Memória do Centro de Estudos de Antropologia Cultural
Final dos anos 60. Naquele tempo, estava eu sem saber o que fazer com a vida.
Regressado do distante Timor, ficara um doente da ilha do sândalo. Achava
Portugal completamente desinteressante e só me apetecia partir. Para longe,
algures nos trópicos, onde outros mundos e outras vivências me chamavam. Vejo
então notícia da criação, no ISCSPU (Instituto Superior de Ciências Sociais e
Política Ultramarina), do curso de licenciatura em Antropologia, o primeiro em
Portugal, e a possibilidade de viajar por esses mundos a partir do conhecimento
científico apontou-me decisivamente o caminho. Foi assim, por via de uma
motivação, digamos, algo romântica, que cheguei à antropologia.
A figura inspiradora do curso era o professor Jorge Dias, português do mundo e
renovador dos estudos de antropologia em Portugal. A sua simplicidade e encanto
pessoal cativavam desde o primeiro contacto. As suas aulas, sempre cheias,
diziam de um mestre autêntico. Era também diretor do Centro de Estudos de
Antropologia Cultural (CEAC) e do Centro de Estudos de Etnologia Peninsular
(CEEP), onde tinha a colaboração de companheiros e amigos de uma vida: Margot
Dias, sua mulher, Fernando Galhano, Ernesto Veiga de Oliveira, Benjamim Pereira
e António Carreira.
Devo ao professor João Pereira Neto a oportunidade de conhecer de perto essa
equipa, com quem a empatia foi imediata, o que permitiu que, antes mesmo de
concluir o curso, estivesse já a trabalhar no CEAC, no Palácio Vale Flor.
Na altura, Jorge Dias e Margot Dias centravam-se, ainda, na conclusão da obra
monumental sobre os macondes de Moçambique (Dias 1964; Dias e Dias 1964, 1970).
Fernando Galhano, a par da elaboração e participação em estudos de cultura
material, tinha a seu cargo a conservação do acervo do Museu de Etnologia,
anexo ao CEAC, ainda não aberto ao público. Ernesto Veiga de Oliveira e
Benjamim Pereira continuavam o seu incessante e ciclópico trabalho de pesquisa
no âmbito da etnografia portuguesa. António Carreira, a quem cabia assegurar as
tarefas administrativas e burocráticas, prosseguia em paralelo trabalhos de
investigação sobre questões de natureza etnográfica e histórica, com especial
incidência em Cabo Verde e na Guiné. Os dias decorriam numa atmosfera
brilhante, de entusiasmo pelo trabalho e pelo conhecimento, e de amizade
profunda e antiga, celebrada todos os dias nos almoços na famosa tasca das
cadelinhas, do Alto de Santo Amaro, afetuosamente rebatizada de Ritz e
palco de momentos inesquecíveis na memória da equipa de Jorge Dias.
No que me respeita, quando ingressei no CEAC estava já a efetuar o trabalho de
campo para a dissertação de licenciatura, a qual consistia num estudo de
comunidade da Fuzeta, no Algarve, trabalho que prossegui até à sua conclusão.
Recordo o esforço para enquadrar conceptualmente a realidade empírica com que
contactava todos os dias durante o trabalho de campo e para produzir um modelo
organizacional coerente com aquela realidade. Recordo, igualmente, o principal
erro que cometi, com a minha falta de experiência, ao tratar a questão da
estratificação social, forçando-me a integrá-la numa visão teórica de classes,
quando a diferenciação entre as condições de marítimo e terrestre tinha
muito mais a ver com a realidade ' erro que tive oportunidade de corrigir em
trabalhos posteriores e, desde logo, no próprio título de uma comunicação
apresentada num seminário sobre teoria antropológica realizado no Departamento
de Antropologia da London School of Economics, e que utilizei como sumário em
inglês da publicação da dissertação ' Land and Sea as Categories in the Social
Organization of a Portuguese Village.[1]
Decisivo para a minha formação teórica foi, na altura, o encontro com Twig
Johnson, antropólogo americano que viera a Portugal realizar trabalho de campo
em Cabanas de Tavira, para o seu doutoramento em Columbia. Discípulo de Marvin
Harris, deu-me a conhecer a poderosa obra teórica deste antropólogo americano,
em particular na área da história do pensamento antropológico e do chamado
materialismo cultural, a qual, de forma profunda e definitiva, moldou a minha
visão da causalidade sociocultural.
Em 1971, Jorge Dias, que fora incumbido da coordenação da investigação
antropológica na área a ser inundada na sequência da construção da barragem de
Cahora Bassa, mas a quem faltavam já a saúde e o vigor para ir para o terreno,
perguntou-me se estaria disponível para ir até Moçambique realizar o
levantamento etnográfico possível. Aceitei de imediato, entusiasmado com a
perspetiva de realizar trabalho de campo em África e viver uma experiência que
tanto ambicionava. De entre os grupos étnicos que habitavam na zona em causa,
optei pelos tauaras, de longe o mais numeroso e com algumas características que
me interessavam particularmente, como as diferentes adaptações decorrentes da
proximidade ou afastamento do rio Zambeze. A situação de guerra, que então
ocorria já na região, dificultou bastante, sem contudo impedir totalmente, a
realização da pesquisa de campo, que teve lugar durante duas permanências no
terreno, num total de cerca de quatro meses, em 1972. O estudo resultante, uma
monografia intitulada Os Tauaras do Vale do Zambeze, ficou concluído em 1973,
não sendo a sua publicação considerada oportuna, na altura, pela Junta de
Investigações Científicas do Ultramar, razão por que apenas em 1976 veio a ter
lugar.
Em 1973 tive ainda a preciosa oportunidade, como bolseiro do British Council,
de frequentar a London School of Economics, para realizar pesquisa e aprofundar
conhecimentos na área da abordagem ecológica no estudo de populações humanas.
Para além de tudo, foi decisivo para perceber o que podia ser o funcionamento e
a vida de um departamento de antropologia numa escola de referência, o debate
vivo e fecundo, a troca de ideias e experiências, a produção académica.
Nesse mesmo ano, subitamente, faleceu Jorge Dias. Regressado da minha
permanência em Londres, as perspetivas profissionais apresentavam-se
desanimadoras e os problemas com a publicação do trabalho sobre os tauaras
também não ajudavam. No início de 1974 deixei o CEAC, mas a lembrança dos
luminosos tempos partilhados com a inesquecível equipa de Jorge Dias ficarão
comigo enquanto viver.