Afinal, que asilo é este que não nos protege?
INTRODUÇÃO E CONTEXTO DE PESQUISA ETNOGRÁFICA
Os refugiados em Portugal constituem um grupo pequeno e muito diversificado,
numericamente quase irrelevante, quer em termos comparativos com os imigrantes
no país, quer também comparando com o número de refugiados existentes nos
restantes países da União Europeia.[1]A sua diversidade manifesta-se
relativamente aos lugares de proveniência e aos idiomas ou pertenças
religiosas, classes sociais, profissões, idades e género. Esta diversidade e o
seu número inexpressivo têm contribuído para a invisibilidade do tema no
contexto da sociedade portuguesa contemporânea, bem como para a ausência de
debate académico e político aprofundado sobre as realidades e dificuldades
quotidianas deste grupo. Nos últimos cinco anos (desde 2007), tenho vindo a
realizar pesquisa sobre os refugiados em Portugal, testemunhando a luta
contínua pela aceitação e integração na sociedade portuguesa, à qual estão
obrigatoriamente confinados se pretendem permanecer legalmente na Europa
(Santinho 2011). O início da minha investigação realizou-se no contexto do
Conselho Português para os Refugiados (CPR).[2] Depois, acompanhei os
quotidianos difíceis de homens e mulheres, na relação com instituições como o
Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), a Segurança Social, os hospitais,
centros de emprego, escolas, ou ainda nas negociações para alugar casas ou
quartos. Atendendo ao número residual de refugiados, quis compreender o que
justificava afinal a sua dificuldade de integração, começando por pesquisar os
contornos legais que enquadram o acolhimento e a integração, em Portugal e na
União Europeia. Para além de existir, no contexto nacional, uma legislação
específica para refugiados (Lei de Asilo),[3] e outra para imigrantes (Lei de
Estrangeiros),[4] constatei que, no que diz respeito à legislação portuguesa,
há motivos para considerar que os direitos e deveres dos refugiados e
requerentes de asilo estão devidamente salvaguardados, permitindo,
teoricamente, uma boa integração, porquanto lhes é permitido trabalhar, estudar
e usufruir do Serviço Nacional de Saúde nas mesmas condições da população
portuguesa. Já o mesmo não se passa na maioria dos restantes países europeus.
Contudo, a realidade quotidiana dos refugiados em contexto nacional é bem
diferente e contraditória com o que está consagrado na lei. Partimos, pois, do
princípio de que Portugal está dependente das condicionantes políticas e
estratégicas da gestão das fronteiras na União Europeia, determinadas mais
recentemente pela agência Frontex.[5] Torna-se assim necessário conhecer os
debates políticos internacionais que estão por trás dum sistema comum de asilo.
Não obstante, a retórica das políticas nacionais, das instituições e da própria
sociedade portuguesa (que se assume tradicionalmente como um país acolhedor)
está longe de encontrar o seu reflexo no espelho da realidade objetiva dos que
pedem asilo por necessidade (figura 1).
EM TORNO DA NOÇÃO DE "MIGRAÇÕES FORÇADAS"
De um modo geral, nas últimas décadas, os debates sobre imigração estão de tal
modo disseminados nos contextos sociais e académicos que se torna quase
redundante o aprofundamento deste conceito. Porém, proponho aqui que se
desconstruam alguns significados associados a este tema, à luz das experiências
de vida das pessoas que tiveram de partir subitamente das suas casas, deixando
as famílias e o país, para fugir a perseguições políticas ou por razões
económicas, mas sempre por uma questão de sobrevivência. Aqui, falamos de
refugiados. Existe uma ideia mais ou menos generalizada em torno do conceito de
refugiado e dos seus significados. Segundo a Convenção de Genebra de 1951,
artigo 1.º, o termo refugiado aplica-se a qualquer pessoa que
[ ] receando com razão ser perseguida em virtude da sua raça,
religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou das suas
opiniões políticas, se encontre fora do país de que tem a
nacionalidade e não possa ou, em virtude do dito receio, não queira
pedir a proteção daquele país (ACNUR 2007 [1951]).
Um refugiado é, por conseguinte, aquele ou aquela que corre risco de vida no
seu país e que pede asilo e proteção noutro país, considerado seguro (que
assinou a Convenção de Genebra), alegando que não pode regressar ao local de
onde partiu por estar em risco a sua própria sobrevivência (princípio de non-
refoulement).[6] Na literatura especializada sobre a temática dos refugiados,
de que são exemplo os textos do Alto Comissariado das Nações Unidas para os
Refugiados (ACNUR),[7] a grande diferença entre imigrante e refugiado reside no
facto de, no primeiro caso, a migração não ter sido forçada, isto é, o
imigrante não corre (aparentemente) perigo de vida, podendo regressar ao seu
país de origem quando assim o desejar. Deliberadamente, não abordo aqui toda a
problemática relacionada com os imigrantes indocumentados, ainda que ressalve a
ideia ' constatada na investigação etnográfica ' de que tanto os imigrantes
como os próprios requerentes de asilo passam frequentemente de uma situação
legal para uma outra situação de ilegalidade, por incumprimento jurídico
atempado na avaliação dos processos ou por deliberações cujo fundamento não se
encontra disponível para apreciação dos leigos.[8] No caso dos refugiados,
aceites como tal nos postos de fronteira, os contornos são outros e bastante
problemáticos. Antes da guerra ou conflito, o agora refugiado não tinha
necessariamente posto a hipótese de emigrar (pelo menos não de forma urgente).
Muitos tinham inclusive uma vida próspera, do ponto de vista económico e
profissional, mas, de um momento para o outro, tudo se desmoronou. Resta-lhes
então fugir para outro país sem hesitar, sabendo que podem ser mortos se
regressarem, enquanto as condições políticas do país de onde partiram não se
modificarem. Estão, portanto, presos num tempo e num lugar determinado,
sujeitos não às suas próprias decisões sobre o modo como a partir daí
conduzirão as suas vidas, mas condicionados por políticas de fronteira a nível
mundial ou políticas sociais a nível nacional, que irão fazer deles seres
tendencialmente dependentes e passivos, durante um longo período.[9]
Como menciona Soguk (1999: 4), não pode existir um paradigma intrínseco
associado à figura do refugiado, pronto a ser reconhecido e registado, sem que
se deva tomar em consideração a sua experiência particular ou a contingência
histórica. Pelo contrário, nas palavras deste autor: Há mil experiências
variadas de refugiados e mil figuras de refugiados cujos significados e
identidades são negociados no processo de deslocamento no tempo e no espaço
(1999: 4).Já para Hannah Arendt (1978 [1943]), por exemplo, um refugiado é
aquele que não tem um país. Assim, a cidadania deveria ser a salvaguarda dos
direitos dos seres humanos, ou seja, o direito a ter direitos. Mas, agora,
chegamos a uma outra definição: migrações forçadas. Qual o significado deste
conceito ou o que significa conceptualizar? De acordo com o autor David
Turton (2003), conceptualizar é construir algo, mais do que defini-lo ou
descrevê-lo. É o resultado de uma construção mental que nem sempre encontra
equivalência na vida dos atores sociais. A linguagem metafórica usada para
definir o que é migração transporta consigo implicações para o modo como vemos,
falamos ou atuamos sobre os migrantes. Coloca-se pois a necessidade de reflexão
no uso destes termos. Esta reflexão leva-nos agora a desconstruir o termo
migrações forçadas. Só os refugiados serão migrantes forçados? E os que
emigram por razões de fome e miséria, muitas vezes provocadas pela delapidação
abusiva do seu ambiente ecológico?[10] E os que emigram por não terem
assistência na doença? E os que emigram porque desejam prosseguir os seus
estudos superiores e não têm condições para fazê-lo no seu próprio país? Não
serão estes também migrantes forçados? Resta contudo um problema ético e
metodológico: ao conceptualizarmos de forma diferenciada migrantes e
migrantes forçados ' por outras palavras, migrantes indesejáveis, como de
resto Michel Agier (2008) os denomina no seu livro Gérer les indésirables'
estamos a atribuir classificações hierárquicas que, na realidade, são mais
complexas do que aparentemente se pode julgar. Estas classificações refletem-
se, por exemplo, nos diferentes estatutos jurídicos atribuídos em Portugal aos
refugiados e requerentes de asilo. Boa parte dos imigrantes ou refugiados são
pessoas comuns que, num determinado momento das suas vidas, se viram
confrontadas com situações sociais, históricas e políticas que as fizeram mudar
de vida, em direção a um outro território. Portanto, o modo como as políticas
nacionais atuam sobre os migrantes depende também da forma como estes são
conceptualizados.
O INÍCIO DO DEBATE SOBRE UM SISTEMA COMUM DE ASILO
Sassen (1999) refere que, no final do século XX, o mundo assistiu a uma
exacerbação das tensões sociais, resultando numa crescente restrição à
mobilidade humana, particularmente nos Estados Unidos e na Europa, através do
uso de tecnologias de vigilância cada vez mais disseminadas e mais
sofisticadas. Do ponto de vista político e ideológico, assistimos igualmente a
uma crescente manipulação dos medos sociais que contribuem para diabolizar
todos aqueles que são percecionados como estranhos a estes contextos. Existem
razões históricas mais ou menos recentes ' muro entre os Estados Unidos e o
México, territórios ocupados na Palestina, em Espanha separação de Ceuta e
Melila relativamente a Marrocos, para nomear alguns casos mais recentes e
mediáticos ' que contribuíram para uma alteração radical nos conceitos usados
nas políticas de fronteira. Estas alterações estão também ancoradas em
profundas mudanças económicas e políticas, nomeadamente na Europa, que,
dispensando o recurso a trabalhadores imigrantes, viu generalizar-se o uso de
expressões como invasão de imigrantes, em particular por parte da imprensa
sensacionalista. Quando Portugal assumiu a Presidência da União Europeia no ano
2000, para além de ter promovido um intenso debate sobre imigrações num sentido
mais lato, realizou uma conferência com o título Em Direcção a um Sistema
Comum Europeu de Asilo (SEF 2001). A organização desta conferência esteve a
cargo do SEF, que possui competências para decidir sobre a aceitação dos
pedidos de asilo, procedendo à instrução dos processos de concessão.[11] A
escolha desta temática foi determinada em particular pelos Acordos de Tempere
(1999), cujo objetivo já então era o desenvolvimento de medidas com vista à
criação de um sistema comum europeu de asilo, baseado numa aplicação integral e
abrangente da Convenção de Genebra. Na realidade, estas medidas visaram
sobretudo proteger as fronteiras comunitárias da União Europeia, através do
controlo e da restrição da entrada de uma imigração já não desejada.[12] Esta
situação agravou-se um ano depois, após os atentados de 11 de setembro de 2001
nos Estados Unidos da América, com efeitos imediatos na Europa, como o pânico
moral (Fassin 2011) representado pelo Islão, combinado com o pânico político
sobre os requerentes de asilo. Fassin refere ainda: Em ambos os casos, o novo
mundo da migração' gerou novas estratégias e instrumentos de controlo' [ ],
por outras palavras, novo policiamento de imigrantes (2011: 216).[13]
Após o 11 de Setembro, generalizou-se ainda mais o princípio da desconfiança,
com base na ideia de que muitos dos pedidos de asilo seriam falsos, ou seja,
não teriam como justificação a necessidade de proteção motivada por
perseguições e conflitos, mas sim razões económicas: a procura de melhores
condições de vida. Para os requerentes de asilo, estas medidas afetaram
gravemente o seu acesso aos países europeus e, na prática, tiveram como
consequência a invenção de uma outra figura jurídica: a da proteção
subsidiária com autorização de residência por razões humanitárias, com o
respetivo decréscimo de concessões do estatuto de refugiado.
Da conferência atrás referida destaco o discurso do ministro da Administração
Interna, à data Fernando Gomes, que sem ter em conta o número residual de
requerentes de asilo em Portugal (e em geral na União Europeia, já que o maior
número de refugiados se encontra nos países africanos e asiáticos e não na
Europa),[14] afirmou o seguinte:
O elevado número de requerentes de asilo e pessoas deslocadas, a
distinção cada vez mais impercetível entre os refugiados na aceção da
Convenção de Genebra e as pessoas que, por motivo de conflitos
armados, guerras civis ou graves violações dos direitos humanos,
fogem dos seus países de origem, aos quais se junta ainda um elevado
número de imigrantes económicos, torna cada vez mais difícil
encontrar as soluções adequadas e efetivas para as situações, de
diferente natureza, em que é exigida a concessão de proteção
internacional [ ] (SEF 2001: 7).
Também o ministro do Interior da Finlândia (Kari Häkämies) assumiu num seu
discurso o seguinte:
Nestas circunstâncias, o que fazer para resolver o problema dos
refugiados? Em primeiro lugar, importa naturalmente reduzir o número
de refugiados, mediante a perceção e a análise das razões subjacentes
ao fenómeno [ ] (SEF 2001: 16).
O que aqui se pretende destacar é a visão economicista baseada no deve e
haver em relação a pessoas que, como sabemos, não são refugiadas porque assim
o desejaram, mas porque essa é, por vezes, a única forma de sobreviver a uma
guerra, conflito armado ou outro motivo que ponha em risco a sua vida. Na
verdade, quem é que efetivamente tem em suas mãos o poder de reduzir o número
de refugiados? A situação que gera a fuga e o consequente pedido de asilo é
originada a montante e não a jusante do problema. Logo, nos países de asilo, a
decisão política de redução do número de refugiados passa necessariamente por
manipulações jurídicas moldadas nos contornos da lei: da atribuição do
estatuto de refugiado passa-se a uma configuração legal mais ambígua e com
menos garantias de acesso aos direitos, a dos residentes temporários por
razões humanitárias. Onde reside então a defesa dos direitos humanos, tão
utilizada nos discursos políticos dos países europeus, que ao mesmo tempo se
orgulham de serem espaços de liberdade, segurança e justiça?[15] A relação
entre direitos humanos e refugiados é sem dúvida uma relação íntima. Porém, os
discursos proferidos a propósito são, na sua maioria, abstratos, idealistas e
acríticos, em comparação com o que sucede na realidade da vida dos refugiados,
tanto antes da fuga, como já depois, nos países de asilo. Como refere Balibar:
Os direitos humanos tornaram-se, novamente, o absoluto dos discursos
políticos. Mas pouco ou praticamente nada se ouve falar sobre as
políticas dos direitos humanos, não há qualquer questionamento sobre
as suas condições, formas e objetivos. Porquê esta discrição? Ou tal
noção é considerada evidente [ ] ou é considerada contraditória, uma
vez que (ao serem o seu absoluto ou o seu princípio) os direitos
humanos estão sempre para lá da política ou acima dela (1994: 205).
Regressando à publicação Em Direcção a Um Sistema Comum Europeu de Asilo,
salientamos também as palavras de Otto Schily, ministro do Interior da
República Federal da Alemanha:
Mas, quando vejo que, segundo o projeto de diretiva da Comissão
relativa à proteção temporária, mais concretamente a exposição de
motivos, não será possível expulsar um cidadão se no país de origem
prevalecerem condições que não permitem assegurar o respeito dos
direitos humanos e o Estado de direito, interrogo-me se não se
tratará de uma formulação demasiado extensiva (SEF 2001: 30).
Nestas afirmações coloca-se nitidamente a possibilidade de, nos países da União
Europeia, se retirar os direitos de proteção de refugiados anteriormente
expressos claramente pela Convenção de Genebra, ao sugerir que as garantias dos
direitos humanos são demasiado abrangentes, mesmo quando se configura a
hipótese de perseguição e morte. Historicamente, oscila-se entre políticas e
atitudes sociais de compaixão e repressão (Fassin 2005), remetendo estas
populações para novos significados associados a indivíduos com histórias
liminares, numa constante procura de lugares onde se respeitem os direitos
humanos, mas acusando-os também de aproveitamento de benesses que,
aparentemente, só a Europa lhes poderia proporcionar.
Um dos discursos a destacar, por contraponto aos discursos políticos nesta
conferência, é o da representante do ACNUR, Erika Feller, que evoca o autor
Jeremy Arden para criticar os discursos dominantes, propondo uma outra
abordagem:
Uma conclusão que, após muita investigação, o autor considerou
justificada é a de que os requerentes de asilo são cada vez menos
bem-vindos em muitos países, a menos que tenham sido formalmente
convidados através de programas de realojamento, ou de regimes de
vistos ou de admissão temporária, vindos de países em crise. No caso
de entrarem por outras vias, observa o autor, os requerentes de asilo
terão de enfrentar consequências inevitáveis, entre as quais o facto
de os seus motivos serem considerados de ordem económica, para além
de que a entrada em situação irregular os prejudicará no processo de
apreciação do seu pedido (SEF 2001: 39).
Segundo os acordos políticos previstos nesta conferência (e aplicados
posteriormente, em particular após a criação da Frontex em 2005), com vista à
elaboração de um sistema comum de asilo, tendente a associar a figura do
requerente de asilo à de imigrante ilegal, os refugiados passam a ser, a meu
ver, considerados culpados até prova em contrário. Como refere o autor David
Sánchez Rubio, no livro Contra Una Cultura Anestesiada de Derechos Humanos:
Em nome de determinadas conceções dos direitos humanos, estabelecem-
se condições de morte para os que não se inserem no perímetro de
proteção estabelecido pelo funcionamento do sistema capitalista. A
política que se utiliza é aquela que defende os direitos humanos, à
custa de violar a dignidade e a vida das pessoas que não se adaptam à
lógica do sistema de mercado a que estão sujeitas. [ ] Basicamente, o
preconceito ou o erro em que incorre o Ocidente é o de reduzir a
capacidade de criar, desenvolver e desfrutar dos direitos a
determinados grupos humanos, negando a possibilidade de outros grupos
humanos deles desfrutarem. [ ] Lutam [os imigrantes] já não apenas
pela liberdade e pela igualdade, mas, principalmente, pela vida e por
uma sociedade em que haja lugar para todos. Mas como põem em perigo a
ordem da convivência dos países do Norte, são vistos como uma ameaça
que há que controlar. [ ] São tolerados unicamente os comportamentos
que são afins à lógica do sistema (2007: 81).
As políticas de fronteira no Espaço Schengen tendem, cada vez mais, a ser
ditadas pelo medo e pelo controlo direcionado para aqueles que aparentemente
não lhe pertencem, os quais, segundo alguns, representam uma ameaça,
constituindo este um dos sentimentos mais generalizados nos discursos da
maioria dos partidos de direita nos vários países da União Europeia. Um ato de
identificação implica que a coisa de que se fala seja situada numa categoria '
esta afirmação de Lévi-Strauss (1992: 21) adquire particular significado neste
contexto europeu, em que o que se pretende incluir numa categoria é um sujeito
que representa, na perspetiva das autoridades, uma potencial ameaça para a
presumida segurança interna. Seja refugiado ou imigrante, é sempre este sujeito
que passa a ser submetido a escrutínio, por não pertencer a uma cidadania
nacional reconhecida, localizada e integrada nos supostos valores ocidentais.
Este ciclo de medos acaba por gerar políticas cada vez mais restritivas face a
perigos renovados, passando os imigrantes e/ou refugiados a ser filtrados pelos
sistemas de controlo e retenção (centros de retenção no interior de aeroportos,
e campos para imigrantes, onde não existe distinção entre imigrantes e
requerentes de asilo, quer dentro do espaço europeu, quer, por exemplo, em
Ceuta, no Norte de África). Contudo, ao erguerem-se barreiras jurídicas no
espaço onde antes existiam fronteiras físicas, os Estados europeus acabam por
contribuir para a proliferação de redes de traficantes (economias paralelas
que exploram a fragilidade alheia), cada vez mais numerosas e poderosas nas
fronteiras terrestres e marítimas da Europa. Bauman refere:
Pode atrair-se a atenção do público para os esforços de separar,
entre os refugiados e as pessoas em busca de asilo, os autênticos'
dos espúrios' e de identificar potenciais mafiosos e parasitas da
proveniência' entre os que, após um exame high-tech e um meticuloso
exame seletivo, já tiveram permissão de entrar no país. Para coroar
tudo isto, como observou Rory Carroll, ao fechar virtualmente todas
as formas legais de entrada, a Europa garantiu que os forasteiros não
tenham escolha senão procurar o traficante. Este estabelece um preço
com base na procura, no custo e no risco. A estratégia da Europa é
tornar esse custo e esse risco o mais altos possível'. Novas e amplas
áreas criminais são assim evocadas, proporcionando aos governos muito
trabalho para proteger a ameaçada segurança dos seus cidadãos. O
continuummigração-crime-segurança' (expressão de Goody) permite aos
Estados europeus encontrarem uma nova e poderosa legitimação na nova
mistura de policiamento com políticas de imigração (2006: 119).
Na experiência de trabalho de campo com refugiados e requerentes de asilo não
houve nenhuma entrevista ou narrativa de história de vida que não relatasse as
avultadas quantias exigidas pelos traficantes de seres humanos (frequentemente
donos de embarcações, camionetas ou outros meios de transporte).[16] Com os
sistemas securitários cada vez mais sofisticados (por exemplo, através do
Eurodac[17] e da Frontex) a União Europeia acaba por, na prática, agir contra
os princípios consagrados na Convenção de Genebra, sendo cada vez em maior
número os refugiados que ficam ameaçados pelos próprios Estados que juraram
protegê-los em vez de ficarem esses Estados ameaçados pelos refugiados.
Outra conclusão que se pode retirar é que a maioria dos Estados que assinaram a
Convenção de Genebra tem uma conceção muito limitada do que implica proteger.
Segundo o que aí está consagrado relativamente ao estatuto de refugiado, todos
têm direito à proteção contra o refoulement, mas também devem ser-lhes
garantidos outros direitos, como, por exemplo, o direito à liberdade religiosa,
à justiça, à educação e à isenção de penalização por entrada ilegal, pelo facto
de se encontrarem num país de asilo.
Até este momento, fez-se uma análise crítica ' ainda que breve ' ao modo como
os direitos humanos, e em particular os direitos dos refugiados, são assumidos
pelos Estados que assinaram a Convenção de Genebra. Pretendo aclarar que existe
um longo e atribulado caminho que separa o que está escrito nas leis e o que é
vivido quotidianamente pelos atores sociais aos quais essas leis se deveriam
aplicar. Isto é, a retórica consagrada nas leis defende os Estados enquanto
produtores de legislação, mas não defende necessariamente os sujeitos alvo
dessa proteção.
Em Portugal, tanto no passado como no presente, os refugiados estão longe de
poder usufruir do reconhecimento social que é dado aos imigrantes, no contexto
da sociedade portuguesa, em parte pelo seu número irrisório face a estes, tal
como referi anteriormente.[18] Para que possamos entender a sua quotidianidade
quase invisível, é necessário conhecer a sua expressividade numérica (quadro_1)
e também estabelecer algumas comparações com países vizinhos, nomeadamente
Espanha e França. Incluiu-se também a Holanda no quadro 1, para que haja uma
perspetiva mais apurada de como o número de refugiados ou de pedidos de asilo
está relacionado não com o tamanho do país, mas com as políticas coloniais ou
pós-coloniais e também com as políticas de controlo de fronteiras na
atualidade.
Salienta-se, de igual modo, a discrepância existente entre o número de pedidos
de asilo e o número real de resoluções equivalentes à atribuição do estatuto de
refugiado. Portugal é um país cada vez menos atrativo em questões de
empregabilidade e condições de vida, de acordo com os requerentes de asilo
entrevistados no contexto da minha investigação. Para além desta razão existem
outras, das quais se destacam a quase inexistência de redes familiares e
sociais de apoio que funcionem como apelo à reunificação familiar e a ausência
de linhas aéreas diretas entre os países de proveniência dos requerentes de
asilo e Portugal, o que dificulta a fuga por via aérea diretamente para este
país.
Deve notar-se também a diversidade da origem dos que requerem asilo em
Portugal. No ano de 2010 foram registados 160 pedidos de indivíduos com origens
tão diversas como Somália, Sudão, Serra Leoa, Iémen, Congo, Guiné Conacri,
Paquistão, Irão, Nigéria, Colômbia, Mianmar, entre outros. Apenas 21 dessas 160
pessoas provinham de países com os quais, por razões históricas, Portugal tem
pontes aéreas diretas, como por exemplo Angola e Guiné-Bissau. Sublinha-se
ainda que requerer asilo não significa garantir a sua obtenção. São muito raros
os casos de requerentes de asilo provenientes das ex-colónias que conseguem
obter com êxito o estatuto de requerente de asilo por razões humanitárias.
Coloca-se portanto a hipótese de que exista um certo evitamento, por parte do
Estado português, de potenciais conflitos diplomáticos entre países com os
quais Portugal tem boas relações políticas e económicas, como é o caso de
Angola.
Outra questão a salientar é que a atribuição de asilo a pessoas originárias das
ex-colónias portuguesas se torna mais difícil quando o pedido apresentado pelo
requerente é justificado, na primeira entrevista com o SEF, com razões de
perseguição devida a guerra ou conflito. Neste caso, os pedidos de asilo
provenientes de Angola, por exemplo, apenas foram apresentados com mais
expressão nos anos em que existia uma guerra civil naquele país (ou ainda os
seus efeitos), o que justifica, por exemplo, que em 2002 tivessem requerido
asilo 33 indivíduos, número que veio a decair consideravelmente nos anos
posteriores. Para apurar com precisão a relação entre o pedido de asilo e a
atribuição do estatuto de residente por razões humanitárias, seria necessário
consultar os processos correspondentes no SEF, algo que nunca me foi permitido.
Contudo, sugere-se a hipótese de que a atribuição desse estatuto de requerente
de asilo (ou residente por razões humanitárias) privilegie os fatores
relacionados com a situação política do país de proveniência, mais do que
outros motivos também consagrados na Convenção de Genebra, como é o caso da
perseguição religiosa, da filiação num grupo social, ou da raça.
O PAPEL DA ANTROPOLOGIA NA DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS
A falta de informação relativa a Portugal não permitiu analisar, no transcurso
da investigação, se estiveram salvaguardados os direitos dos que passam por
este processo fora dos radares das ONG durante longos períodos, como por
exemplo os requerentes de asilo menores, que permanecem nos centros de retenção
dos aeroportos mais tempo que o legalmente previsto. As constantes violações
dos direitos humanos (Farmer 2010; Green 1999; Galeano 1973; Messer 1993) não
são fruto de um acidente ou de um acaso mas, pelo contrário, fazem parte dos
sintomas de patologias profundas associadas ao poder (Farmer 2005), em
relação direta com as condições sociais que determinam quem sofre abusos e quem
está protegido deles. A própria Declaração dos Direitos Humanos torna-se
ineficaz quando os direitos políticos e económicos das populações fragilizadas
são mera retórica legislativa.
Como refere Messer (1993), a antropologia tem dado algum contributo crítico
para a discussão destes temas, propiciando uma perspetiva transcultural (cross-
cultural), através do questionamento sobre o que são direitos, quem é
considerado pessoa ou ser humano verdadeiramente elegível para usufruir
desses direitos, ou ainda sobre os abusos sucessivamente cometidos contra os
mesmos. A questão dos direitos humanos tem sido ampliada através das reflexões
sobre os discursos internacionais, que passaram a incluir direitos coletivos ou
indígenas, com detalhes mais específicos sobre direitos económicos, sociais e
culturais. Todavia, não tem sido fácil a abordagem desta temática por parte dos
antropólogos. Neste campo, Farmer (2004) não os isenta de crítica,
considerando-os frequentemente cegos na defesa dos direitos humanos e na
interpretação daquilo que denomina violência estrutural. Segundo este autor,
não é por se demonstrar, através de seminários e conferências, a falha no
sistema que permite atentados aos direitos humanos que se altera a realidade
existente. Já Michel Agier (2008) apela inclusivamente à necessidade de uma
solidariedade pragmática, ou orgânica, num campo em que a investigação e o
ensino são já insuficientes.
Uma das dificuldades colocadas à antropologia reside no facto de existirem, por
vezes, motivos legais objetivos que impedem a investigação etnográfica no
terreno político em que os direitos humanos são violados.[19] A abordagem desta
temática tem sido incluída num campo mais vasto da chamada engaged anthropology
e da antropologia médica crítica (Scheper-Hughes 1995, 1996; Scheper-Hugues e
Lock 1987), levadas a cabo principalmente através de investigações sobre
temáticas como o HIV/sida, os sem-abrigo, a pobreza e a fome, ou ainda sobre
questões que envolvem imigrantes e refugiados. No caso da minha investigação,
esta abordagem constituiu um desafio para a ética do trabalho de campo, em
particular por este ter sido realizado, numa boa parte, em contexto
institucional. O trabalho etnográfico está dependente (pelo menos parcialmente)
da boa vontade das instituições, existindo a possibilidade real de conflito
entre o apoio (dado pela investigadora) às reivindicações pragmáticas dos
grupos investigados ' os utentes dessas instituições ' e os contornos legais e
políticos que envolvem os governos e as instituições que têm o ónus da proteção
desses utentes, dentro de um determinado quadro legal.[20] Coloca-se assim um
dilema difícil de resolver e que circula entre escalas diferenciadas: (a) a
local, que oscila entre a lógica da investigação, a lógica das instituições
(CPR, hospitais, centros de saúde, centros de emprego) e a lógica dos utentes
desses serviços/sujeitos de investigação; (b) a nacional, onde se incluem as
instituições responsáveis pelas políticas de asilo portuguesas (por exemplo, o
SEF); (c) a transnacional, através das políticas europeias de asilo (Frontex,
Eurodac). Uma das formas possíveis de entendimento destas lógicas, por parte da
investigação, reside na análise da retórica produzida pela legislação que
assume a proteção dos grupos mais vulneráveis (neste caso, os refugiados),
confrontando-a com a realidade vivida por esses mesmos grupos, em resultado das
intervenções institucionais. A pesquisa etnográfica e consequente produção
científica ou ainda o envolvimento militante, através da empatia com as causas
defendidas por essas populações ditas vulneráveis, ou até a tradução de
documentos oficiais e esclarecimento sobre o modo de funcionamento das
instituições podem configurar-se como formas de intervenção ativa na defesa dos
direitos de cidadania dessas populações, frequentemente dependentes e
condicionadas pelas instituições totalitárias. Tal como relembram Fassin e
Rechtman: É no ponto em que a violência desaparece do nosso campo de visão que
se torna crucial o trabalho da antropologia (2009: xiii).
A este propósito saliento ainda a ausência, aquando da realização da pesquisa,
de dados disponíveis para consulta (na página web do SEF) sobre as razões que
levam à suspensão da autorização de residência. A relutância do SEF em prestar
informações reflete-se também na relação com os que dele dependem, como se pode
perceber no depoimento de um requerente de asilo, menor, entrevistado durante a
realização do trabalho de campo e que demonstra, de certo modo, a desorientação
por ausência de informação sobre os seus direitos, aquando da chegada ao
aeroporto e após o pedido de asilo:
Estive lá muitas semanas [no Centro de Retenção do aeroporto]. A
comida era pouca e má, não dormia nada porque tinha medo que alguém
chegasse e me mandasse de novo para a minha terra. Éramos quatro ou
cinco no mesmo quarto, mas não falávamos a mesma língua, não nos
compreendíamos. Também não tínhamos janelas. Aí fizeram-me várias
entrevistas. Sempre as mesmas perguntas sobre a minha família e os
problemas na minha terra e como tinha chegado aqui. No dia 5 de julho
de 2007 chegaram dois polícias, que disseram: T, você pode entrar em
Portugal'. Daí pagaram-me um táxi para a Bobadela. Fiquei muito
assustado porque não sabia para onde ia.
A ausência de orientações ou informação detalhada desrespeita os direitos dos
requerentes e perpetua o sobressalto a que estão sujeitos e a que a fuga dos
seus países deveria pôr fim. Por vezes, as políticas de asilo permitem que esse
sobressalto persista mesmo depois de se ter o direito de asilo assegurado:
Eu antes sentia-me bem, nunca tive problemas. Mas agora, sinto-me
mal. O meu corpo está fraco. Não consigo dormir nem comer. Estou
sempre a pensar como é que vou conseguir trabalho para mandar
dinheiro para a minha família que ficou lá. Eu tinha uma boa vida até
que tive que fugir para não me matarem Ninguém me dá trabalho aqui.
A surpresa pela constatação empírica da precariedade atual das suas vidas leva-
os a pôr em perspetiva o passado, o presente e até o futuro. O asilo,
anteriormente considerado como a única solução para a recuperação da liberdade
e dignidade perdidas, revela-se afinal um lugar inseguro, imprevisível e até
(de novo) ameaçador. As promessas jurídicas de proteção não correspondem, de
todo, à realidade quotidiana dos que vivem em situação de dependência forçada:
O subsídio[21] que me dão não dá para pagar o quarto, comer e pagar
os transportes para andar à procura de trabalho. Às vezes, penso:
fugi das balas, mas aqui morro todos os dias mais um bocadinho. De
que me serve ter asilo se não consigo sobreviver com dignidade? Já
pensei em pedir asilo numa prisão. Aí temos cama e temos comida A
liberdade não me serve de nada, se não tenho trabalho nem dinheiro
para viver Fazem de nós vítimas à força.[22]
PARA ALÉM DA RETÓRICA JURÍDICA
A dificuldade em entender os contornos de uma situação jurídica que passa
abruptamente de residente por razões humanitárias para imigrante ilegal ou
indocumentado agrava a permanência e dificulta a integração em Portugal dos
requerentes de asilo.[23] Entende-se, pois, que se sintam desorientados e
tenham uma perceção ambígua de um país que, num primeiro momento, os autorizou
a entrar, reconhecendo-os como pessoas vítimas de perseguição e como tal
protegidas pela Lei de Asilo e, num segundo momento, os trata como imigrantes
ilegais, aparentemente sem direitos de cidadania. Saliente-se que a passagem de
um estado para outro não depende necessariamente de qualquer infração cometida
pelo requerente de asilo, mas, sobretudo, de um aparelho burocrático de
avaliação de requerimentos que, por não ser capaz de analisar os processos
atempadamente, empurra o requerente para um sistema de invisibilidade
forçada,atribuindo-lhe um recibo provisório que atesta o pedido de renovação de
documentos perante o SEF, mas que não é formalmente reconhecido pelas
instituições portuguesas (pelas potenciais entidades empregadoras, por
exemplo).[24] A dificuldade acrescida em alugar quarto ou casa, em encontrar
empregador que lhe autorize o trabalho formal, ou ainda a continuidade do
subsídio da Segurança Social (SS) ou da Santa Casa da Misericórdia (SCM) são
consequências imediatas de um estatuto indefinido socialmente, cuja única
responsabilidade cabe às instituições oficiais, como o SEF.
Pela existência de um sistema informático que liga o SEF às diversas entidades,
nomeadamente a SCM e a SS, assim que um requerente de asilo entra no labirinto
do pedido da renovação de documentos é instantaneamente sinalizado por estas
duas entidades, que suspendem de imediato o subsídio mensal vital para a sua
sobrevivência:
Fui à Santa Casa perguntar qual a razão por que este mês não recebi
o subsídio. Nem me avisaram que não ia receber nada este mês. O que é
que eu vou fazer? Como é que pago o meu quarto? Como é que vou pagar
comida para me alimentar? A senhora da Santa Casa disse-me que o
subsídio foi suspenso porque já não tenho papéis. Mas porque é que
não tenho papéis? Os meus papéis acabavam em 19 de fevereiro de 2010.
Eu sabia disso, por isso, a partir de novembro de 2009, comecei a ir
ao SEF para pedir a renovação do documento de residente por razões
humanitárias'. Fui lá várias vezes. Um dia lá no SEF disseram-me que
não era assim, que tinha de esperar. Que eram eles que marcavam a
data da entrevista para começar a renovação do documento. Ligaram-me
um dia. Sabe para que data? Para 18 de fevereiro de 2010. Os meus
documentos acabavam no dia seguinte! Estamos em junho e ainda não
tenho os documentos renovados. Deram-me um papel verde com a validade
de 30 dias, mas este papel não serve para nada. Já tinha uma promessa
de trabalho, mas quando mostrei ao meu futuro patrão este documento,
ele disse-me que isto não servia para nada porque não provava que eu
estava legal. Se Portugal nos dá asilo, então porque é que não nos
deixa integrar? Estão à espera que a gente desapareça, morra ou vá
para a prisão? Afinal, que asilo é este que não nos protege nem nos
deixa seguir o nosso destino neste país?[25]
Através destas afirmações, podemos verificar que estamos, uma vez mais, perante
uma situação em que a assistência jurídica e social prestada aos refugiados
pelas instituições os empurra frequentemente para uma situação de exclusão e
sofrimento (Kleinman, Das e Lock 1997; Bauman 2005).
A pouca expressividade numérica dos refugiados tem também consequências diretas
no modo como veem a sociedade portuguesa e são vistos por ela. O facto de serem
encaminhados para o Centro de Acolhimento para Refugiados (CAR)[26]
imediatamente após o pedido de asilo dar entrada no SEF, e o facto de este
centro estar localizado fora de Lisboa, numa freguesia no município de Loures
(Bobadela), fazem com que os refugiados procurem casa ou quarto para alugar nas
ruas adjacentes ao CAR. Esse confinamento a uma determinada área muito
localizada contribui para que raramente se saiba da existência de refugiados
noutros municípios ou regiões do país, e faz com que as instituições fora da
região de Loures e a sociedade portuguesa, de um modo geral, apenas ouçam falar
desta população nos meios de comunicação social, em notícias normalmente
associadas a êxodos de zonas de conflito em países longínquos, que os retratam
de um modo estereotipado. As vidas quotidianas, as dificuldades ou êxitos
pessoais que vão obtendo já em território nacional ficam, contudo, fora dos
radares da comunicação social e, consequentemente, da sociedade. Uma das
queixas recorrentes dos refugiados nas reuniões da sua associação, recentemente
formada,[27] refere a revolta por os seus documentos (enquanto requerentes de
asilo) não serem reconhecidos pelos técnicos da SS fora de Loures ou Lisboa.
Essa revolta está expressa nesta frase pronunciada regularmente: Mas afinal
quem nos deu asilo? Portugal ou Loures? Sempre que [os técnicos] olham para os
nossos documentos, desconfiam de nós como se lhes estivéssemos a mentir
A mesma invisibilidade que os coloca à margem do sistema político e social tem
um impacte particularmente significativo nas limitações de acesso ao sistema de
saúde a que têm, por lei, direito. Isto é tanto mais dramático quanto o
sofrimento a que muitos estão sujeitos é tanto mental (frequentemente
traumatizados por torturas ou testemunho direto de assassinatos de familiares e
amigos) como social. Trata-se de um sofrimento originado pelos traumas que
viveram no passado, mas também pela angústia face a um presente do qual
desconhecem os contornos sociais e culturais. Configura-se assim aquilo que
anteriormente referimos como violência estrutural (Farmer 2004; Das e
Kleinman 2000) e que tanto pode ocorrer repentinamente, no caso de um conflito
armado, como paulatinamente, quando indivíduos ou comunidades são alvo de
discriminação sistemática já no país de asilo que prometeu protegê-los. Isto
acontece de cada vez que não lhes são disponibilizados meios de mediação
linguística e cultural para interagir com as mais variadas instituições, sempre
que lhes é recusado um emprego que lhes permita a integração ou, de um modo
mais pragmático, sempre que não lhes são dados os meios necessários para
alugarem uma casa ou um quarto que lhes sirva de abrigo.
Na perspetiva da antropologia médica crítica, a investigação destas temáticas
(minorias, imigrantes, refugiados) a partir da observação etnográfica ajuda a
colocar os sujeitos como eventuais agentes políticos, construtores de uma
epistemologia própria, e não apenas como um conceito. Deste modo, os
discursos jurídicos e sociais mais complexos e múltiplos necessitam de ser
desconstruídos à luz das ciências sociais. Podemos afirmar que estamos no plano
das normatividades fragmentadas, inerentes aos processos político-jurídico-
sociais existentes no contexto de cada Estado, e na relação entre Estados.
Seguindo Habermas (1997), que levantou a questão da necessidade de relação
entre direito e ciências sociais na obra Direito e Democracia, diremos que são
as normatividades produzidas no campo jurídico que começam agora,
particularmente em Portugal, a ser questionadas pela investigação académica nas
ciências sociais e humanas, mas também, e com maior precisão, pelo ativismo
militante de organizações sociais de base. Por um lado, refere-se a necessidade
de reconhecer e legitimar a narrativa dos indivíduos que, até há bem pouco
tempo, eram (e em alguns casos, continuam a ser) marginais ao sistema e que
falam a partir das suas experiências e carências quotidianas. Por outro lado,
existe a imperatividade dos princípios legais que permite, ou proíbe, a sua
integração no Estado-naçãoreconhecendo-lhes, ou não, o papel de cidadãos de
pleno direito. Coloca-se, assim, a pertinência de dar sentido ao social através
da observação das práticas do quotidiano, destacando as contradições entre o
sistema jurídico e as dificuldades da vida do dia a dia. As normatividades
jurídicas, nomeadamente as que regem o acesso destes indivíduos à habitação ou
à saúde, por exemplo, carecem de maior flexibilidade e abertura à subjetividade
inerente à multiplicidade de perspetivas individuais, culturais, mas,
sobretudo, sociais e políticas.
No espetro do asilo em Portugal, a maioria dos refugiados é também vítima da já
referida violência estrutural (Farmer 2004), no sentido em que é
sistematicamente condicionada por um sistema político, económico e
institucional ' onde se podem incluir instituições filantrópicas de
assistencialismo social. Ao pretenderem fazer o bem através da ação social,
estas instituições extrapolam frequentemente as suas funções, acabando por
controlar a vida quotidiana, em particular dos requerentes de asilo. Através da
coação direta ou velada, causam-lhes mais danos, uma vez que não estão
preparadas para, junto deles, encontrarem soluções para o seu sofrimento. Ao
negarem reconhecê-los como agentes ativos de mudança ' ou seja, ao não
reconhecerem a sua agencialidade ', retiram-lhes o direito a fazerem uso
efetivo das instituições que, não estando suficientemente preparadas para
integrar a diferença, acabam por remetê-los para um silêncio sofredor,
condicionando-os sistematicamente a um de dois papéis: o de vítimas das
violências passadas que os tornaram impotentes e passivos, ou o de oportunistas
que pretendem usufruir abusivamente de um sistema de proteção social.
A vitimização dos refugiados é também, portanto, um produto da intervenção
humanitária, em particular no assistencialismo social, tal como afirmam
Pussetti e Brazzabeni (2011: 471). Nega-se-lhes o reconhecimento da capacidade
de resiliência, negam-se-lhes os conhecimentos e até as capacidades pessoais e
profissionais que possuíam nos seus países de origem e, portanto, a capacidade
para intervirem ativamente na sociedade, silenciando-lhes as vidas, as
narrativas de sofrimento e os discursos de reivindicação social. Em suma, e
como escreve Agamben (1997), os indivíduos em sofrimento são reduzidos à vida
nua. Como contraponto, ao menor sinal de tentativa de organização coletiva com
vista à representatividade e reivindicação em face de tratamentos abusivos por
parte de alguns inspetores no local de atendimento a refugiados no SEF, os
requerentes de asilo são ameaçados de expulsão, por alegadamente colocarem em
causa a segurança pública. Tal aconteceu em 2010, quando um pequeno grupo de
refugiados decidiu apresentar-se coletivamente no serviço de atendimento do
SEF, exigindo explicações plausíveis para o atraso sistemático com que eram
tratados os seus documentos e que os impedia de trabalhar. Após ter sido
exigido a cada um o preenchimento de uma lista com nome, contacto e assinatura
numa folha com um texto escrito em português ' algo intimidante, uma vez que a
maioria não sabia o que estava a assinar por não entender o português ', foi
identificado o mentor da reivindicação para, de seguida, lhe ser entregue um
documento que o impelia a sair do país num prazo de trinta dias. Esta ameaça
acabou por não ser cumprida, uma vez que foi alertado o Conselho Português para
os Refugiados, que se supõe ter tido um papel interveniente a favor do
requerente, evitando-se por isso a aplicação desta medida drástica. Este facto
leva-nos a considerar que os refugiados são vistos pelas instituições de
assistencialismo e controlo como uma categoria social sem liberdade para
usufruir dos seus direitos de cidadania, relegada para uma existência anónima e
apolítica, fortemente dependente de decisões alheias que determinarão o seu
percurso na sociedade de asilo.[28]
O CARÁTER POLÍTICO DA ESPERA
Fassin e Rechtman usam o termo governamentalidade. Para eles, este conceito
aplica-se a
[ ] instituições, procedimentos, ações e reflexões que têm a
população como objeto, que extravasam a questão da soberania e
complicam a questão do controlo, que relacionam o poder e a
administração do Estado com a subjugação e subjetivação dos
indivíduos, que assentam na economia política e no policiamento
tecnológico (2009: 214).
A limitação da capacidade de ação dos sujeitos refugiados à entrada do país de
asilo e já em contexto de proteção é também marcada pela espera. A espera
adquire um caráter político e dela são vítimas todas as populações que dependem
economicamente das ajudas dos sistemas estatais. No caso dos requerentes de
asilo, a espera começa na avaliação do pedido nos centros de retenção de
fronteira, como nos aeroportos, por exemplo, podendo tardar várias semanas,
mesmo quando se trata de menores não acompanhados e ao contrário do que está
previsto na lei. Prolonga-se depois pelos meses em que estão
institucionalizados no Centro de Acolhimento para Refugiados e onde esperam
sistematicamente pelo atendimento das assistentes sociais, pela consulta no
centro de saúde, ou pelo emprego vagamente prometido que idealmente lhes iria
permitir sair da dependência dos sistemas assistencialistas. Carolina
Kobelinsky (2010), no livro L'accueil des demandeurs d'asile, chama a atenção
para o caráter político da espera imposta aos requerentes de asilo:
A espera constitui uma espécie de grelha de leitura a partir da qual
se torna possível examinar o tratamento quotidiano dos requerentes de
asilo. [ ] Por política da espera entendo igualmente a relação
estreita entre a experiência da espera e o exercício do poder (2010:
22).
A obrigação da espera pode também ser interpretada como uma forma de imposição
de submissão. O tédio que ela provoca, numa perspetiva de saúde mental, acaba
por ser prenúncio de conflitos individuais e coletivos, intensificados por um
forte sentimento de inutilidade.[29] Todos os refugiados com quem trabalhei
eram unânimes em afirmar o seu desespero pela condição a que eram submetidos.
Os primeiros dias passados no centro de acolhimento eram encarados com alguma
sensação de alívio em relação ao que tinham vivido até ali. Mas este alívio era
vivido sem plenitude, uma vez que sabiam que, após a saída obrigatória desse
lugar, tudo poderia tornar-se mais difícil, pela ausência de apoios permanentes
por parte do CPR. O futuro configurava-se, pois, como uma enorme incógnita. O
centro, apesar de ser reconhecido pela maioria como um abrigo, não deixava de
ser um lugar de incertezas e dependências, uma fronteira simbólica e espacial
em relação à sociedade portuguesa, um lugar entre parêntesis num contínuo de
fuga e luta por um reconhecimento na sociedade de asilo, onde apenas a
agencialidade poderá dar lugar a caminhos autónomos e dignificantes longe do
sofrimento social. Segundo os autores Kleinman, Das e Lock (1997), o sofrimento
não pode ser entendido de modo independente das dinâmicas sociais e dos
interesses políticos e económicos que o originam. É necessário, portanto, um
olhar crítico sobre as relações de poder que originam este sofrimento, e este
deve assentar na análise das experiências de vida e das narrativas dos sujeitos
vitimizados pelas políticas sociais.
UMA MUDANÇA DE PARADIGMA
Liisa Malkki (1995) refere que a vitimização dos refugiados é um produto da
intervenção humanitária. Uma das consequências da vitimização entre os
refugiados hutu da Tanzânia, estudados por esta autora, é também a
despolitização da categoria de refugiado, despersonalizando as especificidades
por detrás de cada pessoa, associando-lhes o papel generalizado de vítimas sem
voz. De acordo com Malkki, as práticas humanitárias tendem a passar por cima
das vozes dos refugiados, e as imagens difundidas pelos meios de comunicação ou
pelas campanhas humanitárias, em particular nos campos de refugiados, são
igualmente responsáveis pelo silenciamento das suas vozes e dos seus discursos.
Uma das propostas de Turton (2003) e Bauman (1998) é a de focar a abordagem
destes migrantes não necessariamente nas suas experiências e necessidades '
como maioria pobre que está preparada para correr riscos tremendos de modo a
escapar ao desconforto da existência localizada' (Bauman 1998: 2) ', mas,
pelo contrário, em nós próprios. Na conceção apresentada por este autor, os
migrantes forçados ' refugiados e requerentes de asilo ', ao contrário dos
imigrantes, esperam algo de nós. Solicitam-nos cidadania, solicitam-nos
proteção por razões humanitárias, solicitam-nos asilo (mesmo sem que tal seja
entendido pelos próprios como algo que corresponda a uma categorização
jurídica), num contexto que se autodefine como sociedade democrática e liberal
e, para mais, defensora dos direitos humanos. Ou seja, levam-nos a confrontar-
nos com as nossas próprias assunções ideológicas, morais e éticas e com as
correspondentes responsabilidades que retoricamente assumimos quando
enfrentamos pessoas estrangeiras em situação de aflição e sofrimento: Por
outras palavras, eles levam-nos a questionar quem somos ' o que é ou deve ser a
nossa comunidade moral e, em última instância, o que significa ser humano
(Turton 2003: 8).
Em conclusão, diremos que se afigura como necessária e urgente uma mudança de
paradigma nas políticas públicas e na sociedade como um todo. Em lugar de se
olhar para os refugiados exclusivamente do ponto de vista da vitimização, do
assistencialismo ou até do logro, é necessário garantir-lhes o direito ao
reconhecimento enquanto cidadãos, através do seu próprio envolvimento político
e relacional. Não existe uma verdadeira relação com as estruturas políticas e
sociais que juridicamente estão incumbidas de dar apoio aos refugiados ou,
mesmo quando existe, os procedimentos burocráticos empurram-nos frequentemente
para situações liminares próximas da ilegalidade. O reconhecimento da sua voz
ativa e a necessidade do seu envolvimento nas ações de integração são o meio
mais eficaz para a realização de uma vida digna onde se respeitem na realidade
' e não só na lei ' os direitos humanos. É necessário criar sociedades baseadas
na escuta, no diálogo e no respeito pelos direitos dos cidadãos ' ou seja,
sociedades plurais onde os imigrantes, refugiados e autóctones criem laços e
trocas reais e simbólicas, produtivas para todos, sem recurso a manipulações de
acordo com os interesses políticos ou económicos dos Estados-nação. E isso
implica a transformação profunda das instituições e da nossa relação com elas.