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EuPTHUHu0873-65612014000100006

EuPTHUHu0873-65612014000100006

National varietyEu
Country of publicationPT
SchoolHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN0873-6561
Year2014
Issue0001
Article number00006

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Parecem indianos na cor e na feição: a lenda negra e a indianização dos portugueses Parecem indianos na cor e na feição: a lenda negra e a indianização dos portugueses "They look like Indians in their color and feature": the "black legend" and the indianization of the Portuguese Ângela Barreto Xavier* *Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa, Portugal. E-mail: angela.xavier@ics.ul.pt

ABSTRACT This article focuses on the linkages between mimesis, Indianization of the Portuguese established in India from the 16th century, and the development of a black legend on the Portuguese empire. In which ways the going native of the Portuguese was perceived and presented, internally and externally, as undesirable? How did this perception contributed to produce a negative idea of the Portuguese behavior in colonial context? And in which ways the going native was associated with the conviction that the Portuguese were unable to govern themselves (since they could not control their passions, their inner nature), and therefore, incapable of governing the others? The Travel Account of the Voyage of the Sailor Jan Huyghen van Linschoten to the Portuguese East India, first published in Holland in 1596, is a good place to start with in order to discuss these questions. By analyzing Linschoten's treatise, as well as its inspirations and reverberations in the next centuries, I intend to contribute to the making of a genealogy of the black legend of the Portuguese empire, identifying its origins in the first decades of the 16th century.

Keywords: mimesis, empire, black legend, Portugal, India.

Partindo do pressuposto de que existem muitas semelhanças entre as dinâmicas da mimesis e da nativização (going native), neste ensaio procurarei mostrar de que forma é que a indianização dos portugueses (entendida, precisamente, como uma forma de nativização) foi sendo apresentada como algo de indesejável, tanto interna quanto externamente, contribuindo para gerar uma imagem negativa dos portugueses em situação colonial, alimentando, por essa via, a constituição da sua lenda negra.[1] Também me interessa saber como é que essa nativização foi associada à ideia de que os portugueses eram incapazes de se governarem a si mesmos (i.e., de controlarem as suas paixões, de autodisciplinarem a sua natureza) e, por conseguinte, de governarem os outros, um outro tópico recorrente na narrativa da lenda negra.[2] A lenda negra portuguesa participa, como é sabido, de uma lenda negra mais vasta, coroada pela Espanha, mas abrangendo todo o Sul da Europa.[3] À semelhança da lenda espanhola, os argumentos inicialmente utilizados para formular a lenda negra portuguesa identificam-se, em primeiro lugar, na reflexividade interna quinhentista. Apenas mais tarde os mesmos argumentos foram adotados, sintetizados, sistematizados e disseminados por agentes de potências rivais (Holanda, Inglaterra, França), favorecendo a emergência de um conjunto de regras mais ou menos estáveis que governaram a representação pública destas regiões, suas gentes e processos históricos. Em contraste com a lenda espanhola, comandada pela tópica da crueldade e do sangue, nas explicações providenciadas a partir de finais do século XVI sobre o império português sobressaíram temas como a facilidade com que os portugueses se envolviam com as populações dominadas e a corrupção do seu aparelho político- administrativo (Chaturvedula 2010; Boogart 2003; van Veen 2000). No que diz respeito ao primeiro aspeto, os portugueses vieram a ser acusados de imitar as populações indianas, não desposando mulheres locais, como adotando muitos dos seus comportamentos. Para muitos, estas escolhas revelavam que os portugueses não tinham domínio de si, sendo, por consequência, incapazes de governarem os outros, o que explicava o seu rápido declínio imperial.

Ironicamente, este mesmo tema da destreza social e sexual dos portugueses tornou-se, no século XX, um dos principais ícones do oposto da lenda negra, sendo convocado para explicar a sustentabilidade da presença imperial portuguesa nas diferentes partes do globo. Apesar de ser constituída, também ela, por um feixe de tópicos, muitos deles alimentados pela épica, pela literatura e pela poesia, envolvendo nomes tão incontornáveis para a construção de uma comunidade imaginada de portugueses como os de Luís de Camões, ­António Vieira, ou Fernando Pessoa, a lenda áurea assentou, em grande medida ' e graças às teorias luso-tropicalistas de Gilberto Freyre e sua receção interna ', na exaltação dos comportamentos que os portugueses tendiam a ter nos trópicos, capazes, como nenhum outro europeu, de estabelecer diálogos produtivos com os povos que colonizavam, permitindo ao regime salazarista apresentar o imperialismo português como sendo diferente dos demais (Cardão 2012; Castelo 1998; Souza 2000).

Que essa singularidade portuguesa ' a ser verdadeira ' não terá sido propriamente singular pode depreender-se da leitura do livro de Barbara Fuchs, Mimesis and Empire, no qual o mesmo cenário de diálogos produtivos em contexto colonial emerge, mas agora a partir de um conjunto de casos envolvendo espanhóis, índios, muçulmanos, e ingleses. A Fuchs interessou saber como é que mimesis e identidade se articularam em contexto colonial, quer no que dizia respeito à identidade do colonizador, quer das identidades disponibilizadas aos colonizados. Um dos objetivos de Fuchs foi demonstrar que, na época moderna, a mimesis funcionava como um instrumento que desafiava as identidades nacionais e imperiais, um mecanismo de inclusão social e uma forma de preservação da diferença face às pressões para a homogeneização ' quer pelos modos de imitação do colonizador pelo colonizado, quer pelo seu inverso (Fuchs 2001, veja-se a introdução e a conclusão).[4] O enfoque que aqui se desenvolve distancia-se tanto do luso-tropicalismo de Freyre e seus seguidores quanto do otimismo mimético de Fuchs. Ao invés, o que se explora nas próximas páginas são as tensões geradas pelas práticas da mimesis no contexto colonial indiano da época moderna, acompanhadas da preocupação com a sua regulação. Apesar de olhadas com alguma simpatia por um olhar pós-moderno, e apesar de, na Europa da época moderna, a mimesis também ser, como Fuchs notou, um dispositivo que permitia estabelecer diálogos produtivos com a diferença, as práticas miméticas em territórios coloniais podiam abrir caminho a duas situações indesejáveis para boa parte das mulheres e homens dos séculos XVI e XVII: a imitação e a dissolução da diferença entre colonizador e colonizado (o que alterava a hierarquia e a distância constitutivas da própria relação imperial, pondo em causa a sua permanência).

Com o objetivo de explorar estas questões, as páginas que se seguem obedecem ao seguinte itinerário: em primeiro lugar, o leitor é convidado a partilhar uma muito sucinta reflexão em torno da ordem da imitação e seus entendimentos na época moderna. Em seguida, providencia-se uma síntese das imagens gizadas sobre as práticas miméticas dos portugueses no Itinerario: Voyage ofte schipvaert van Jan Huygen van Linschoten naar Oost ofte Portugaels Indien, de Jan Huyghen van Linschoten, um holandês ao serviço da coroa de Portugal que residiu em Goa no último quartel do século XVI.[5] As reverberações negativas que as imagens veiculadas por Linschoten tiveram nos séculos posteriores ' e seus possíveis significados ' serão o objeto das secções seguintes.

Dada a profusão de documentação que poderia ser compulsada para fazer a genealogia de um tema tão vasto, esta reflexão tem um caráter explicitamente introdutório.[6] E mesmo correndo o risco de ser acusada de impressionismo analítico, utilizo aqui documentação oriunda de séculos muito distintos, por esta permitir uma apreensão diacrónica das modalidades que foram sendo assumidas pela lenda negra do império português. Acredito que uma visão panorâmica poderá servir de contexto a futuras discussões, permitindo regressar à análise destes processos constituintes de algum do senso comum que ainda hoje partilhamos acerca dos processos de nativização no império português.

Mimesis e imitatio na época moderna Escrever sobre experiências miméticas em contexto histórico coloca-nos perante uma variedade de problemas, o primeiro dos quais decorre da distância que se interpõe entre o objeto de investigação ' i.e., o campo lexical do vocábulo mimesis em situações pretéritas e aquelas situações em que este se manifestou ' e o conceito operativo de mimesis selecionado pelo investigador, vinculado a uma determinada teoria social sobre o papel damimesis nas organizações sociais.

Se, por um lado, é este conceito operativo que predetermina a abordagem do objeto, por outro, cabe ao investigador ser capaz de traduzir a linguagem passada, tornando visíveis as fronteiras que separam passado e presente. O exercício é tanto mais difícil quanto as palavras utilizadas são frequentemente as mesmas. Daí a utilidade dos próximos parágrafos, que visam clarificar alguns usos da categoria mimesis na época moderna.

O primeiro aspeto que importa salientar é que estes usos tiveram lugar no âmbito de um outro paradigma epistemológico, profundamente marcado pela teoria aristotélica do conhecimento, e por práticas quase irredutíveis ao nosso olhar.

Nesse contexto de grande alteridade relativamente aos dias de hoje, a mimesis tinha uma dignidade epistemológica e ética, uma ubiquidade que se foi perdendo nos séculos seguintes ' apesar de o seu restabelecimento enquanto conceito operativo recuperar, em muitos casos, sentidos anteriores (Tarde 1962). Lembrar que, depois da Bíblia, o livro que maior circulação teve na época moderna se intitulava Imitatio Christi evidencia o peso que a imitação (versão latina da mimesis) teve no período em causa, bem como o modelo que, em primeiro lugar, se devia imitar. Muitos outros títulos que utilizavam o vocábulo imitatio (sem considerar uma variação deste género, que era a literatura especular, também com enorme sucesso na época) podiam ser compulsados, de modo a corroborar esta ideia inicial, mas creio que este caso é suficientemente sugestivo para sustentar a tese que pretendo defender (von Habsburg 2011).

No início da época moderna, mais do que mimesis (transliteração da palavra grega μίμησις), era a versão latina, a imitatio, a polarizar o conjunto de teorias e práticas relativas à replicação, reprodução, e representação de ideias e comportamentos. Também diferentemente do mundo contemporâneo pós- piagetiano, no qual a conjunçãomimesis/imitatio foi relegada para um estádio propedêutico do conhecimento, até ao século XVIII estas categorias constituíram-se como as principais modalidades de conhecimento e de aprendizagem, permitindo transferir/traduzir conhecimentos e práticas e, por essa via, constituir e construir a realidade social.

Essa transferência, quer de conhecimentos quer de práticas, podia processar-se tanto de uma área de saberes para outra, quanto de uma para outra região, de uma para outra pessoa. Evocando um caso relacionado com o tema que é aqui objeto de análise, isso implicava, por exemplo, que as expansões imperiais dos cristãos potenciassem a imitação dos cristãos por aqueles que não o eram ' apesar de na prática ter significado, ainda que indesejadamente, o contrário.

Este modelo, transversal a toda a Europa da época moderna, católica ou protestante, e aqui sumarizado de forma muito grosseira, não era isento de ansiedade cultural. Apesar da sua natureza eminentemente reprodutora, a estabilidade que a ordem da imitatio tendencialmente configurava era posta em causa por uma série de fatores.

Em primeiro lugar, o próprio processo de imitação encerrava uma deslocação. A replicação de um modelo raramente era perfeita, pelo que sobrava sempre uma margem para a diferença (ideia posteriormente desenvolvida por Gabriel Tarde), podendo subverter, até ironicamente, a finalidade do processo, como Homi Bhabha inspiradamente lembrou (Tarde 1962; Bhabha 1994). Essa possibilidade era maior quando as transferências de modelos se processavam de um para outro contexto discursivo (da pintura para a poesia, do teatro para a pintura, da poesia para o teatro), ou de um para outro contexto cultural, como de Portugal para a Índia, ou da Espanha para o Peru (Greenblatt 1980; Melehi 2010).

A par desse risco ' e frequentemente engrandecendo esse risco ', erguia-se um risco ainda maior, o da imitação, a imitação de maus exemplos, ou a sátira dos bons exemplos. Esses perigos tinham levado Platão, no tratado A República, a desvalorizar a imitação enquanto instrumento de aprendizagem, que esta tinha de ser constantemente controlada de modo a evitar o contágio e, com ele, uma epidemia de maus comportamentos. É que os maus, os vilões, os inferiores, os pagãos e, em última instância, o próprio demónio (que tantas vezes se apresentava como semelhante a Deus), não eram apenas objeto de imitação no teatro e na literatura, mas também na vida real, o que tornava essa ameaça um perigo efetivo. E, como era sabido, a imitação do inferior pelo superior, do menos digno pelo mais digno, podia gerar um ciclo vicioso, e, dessa forma, alterar os equilíbrios sociais, conduzindo a transformações indesejadas um mundo que valorizava, sobretudo, a conservação.

Por fim, os próprios desafios colocados pelas variadas dinâmicas históricas podiam constituir-se como ameaças à estabilidade da ordem imitativa. São fáceis de identificar os riscos inerentes às viagens de Colombo e Vasco da Gama, e à multiplicação de sociedades não europeias em contacto rotineiro com os europeus. O fascínio que algumas delas, ou alguns dos seus costumes, geravam entre alguns cristãos podia comprometer ou até dissolver a sua identidade de partida. Igualmente perturbadora terá sido a fragmentação religiosa que a Europa experienciou no século XVI, que a partir desse momento passaram a rivalizar, de forma muito mais intensa do que anteriormente, vários modelos de cristandade, e várias formas de imitar Cristo. Ou seja, tanto no interior da respublica christiana ' com esta competição entre modelos de cristandade ', quanto no seu exterior ' onde se apresentavam modelos sociais e antropológicos alternativos ', os europeus depararam, do século XVI em diante, com uma fragmentação de possibilidades de ser que previamente não ocorria e que desafiava uma certa homogeneidade da ordem cultural preexistente. Se as regras da imitação funcionavam relativamente bem num mundo fechado, no qual os modelos a imitar eram bem conhecidos, como é que se governava a imitação num mundo móvel, com fronteiras cada vez mais porosas, povoado de pessoas e situações mais ou menos desconhecidas? De heróis a desgovernados: a crítica aos portugueses no itinerário de Jan Huyghen van Linschoten Em Os Lusíadas, Camões exalta os feitos que os portugueses de finais de quatrocentos tinham alcançado, comparando-os a egípcios, gregos e troianos, a Alexandre e a Trajano. Simbolizados por um Vasco da Gama vestido ao modo hispano, mas com roupa francesa, em tecidos venezianos carmesim, cor que a gente tanto preza, os heróis portugueses de Camões ostentavam todas as insígnias de um cristão europeu. No último canto, o poeta aconselha o rei D.

Sebastião a favorecer e a alegrar estes seus vassalos, sempre prontos a vos servir, a tudo aparelhados que não duvido Que vencedor vos façam, não vencido. Para Camões, era inquestionável a grandeza dos portugueses, capazes de superar os modelos clássicos que todos os europeus tentavam imitar. Todavia, ao pedir a D. Sebastião, no canto X, que não deixasse que os admirados ­Alemães, Galos, Ítalos e Ingleses possam dizer que são para mandados, mais que para mandar, os Portugueses, Camões recorda-nos que, na segunda metade do século XVI, quando estava a escrever Os Lusíadas, rumores negativos circulavam no espaço europeu (Camões 1983, c. I, 3.ª est., c. II, 97.ª e 98.ª est.; c. X, 152.ª est.).

Que os portugueses eram para mandados, mais que para mandar era a provável conclusão que retiraria um leitor quinhentista ou seiscentista do ­Itinerário de Linschoten, que os portugueses estabelecidos na Índia são retratados como sendo incapazes de se governarem a si mesmos.

Jan Huyghen van Linschoten era um holandês de origem católica (mais tarde convertido ao protestantismo), da região de Utreque, que partira para a Península Ibérica em 1576, tendo trabalhado entre Lisboa e Sevilha, no âmbito do comércio internacional. Sete anos depois, Linschoten viajaria para a Índia como secretário e guarda-livros do arcebispo D. Vicente da Fonseca, chegando a Goa em finais de 1583, e residindo até 1589. No regresso à Europa, ­Linschoten ainda permaneceria dois anos em Angra do Heroísmo, aportando nos Países Baixos, por fim, em 1592. Foi nessa altura que ­Linschoten transformou as suas notas de viagem em vários livros, o mais conhecido dos quais é o referido Itinerário, publicado em 1596. É provável que tenha sido então que Linschoten se converteu ao protestantismo, que o voltamos a encontrar em círculos próximos do revoltoso Maurício de Nassau, um dos principais oponentes da presença católica dos Habsburgo em territórios holandeses (­Linschoten 1997 [1596], Introdução; Boogart 2003).

Em apenas três anos após a sua publicação, o Itinerário conheceu traduções em latim, inglês e alemão, seguidas de traduções francesas e de algumas reedições holandesas. Dado o seu estatuto de primeiro livro deste tipo escrito por um europeu do Norte, o Itinerário de Linschoten tornou-se uma fonte autorizada sobre o império português na Ásia para as audiências transpirenaicas e protestantes (mas não ). Talvez isso ajude a explicar que esta tenha sido a obra sobre a Ásia que maior circulação teve na época moderna, e, para alguns, o texto fundador da lenda negra sobre o império português (Nocentelli 2007; Boogart 2003; Kamps 2001).[7] Nos quatro capítulos que dedica às populações de origem portuguesa residentes na Índia, raras são as referências elogiosas. As descrições são complementadas por uma série de gravuras que se constituem como uma extensão e interpretação da própria narrativa. O sucesso das imagens foi tão grande que estas vieram a ser publicadas à parte, com legendas extraídas do texto original, em jeito de catálogo, sob o título os Icones, habitus gestusque Indorum ac Lusitanorum per Indiam viventium (Boogart 2003).

No Itinerário, Linschoten explica que os homens portugueses eram frequentemente casados com mulheres indianas (união que daria origem ao grupo dos casados), gerando crianças mestiças, geralmente de cor amarelada. os filhos de portugueses e portuguesas nascidas na Índia chamavam-se, em alternativa, castiços, em quase tudo iguais aos portugueses, embora sejam um pouco diferentes na cor, porque tendem sempre para o amarelo. Mesmo quando não tinham sangue indiano, os filhos dos portugueses nascidos na Índia ' segundo o olhar de Linschoten ' pareciam indianos! Quanto aos filhos dos mestiços, estes eram de cor ou feição igual aos naturais da terra ou decanins. Isto significava que no terceiro grau, todos estes descendentes de portugueses parecem ser indianos na cor e na feição (Linschoten 1997 [1596]: 148).[8] Isto é,fosse pela mestiçagem física, fosse pela mestiçagem cultural, após a terceira geração, os portugueses estabelecidos na Índia dificilmente se distinguiam dos locais. Curiosamente, no capítulo dedicado aos decanins (habitantes do Decão), Linschoten, que os representa graficamente na sua nudez, uma estratégia de representação que contrapunha, a partir do vestuário, a maior ou menor proximidade ao estado da natureza, descreve-os, ao mesmo tempo, como sendo iguais aos brâmanes e baneanes na cor e na feição do corpo, sendo também estes, na feição do rosto, do corpo e dos membros, em tudo iguais aos da Europa, excetuando a cor (Linschoten 1997 [1596]: 174-177; Boogart 2003).

Espremidas as variadas semelhanças e diferenças físicas que Linschoten ­identifica entre as populações originárias e residentes na Índia (e a sua maior ou menor proximidade às populações da Europa), poder-se-ia dizer que, numa escala fisionómica, o holandês situava em lugares muito próximos brâmanes, baneanes, portugueses e europeus. Assemelhar-se a indiano na cor e na feição não parecia ser, por isso mesmo, muito grave, que muitos indianos, excetuando a cor eram em tudo iguais aos habitantes da Europa. O problema é que essa igualdade da aparência encerrava outras proximidades menos desejadas.

As mulheres de origem portuguesa, por exemplo, andavam nas suas casas com os cabelos soltos e a cabeça descoberta, e vestidas com uma camisa chamada baju, que lhes abaixo até do umbigo, e que é tão fina que se pode ver todo o corpo através dela. Para além disso, estas mulheres ostentavam muitos braceletes e manilhas nos braços, e nas orelhas tinham penduradas correntes cheias de joias e adornos. Algo de semelhante seria atestado, umas décadas mais tarde, pelo embaixador espanhol Garcia de Silva y Figueroa, enviado por Filipe III de Espanha à Pérsia, o qual residiu em Goa durante alguns anos. Talvez por ter eventualmente lido Linschoten, Figueroa ' cujas reflexões sobre os portugueses na Índia configuram uma espécie de lenda negra espanhola sobre o império português ' descreve estas mulheres exatamente da mesma maneira que o holandês, recordando, ainda, que quando van a entetenerse y bañarse a sus quintas fuera de la çiudad, usan un trage feissimo, bestial y del todo bárbaro, no menos que deshonesto, até porque a camisa baju la traen muy abierta por delante hasta mas abaxo de los pechos, mostrandolos muy patentes y a la vista de todos (Silva y Figueroa 2011: L. II, 129).

Figueroa afirma discorrer muito sobre mulheres para que se veja quanta promptitud y facilidad todas las mugeres admiten y abraçan qualseiera costumbres licenciosas y librés. Esta inclinação tipicamente feminina facilitava, evidentemente, a indianização das portuguesas, até porque a Índia era, na imaginação da maioria destes europeus, o berço da sensualidade. O diplomata acrescentaria que o traje das portuguesas na Índia era muito parecido com las esclavas negras de Ethiopia que llevan a vender a Portugal e a Castilla (Silva y Figueroa 2011: L. II, 145-146), observação que antecipa um outro veio discursivo, o da futura africanização dos portugueses.

O facto de os cuidados com a higiene também se terem indianizado denotava a intensidade (e intimidade) deste processo. Os casados e seus descendentes eram em todas as coisas da casa muito limpos e puros e todos os dias vestem camisas e outras roupas que trazem no corpo lavadas. O mesmo sucedia com as mulheres, muito limpas e asseadas, tanto na sua casa como na sua pessoa e corpo: tomavam banho e vestiam roupa limpa quotidianamente. Mais: todas as vezes que evacuam ou vertem as suas águas e têm relações com o marido, lavam-se de novo, mesmo se fosse cem vezes num dia e noite (Linschoten 1997 [1596]: 148, 158). Este último enunciado sugeria os exageros sexuais a que estas mulheres estavam habituadas: não estimulavam o desejo colonial como eram o oposto do modelo púdico que tanto a Reforma protestante quanto a Contrarreforma católica promoviam.

Não apresentando nenhuma imagem sobre as portuguesas nas suas práticas de higiene ou outras mais íntimas, Linschoten mostrava em toda a sua nudez como é que as asiáticas faziam a sua higiene, o que permitia aos leitores destes textos e imagens estabelecerem conexões entre as práticas das indianas e os comportamentos das portuguesas. Também a imagem bastante anterior do Códice Casanatense era bem explícita em relação à nudez e aos lavatórios de mulheres, contribuindo, igualmente, para a formulação dessa tópica sobre o estilo de nativização das portuguesas na Índia (ver figuras 1 e 2).

Em suma, eram as mulheres quem se rendia, em primeiro lugar, à luxúria.

Extremamente luxuriosas e salazes ' é assim que Linschoten, um típico misógino quinhentista, as descreve. Depois de adormecerem o marido com mezinhas intoxicantes, estas mulheres comiam mãos cheias de cravinho, pimenta, gengibre e uma substância frita, chamada cachundé, com o propósito de aumentar a luxúria e de cometerem adultério com os soldados. O problema é que essa mesma luxúria, semelhante à luxúria das indianas (o que explicava a necessidade social da sati, a viúva que se imolava após a morte do marido) e das mulheres em geral, também contagiara os homens portugueses. Os noivos de origem portuguesa, por exemplo, eram bem capazes de, no dia do casamento, irem para a cama quando ainda tinham convidados em casa, pois não têm paciência para esperar tanto tempo como nos nossos países (Linschoten 1997 [1596]: 154, 159; Nocentelli 2007: 212 e segs.).

Sucumbindo a esse mundo de deleites, os homens portugueses tinham-se tornado cada vez mais indolentes. Antecipando todos aqueles que, no século XVIII, descreveriam os espanhóis como sendo muito preguiçosos (Mackay 2006: Introduction), Linschoten afirmaria que os portugueses, e mestiços na Índia, não trabalham, ou fazem-no raramente. Mesmo os artesãos recorriam a escravos, enquanto os patrões andam pelas ruas e se comportam magnificamente como os melhores. Também os soldados evitavam, sempre que possível, cumprir com as suas obrigações militares, preferindo arranjar quem os sustentasse (Linschoten 1997 [1596]: 149-150).

O signo que melhor condensava este processo de indianização era, como bem notou Carmen Nocentelli (2007: 210 e segs.), o palanquim, meio de transporte indiano que muitos europeus consideravam efeminado, porque ninho de amores desonestos e estímulo à indolência. Presente no Códice Casanatense, também no Itinerário e nos Icones aparecem vários palanquins transportando portugueses (homens e mulheres) e indianos, em representações que recorriam ao mesmo tipo de enquadramento estético, veiculando a ideia dessa inquestionável rendição dos portugueses aos modos da Índia (ver figuras 3-5).

Todos estes costumes herdaram dos gentios indianos, dizia ­Linschoten, e o mesmo acontecia entre os reinóis, os portugueses recém-chegados de ­Portugal, os quais, pelo uso, se acostumam às maneiras da India, às quais logo sabem aderir maravilhosamente. Por todas estas razões, conclui ­Linschoten, hoje em dia na Índia não se faz guerra com tanto fulgor, nem se conquistam e descobrem terras novas, como acontecia antigamente, quando se lutava por louvor e honra, e para deixar boa fama. Esse louvor, honra e fama que Camões textualizara em Os Lusíadas transferira-se, ao invés, para outros europeus ' como os holandeses, por exemplo, prestes a substituir (e a imitar?) os portugueses na Índia. Provavelmente com um propósito comparativo, ­Linschoten inclui no Itinerário uma história exemplar na qual se contrapunha a atitude de portugueses pouco preocupados com o serviço do seu rei à virtus dos seus conterrâneos: numa batalha na Índia, um português abandonara cobardemente o estandarte português, caindo aquele nas mãos de muçulmanos. Vendo isso, um trombeteiro holandês ao serviço dos portugueses correria para o meio dos muçulmanos, protegendo o estandarte durante quase uma hora, matando muitos dos que o tentavam roubar, conseguindo recuperá-lo, não sem acabar por perecer abraçado ao mesmo. Estas pequenas histórias mostravam que o declínio do Estado da Índia não era explicado por fatores externos, mas sim por razões internas. É que eram os portugueses a causa do seu próprio mal e fazem a palmatória com que eles próprios são castigados (Linschoten 1997 [1596]: 156-159, 292, 298).

Linschoten e a lenda negra sobre o império português As descrições de Linschoten e as conclusões que elas estimulam não se configuram, apenas, como histórias exemplares ' histórias sobre modos de conquista, conservação e declínio imperial que podiam servir de aviso aos futuros colonizadores, alertando-os para os perigos que um mergulho nos trópicos, e a correspondente dissolução da diferença cultural, podia encerrar.

A par dessas dinâmicas de receção numa época em que o exemplumera central para modelar comportamentos futuros, as descrições de Linschoten revelam, também, a descoberta da alteridade dos portugueses a partir de um olhar do Norte da Europa, olhar não fundado na rivalidade imperial, mas também na diferença religiosa e política.

Sob a escrita severa de Linschoten pressentem-se, efetivamente, conceções de virtude que o holandês não reconhece nos portugueses que encontra na Índia. E é provável que exemplos como os de Roberto di Nobili e Matteo di Ricci, os grandes paradigmas da accomodatio jesuíta (ou do homem de muitas faces que o padre Baltasar da Costa era, como Chakravarti mostra num outro ensaio deste dossiê), tivessem sido igualmente repugnantes para personalidades como a de Linschoten, que estes missionários prescindiam da sua identidade exterior, adotando a dos seus interlocutores, de modo a facilitarem o diálogo com os mesmos (semelhantes, nesse aspeto, aos casos de Fuchs), visando alcançar, desse modo, a sua conversão ao cristianismo. Alternativamente, e à semelhança de outros que recusavam este tipo de estratégia ' como o grande rival de Nobili, o também jesuíta Gonçalo Fernandes Trancoso ', Linschoten rejeitava esses modos de travestimento, essas técnicas de simulação ou dissimulação que, através de meios que alguns consideravam ínvios (e que outros reputavam, inclusive, de maquiavélicos) visavam alcançar determinados objetivos religiosos ou políticos.

[9] É igualmente provável que as perceções de Linschoten estivessem fundadas na lembrança de outras imagens igualmente conhecidas da época e estruturantes dos seus imaginários políticos, como seria o caso de Alexandre Magno, cujos lados mais sombrios tinham culminado, segundo se dizia, na sua rendição aos costumes orientais. Segundo muitos dos seus cronistas, esta adesão tornara Alexandre num verdadeiro déspota, cujo despotismo era similar ao dos bárbaros orientais.

Seria ainda o caso de Marco António, que morrera no Egito no meio da luxúria e do abraço de Cleópatra, o qual fazia parte da enciclopédia da época, até por ser um dos exemplos que compunham esse outro best-seller que eram As Vidas Paralelas, de Plutarco. À semelhança de Alexandre, nas Vidas Paralelas, Marco António surge como o herói que se transforma em contra-herói. E devido a quê? À renúncia de si mesmo e correspondente adesão aos costumes orientais (Barletta 2010: 21).

Num mundo composto de imitações, analogias e paralelos, encontrar semelhanças entre estes exemplos e as vidas dos portugueses estabelecidos na Índia tornava- se quase inevitável. Aliás, o receio de que as alterações verificadas no corpo e na alma dos portugueses estabelecidos na Índia fossem permanentes tinha levado o bispo de Dume, o dominicano D. Duarte Nunes, a afirmar, em 1520, que todos Portuguezes mudão nessa terra a calidade, e Nação, pelo que conformes á terra no modo de viver, não queriam senão seguir a sensualidade.[10] Onze anos antes, Gil Vicente descrevera no Auto da Índia,de 1509, a estranheza de uma esposa portuguesa perante o regresso do seu marido, vindo daqueles lugares.

Diria ela: Jesu, quão negro e tostado! Não vos quero, não vos quero. Segundo Vincent Barletta, talvez um pouco forçadamente, por detrás do espanto desta mulher também estava a convicção de que não era apenas o corpo, queimado pelo sol, que se tinha alterado, mas toda a compleição, incluindo os equilíbrios dos humores (Barletta 2010: 138).

Que o encontro com os trópicos requeria um cuidado particular com o governo do corpo e da alma tornou-se um tema recorrente da reflexividade portuguesa, que desse bom governo de si dependia a própria durabilidade do império nos termos desejados. Não surpreende, pois, que as reservas de Nunes e de Vicente, pronunciadas nas primeiras décadas do século em cujos anos finais Linschoten publicaria o seu Itinerário, fossem partilhadas por boa parte das elites portuguesas que tinham criticado os casamentos promovidos por Afonso de Albuquerque entre portugueses e indianas. Para muitos, essas uniões que replicavam na Índia o que os romanos tinham feito com as sabinas no Lácio, visando a constituição de colónias ao estilo de Roma em Goa (a Roma do Oriente), Cochim, Cananor e outros lugares onde os ­portugueses tinham fortalezas, eram as principais responsáveis pela nativização dos portugueses.

Mais grave ainda, as mulheres indianas educavam os seus filhos segundo os estilos da Índia, o que levava, segundo estes, à indianização de todo o aparelho imperial português.

Associada aos deficitários recursos demográficos de que o reino de Portugal dispunha e ao mal-estar gerado pelos perigos que o estabelecimento na Índia encerrava, a aposta na conversão dos indianos ao cristianismo e sua correlativa lusitanização surgiria como uma solução alternativa. Através da lusitanização e ocidentalização dos indianos, não se pretendia multiplicar os soldados ao serviço da coroa portuguesa, como conter o ameaçador going native dos portugueses, repondo a ordem natural, que doravante seriam os indianos a imitar os portugueses, e não o contrário (Xavier 2008a, 2008b).

É possível que, no contexto das suas andanças ibéricas, Linschoten tivesse entrado em contacto com estes sentimentos de mal-estar, formatando as suas pré- compreensões sobre a situação social de Goa. Rendição da civilidade à barbárie, do cristianismo ao paganismo, do domínio de si à libertinagem, em suma, e como Ivo Kamps inspiradamente o descreveu, colonização do colonizador pelo colonizado ' terá sido essa subversão da ordem natural das coisas a perturbar o bispo de Dume, a esposa doAuto da Índia, muitos portugueses, e, mais tarde, Linschoten e outros europeus a caminho da Ásia (Kamps 2001).

Para todos estes autores, aderir maravilhosamente aos costumes dos indianos era um comportamento indesejável, o qual devia ser, por isso mesmo, erradicado.

Enfim, aquilo que poderia ser objeto de elogio a partir de um olhar pós-moderno que celebra a hibridez ou, mesmo, a partir de um olhar luso-tropicalista que exalta a doçura da mestiçagem, contribuiu para gizar, nessa altura, uma imagem negativa sobre os portugueses e o seu modo de estar no mundo. Era a sua fraqueza identitária e a sua incapacidade de autodisciplinamento aquilo que explicava a facilidade com que imitavam os inferiores, degradando, dessa forma, a sua própria condição.

Reverberações Esta tópica formulada, a partir de vários lugares, e de forma mais ou menos impressionista ao longo do século XVI, adquiriu contornos bem mais definidos nos séculos seguintes, desembocando na idealização dos povos ibéricos (considerados mais próximos da natureza e mais presos às suas leis) como partilhando um estádio civilizacional inferior aos dos povos do Norte da Europa (doravante o modelo da civilidade). Como era sabido, entre estes predominava o humor fleumático, o qual facilitava o disciplinamento das paixões e o governo pela razão. Ao invés, portugueses e espanhóis continuavam demasiado dependentes das suas inclinações naturais, o que os colocava em contraciclo em relação aos nórdicos.[11] No seu tratado Problemas y Secretos Maravillosos de las Indias (ocidentais), do século XVI, o médico Juan de Cárdenas alertara, precisamente, para isso: a condição natural dos ibéricos oscilava entre um humor sanguíneo e um humor colérico, o que explicava o excesso de paixões que caracterizava estas gentes (Cárdenas 1591: L. 1, P. 3, cap. 2 ).

A mesma ideia de excesso permeia, também, as explicações que surgem na L'histoire philosophique et politique des établissements et du commerce des Européens dans les deux Indes (Amesterdão, 4 vols., 1770) do Abbé Raynal, uma das bíblias do pensamento enciclopédico e, a partir de finais do século XVIII, uma das principais fontes de informação sobre as histórias imperiais europeias anteriores. Nas páginas dedicadas a Portugal, Raynal começa por ser muito elogioso, comparando os portugueses (como Camões o fizera), a egípcios, gregos, romanos, descrevendo-os como iluminados e heróis: Quels hommes devoient être alors les Portugais, e quels ressorts extraordinaires en avoient fait un ­peuple d'héros? Contudo, e segundo Raynal, logo após a morte de Afonso de ­Albuquerque, em 1515, a cobiça tinha começado a corromper os portugueses, conduzindo rapidamente à sua degeneração. Reiterando a conclusão de ­Linschoten, as referências seguintes aos portugueses na Índia sublinham essa sua capacidade autodestrutiva, anunciando o tempo em que les Portugais expierent leur perfidies, leur brigandages et leurs cruautés. Cupidez, ambição e outros qualificativos similares povoam boa parte das páginas que Raynal dedica a essas experiências. Raynal refere, em concreto, que na Índia muitos eram os portugueses que tinham mais de oito concubinas, e aqueles com quem dançarinas e prostitutas partilhavam mesa e cama (Raynal 1770: vol. 1 ' 26-27, 55-57, 90-91, 128, 162, 190 e segs.). Essa sua propensão tinha sido descrita por D. Garcia da Silva y Figueroa, no início do século XVII, como una própria imagen de los saturnales ó bacanales de la antiguedad, tópico com particular ressonância na época em que Edward Gibbon escreveria a sua The History of the Decline and Fall of the Roman Empire, publicada seis anos depois da obra de Raynal e livro através do qual se disseminaria a tese de que também o império romano (que os portugueses tinham tentado imitar) sucumbira graças à rendição das suas elites à luxúria! (Serrano Sanz 1903: 596, L. 8; Whelan 2009: 17).

A associação entre ética (neste caso, desgoverno, desrazão, superstição) e etnia (povos ibéricos, em particular, e do Sul da Europa, em geral) era reforçada por uma outra variável: a mistura de sangue. Mais ou menos na mesma altura, Kant defenderia abertamente que por terem muita mistura de sangue africano, os espanhóis (os ibéricos, em geral?) dificilmente poderiam ser considerados totalmente europeus. Para o filósofo alemão, a sua diferença civilizacional era resultado da diferença rácica (Mignolo 2007: 312-313).

Numa época em que as teorias raciais adquiriam cada vez mais peso, a mestiçagem física e cultural dos ibéricos surgia como mais uma adversidade (Gibson 1971: 129-138).[12] Posteriormente, Hegel não hesitaria em dividir a Europa em três partes ' o Sul, separado pelos Pirenéus (nele incluindo a Grécia, a Itália e a Península Ibérica), o coração da Europa (Alemanha, França, Inglaterra), e o Nordeste europeu (onde se situavam os países eslavos, a Polónia e a Rússia). No que dizia respeito ao Sul da Europa, e dada a aproximação física e cultural à África, não surpreendia o seu estado de decadência (Mignolo 2007: 323-324).

Em suma, retomando e reformulando imagens produzidas nos séculos anteriores, tornar-se-ia cada vez mais consensual que o declínio do império português e dos próprios portugueses se devia, sobretudo, ao enfraquecimento do caráter das suas populações, enfraquecimento esse que resultava da facilidade com que aqueles se adaptavam aos modos de vida das populações que colonizavam, quer através da mestiçagem física, quer por via da contaminação cultural (e da rendição à luxúria e à sensualidade).

Alexandre Herculano, Antero de Quental e Oliveira Martins, entre muitos outros intelectuais oitocentistas, ajudaram a disseminar imagens sobre o império português que reproduziam, sob muitos aspetos, os argumentos de Linschoten, Kant, Raynal, Hegel e tantos outros. Apesar de, na História da Civilização Ibérica, Oliveira Martins reagir contra os discursos negativos sobre os ibéricos, procurando destacar as suas virtudes, ao mesmo tempo considerava que o império estimulara os vícios, corrompendo o caráter dos portugueses. Uma das razões últimas para essa corrupção residia na mistura entre portugueses e povos indígenas, naturalmente inferiores, a qual conduzira à degradação da raça lusíada (Ramos 1997: 113; Matos 2000: 189 e segs.; Maurício 2005: 92 e segs.).

Essa fraqueza portuguesa manifestava-se, também, na corrupção do aparelho político-administrativo do império. Um século depois de Oliveira Martins moldar muita opinião pública através da sua poderosa escrita, num livro essencialmente baseado no Soldado Prático de Diogo do Couto, e que sugestivamente intitula The Black Legend of the Portuguese Empire, George D. Winius adotou a tese do indologista J.C. Heesterman, segundo o qual a corrupção normalmente identificada como sendo característica dos portugueses era, ao invés, estrutural a toda a Índia; era indiana. Em O Soldado Prático, escrito no último quartel do século XVI, Diogo do Couto[13] afirmava que a principal causa dos inconvenientes que havia no governo da República era a corrupção generalizada dos oficiais da coroa, do mais alto ' i.e., do vice-rei ', ao mais baixo. Ora, para Heesterman, o império português dependia, na prática, de uma burocracia indiana, com a qual, por sua vez, os funcionários portugueses estabelecidos localmente ' os referidos casados ' mantinham laços de todo o tipo, até por se terem unido pela via do matrimónio a muitas famílias locais. Assim sendo, os portugueses pouco mais tinham feito do que mimetizar os modos indianos de administrar politicamente um território ' i.e., os portugueses tinham indianizado a sua administração imperial, quer do ponto de vista dos agentes escolhidos (muitos deles indianos) quer da sua própria cultura política. Aceitando o argumento de Hesteerman, Winius concluiu assim que o império português se tinha, de facto, indianizado. Não apenas pela mestiçagem física, mas através de uma mestiçagem igualmente estruturante, cultural, tornando-se ele próprio, literalmente, meio indiano (Winius 1985: 180-185).

Considerações finais Chegados aqui, interessa tecer algumas considerações em jeito de conclusão. Por um lado, creio que um exercício genealógico do tipo ensaiado neste texto mostra que a indianização dos portugueses estabelecidos na Índia desde o início do século XVI precedeu outros processos de nativização, de going native (caso dos jesuítas ou dos exemplos ocorridos em contexto britânico), que foram objeto de boa parte da literatura teórica. Por outro, importa recordar que a tópica da luxúria e da indolência associadas à indianização dos portugueses viria a fazer parte da enciclopédia orientalista britânica sobre os indianos. Como nos lembrou Said, os ingleses (os colonizadores) teriam feminizado as populações orientais (o que justificava, à semelhança das mulheres, a necessidade de serem governadas por outrem), contrapondo-as à masculinidade europeia (Said 1978). Nos finais do século XVI essas mesmas características femininas eram atribuídas aos colonizadores portugueses, num orientalismo avant la lettre, que abarcava não apenas os orientais, mas também os portugueses que se tinham orientalizado![14] O olhar negativo que transparece do Itinerário de Linschoten deve ser interpretado, pois, tendo em conta estes contextos teóricos. Mas o olhar de Linschoten revela algo mais: a descoberta (a invenção?) da alteridade dos ibéricos por parte dos povos do Norte da Europa, cujas reverberações ainda hoje se fazem sentir. Para muitos destes, essa alteridade manifestava-se, em primeiro lugar, numa incapacidade de domínio de si, a qual levava os ibéricos a diversas manifestações de descontrolo ' quer sexual, quer militar, até mesmo identitário. Daqui resultava, evidentemente, o desgoverno: o desgoverno de si (manifestado, por exemplo, na opção por imitar inferiores, i.e., indianos), o desgoverno dos outros (expresso no precoce declínio imperial).

O olhar de Linschoten conta, ainda, das fissuras da ordem da imitação, tal como ela operava na época moderna. Sabemos que a estabilidade da ordem imitativa era tanto maior quanto maior fosse o controlo daquilo que era ­imitado, permitindo reproduzir (e aperfeiçoar) a ordem natural das coisas.

Ora, as situações coloniais perturbavam estes frágeis equilíbrios, sobretudo por ­oferecerem aos viajantes europeus uma variedade de possibilidades ­antropológicas, de modos de ser e de estar ' e com elas, a possibilidade de negação da sua identidade de partida (e os renegados eram o caso mais extremo), considerada, pela quase totalidade dos europeus daqueles tempos, como sendo superior. Os portugueses, segundo Linschoten, situavam-se entre aqueles que mais facilmente se deixavam infetar pelo vírus oriental, o que conduziria à degradação da sua condição (mais tarde, rácica).

Ironicamente, e como Walter D. Mignolo argutamente assinalou, esta indianização, feminização, africanização, orientalização, ou tropicalização dos ibéricos resultava de um efeito boomerang. Ou seja, ricocheteava os mesmos mecanismos que os ibéricos tinham utilizado para subalternizar as populações oriundas do exterior das fronteiras da cristandade. Por outras palavras, apesar das inevitáveis descontinuidades que se podem e devem assinalar entre estas duas dinâmicas, as lendas negras que os ibéricos foram formulando sobre os turcos, os africanos, os asiáticos, tinham semelhanças com aquelas que lhes viriam a ser aplicadas (Mignolo 2007: 315). Mas, ao contrário do que Mignolo defende, não é nas Luzes que se devem encontrar as raízes deste processo, mas sim no próprio século XVI. Mais: não foram os europeus do Norte a formular, em primeiro lugar, esta tópica discriminadora, mas vozes descontentes de portugueses e espanhóis, frequentemente metropolitanas, revelando que as suas sociedades não eram monótonas, e que as tensões ocorriam, em primeiro lugar, no interior dos seus impérios.

Por fim, é igualmente verdade que, tal como os portugueses imitaram os indianos e se indianizaram, ou os indianos imitaram os portugueses, as várias vidas da lenda negra do império português muito devem a uma voracidade imitativa, a um canibalismo textual que foi dando vida própria a velhas imagens, séculos após séculos. Como se referiu, em pleno século XX destacam-se os impactos que estas mesmas imagens tiveram na formulação do luso-tropicalismo, mas também do seu oposto, isto é: a defesa do caráter racializado das relações imperiais portuguesas, uma contrarretórica luso-tropicalista para a qual o livro Race Relations in the Portuguese Empire, de Charles Boxer, muito contribuiu, levando à formulação de uma lenda negra mais moderna, desta vez a de portugueses viris e racistas (Pina-Cabral 2012, Roque 2012).[15] Apenas aqui lembradas, essas outras reverberações e contrarreverberações (e as clivagens ideológicas para as quais elas podem reenviar) não podem agora ser discutidas, devendo ser objeto de um outro estudo.


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