça. No caso específico do break dance da Maré, os jovens estão a conseguir romper com o isolamento que se pretende para a população das favelas, fazendo dessa manifestação cultural um espaço de convergência, não entre moradores de diferentes localidades da Maré (controladas por quadrilhas rivais), mas também entre jovens com outros percursos e bagagens culturais dentro e fora do Rio de Janeiro.

Entrando no terreno Quando visitei a Maré pela primeira vez no âmbito do doutoramento, não sabia que havia dançarinos de breaking no bairro.[13] Pertencente à cultura hip hop,[14] esta dança baseia-se em passos e coreografias que variam entre o acrobático e desportivo e a estilização de movimentos da capoeira e das artes marciais.[15] Foi na ida a uma festa organizada pelo Observatório de Favelas em meados de 2009 que soube que um grupo de jovens do bairro se reunia para treinar este estilo, tendo conhecido um dos adeptos. Na semana seguinte encontrei-me com ele nas proximidades da Nova Holanda, e dirigimo-nos ao local onde costumavam dançar: uma antiga fábrica abandonada chamada Tecno,[16] localizada na favela Parque União.

Fomos os primeiros a chegar, e à medida que outros jovens compareciam punham-se logo a fazer alongamentos, enquanto aproveitavam para conversar e trocar informações de interesse mútuo. após terem aquecido suficientemente se iniciaram na dança, momento em que o volume das músicas se elevou e o foco dos dançarinos se voltou, quase exclusivamente, para os movimentos que pretendiam executar. Enquanto observava os jovens a dançar, percebi que não tinham professor. A dinâmica dos ensaios de break dance era impulsionada por eles mesmos, não havendo interferências ou controlo de pessoas exteriores ao grupo.

Eram eles que definiam o horário e o ritmo dos treinos, os movimentos que queriam aperfeiçoar e as músicas a usar. A limpeza do espaço era garantida por eles, assim como o transporte do sistema de som e do decorflex (moderno revestimento de piso em que dançavam). Reuniam-se três vezes por semana num horário definido (geralmente das 19h às 22h), o que facilitou (imenso) a realização da pesquisa, pois poderia encontrá-los independentemente de qualquer combinação. À medida que passei a frequentar os treinos, percebi que essa dança era a linguagem do hip hop que mais mobilizava os jovens do bairro, existindo mais de quarenta B-boys ou B-girls (rapazes e raparigas que se dedicam ao break dance).[17] Um dos aspetos que mais contribuiu para a minha decisão de fazer a etnografia do grupo foi o facto de eles se encontrarem fora do controlo de instituições e ONG, apesar de algumas terem assumido um papel decisivo na dinamização dessa prática no bairro. Foi no âmbito de uma parceria entre o Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM) e escolas da região (implementada pelo Programa Criança Petrobras na Maré), em 2001, que esta dança surgiu no bairro, com professores contratados para dar aulas aos interessados. No ano seguinte, as aulas expandiram-se para as instalações do CEASM, dando origem à oficina de break dance da Nova Holanda, que até hoje se mantém e onde centenas de jovens tiveram contacto com o estilo.[18] A partir de 2007 alguns jovens manifestaram a vontade de não mais se submeterem ao restrito horário das oficinas e à rigidez institucional. Desejavam um espaço que fosse seu, onde pudessem dançar e conviver mais frequentemente, sem estarem dependentes de pessoas exteriores ao estilo. É nesse contexto que devem ser entendidos os treinos na Tecno, um local onde são mantidas densas sociabilidades, tornando esse espaço especial para os seus frequentadores. Mais do que um mero local de treino, é o cenário onde se vive um modo particular de ser jovem. As performances e situações vividas estão imbuídas de práticas e rituais que reafirmam a amizade entre os membros do grupo, em que hierarquias informais são construídas e divergências vêm à tona.

Metodologia Para me aproximar do quotidiano dos jovens e compreender o sentido que davam à prática do break dance nas suas vidas, recorri a uma estratégia metodológica que tinha como base a etnografia. Estive a conviver com eles de julho de 2009 a dezembro de 2010, período em que visitava a Maré regularmente (cerca de três vezes por semana). A Tecno era o local privilegiado para acompanhar, não apenas o modo como a amizade no interior do grupo era vivida, mas também os vários momentos da criação cultural através da dança. A cultura estava a fazer-se (in progress) na Tecno, e a performance e a sociabilidade eram ingredientes importantes na elaboração dessa nova identidade urbana.

Rapidamente percebi que a presença prolongada no terreno poderia não ser suficiente para uma boa inserção entre os jovens, o que comprometeria a minha aproximação à sua vida pessoal e afetiva. Isso poria em causa os meus objetivos de compreender o modo como se apropriavam e davam sentido ao break dance (e à cultura hip hop) e os significados criados nas relações estabelecidas, tanto dentro como fora dos espaços destinados à dança. Foi por isso que, inspirado em Loïc Wacquant, decidi treinar break dance com eles.[19] Essa opção acelerou a conquista de confiança e amizade no interior do grupo, e permitiu proceder à conversão moral e sensual ao cosmo (Wacquant 2002: 11). Pude perceber na praxis (através do meu próprio corpo) as dificuldades e complexidades do estilo, e apurar o olhar para movimentos subtis que compunham as suas performances. Encarei os treinos como uma técnica de observação e análise, na medida em que o ato de dançar (ou tentar aprender o break dance) era gerador de um espaço de troca de conhecimento (em termos cognitivos, estéticos e éticos) que era revelador do universo desses jovens. Não era um simples pesquisador a observar os nativos, mas alguém que queria iniciar-se nas competências que legitimavam um jovem a considerar-se um B-boy.[20] O uso da análise situacional foi fundamental para entender os múltiplos sentidos que os jovens imprimiam ao break dance. As performances dos dançarinos e o espírito com que se entregavam à dança variavam consoante os contextos de interação e as situações vividas. Se o treino na Tecno era o momento privilegiado do ensaio das coreografias, da criação de movimentos e da afirmação da amizade,[21] a participação em campeonatos revestia-se de outros significados. não se tratava de dançar descontraidamente num espaço protegido, mas de situações rituais em que as suas habilidades eram postas à prova na confrontação com outros dançarinos. A integração desses jovens num amplo circuito associado ao estilo (campeonatos, encontros e eventos) levou-me a acompanhá-los em inúmeras incursões dentro e fora da cidade.[22] Conforme se estreitava a minha relação com alguns elementos do grupo, tornaram-se mais frequentes as minhas visitas às suas casas, e passei ser convidado para encontros e comemorações: churrascos e aniversários eram os mais habituais.

Entrevistei onze jovens do grupo de dançarinos de break dance da Maré e doze outras pessoas, entre membros de ONG, antigos moradores e representantes locais das favelas. Inicialmente, fiz entrevistas exploratórias com alguns jovens, tanto individualmente como em grupo. Nos meses finais do trabalho de campo realizei entrevistas semidirigidas (aprofundadas) com seis deles, a maioria nas suas próprias casas. Alguns trechos dessas entrevistas podem ser lidos no presente artigo.

O break dance como estilo de vida Os dançarinos de break dance da Maré têm idades entre os 13 e os 30 anos, mas a grande maioria situa-se entre os 16 e os 20. Quase todos sempre viveram no bairro, e são raros os que não são filhos de pai ou mãe oriundos do Nordeste.

Embora a descendência negra seja preponderante, o que predomina é a mistura de tons de pele (também existem muitos brancos no grupo). Esse arco-íris de tonalidades favorece uma certa ambiguidade que impede distinções raciais claras no interior do grupo. Se alguns são facilmente identificados como brancos ou negros, a maior parte situa-se fora dessa polaridade. Não divisões raciais no modo como os jovens vivem a amizade nos treinos da Tecno: brancos, negros e mestiços convivem sem se importar com as diferenças de cor de pele.[23] Surpreendeu-me o pouco interesse suscitado pelas questões raciais.

Muito mais importante para eles eram as discriminações que sofriam por serem moradores de uma favela e pertencerem a uma classe social desfavorecida. Não negavam a existência do racismo, evidente principalmente fora da favela ou na atitude dos polícias, mas raramente essa temática aparecia nas suas conversas.

Se a roupa e o corte de cabelo (rasta e tranças) por vezes valorizavam indiretamente a sua herança negra, quase nunca utilizavam uma retórica afirmativa. As declarações de Renato são flagrantes neste sentido:

Cara, a gente procura viver e nem lembra muito dessas questões raciais. Porque para a gente a cultura hip hop está acima de tudo, independente da cor. A gente não impõe muito esses assuntos não. Sei , não é nem porque a gente não quer. Mas claro que se um colega nosso sofrer racismo a gente vai ficar sabendo e não vai gostar. Mas esses assuntos a gente não conversa não, porque a gente não necessidade. A gente não quer pensar nisso, que isso é um problema, sacou [Renato, 18 anos].

Ser negro não é uma essência, e tão-pouco pode ser entendido fora do âmbito nacional ou regional, pois difere consoante o contexto. Como qualquer identidade, é preferível concebê-la como um processo, um recurso que pode ser ou não mobilizado. Ser um B-boy ou B-girl, para os integrantes do grupo, é muito mais vantajoso do que afirmar uma identidade racializada (Sansone 2007: 32), designadamente na sociedade brasileira, em que ser negro não é um sinal de distinção, nem um atributo de exclusão da cidadania nacional.

Quase não raparigas a dançar breaking[24] no bairro, situação que também se verifica noutros locais de treino e nos campeonatos onde estive presente (nestes as mulheres não chegavam a ¼ dos participantes). Entendida como uma dança de rua, cujos rituais e performances têm o cerne no espaço público, o acesso das raparigas ao break dance é mais problemático. Por um lado, é no interior da vida doméstica (ou da vizinhança) que se encontram os tradicionais espaços de sociabilidade femininos. Por outro lado, o maior controlo familiar sobre as mulheres dificulta a sua presença na rua, tal como a plena circulação pelo território, circunstância agravada quando se trata de áreas consideradas de risco por conta da violência entre fações da droga.[25] Creio que outro fator para essa desproporção esteja na estética inerente às performances desenvolvidas nesta dança. Nas batalhas que travam com outros dançarinos, B- boys e B-girls devem ter cara de maus e, numa componente teatral, empregam mímicas que simulam atos de violência, como cortes de cabeça, tiros e facadas.

Apesar de a violência dos gestos desses dançarinos ser apenas simbólica, coloco a hipótese de essas performances serem muito mais atrativas para os rapazes do que para as raparigas na construção das suas identidades.[26] Embora a Maré seja um dos bairros do Rio de Janeiro com maior número de adeptos de break dance, esta é uma dança minoritária, o que também é consequência da diminuta difusão desta prática na cidade.[27] No entanto, os B-boys e B-girlsdo bairro não passam despercebidos, que as suas vestimentas espalhafatosas contrastam com a moda da favela, limitada a bermuda, chinelo e t-shirt simples. Os dançarinos de breaking costumam utilizar variações de calça de ganga ou bermuda larga com t-shirt (geralmente coloridas), muitas delas com nomes e símbolos das crews a que pertencem ou informações de campeonatos e eventos em que participaram no passado. Ícones, sendo um dos favoritos a imagem de James Brown, e frases sobre a cultura hip hop também são comuns. Os bonés com aba plana (às vezes graffitada na parte inferior com a denominação da crew que integram), os lenços amarrados na cabeça, gorros e os óculos de aro largo são alguns dos acessórios mais usados, além da cotoveleira ou joelheira, para minimizar o impacte com o chão. Os ténis costumam ser de marca (All-Star, Adidas, Nikesão os preferidos) e constituem o bem mais valioso do dançarino, pois, além do seu valor simbólico, devem proporcionar estabilidade aos pés para garantir a execução de movimentos complexos.[28] O estilo pouco convencional das suas roupas fazia com que outros jovens do bairro os chamassem doidos.

Nós somos os diferentes entre os diferentes aqui dentro da Comunidade. [ ] Não é porque a gente tem o nosso estilo de roupa diferente do que se que a gente seja tão ‘porra louca' quanto eles acham que nós somos [Rômulo, 17 anos].

O facto de pertencerem a uma classe social desfavorecida não impede que a maioria desses jovens consuma artigos condizentes com o estilo breaking, até porque uma relativa diversidade económica entre eles. Os que têm pais com empregos estáveis, mesmo que desvalorizados socialmente, têm também maiores possibilidades de seguirem os estudos e comprarem vestuário específico. Pode-se dizer, inclusive, que uma minoria tem hábitos de consumo próximo da classe média baixa. No entanto, para a maior parte dos integrantes do grupo as possibilidades de consumo são restritas. Forçados a entrar precocemente no mercado de trabalho para ajudar o rendimento familiar, utilizam parte do seu salário para desfrutar a sua condição juvenil e aceder ao estilo.[29] Essa divisão no interior do grupo é bastante percetível. Não as casas dos dançarinos variam bastante (do tamanho ao acabamento interno), como no próprio treino essa diferença é notória: alguns deles treinam descalços ou com ténis em más ­condições. A falta de dinheiro fazia com que um dos jovens treinasse, por vezes, com os ténis que fazia parte do uniforme do McDonald's onde trabalhava (a imagem dessa cadeia de fast-food estava estampada nos ténis). Todavia, as ­diferenças económicas não suscitam clivagens no interior do grupo. Pelo contrário, uma forte solidariedade interna que faz com que seja comum o empréstimo de dinheiro para que todos possam participar em eventos e campeonatos.[30] Parte significativa das roupas que compram é adquirida em eventos e campeonatos, pois quase não lojas específicas dirigidas ao estilo breaking no Rio de Janeiro. Um circuito rudimentar de venda e consumo promovido por dançarinos mais experientes ' que adquirem mercadorias (ténis, bonés, boombox, t-shirts e outros artefactos) vindas principalmente de São Paulo ' é montado nos encontros de break dance da cidade.[31] A influência de amigos ou colegas desempenhou um forte papel no modo como os jovens se iniciaram na dança, tal como o gosto pela música associada ao hip hop. Muitos autores problematizaram a importância da música para a construção de estilos de vida distintivos (por exemplo, Dayrell 2005; ­Magnani 2005; Pais e Blass 2004; Feixa 1999; Vianna 1997). Não é por acaso que, quando pensamos nas mais célebres culturas juvenis, as associamos a correntes musicais características. Com um forte poder agregador, favorecem a delimitação de fronteiras entre o nós e os outros, criando um espírito de grupo entre os seus seguidores. A música e a dança são formas privilegiadas de os jovens expressarem a sua experiência geracional, constituindo-se como um meio para refletirem sobre a sociedade contemporânea, construírem projetos de vida alternativos, reclamarem direitos e sonharem que dias melhores virão.

A atração pela individualização e por recriar uma identidade coletiva que os diferencie de outros grupos de jovens torna imprescindível a elaboração de sinais de distinção estética. O vestuário, o corte de cabelo e o modo como usam a corporalidade (seja na criação de movimentos de dança ou na postura e gestos usados no dia a dia) afirmam um estilo de vida gerador de uma identidade específica. Apesar desses esforços, os jovens do breaking não vivem isolados de outras influências musicais e estéticas, e alguns deles estabelecem contactos com outras culturas juvenis presentes no bairro, designadamente por via das amizades estabelecidas na escola ou na vizinhança. Simultaneamente, vivem uma fase de experimentação, sendo comum praticarem outros desportos ou dividirem o tempo entre práticas diversas: graffiti, skate, futebol, basquetebol, capoeira.

Se alguns ouvem músicas associados ao estilo (funk, break beat e rap), outros também gostam de escutar rock, samba ou funk carioca. Deste modo, são estabelecidos canais entre diferentes culturas juvenis, cumprindo alguns deles um papel de mediação cultural. É o caso de Rômulo, 17 anos, que divide o tempo entre o skate, o graffiti e o break dance. de música rock, leva essa influência para o interior do grupo, apesar das brincadeiras suscitadas. Ser roqueiro está associado a determinados comportamentos e imagens que não condizem com o que é valorizado pelos jovens do grupo, designadamente o estereótipo daqueles como consumidores de drogas (reforçado pela frase sexo, drogas e rock'n'roll) ou a sua postura sisuda e pouco descontraída. O padrão estético também entra em choque com o preferido pelos jovens do breaking, que optam por roupas coloridas e leves em detrimento das roupas pretas e pesadas.

Entretanto, é o funk carioca que provoca as reações mais hostis. A maioria não o considera uma cultura, fruto da pouca profundidade com que, supostamente, os jovens se ligariam ao estilo e à banalização das suas letras. Ao contrário do que dizem ocorrer com a adesão ao break dance, acreditam não existir qualquer influência positiva na vida dos jovens com a sua adesão ao funk, dada a relação carnal que existiria entre esse estilo e as quadrilhas do tráfico.

[32]

A cultura hip hop prega, acima de tudo, o respeito. O respeito de você respeitar o que o outro está fazendo, o que o MC está fazendo.

Um B-boy respeita a dança do outro, um grafiteiro respeita o graffiti do outro, admira o estilo do outro. Cada um vive de um modo dentro da cultura hip hop, interagindo de alguma forma. Você tem uma certa educação e chega com uma certa humildade para o outro, e quer saber mais sobre a cultura, quer estudar, quer crescer dentro da cultura, ser alguém importante para a cultura. No funk eu não vejo isso, é simplesmente uma cultura vazia. [ ] E acabam fazendo as pessoas acharem que o tráfico é uma coisa bonita. Porque quantas drogas são citadas nas músicas? Quanta violência é citada? Quantas armas? [Renato, 18 anos].

Antítese de tudo aquilo que a cultura hip hop simbolizaria, o funk carioca encarna um conjunto de imaginários e práticas que os jovens querem afastados das suas vidas. Apesar dessa forte clivagem, uma minoria identifica-se com o estilo e frequenta os bailes funk da Maré, o que origina duras críticas de outros membros do grupo.

Todos os jovens com os quais conversei são unânimes em falar na ação transformadora que o breaking teve em suas vidas, produzindo profundas alterações no seu quotidiano. O envolvimento com este estilo promoveu o acesso dos jovens a um conjunto de conhecimentos que não se limita à prática da dança; ao incentivar uma série de normas e valores associados ao hip hop, influenciou uma forma de ver a realidade e de se comportar geradora de uma autodisciplina que os faz ter outra atitude perante a vida. Nas várias entrevistas realizadas, os jovens realçaram o breaking como um estilo que promove a disciplina, a união, o respeito e o sentido de coletividade. Por isso, podemos considerar que o break dance funciona como uma escola de moralidade para os seus adeptos, servindo de vetor de uma desbanalização da vida quotidiana (­Wacquant 2002: 32). Para alguns deles, significou o afastamento do tráfico e das práticas criminosas. É o caso de Igor, um B-boy de 19 anos:

Se eu não tivesse conhecido a cultura hip hop, eu hoje era traficante. A cultura hip hop foi a única coisa que me aceitou de ‘braços abertos' e que eu ‘caí de cabeça'. Antes de eu dançar, tudo para mim estava voltado ao tráfico, devido a coisas que aconteceram na minha família. Então mudou a minha vida bastante, comecei a dançar, aprendi a ter disciplina, aprendi a ter atitude. Tudo isso eu aprendi na cultura [hip hop], entendeu? Por incrível que pareça, aprendi na cultura. Isso foi bom para eu arranjar um emprego, abriu portas para a gente prosseguir com a nossa cultura. Foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida, e mudou bastante [Igor, 19 anos].

A adesão ao estilo, para Igor, trouxe estabilidade a várias esferas da sua vida, o que lhe permitiu ultrapassar certos percalços. Todavia, o break dance ou o hip hop não podem ser entendidos como solução para os problemas da violência juvenil, pois esta expressa dilemas estruturais mais amplos da sociedade brasileira, tais como a extrema desigualdade social, a precariedade do setor público, o desemprego e a criminalização da pobreza e dos utilizadores de drogas. A adesão ao estilo não serve de magia para colmatar essas forças objetivas, ­existindo exemplos de jovens no bairro que entraram no tráfico apesar de terem frequentado oficinas de break dance. Por isso, é necessário compreender o percurso biográfico de cada jovem, o modo particular como cada um incorpora as influências do hip hop e cria respostas próprias para os problemas estruturais que o afetam quotidianamente.

Para a maioria dos meus entrevistados, a vivência do breaking representa muito mais do que dançar nas horas vagas, regulamentando e influenciando outras dimensões das suas vidas. A importância do estilo é tão forte para alguns que parte significativa do seu quotidiano é pautada pelas orientações do estilo, constituindo-se como uma espécie de bússola para navegarem no universo urbano à sua volta. Não é por acaso que muitos consideram o breaking como um estilo de vida, ao fornecerem as bases para construírem um modelo próprio de ser jovem.

Como explica Igor:

Não é ser B-boy no treino, mas ser B-boy no treino, em casa, na rua, no trabalho, em qualquer lugar. Em qualquer lugar que eu estiver eu vou estar com minha postura de B-boy porque é o que preservo para mim e sempre vou me sentir bem. Então é uma coisa que eu cultivo para mim [Igor, 19 anos].

A identidade B-boy é extremamente valorizada por eles e serve para diferenciá-los de outros jovens do bairro. Integrar o hip hop (pela vertente do break dance) promove um conjunto de valores que incentiva a ideia de coesão e família entre os adeptos. Eles realçam a necessidade de ser amigo e companheiro dos membros do grupo ' o termo família para designar a crew a que se pertence é muito referido entre eles ', como também de passar o conhecimento adquirido (da prática de dança e da história do hip hop) a outros, de modo a expandir a cultura hip hop, de ser trabalhador e ter uma boa postura perante a família e os vizinhos. Deste modo, a adesão ao breaking cria um repertório de símbolos e representações que passam a ser compartilhados pelo grupo, possibilitando que projetos coletivos sejam concebidos, e futuros alternativos almejados. Esses conjuntos de referências são absorvidos não através do contacto que estabelecem com os dançarinos mais experientes ' os antigos professores das oficinas de break dance do bairro cumprem um importante papel nesse sentido ', mas também pelo acesso aos meios de comunicação (Internet, documentários, vídeos, etc.).

Por isso, levanto a hipótese de as sociabilidades impulsionadas por este estilo de dança proporcionarem aos seus praticantes parâmetros existenciais e novas redes de significação que servem de contraponto às oferecidas pela economia do tráfico. Esta promove uma sociabilidade violenta, cujo recurso à força e à racionalidade instrumental corrói as solidariedades locais e degenera símbolos e valores comuns (Silva 2008: 21). É na relação com um território marcado pela violência policial e criminal que a adesão desses jovens ao ­breaking deve ser compreendida, o que torna este estilo um abrigo virtual que protege contra a violência presente no bairro e as dificuldades da vida (Agier 2001: 8).

Coreografias de evasão: transpondo barreiras na cidade A maioria dos jovens do breaking não se conheciam antes de se iniciarem na dança. A partilha de um mesmo projeto de evasão foi responsável pela reformulação das suas redes de amizade, ao fazer do interesse pelo break dance o móbil para a sua agregação. As possibilidades oferecidas pelo estilo de criarem uma linguagem própria para interpretar o mundo à sua volta, e melhor se posicionarem perante os desafios quotidianos, ajudaram a cimentar grandes amizades. Passaram a frequentar outras localidades (dentro e fora da Maré) e a demarcar-se dos demais jovens do bairro através de diversos emblemas identitários. Renato tem 18 anos e dança desde meados de 2007. Iniciou-se no hip hop através das oficinas de graffiti dinamizadas pelo CEASM. Atualmente, o break dance é a sua principal atividade lúdica e o mais forte vínculo com o grupo de amigos. Segundo ele:

O break dance formou novas amizades que nunca seriam possíveis se não fosse o breaking. Para mim foi importante porque eu aqui, no Parque União, me sentia meio solitário, não via aqui ninguém que se identificasse com as mesmas coisas que eu, que pensasse do mesmo modo, que curtisse as mesmas coisas. Eu não via isso aqui, e no momento que eu abri a minha mente para andar mais a Maré ' Nova Holanda, Timbau ', isso melhorou para caramba, fiquei muito mais próximo e me sentindo bem com as pessoas ao meu redor. Descobri outro universo que estava faltando para mim [Renato, 18 anos].

São raros os jovens do break dance que circulavam por todo o bairro antes de conhecerem este estilo de dança. As suas redes de amizade estavam concentradas nas localidades onde viviam, e incluíam favelas vizinhas quando estas também eram áreas de domínio da mesma quadrilha. Em seus depoimentos, dão ênfase ao medo que tinham de entrar nas localidades da Maré controladas por fações rivais.

Antigamente, a gente tinha muito medo desse lance de fação. A gente ficava aqui de um lado, eles no outro lado. Então a gente não passava para outras comunidades que eram de uma fação rival de jeito nenhum, porque a gente sempre tinha na cabeça aquela parada: ‘Se a gente passar para eles vão pegar a gente, vão bater, podem até matar.

Então é melhor eu ficar no meu canto aqui do que passar para o outro lado'. quando a gente começou a dançar, o Renato a grafitar, o Rômulo também, eles a dançarem, o que aconteceu? A gente começou, meio com medo, a ir para o outro lado, eles virem para , mas foi de pouquinho em pouquinho. Quando a gente foi ver a gente estava indo para direto, de indo para outra comunidade, voltando, indo para campeonato em comunidade de fação rival [Igor, 19 anos].

O receio de atravessar a fronteira não é injustificado, pois os relatos dos abusos cometidos por traficantes ' que variam da agressão física à morte quando confundidos com o inimigo ' são comuns, estando disseminados na memória dos moradores da Maré. No entanto, a prática do break dance permitiu que os jovens rompessem com essa imposição de fronteiras e gerou uma abertura para outras partes do bairro que antes lhes eram vedadas. A composição do grupo de jovens que dança breaking reflete o alargamento das suas redes de amizade e é o resultado das transformações no modo de se apropriarem do bairro. Entre eles pessoas que vivem em territórios que são de domínio de diferentes fações, como por exemplo Nova Holanda, Parque União, Rubens Vaz, Morro do ­Timbau, Vila do Pinheiro e Ramos. Embora este estilo seja pouco usual no bairro, esses jovens conquistaram um relativo reconhecimento no interior da Maré. São identificados como o pessoal do hip hop, e dispõem de uma relativa tranquilidade para transitar entre as diferentes favelas. Como explica Renato:

Até a bandidagem sabe o porquê da gente estar circulando no lado de . E até eles respeitam esse lance da gente estar fazendo breaking, eles sabem. Eles mesmo falam: ‘Ah! Eles são do hip hop'. Para a gente é bom, porque a gente está vendo que eles estão respeitando. E o breaking ajudou a quebrar esse tabu, essa barreira [Renato, 18 anos].

Esta alteração no modo de se relacionarem com o bairro repercute-se beneficamente, pois atenua os constrangimentos do seu dia a dia, constantemente alterado pelos confrontos violentos e por impedimentos no direito de ir e vir, diminuindo os efeitos da erosão do espaço público associada à violência e à segregação (Fridman 2008: 83). Essas transformações tornaram possível a criação de um sentimento de pertença à Maré (como um todo), ao superar históricas identificações locais ou rivalidades estimuladas pelo tráfico. Opera-se uma mudança na forma de representar o bairro, que passa também a ser percebido pelas suas qualidades e mais-valias. Muitos jovens admitem que antes não gostavam da Maré, vendo apenas os seus defeitos. Mentiam sobre o local de residência, não nas entrevistas de trabalho (de modo a evitar a perda da oportunidade de emprego), mas também no convívio com outros jovens que não moravam em favelas (principalmente pertencentes à classe média), dadas as experiências de estigma territorial que sofreram. Não eram excluídos de determinados convívios como a sua honestidade era posta em causa quando se sabia que eram moradores de favelas. Atualmente, os jovens do breaking da Maré fazem questão de dizer que são do bairro, mencionando essa pertença nas apresentações e nos campeonatos em que participam. Como relata Igor:

Eu cometi muito esse preconceito de falar que eu não morava na Maré, falava que morava em Bonsucesso, na Praça das Nações que é um lugarzinho mais classe média, porque eu tinha vergonha de falar. Com a cultura hip hop é que eu fui perceber que estava enganando a mim mesmo, entendeu! Foi quando eu parei: ‘Pô! errado. Estou cometendo uma parada que não tem nada a ver'. [ ] Por isso que a gente fala Maré mesmo [nos campeonatos de break dance], para quebrar essa rotina de negatividade. Quando a gente fala estes nomes, ‘Maré', ‘Nova Holanda', as pessoas ficam nessa negatividade, olhando assim: ‘Pô! Vocês são de '. Mas a gente sempre vai falar Maré meio para quebrar essa parada, porque a gente dança para caramba no evento, ri para caramba, e ‘de onde vocês são?' A gente fala com orgulho: ‘Somos da Maré maluco'. É totalmente diferente, a pessoa fica assim: ‘Pô, os malucos são da Maré. O que é que aconteceu para eles dançarem assim!?' [Igor, 19 anos]

Assumir em público que são da Maré é uma forma de contrariarem as representações estigmatizantes sobre o bairro enquanto locus exclusivo da pobreza e do crime violento. Esses jovens querem dizer alto e bom som que na Maré qualidades, e que muitos dos seus habitantes são talentosos e bem diferentes da visão vulgarizada pelo senso comum. Com o recurso ao break dance, esses jovens põem em causa os estigmas que os caracterizam como potenciais criminosos. Ao dançarem em eventos, treinos ou campeonatos saltam as catracas simbólicas que os querem invisíveis ou numa posição subalterna, projetando uma visibilidade que os representa como potência e não mais numa situação de carência. Esse processo de rotulação é denunciado da seguinte forma por Rômulo:

É como se dessem as informações de que nós fôssemos ‘pré-fabricados' como marginais. Acho que isso é algo que tem de mudar, tem de mudar.

Não é pelo fato de nós morarmos numa comunidade que a gente vai seguir o nome de ‘favelado' à risca, entendeu. Até porque ‘favelado'... Eu posso até dizer que moro numa favela, moro numa comunidade, agora nós não somos ignorantes, não. Acho que muito pelo contrário. [ ] Dependendo do lugar, quando o cara fala que veio da Zona Sul [área nobre da cidade], a galera fica mais tranquila. Mas quando você alguém bom que sai de dentro de uma comunidade, a pessoa fica meio que sem chão porque ela quer saber o que é que aconteceu para que o cara ficasse bom daquele jeito: ‘Porra! Como é que ele ficou assim dentro de uma favela? tem coisa ' fica curioso, mas com o atrás [Rômulo, 17 anos].

Na fragmentação sem precedentes que a modernidade inaugurou, os jovens do breaking da Maré encontraram na dança um modo criativo e eficaz de cultivar a sua subjetividade. Esta questão é ainda mais relevante quando se trata de moradores que cada vez mais são destituídos da possibilidade de produzir as suas próprias identidades coletivas e individuais, dada a correlação de forças extremamente desfavorável para quem vive os efeitos do estigma territorial. Por isso, o breakingé um dos instrumentos de que dispõem para ressignificarem o bairro onde vivem e se representarem enquanto jovens moradores de favelas.

A cultura hip hop como disparador de ações e de encontros fomenta o fluxo dos jovens para além das fronteiras da Maré, ao incentivar a sua circulação para outros territórios do Rio de Janeiro. Nas entrevistas realizadas, eles referem que, antes de praticarem o breaking, saíam pouco do bairro, tendo uma visão bem limitada da cidade, fosse do subúrbio ou das áreas nobres. Fazem questão de dizer que o break dance foi responsável por terem conhecido muitos locais diferentes, inclusive fora do estado do Rio de Janeiro, expandindo o seu campo de possibilidades (Velho 1987) e colocando-os em contacto com jovens de outros bairros, muitos dos quais de origens e classes sociais diferentes. Por isso, considero este estilo um instrumento de acesso à cidade, fornecendo-lhes outra compreensão do espaço urbano. É comum treinarem na Praça XV e na Lapa (centro), na Tijuca (Zona Norte) e São Gonçalo (subúrbio do Rio de Janeiro); participarem em eventos e campeonatos em bairros nobres da Zona Sul ou noutras favelas, como a Rocinha e o Vidigal. Como relata Ricky, um B-boy de 17 anos que reside na Nova Holanda:

um tempo atrás eu era fechado à minha casa e à escola, e poucas vezes à minha rua. Eu acho que no sábado agora nós vamos à Praça XV, que é o lugar onde os B-boys se encontram no Rio de Janeiro. A gente viaja para Belo Horizonte [capital do estado de Minas Gerais], eu vou agora para Juiz de Fora [cidade do estado de Minas Gerais], Renato foi para Juiz de Fora e São Paulo. O breaking abriu muito a barreira de viajar, porque antes, se você fosse viajar, não tinha motivos [Ricky, 17 anos].

O ato de transpor as barreiras da cidade adquiriu um caráter transformador na vida desses jovens, pois permitiu que mais facilmente eles pudessem aceder aos múltiplos repertórios, saberes e estilos de vida existentes na metrópole.

Circular pela cidade, organizar campeonatos de break dance na Maré ou noutros bairros e ser conhecido como B-boydentro e fora da sua área de residência é configurador de quem são. Desta forma, deixam de ser sujeitos passivos para se transformarem em criadores ativos, exercendo uma cidadania insurgente que propõe novos usos da cidade, ao desenvolver ações mobilizadoras que disputam o significado de ser pobre, morador de favela ou mesmo do que é dança contemporânea. Ao transformarem a Maré num dos expoentes do roteiro de break dance do Rio de Janeiro (é comum virem jovens de outros bairros treinar ali), invertem as lógicas culturais que privilegiam as áreas nobres da cidade, contribuindo para baralhar a tradicional dicotomia entre centro e periferia.

Não é por acaso que alguns autores veem a adoção de certos estilos juvenis como parte integrante de uma cultura de evasão que estimularia os jovens a refletir sobre o seu lugar no mundo, concretizada em projetos artísticos ou culturais que contribuiriam para dar sentido à sua existência (Giroux 1996; Fradique 2003).

Considerações finais As inúmeras culturas juvenis presentes na Maré são emblemáticas da forte heterogeneidade da sua população. Não existem funkeiros e B-boys no bairro, mas também rockeiros, skatistas, grafiteiros, pagodeiros[33] ou jovens que se reúnem segundo outras práticas culturais e de lazer (futebol, musculação, capoeira, etc.). Esta vasta gama de tribos urbanas,[34] comportamentos e ­estilos culturais revela as distintas possibilidades de se ser jovem na Maré.

Ser dançarino de break dance é uma delas. Tal facto é demonstrativo de que os jovens das favelas não são todos iguais, não estando obrigatoriamente confinados e isolados na sua área de residência. E revela que a Maré é um espaço de diversidade por excelência, sendo urgente ultrapassarmos os discursos de senso comum que concebem os habitantes das favelas como coitadinhos, carentes ou marginais.

Para os jovens da Maré, continuamente representados como párias urbanos, a adesão ao break dance pode ser interpretada como uma forma de poderem construir identidades alternativas e desempenhar ações coletivas que superem os estigmas a que são associados. A dança proporciona um conjunto de conhecimentos e significados baseados na solidariedade mútua, no respeito e na amizade que favorece a sua inserção numa sociedade que os como escumalha. Utilizam a componente performativa para criar identificações positivas que tentam inverter o seu estatuto subalterno e ascender a uma existência reconhecida e valorizada.

A participação em campeonatos e eventos, dentro e fora do Rio de Janeiro, oferece a oportunidade de romperem com os dispositivos de confinamento territorial e simbólico a que estão sujeitos, dispositivos que restringem o acesso dos jovens ao bairro e à cidade como um todo, reduzindo as suas oportunidades de comunicação e de interação com outros segmentos da sociedade.

O alargamento das suas redes de amizade é exemplar das influências decorrentes da sua inserção no circuito do breaking carioca, uma operação que vai além da mera opção estética ou estilística, pois gera direitos e mudanças nas formas de pensar o mundo. Não amplia as suas referências espaciais, ao proporcionar parâmetros mais abrangentes de inserção no espaço urbano, como promove a elaboração de projetos coletivos, alargando as suas referências temporais. Os muros invisíveis fabricados pelo preconceito, pelo estereótipo e pelo tráfico são derrubados por uma coreografia de evasão que estimula a experiência da alteridade, ao mesmo tempo que influencia a discussão sobre os contornos da sociedade em que vivem.


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