Home   |   Structure   |   Research   |   Resources   |   Members   |   Training   |   Activities   |   Contact

EN | PT

EuPTHUHu0873-65612012000300006

EuPTHUHu0873-65612012000300006

National varietyEu
Country of publicationPT
SchoolHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN0873-6561
Year2012
Issue0003
Article number00006

Javascript seems to be turned off, or there was a communication error. Turn on Javascript for more display options.

Ser laowai: o estrangeiro antropólogo e o estrangeiro para os migrantes chineses entre Portugal e a China

alguns meses, estava eu em Pequim (China) em trabalho de campo, quando encontrei casualmente, em casa de familiares seus, uma mulher chinesa que conheci vários anos em Lisboa. Durante o almoço, ela convidou-me a acompanhá-la à sua terra natal nessa noite. À tarde dirigimo-nos a uma das estações ferroviárias mais movimentadas da cidade para comprar o meu bilhete (ela tinha o seu). Enquanto aguardávamos na fila de uma das bilheteiras, uma mulher de aspeto rude, com uma criança de meses ao colo, abordou a minha amiga e questionou-a sobre qual o seu destino. Perante a resposta, a mulher sussurrou-lhe que não havia bilhetes à venda, mas que ela ainda tinha alguns atrás. E, olhando para mim, acrescentou: Se quiseres vens atrás, mas tu. Nós não vendemos a laowai. As duas mulheres afastaram-se e combinaram o preço. A minha amiga pediu-me 300 yuans e as duas desapareceram na multidão.

Cerca de dez minutos depois, a minha amiga regressou com o meu bilhete.[1] A atitude desta mulher ao identificar-me como laowai reflete, não uma ética especial do mercado negro chinês de não vender bilhetes a estrangeiros, mas o reconhecimento da minha pessoa como pertencente a uma categoria diferente de pessoas. A vendedora recusou-se a negociar comigo porque a categoria de pessoas em que ela me classificou ' os estrangeiros ' é para muitos chineses correspondente a pessoas toldadas por uma perspetiva não chinesa e ocidental do mundo que implica, entre outros, uma incapacidade de compreensão do modo de ser e de estar chinês. A vendedora procurou assim evitar entrar num processo de comunicação que ela previa repleto de equívocos.

Laowai é um termo que, para a minha interlocutora e de forma mais geral em muitos contextos chineses, identifica um estrangeiro, ocidental. A categoria tornou-se para mim um elemento crucial da minha identidade ao longo destes vários anos de trabalho de campo entre chineses. Neste artigo, parto da condição de laowai ' estrangeira, ocidental ' para refletir sobre as condições de produção de conhecimento etnográfico em contextos chineses, através da descrição e discussão sobre a ambivalência e a complexidade da relação simultaneamente distante e próxima que, enquanto etnógrafa, estabeleci com os meus interlocutores.

Sentir-se como um estranho e ser tratado como um estranho no momento em que se inicia o trabalho de campo é uma experiência frequentemente relatada na literatura etnográfica. Nos seus trabalhos seminais, tanto ­Evans-Pritchard (1974) como Malinowski (1922) referem como lhes foi difícil ultrapassar a barreira de stranger imposta pelos habitantes locais e como, para conseguirem aproximar-se, tiveram de quebrar com o estereótipo do white man, comportando-se de modo diferente dos outros brancos que por ali viviam. Contudo, não é apenas neste sentido que pretendo explorar a problemática da condição de estrangeiro no terreno. Recorrendo a vários recortes etnográficos registados em Lisboa, Pequim e Wenzhou, durante o meu trabalho de campo com migrantes chineses, procuro demonstrar como, desde o início da investigação, ao ser classificada como pertencente a uma determinada categoria de pessoas ' os laowai ', a minha posição no terreno ficou marcada pela perceção que os meus interlocutores tinham dessa categoria de pessoas, passando a integrar de modo determinante a minha etnografia.

O peso constante desta categorização ao longo da investigação levou-me a procurar compreendê-la em termos epistemológicos. Trata-se, portanto, de um exercício, não tanto reflexivo, de compreensão do modo como a minha pessoa afetou a investigação, mas no sentido de procurar compreender como é que este contexto etnográfico específico ' social, político e sobretudo histórico ' entende e classifica pessoas na categoria de estrangeiras, na qual eu fui incluída.

No final do artigo, integro esta reflexão sobre a trama de sentidos envolvidos na categoria de laowai nas ideias de estrangeiro próximo e de estrangeiro distante formuladas por Georg Simmel (1979 [1908]). A condição de estrangeiro descrita por Simmel ajuda-nos a situar as ambivalências inscritas na categoria de laowai, que tornarei explícitas a partir desta reflexão. Perceber o que resultou da condição de estrangeira com que lidei com os meus interlocutores, tanto na fase inicial de campo como em situações de maior proximidade, é aqui tomado como desafio propriamente etnográfico. A relevância do argumento aqui apresentado é dupla e alicerça-se em lacunas na literatura. Por um lado, a literatura etnográfica sobre a China é parca em reflexões sobre a interferência do estatuto de estrangeiro na investigação, e menos ainda sobre o que podemos aprender e resgatar como conhecimento etnográfico a partir do confronto com essa classificação. A temática do etnógrafo estrangeiro na China tem sido abordada, pontualmente, a propósito dos entraves políticos e formais à obtenção de autorização para a realização da investigação, e das reorientações temáticas que daí advieram (Wolf 1985; Yang 1994; Pieke 2000). Por outro lado, a condição de estrangeiro em contextos chineses tem sido abordada através da problemática dos chineses enquanto estrangeiros ' sojourner ' a viver em sociedades como os EUA e o Reino Unido (Chan 2005; Siu 1952).

Argumento neste artigo que a ideia de estrangeiro difundida na China tem fortes continuidades e nuances históricas, que ela não reflete apenas o modo como são percecionados os ocidentais na China, mas também o sentido de modernidade na China e a própria ideia de ser chinês na atualidade.[2] O argumento constrói-se a partir da reflexão sobre várias situações de interação social, como a que descrevi no início do artigo, e que fui experienciando ao longo dos anos da minha interlocução de campo e dos diversos modos de me posicionarem como estrangeira (laowai). É a partir dessa diversidade de interlocuções e interpelações que exploro aqui etnograficamente os sentidos da categoria de laowai(estrangeiro), e procuro responder a perguntas que têm formatado o debate sobre a questão, tais como: Como é que se pode compreender que o estrangeiro seja uma categoria tão definitiva e tão ameaçadora na China? Como é que se entende este paradoxo do fascínio e da aversão dos chineses por pessoas que eles próprios classificam como laowai? O QUE É UM LAOWAI? A minha primeira experiência de terreno aconteceu com uma família luso-chinesa de Macau. Estávamos em 1999. A família fora-me apresentada por uma amiga comum, que lhes explicou que eu era uma estudante, e que queria fazer a história da família como trabalho final de curso (era na realidade a investigação para a tese de licenciatura). Esta ideia de escrever sobre a história de uma família surgiu quando li Cisnes Selvagens, de Jung Chang (1998). A minha intenção era fazer a história de uma família luso-chinesa de Macau, através de três mulheres de gerações diferentes (avó, filha e neta). A história desta família era muito cativante, principalmente a da avó, uma senhora de 80 anos nascida na cidade portuária de Nagasaki, no Japão, mas educada em Pequim, donde fugira aquando da invasão japonesa de 1937. Apesar da riqueza do material e da afabilidade da família, ao longo dos meses que com ela interagi nunca deixei de me sentir algo desconfortável, o que terá resultado das dúvidas e ansiedades próprias do primeiro trabalho de terreno.

A minha ideia inicial para essa primeira investigação foi a de realizar um trabalho sobre migrantes chineses. Rapidamente compreendi, contudo, que, apesar de frequentar um curso de língua e cultura chinesas, e de ter estabelecido contactos esporádicos com alguns chineses, as dificuldades de comunicação eram excessivas para que conseguisse levar a bom termo um trabalho de investigação.

Assim, optei por adiar esse projeto e, um ano mais tarde, fui estudar língua chinesa para Pequim. Esse foi o meu primeiro contacto com a China. Nessa época, as informações de que dispunha sobre a China atual eram escassas. Eu lera algumas etnografias sobre contextos chineses fora da China continental e outras tantas obras de história geral da China, mas, poucos dias depois de chegar, constatei que a ideia que eu construíra sobre a China pós-maoista era confusa, muito contraditória e pouca relação tinha com aquilo que eu observava. Os primeiros tempos foram dominados por uma admiração e estranheza perante tudo o que testemunhava.

As minhas experiências de viagem até então tinham sido limitadas à Europa e, pela primeira vez, deparou-se-me o facto de ser fisicamente diferente da maioria das pessoas que habitavam o espaço social que me rodeava, e vista como estrangeira, ocidental, europeia. Esta perceção da diferença começou por chegar de modo muito evidente pelas reações comportamentais das pessoas à minha presença em locais de comércio e nos transportes públicos. Estas reações alternavam entre a curiosidade e o tratamento diferenciado pela negativa.

Um episódio particularmente perturbador aconteceu quando visitava, na companhia de duas amigas também portuguesas, as ruínas do Antigo Palácio de Verão destruído em 1860 por uma invasão de forças anglo-francesas. Nos jardins que rodeiam as ruínas e o museu encontrámos algumas jovens que, encantadas pela nossa presença, nos pediram para tirarmos fotografias ao lado delas. Porém, no interior do museu, onde num acirrado tom nacionalista é narrada a história da destruição do palácio, fomos intimidadas pelos olhares de desprezo e indignação lançados por um grupo de chineses de meia-idade que, em surdina, comentava que deveríamos ser inglesas, o mesmo país responsável por tamanha destruição.[3] Com o passar das semanas, e à medida que fazia progressos na língua local, comecei a aperceber-me de que os olhares que me eram lançados na via pública eram frequentemente acompanhados por um dedo indicador e um par de gritos exclamando Laowai! Laowai! Outras vezes, as pessoas timidamente aventuravam- se a perguntar-me se eu era meiguoren (americana). Laowai significa literalmente velho (lao) de fora (wai) e é utilizado pelos chineses para se referirem aos ocidentais, caucasianos. Trata-se de uma expressão controversa porque, por um lado, o carácter lao pode ser interpretado positivamente, como uma forma de tratamento familiar, se pensarmos noutras expressões em que é utilizado, como em laopengyou ' velho amigo, ou laodifang ' o lugar onde nos costumamos encontrar. Por outro lado, laowai tende a ser usado nas situações em que se presume que a pessoa que está a ser alvo da referência não o vai compreender ' não é suposto que um laowai domine a língua chinesa ' e é frequentemente acompanhado por risos e proferido num tom irónico. Se a expressão laowai é usada para tratar os caucasianos ou indivíduos de aparência euro-americana, os meus amigos de origem africana eram referidos como heiren ' pessoa preta. Deste modo, laowai oscila entre uma expressão familiar e preconceituosa ' mesmo racista em certas situações.[4] Durante uma visita a uma exposição dos melhores trabalhos de pintura do ano de 1999 numa galeria de arte de Pequim, eu e uma amiga chinesa parámos diante de um dos quadros. A tela, com cerca de dois metros por um, representava de forma mais ou menos realista o bombardeamento das forças americanas à Embaixada Chinesa em Belgrado em Maio desse ano. O episódio tinha ocorrido poucos meses e fizera crescer entre a população um surto de furor nacionalista, antiamericano e antiocidental. A minha amiga, uma dócil estudante de inglês de 17 anos, oriunda da província de Hebei, inesperadamente exclamou em inglês, num tom contundente: I hate foreigners! A rapariga ficou visivelmente embaraçada quando lhe perguntei se me odiava também, uma vez que eu era uma foreigner, uma waiguoren, uma laowai. Ela olhou para mim e atalhou que apenas se referia aos americanos. Claramente ela não estava a falar de mim, eu era alguém que estava ali próximo, e ela referia-se a um inimigo distante, diferente, e com o qual quase nada existe em comum. Naquele momento duas versões de estrangeiro surgiram amalgamadas ' distante e próximo ' e geraram uma ambivalência sobre o sentido das suas palavras. Ela encontrou uma saída na minha identidade não americana, mas como seria se eu fosse americana? A EMERGÊNCIA HISTÓRICA DO PARADOXO FASCÍNIO / AVERSÃO PELOS LAOWAI Consciente do sentido racista historicamente envolvido nesta categoria de ­laowai e querendo intervir positivamente na imagem da China perante os estrangeiros, o governo chinês lançou alguns anos uma campanha de civilização (wenming)[5] destinada a promover o bom uso da expressão laowai, procurando retirar-lhe o tom negativo ou promovendo o uso do termo waiguoren, expressão mais inócua que significa pessoa de fora do país.

No célebre ensaio The stranger, Simmel (1979 [1908]) descreve um tipo de estrangeiro especial, um estrangeiro próximo que encerra em si, simultaneamente, as qualidades opostas de distância e de proximidade, que lhe asseguram uma forma específica de interação social. O estrangeiro próximo de Simmel é elaborado a partir da condição do comerciante judeu na Europa no século XIX, enquanto a condição de estrangeiro que aqui descrevo apresenta configurações ligadas ao contexto chinês em particular, e que se consubstanciam na categoria de laowai.

Assim, ser laowai é uma forma particular de ser estrangeiro, constituída a partir de processos históricos, políticos, sociais e culturais específicos. Tal como os gregos, mencionados por Simmel (1979 [1908]), também os chineses ­consideravam bárbaros os povos que habitavam a periferia do Império na ­antiguidade (Gernet 1974-1975; Fairbank 1992; Dikötter 1992; Fay 1997). Ao longo dos séculos, a Grande Muralha funcionou como barreira que estabelecia os limites culturais (e por vezes também políticos) entre a China interior (nei), a sul, e a China exterior (wai), a norte (Gentelle 1994).[6] Este forte sentido de diferença cultural/civilizacional dos agricultores han em relação aos criadores de gado das estepes permaneceu, mesmo com a entrada destes povos nos limites do império e a conquista do poder dinástico em importantes ­períodos históricos (Dinastia Yuan ou Mongol, 1279-1368, e Dinastia Qing ou Manchu, 1644-1911), permanecendo para a história como dinastias estrangeiras (não han).

Ainda que as ligações às regiões ocidentais do continente eurasiático, primeiro pela Rota da Seda e posteriormente pelas rotas marítimas, tivessem feito chegar estrangeiros ocidentais, nomeadamente jesuítas, à corte imperial chinesa, pelo menos desde o século XVI, a gestão das relações com os estrangeiros seguiu enquadrada no modelo de relações com os povos bárbaros das estepes. O Império chinês entendia-se a si próprio como tian xia diyi ' o primeiro país debaixo do Céu ', e o Imperador, detentor do título de Filho do Céu, seria o seu representante máximo na Terra. Todos os outros povos e reinos eram entendidos como inferiores e seus tributários (Gernet 1974-1975).

A partir do século XIX, a pressão das potências ocidentais provocou transformações profundas na conceção da China sobre si própria e na sua perceção dos estrangeiros. O sentido mais forte do termo laowai deve ser procurado, principalmente, na relação dos chineses com a modernidade ocidental e suas facetas de ambivalência, de fascínio e de aversão. De facto, se, por um lado, a superioridade tecnológica e militar ocidental humilhou e vergou a China, por outro lado, o pensamento iluminista e as sociedades ocidentais constituíam a principal fonte de inspiração dos intelectuais chineses na busca de respostas para a transformação da China numa nação moderna. No espectro das influências iluministas, o darwinismo social foi uma das teorias mais influentes entre as elites intelectuais chinesas desse período (Schwarcz 1986; Dikötter 1992; Mitter 2004).

Este rebaixamento político e diplomático teve consequências no quotidiano das relações entre chineses e ocidentais e deixou marcas profundas na perceção dos estrangeiros na China. Durante o período semicolonial, do início das Guerras do Ópio ao fim da invasão japonesa (1839-1945), estrangeiros e chineses tinham direitos desiguais. Nas áreas de concessão das cidades portuárias os estrangeiros eram soberanos (extraterritorialidade), e em muitos locais os chineses não eram autorizados a entrar. Esta discriminação e atitude colonial tornou-se incómoda, gerando a cólera dos intelectuais revolucionários (­Fitzgerald 1996; Dikötter 1992). O nacionalismo chinês fortaleceu-se pelo receio do perigo branco (Dikötter 1992).

O encerramento da China ao exterior durante o maoísmo perpetuou uma imagem dos estrangeiros como uma ameaça ao país, no âmbito da luta de classes e de colonizadores e colonizados. Depois de 1978, o país foi aberto aos estrangeiros, mas de um modo muito controlado. Até meados da década de 1990, muitas municipalidades e algumas províncias estavam vedadas a visitas de estrangeiros. A Política de Abertura em 1978, apesar de procurar tirar partido do interesse económico e financeiro dos estrangeiros pela China, inicialmente baseou o seu modo de relacionamento nas anteriores práticas discriminatórias.

Em suma, podemos dizer que a humilhação da China perante os poderes ocidentais no século XIX constitui uma importante componente da aversão dos chineses em relação aos ocidentais, mas, paradoxalmente, o sentimento de inferioridade infligido foi também catalisador de fascínio. Como copiosamente demonstra Frank Dikötter em Exotic Commodities (2006), a superioridade tecnológica ocidental corporificada na cultura material deslumbrou a China. A apropriação de produtos estrangeiros começou por ocorrer nas classes altas, como símbolo de prestígio, e perpassou às classes populares através das imitações de manufatura chinesa, operando uma revolução na vida quotidiana (Dikötter 2006). Esta perceção dos produtos estrangeiros, ocidentais, como superiores e dos produtos chineses como inferiores impregnou-se e manteve-se muito para além do período da República da China. Na China pós-Mao, a ideia de superioridade da cultura material ocidental continua a manifestar-se numa cultura de consumo transversal à sociedade chinesa (Chao e Myers 1998; Latham 2006). Este fascínio por produtos ocidentais é marcado pelo consumo de produtos de luxo, mas também por um encantamento pelas indústrias culturais ocidentais, da moda ao cinema. Em conjunto, estes produtos comunicam ideias de prestígio, modernidade e superioridade.

AUTO-ORIENTALIZAÇÃO E OCIDENTALISMO Xiaomei Chen (1995) analisa a relação da China com o Ocidente como um processo de auto-orientalização que terá conduzido a um ocidentalismo. O discurso do ocidentalismo, com origem no início do século XX (Dikötter 1992), é ainda hoje evocado por vários grupos na sociedade chinesa, com duas finalidades diferentes: por um lado, tem sido uma forma de o governo chinês suportar o nacionalismo que tem como efeito a contenção interna; por outro lado, é também a forma como a imaginação chinesa constrói um outro ocidental para disciplinar e dominar o self chinês em casa. Este ocidentalismo popularizado pela propaganda nacionalista do governo é dominante e continua a fazer parte de uma forma defensiva de estar da China. O ocidentalismo de que fala Chen Xiaomei é reflexo de uma ideia do ocidental como estrangeiro distante, mas aqui oscilando entre a ameaça e o ideal a alcançar.

É neste contexto de ocidentalismo, de um forte sentimento de inferiorização e de discriminação dos chineses pelos ocidentais, e de grande segregação entre estas duas categorias de pessoas, que surge o termo laowai ' uma categoria classificatória que ainda hoje convoca a carga de uma história de perceções e práticas discriminatórias e desiguais entre chineses e estrangeiros.

A minha primeira experiência desta visão mais ampla da China e dos sentidos mais vastos da expressão laowai aconteceu no fim da década de 1990, quando residi durante dois anos num campus universitário chinês em Pequim. No interior da universidade, estudantes chineses e estudantes estrangeiros viviam em edifícios separados, situados em extremos opostos do campus, a uma distância que poderia ser de quase um quilómetro. O mesmo sucedia com as residências de professores estrangeiros e professores chineses. Os professores chineses viviam com as suas famílias num bairro modesto contíguo ao campus, enquanto os poucos professores estrangeiros (leitores) eram colocados num edifício de pequenos apartamentos localizado na área dos dormitórios dos estudantes estrangeiros e dos edifícios onde eram lecionados os cursos de língua chinesa para estrangeiros.

Os edifícios das aulas para estudantes chineses e estrangeiros eram diferentes e igualmente localizados em áreas opostas do campus. Apenas a biblioteca se constituía como área comum, sem divisões predeterminadas. Havia ainda cantinas para chineses e uma cantina para laowai. Esta última era mais cara e tinha alguns pratos classificados como estrangeiros. O acesso às cantinas, bares, cafés, casas de chá e campos de jogos do campus era livre, mas os preços dos produtos e os serviços oferecidos determinavam uma segregação entre estudantes chineses e estudantes estrangeiros.

Quando eu queria que algum dos meus amigos chineses me fosse visitar ao dormitório, ele/ela tinha de se identificar na shifu (a porteira). Se não o fizesse, era interpelado para o fazer, e tinha um horário específico para fazer a visita. A shifu tomava nota da sua identificação e do horário de entrada e de saída. Tal não acontecia com os estrangeiros, que circulavam livremente nos dormitórios dos estudantes estrangeiros. O mesmo se repetia quando eu ia visitar os meus amigos chineses nos seus dormitórios, na mesma universidade ou noutra.

Neste campus os custos com a educação também eram diferenciados: um estrangeiro pagava de propinas anuais dez vezes mais do que um estudante chinês. Era também inferior o valor cobrado pelo alojamento aos estudantes chineses em relação ao alojamento mais barato disponível para estrangeiros. Os dormitórios para estrangeiros eram aquecidos no Inverno (os mais caros tinham inclusivamente ar condicionado), acomodavam no máximo duas pessoas (a maioria era individual), tinham casa de banho e cozinha coletivas (os mais caros tinham casa de banho individual), água quente corrente, máquina de lavar roupa e uma televisão com acesso a canais estrangeiros.

Os dormitórios para chineses acomodavam cerca de oito estudantes em vários beliches, num espaço pouco maior do que os quartos dos estrangeiros. Também tinham aquecimento, mas este era menos funcional. As roupas eram lavadas num tanque, e eram os próprios estudantes que tinham de carregar a água quente para a sua higiene pessoal a partir de um local no campus, mas fora do dormitório.

Apesar de a diferença de condições corresponder também a uma diferença no preço do alojamento, a desigualdade e a rigidez do sistema era uma condição de partida, que um estudante chinês, mesmo que pagasse a diferença, não poderia viver num edifício destinado a estudantes estrangeiros, e vice-versa.

O campus murado, com guardas e cancelas de alta segurança nos vários portões, funcionava como uma pequena aldeia. Da janela do meu quarto, um primeiro andar do dormitório feminino para estudantes estrangeiros, facilmente se ouviam, às primeiras horas da madrugada, os treinos militares dos guardas da universidade e, diariamente, ao final da tarde, os altifalantes espalhados por todo o campus ecoando as posições governamentais sobre acontecimentos da atualidade.

Fora do campus, na cidade de Pequim, havia bairros específicos onde os estrangeiros eram obrigados a residir; não eram autorizados a fazê-lo fora desses bairros, a não ser em campus universitários, em residências ou hotéis específicos. Estes bairros concentravam-se na zona sudeste da cidade e neles não viviam chineses, que apenas ali trabalhavam como empregados de limpeza, cozinheiros, motoristas e amas para a população estrangeira residente. Os bairros, conhecidos por compounds, tinham vedações, cancelas e guardas à entrada, como um condomínio privado. Se algum chinês quisesse entrar tinha de se identificar, dizer quem ia visitar, o motivo da visita, e qual a sua ligação com essa pessoa. Com a liberalização do mercado imobiliário em Pequim no início da década de 2000, esta segregação residencial esbateu-se. Nos antigos compounds e nos novos bairros residenciais da cidade coexistem chineses e estrangeiros. A capacidade económica é agora peneira para a disposição residencial.

Os locais de diversão na cidade estavam também muito segmentados; segundo os meus amigos chineses, havia locais para estrangeiros e locais para chineses. Nestes locais, não havia proibições ou necessidade de identificação por força de lei, mas nalguns locais de diversão noturna frequentados por chineses entravam estrangeiros quando acompanhados por outros chineses.

A diferenciação entre chineses e estrangeiros ocorria, e ainda hoje continua a ocorrer, nas relações comerciais em geral. Qualquer aquisição feita com base num preço que não esteja afixado tem de ser regateada. Se o cliente for estrangeiro, o preço inicial será imediatamente inflacionado, muitas vezes para o dobro ou triplo, dificilmente baixando de um determinado valor. Os produtos em causa podem ir de algumas peças de fruta num mercado de rua a um bilhete de autocarro nalgumas regiões do país.

Quando questiono os meus interlocutores chineses sobre este facto, respondem-me quase sempre da mesma forma: Na China pensa-se sempre que os estrangeiros são ricos e que os chineses são pobres, por isso pede-se sempre mais dinheiro a quem é estrangeiro.

Ainda hoje, mais de três décadas depois do início da Política de Abertura, e estando a China a tornar-se a maior potência económica mundial, permanece a ideia de que o estrangeiro (neste sentido identificado como o ociden­tal/moderno) é necessariamente mais rico. Esta riqueza do estrangeiro expressa muito mais do que ter dinheiro, significa ter poder por se encontrar numa situa­ção historicamente percepcionada como privilegiada. Esta noção de riqueza, ligada ao poder e não apenas ao dinheiro, é transversal à sociedade chinesa. Ellen Hertz (1998), na sua etnografia sobre a Bolsa de Valores de ­Xangai, confrontou-se com o facto de os seus interlocutores, alguns deles homens de negócios chineses, se considerarem mais pobres do que ela, uma estudante de doutoramento vinda dos Estados Unidos.

Assim, tal como acima descrevo, o estrangeiro no sentido de laowai acaba por ter ainda mais dimensões sociológicas do que as descritas por Simmel. A complexidade da relação da China com o ocidente e a modernidade parece, pois, estar bastante presente nesta categoria.

WAIDIREN E DANGDIREN: CHINESES DISTANTES E CHINESES PRÓXIMOS Apesar de me encontrar na capital de um dos últimos estados socialistas do mundo, quando estive em Pequim fui-me apercebendo de que o modo de organização da vida quotidiana se baseava numa forte estrutura de diferenciação entre pessoas, a qual não se restringia apenas às relações entre chineses e estrangeiros. Havia também importantes distinções no interior da categoria chineses, nomeadamente entre waidiren ' pessoas de fora ou forasteiros ', e dangdiren ' pessoas locais ' ou beijingren ' pequineses. Um dia em conversa com um outro amigo chinês, estudante de inglês oriundo da província de Jiangxi, ele avisou-me: Agora tens de ter muito cuidado a andar em Pequim. A cidade está cheia de waidiren [gente de fora]! Estes waidiren são huai ren [gente ou estragada] que rouba e mata! Esta semana saiu no jornal que uma mulher foi violada aqui perto [em Haidian]. E tudo isto começou desde que chegou esta onda de waidiren. Estranhei um pouco o aviso, na medida em que também Yi era um forasteiro. Foi então que ele me explicou que os waidiren de que falava não eram meramente pessoas de fora, estudantes como ele, mas gente empobrecida que tinha vindo das áreas rurais para a cidade trabalhar, mas também, segundo ele, para roubar e cometer outros crimes.

Em Pequim, estes migrantes internos eram classificados como waidiren (forasteiros), por oposição aos beijingren (pequineses). Mas o termo não significava inocuamente forasteiro, antes era usado num sentido extraordinariamente pejorativo, pressupondo tratar-se de pessoas em situação ilegal e potencialmente criminosas. Estes migrantes internos, que o governo designa por liurenkou (população flutuante), são tolerados por serem economicamente necessários às grandes cidades chinesas como Pequim.

Politicamente, eles são descritos como ameaças latentes à paz, tranquilidade e segurança dos locais. Por toda a cidade era possível observar um elevado número de trabalhadores humildes a fazer trabalhos, sobretudo físicos e mal pagos, rejeitados pelos pequineses, principalmente na construção civil, que teve uma enorme explosão nesse período. Esta população flutuante ocupava as áreas mais degradadas da cidade, não tinha acesso a proteção social por terem um hukou (registo de residência) rural e residirem ilegalmente na cidade.

Na realidade, em 1999, os waidiren em Pequim não eram um fenómeno tão recente quanto Yi parecia julgar. em 1995, o governo central e o município de Pequim haviam levado a cabo uma campanha política contra a presença descontrolada de migrantes internos, nomeadamente contra a Zhejiangcun (aldeia de Zhejiang), um dos maiores enclaves da capital, cujo poder e autonomia crescentes eram vistos como uma potencial ameaça ao Estado socialista (Zhang 2000:173).

As relações do Estado chinês com a população flutuante tem sido dúbia ao longo das duas últimas décadas, alternando entre campanhas de limpeza com a sua expulsão das cidades em determinados períodos, alegando razões de segurança, e uma maior flexibilização das regras do hukou, permitindo às pessoas encontrarem trabalho fora das suas áreas de residência dentro do limite da lei.[7] Waidiren e laowai têm em comum o facto de não pertencerem ao grupo interior e para ele poderem constituir uma ameaça. Todavia, também podem ser benéficos. Os waidiren são economicamente necessários, mas ao mesmo tempo são criminosos em potência. Os laowai são benéficos pelo investimento e conhecimento sobre a economia e capitalismo global que trouxeram e trazem à China, mas são percecionados como uma ameaça latente de destabilização da integridade e unidade da nação. No passado foram as Guerras do Ópio, a invasão de Pequim e a imposição de uma situação semicolonial à China, mais recentemente apoiam causas como a soberania do Tibete, de Xinjiang ou de Taiwan e agitam a bandeira dos direitos humanos. Na ótica de muitos chineses, estas atitudes revelam que os laowai não têm capacidade, nem abertura, para compreender a China e os chineses, que não existe uma gongtongdeyuyan' uma linguagem comum. É esta perceção da inexistência de uma linguagem comum que torna os estrangeiros, nomeadamente os ocidentais, distantes. Este é o mesmo motivo pelo qual a vendedora de bilhetes na estação de Pequim se recusou a negociar comigo ' a perceção e o preconceito de que chineses e ocidentais, em muitos domínios, possuem visões do mundo incompatíveis.

ETNOGRAFIA PARA PRINCIPIANTES: SER ESTRANGEIRA NA PRÓPRIA TERRA Voltei a Lisboa, vinda de Pequim, em meados do ano de 2001. Foi então que me dediquei a uma segunda investigação com chineses, desta vez sobre mulheres chinesas migrantes em Lisboa (Rodrigues 2009). Nesta segunda experiência de terreno, iria trabalhar com migrantes chineses recém-chegados da República Popular da China, com muitos indivíduos em situação de permanência irregular no país. A experiência em Pequim tornou-me consciente do modo como os chineses me viam como uma estrangeira e de que esta barreira era inultrapassável, dada a minha aparência não chinesa. Eu sabia agora que nunca conseguiria passar despercebida no grupo e que teria necessariamente de lidar com a condição de estrangeira no terreno, mesmo tendo um domínio razoável da língua. Falar mandarim (embora como uma estrangeira) e ter vivido na China eram aspetos favoráveis, mas, como estrangeira, eu tinha de estar preparada para lidar, e se possível desmistificar, os estereótipos subjacentes à categoria de laowai entre os chineses. Ser laowai implicava não apenas que eu poderia ser uma potencial ameaça, mas também ser considerada muito diferente no meu modo de vida, moralidade e visão do mundo.

Numa fase inicial pensei ultrapassar as dificuldades mostrando, ingenuamente, que poderiam confiar em mim por ser uma investigadora séria e profissional. A minha primeira entrevistada, que conheci através de uma colega no meio universitário, era uma mulher licenciada que fazia um MBA numa faculdade de economia em Lisboa. Nessa altura eu estava em início de carreira, era monitora na universidade, e fui-lhe apresentada como uma antropóloga, docente na universidade, interessada em fazer um trabalho de investigação sobre mulheres e migração chinesa. Quando lhe falei do meu trabalho, ela acedeu a participar, e passei várias tardes em sua casa a conversar.

Ela interessou-se pelo meu trabalho e apresentou-me a dona de um restaurante chinês onde costumava ir, perto de sua casa. Perante a amiga, a dona do restaurante concordou receber-me e falar comigo dali a algumas semanas. Porém, quando voltei a contactá-la, fui interpelada pelo marido, que me perguntou se eu era jornalista, uma vez que queria entrevistar a sua mulher.[8] Sem conseguir convencê-lo totalmente das minhas intenções, ele acabou por me dizer que, se a mulher quisesse, poderia falar comigo. Marquei encontro com ela ainda nesse dia à tarde, quando a cozinha encerrasse no final dos almoços.

Quando cheguei ao restaurante, uma empregada foi chamá-la, e ela apareceu na sala de refeições pronta para sair com um casaco vestido e a carteira a tiracolo. Disse-me então que não podia falar comigo porque estava doente e tinha de ir ao médico. Fiquei surpreendida por nada me ter dito nessa manhã.

Disse-lhe então que voltaria noutro dia e, desejando-lhe as melhoras, saí do restaurante. Enquanto entrava no meu carro, do outro lado da rua, fiquei estupefacta quando a vi voltar a entrar na área reservada do restaurante e regressar sem casaco nem carteira para se juntar aos empregados que comiam numa das mesas. Apesar do compromisso assumido perante a amiga, ela não queria falar comigo.

Este episódio foi muito marcante no início do meu trabalho de campo. Se uma imagem de seriedade profissional funcionava com pessoas com educação superior, que conseguiam confiar na natureza do meu trabalho de investigação, esta estratégia não funcionava com migrantes chineses com baixo nível educacional, o que correspondia à maioria dos migrantes chineses em Lisboa.[9] Durante semanas refugiei-me na literatura à procura de uma estratégia milagrosa para os convencer, pelo menos, a falar comigo. Ainda sem uma resposta para o problema, apercebi-me da abertura revelada pelos donos do restaurante chinês perto da universidade, um casal oriundo de Zhejiang, vindo de Espanha alguns anos, e que eu conhecia antes de ir para Pequim. Por falar mandarim, frequentemente eles solicitavam-me que lhes ensinasse português ou que os ajudasse a resolver um ou outro problema relacionado com o seu fraco domínio da língua portuguesa.

Ao contrário da experiência com o outro casal, estes não me afastavam e até pareciam ter interesse em relacionar-se comigo. O facto de a relação ter começado com uma casual relação comercial, e durar alguns anos, gerou uma base de confiança da parte deles, permitindo a minha aproximação.

Aproveitando este interesse dos chineses pela minha capacidade de comunicação em português e mandarim, numa fase de mudança para um novo edifício, a faculdade onde eu trabalhava teve espaço nas instalações antigas e consegui autorização do diretor para lecionar gratuitamente aulas de português a chineses. Fi-lo durante dois anos. As aulas decorriam no intervalo do horário de trabalho, entre o almoço e o jantar dos restaurantes (das 15h30 às 17h30).

Cheguei a ter 30 a 40 pessoas na sala de aula, embora à medida que os meses passavam o número diminuísse, para depois voltar a aumentar no início do ano letivo seguinte. Eram sobretudo recém-chegados, empregados de restaurantes e de lojas. Diziam trabalhar muito e ceder ao cansaço quando à noite, finalmente, tinham algum tempo para dedicar ao estudo da língua. Algumas pessoas vinham do Martim Moniz, mas a maioria vinha de Belém, Alcântara e Algés.[10] Apesar do horário previamente estabelecido, muitos chegavam depois da hora, quando a aula tinha começado, e saíam antes de terminar. Raramente se dirigiam a mim e evitavam o preenchimento do número de identificação e do contacto na ficha de aluno, admito que por estarem em situação legal irregular.

Na prática, poucas ligações ou até interações consegui manter com eles fora do contexto da aula. Contudo, no Natal enchiam-me a mesa com as lembranças mais diversas, acompanhadas por um tímido e fugidio Feliz Natal! De entre todas aquelas pessoas, consegui estabelecer relação com três famílias. Desde o início que me foi sempre mais fácil estabelecer relações com pessoas com um nível de escolaridade mais elevado, mesmo que trabalhassem em Lisboa como empregados de mesa ou ao balcão de lojas, e com mulheres. Foi através dos meus antigos alunos chineses dessas aulas de português que comecei a frequentar restaurantes, lojas e casas de migrantes chineses na cidade de ­Lisboa. Quando lhes aparecia em casa ou no trabalho, num encontro previamente combinado, quase sempre me confrontava com pedidos de ajuda na resolução de problemas. Os pedidos mais comuns eram explicar o conteúdo do correio, como funcionam os seguros, como funciona o Sistema Nacional de Saúde, falar com os professores na escola dos filhos, esclarecer sobre documentação pedida pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), entre outros. Muitas vezes, pediam-me também que fosse ensinar-lhes um pouco de português. Este foi o modo como lentamente entrei nas suas vidas.

Logo a partir dessa altura passei a ser vista como professora e não tanto como antropóloga ou investigadora (a maioria não compreendia o significado destes termos), não apenas por lecionar na universidade, mas principalmente por ter ensinado português a chineses. A classificação de professora foi-me muito útil na realização do trabalho de campo para mestrado e doutoramento. Não é fácil explicar qual o trabalho de um antropólogo, ou que tipo de investigação é que realiza, nomeadamente a chineses com baixo nível de instrução, principalmente quando existe uma forte resistência devido à minha identidade de estrangeira. Aprendi a não usar a palavra entrevista, mas a designar estes eventos por conversas ' que na realidade eram. Acompanhar chineses pelo Martim Moniz permitiu-me fazer observação participante e alargar a minha rede de interlocutores, o que foi largamente compensatório, permitindo-me vivenciar de perto as suas experiências como migrantes. Como referem Sarró e Lima (2006: 18), a partilha do quotidiano com as populações que se estuda é um dos eixos definidores do trabalho de campo, tanto em terrenos metropolitanos como na etnografia clássica. Assim, ao adaptar a minha forma de estar no terreno à forma de estar na vida dos meus interlocutores, eu acabei por partilhar com eles o seu quotidiano, ter a oportunidade de fazer observação participante e, com o tempo, de conversar com eles também sobre assuntos que me interessavam.

Em última instância, ao deixar que fossem os meus interlocutores a encontrar o meu lugar nas suas vidas, consegui encontrar os pontos de contacto de que falam Viegas e Mapril na introdução a este dossiê. Porém, a minha atitude por vezes mais contemplativa de apenas estar por não deixou de causar uma certa estranheza aos meus interlocutores, que me perguntavam: Hoje tens tempo? Não tens de trabalhar?Normalmente respondia: Quando converso contigo/com vocês eu estou a aprender coisas para o meu trabalho, e por isso estou a trabalhar.

Geralmente reagiam a esta resposta com um sorriso.

DE ESTRANGEIRO DISTANTE A ESTRANGEIRO FAMILIAR Um dia em 2003, quando visitava uma aluna na sua loja no Martim Moniz, ela apresentou-me uma das suas duas filhas, recém-chegada da China. Três semanas mais tarde chegou o neto de 10 anos, filho da filha, e ela perguntou-me se não me importava de dar aulas de português ao neto duas vezes por semana, ali mesmo na loja. O filho desta mulher também estava em Lisboa e, passado alguns anos, regressou à China para casar com uma rapariga da terra natal dos pais. Depois do casamento, ela juntou-se ao marido em Lisboa. Cerca de um ano depois nasceu o primeiro filho do casal e eu fui convidada a ser madrinha. Alguns meses mais tarde, os pais da mulher vieram a Lisboa conhecer o neto. Quando me desloquei à China em 2010, visitei-os na sua terra natal.

Ao longo do trabalho de campo, nas minhas visitas e deambulações por lojas, armazéns chineses e restaurantes chineses do Martim Moniz, testemunhei várias versões do diálogo que me humanizava como estrangeira distante aos olhos dos chineses.

O que é que esta laowai está aqui a fazer?Ela fala putonghua [mandarim], é professora na universidade e foi liuxuesheng [estudante estrangeira] em Pequim.

Ah. [OK] A esta descrição normalmente seguia-se um sorriso e uma curta conversa para confirmar se eu falava mesmo mandarim. Nalgumas situações eu quase passei por chinesa. Numa véspera de ano novo chinês, eu estava no estabelecimento de uma família no Martim Moniz, onde os donos resolveram organizar uma pequena festa.

Durante a tarde assistiu-se à gala anual de Ano Novo transmitida pela CCTV, fizeram-se jiaozi (pequenos pastéis de massa recheada com carne e/ou vegetais), comeram-se amendoins, tangerinas e doces. Clientes, amigos e conhecidos acorreram ao estabelecimento para espreitar o programa (transmitido via parabólica) por alguns minutos, ou para deixar as crianças a assistir. A anfitriã divertiu-se bastante com as conversas dessa tarde em reação à minha presença:Ah, quando entrei pensava que ela era waiguoren.

Mas ela é waiguoren!Ah?! [o quê?!] Em momentos de celebração como este, contagiados por uma intensa alegria e boa disposição, os meus amigos chineses entusiasmados exclamavam: Ta yiban shi zhongguoren! ' Ela é metade chinesa! Em situação oposta a esse momento em que fui considerada (quase) meia-chinesa, a minha presença em momentos de tensão social e familiar gerou situações desconfortáveis e remeteu-me para a minha condição de ignorância, por ser laowai. Quando perguntava o porquê da atitude de uma determinada pessoa perante uma situação difícil, ou até quando me atrevia a aventar uma solução mais à portuguesa, a resposta que invariavelmente eu ouvia era: Tu não és chinesa. Não percebes. Nestas ocasiões eu voltava a ser a estrangeira distante e sem capacidade de compreensão da sua visão do mundo. Os benefícios da minha presença iam além da resolução de problemas práticos do quotidiano e do ensino de português.

Nalgumas situações, aparecer com uma amiga estrangeira era capitalizado pelos chineses que eu acompanhava, perante outros chineses, como uma forma de promover a sua mobilidade social ascendente. Desta forma expressavam o seu sucesso em Portugal.[11] Ao longo dos anos, a minha presença desafiou os meus interlocutores a encontrarem para mim um lugar no seu mundo. Se em Lisboa eu sou professora, antiga estudante estrangeira em Pequim, quando fui visitar Wenzhou, a terra natal de muitos dos meus interlocutores em Lisboa, um casal (Zhou e Li) que conheci em Lisboa vários anos resolveu adotar-me e apresentar-me perante os seus vizinhos e amigos na aldeia como a sua quarta filha. Quando Zhou e Li diziam aos vizinhos que eu era a sua quarta filha, eles olhavam muito atentamente para mim e exclamavam: Não pode ser! Ela é waiguoren! Mesmo no interior da família, onde fui estimulada a chamar aos meus pais adotivos A-Ma (mamã) e A-Ba (papá), ou jiejie (irmã mais velha) e gege (irmão mais velho) aos meus irmãos de adoção, mantinha a condição de estrangeira perante a geração mais nova.

Quando eu tentava falar com os meus sobrinhos adotivos, crianças e adolescentes entre os 12 e os 17 anos, não havia da sua parte nenhuma reação corporal ' não me olhavam sequer. Apenas murmuravam qualquer resposta muito rápida e escapatória quando coagidos por algum adulto para o fazerem: Responde à Ayi! A Ayi está a falar contigo! Estás a ouvir?! Apesar do termo Ayi ser de aparente proximidade, que significa tia ' um termo educado usado para chamar as mulheres da geração da mãe ', eles viam-me como uma estranha, uma estrangeira.

Por isso não me falavam nem me olhavam dire­tamente. Mas havia uma exceção: a atitude de uma das crianças, nascida e educada em Portugal, que estava apenas temporariamente na China a passar férias em casa dos avós. Com esta criança eu interagia frequentemente e ela falava comigo e olhava-me de frente. Uma noite os adultos tomaram este contraste de atitudes das crianças para exporem verbalmente o que pensavam sobre a minha posição ali e mais ainda sobre o que justificava essa diferença entre as crianças. Uma das irmãs dizia que a reação dos filhos e sobrinhos ­chineses, por oposição ao sobrinho português, é um reflexo do facto de as crianças chinesas serem ensinadas desde tenra idade a não interagirem com estranhos de modo nenhum. Apesar de os pais e avós assegurarem às crianças que eu era da família e que deveriam tratar-me como a xiaoyi ' a tia mais nova ', elas nunca conseguiram ultrapassar essa barreira. A sua relutância em se relacionarem comigo estaria relacionada com o facto de eu não pertencer à sua rede de relações até ali, mas em parte também devia-se à minha ausência de ancestralidade chinesa.

Na China, a prole é considerada um bem valioso para a família, pois assegura a sua continuidade, tanto nas gerações vindouras, como pelo sustento das gerações mais velhas em vida e depois da morte. Por esse motivo, as crianças sempre foram protegidas das ameaças dos estranhos. Na atualidade, as crianças chinesas vivem condicionadas por uma vivência muito limitada no interior da família e da escola. À medida que vão crescendo, vão formando vários ­círculos de segurança ' a família, o grupo de pessoas da sua terra de origem, o grupo de pessoas da mesma origem nacional, expressando receio em interagir com pessoas exteriores.

Assim, quando se encontram num país estrangeiro, como Portugal, os chineses tendem a reatualizar esta forma de entender o mundo baseada na diferenciação entre pessoas de dentro (família, terra de origem, nacionalidade) e pessoas de fora (estranhos, forasteiros, estrangeiros), e a preferirem interagir com quem consideram que os compreende. Durante o trabalho de campo, vários migrantes chineses me falaram sobre os seus sentimentos de solidão e de isolamento em Lisboa, mesmo em relação a outros chineses, confessando-me a sua dificuldade em fazerem amigos chineses (para não mencionar portugueses) em quem pudessem verdadeiramente confiar, como se confia na família e nos amigos de longa data.

CONCLUSÃO A minha situação de estrangeira entre chineses foi uma condicionante fundamental do percurso etnográfico. Descrevi aqui o caminho que percorri, não tanto pelos seus meandros reflexivistas sobre a experiência de campo como experiência pessoal, mas como parte do processo de conhecimento etnográfico: neste caso, sobre ser laowai. Se a descoberta do terreno foi para mim um percurso em direção à familiaridade com o espaço, que de longínquo passou a próximo (Sarró 2008: 151), para os meus interlocutores foi um processo de humanização da minha pessoa estrangeira, dotando-me, aos seus olhos, de alguma capacidade de compreensão da sua forma de estar no mundo. Este processo foi possível porque categorias de classificação distantes e vastas como ocidental, americano, ou chinês foram deixadas para segundo plano, a partir do momento em que foram encetadas relações sociais mais próximas, abrindo a possibilidade de compreensão mútua.

Os sentidos implicados nesta categoria poderiam ser então e por último pensados a partir do que Simmel nos diz sobre a condição de estrangeiro em The stranger (1979 [1908]), nomeadamente da tensão existente nesta relação, que é simultaneamente de distância e proximidade. A minha descrição da categoria de laowaineste artigo pretendeu mostrar que a compreensão mútua e até a proximidade também fazem parte dos significados de se ser laowai. Para a compreendermos, temos de a situar na própria história de exclusão/inclusão que mostrei estar inscrita na história chinesa e estar presente nos modos de relacionamento e categorização de pessoas entre os chineses emigrados em ­Lisboa. Ao mesmo tempo, mostrei que, mesmo quando essa proximidade parecia íntima e estabelecida, essa mesma condição de ser laowai podia projetar-me de novo para a minha condição de estrangeira, e novamente ser vista como uma laowai.

Ao ser laowai, experimentei os limites que a categoria implica no acesso a determinados níveis de proximidade e de interação. A abordagem ­epistemológica da condição de laowai possibilitou alcançar um sentido mais analítico do modo como se desenvolveram os processos de interação entre a etnógrafa e os interlocutores no terreno e proceder a uma reconfiguração das categorias de conhecimento considerando laowai como uma categoria nativa historicamente situada.


Download text