Com um pé dentro e outro fora: reflexões pessoais sobre a geração dos eighties
Terminei a licenciatura em antropologia em 1983 na Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Fi-lo com pouco mais de uma
dúzia de outros colegas. No ano acima do nosso a turma era muitíssimo mais
reduzida. E no ano acima desse creio que eram três ou quatro pessoas.
Tratava-se do ressurgimento da antropologia no período pós-25 de Abril, no
contexto de uma Universidade também ela nova.
As pessoas da minha idade tinham assistido ao 25 de Abril com mais ou menos 13
anos. Tinham vivido o período revolucionário em plena adolescência, em muitos
casos bebendo todo o clima de contestação e de reinvenção do mundo. Tinham
também assistido à normalização democrática e esperavam a adesão do país à CEE.
Filhos e filhas, na sua maioria, das classes médias da capital, muitos e muitas
de nós tínhamos feito uma tripla rutura: naturalmente com o Portugal pré-25 de
Abril; com os excessos e utopias do período revolucionário; e com o que se
anunciava como uma mediania prometida pela normalização democrática. Na idade
da universidade, que é a idade de todas as consolidações de visão do mundo,
para muitos de nós tratava-se de procurar uma alternativa. E o que se afigurava
como alternativa era uma visão, à falta de melhor palavra, cosmopolita, urbana,
experimental, diferenciadora, questionadora de dogmas à direita e à esquerda.
Ainda não estávamos expostos à verdadeira globalização, a da Internet, mas
estávamos claramente atentos às circulações de mercadorias e símbolos da
cultura popular. Recusávamos simultaneamente as visões alternativas dos
designados anos 60, marcadas por preocupações antiditatoriais e por utopias
ideológicas que muitas vezes remetiam para visões românticas de enobrecimento
do popular, e recusávamos as visões dos anos 70 que denotavam o
investimento de energia e a frustração do período revolucionário. Muito
rapidamente fomos experimentando: experimentando a noite e o surgimento da
movida do Bairro Alto, experimentando as viagens cada vez mais facilitadas,
experimentando as tendências artísticas marcadas pelo lúdico, experimentando as
limitações impostas pelo surgimento do VIH-sida, experimentando novas áreas de
conhecimento que apontassem no sentido da pluralidade, da diferença, da
tolerância, da descoberta da alteridade, de um entrosamento entre ciência,
transformação e criação. Talvez daí a sedução que a antropologia exerceu sobre
nós.
É certo que, no decurso da aprendizagem antropológica, nos confrontámos com os
equivalentes disciplinares dessas referências com que lidávamos e negociávamos.
Percebemos a herança colonial da antropologia e isso perturbou-nos. Percebemos
o valor, mas também as limitações em termos de afinidades eletivas, da
antropologia do rural e do popular português. Percebemos o potencial, mas
também o positivismo implícito, da herança do estruturalismo. E percebemos o
potencial do que ia chegando, mais hesitantemente, dos contextos anglófonos.
Fizemos o nosso bricolage com tudo isto, e esse bricolage era o resultado do
caráter eclético, no bom e no mau sentido, do ensino que tivemos, com docentes
vindos de todas estas tradições, alguns tentando inovar e tentando novas
sínteses, e fizemo-lo num ambiente de fragilidade académica, material, de
dificuldade de acesso aos textos incomparável com as condições atuais.
Constituímo-nos, pois, como a geração dos anos 80. Quais as principais
características?
1. O 25 de Abril, a normalização e a Europa. Creio que este dado é
inquestionável. Somos, as pessoas da minha idade, a geração do 25 de Abril, a
primeira a frequentar a universidade em ambiente de liberdade intelectual e
académica, e isso conferiu-nos uma ideia de liberdade de pensamento que, creio,
é distinta quer da ânsia de liberdade da geração anterior, quer da aceitação
da adequação às encomendas que pode caracterizar alguma da ciência normal
feita por gerações subsequentes. Viríamos também a ser a primeira geração a
quebrar com as linhagens antropológicas sediadas nos grandes centros ' EUA,
Reino Unido, França ' e a participar na construção de um ambiente antropológico
europeu. Assistimos à fundação da EASA (European Association of Social
Anthropologists) em Coimbra e muitos de nós entraram nessa rede como rede
privilegiada, feita de pluralidades e hibridismos teóricos e temáticos.
2. Os anos 80 assistiram ao primeiro surto de cosmopolitismo, sobretudo em
Lisboa. A conexão entre aprender e fazer antropologia, por um lado, e as
atividades e consumos artísticos, por outro, não deve ser descurada. Um antigo
binómio, o que opunha cultura erudita a cultura popular (no sentido da
ruralidade e da tradição) deixou de fazer sentido absoluto e um terceiro fator,
a cultura popular (no sentido contemporâneo do termo), para mais permeada pelas
atividades artísticas e de cultura de massas, impôs-se. Isto foi amparado por
transformações na antropologia internacional, às quais fomos sendo cada vez
mais sensíveis, quanto mais os meios de comunicação e as viagens o foram
permitindo: a importância da História, da economia política, da ideia de
construção social, do processualismo, da definição de terrenos não ancorados em
geografias ou etnicidades específicas, a preocupação com a escrita ou o
documentário audiovisual, a interdisciplinaridade, etc.
3. Muitos de nós fizeram também uma rutura com tradições académicas anteriores
a favor de uma abertura à influência anglo-americana. Tal deve-se a razões
sociológicas específicas, como a aposta na aprendizagem do inglês pelos filhos
por parte da classe média portuguesa, o processo de globalização como um
processo de anglofonização do mundo, a quebra da influência cultural francesa.
Não há que subestimar este fator, pois a aceitação da influência anglo-
americana significava não só abraçar linhas teóricas e temáticas, mas também
retóricas e estilos, sensibilidades, para mais reforçadas por uma influência
cultural genérica em termos de referências, visões do mundo e valores.
4. Os últimos pontos, aliás, apontam no sentido da recusa quer das grandes
narrativas políticas e ideológicas, quer das grandes narrativas teóricas, das
grandes grelhas de interpretação e análise. Processos deste tipo normalmente
materializam-se em formas de estar e ser, com os seus códigos culturais que, no
nosso caso, passaram pela ideia de democratização da universidade e do
conhecimento, da recusa de um certo elitismo e de um certo mofo académico.
Uma boa etnografia desses tempos talvez o demonstrasse através de coisas tão
banais como a roupa, o sexo, a música, o uso da língua oral e escrita, os
posicionamentos identitários face a professores, orientadores, chefes, colegas.
5. Mas a geração dos anos 80 tem outra característica. Por razões óbvias ela
viria a ocupar os lugares profissionais, académicos, de uma antropologia
renovada e em crescimento. Fosse na FCSH, fosse depois no ISCTE ou, depois
ainda, nas universidades regionais que foram surgindo com o desenvolvimento
pós-adesão à CEE, os lugares de docência foram sendo ocupados por esta geração,
completando-se o processo com o recrutamento de jovens licenciados com pouca
diferença etária em relação à minha geração e já em parte lecionados por ela.
Depois foi o fecho do crescimento, a retração e eventualmente o surgimento das
novas formas de trabalho que vieram marcar as gerações subsequentes ' na
investigação, nas bolsas, na precariedade prolongada. Ocupando praticamente os
últimos lugares da instituição universitária, participando portanto das
estruturas de poder académico, e ao mesmo tempo fazendo-o com uma visão do
mundo substancialmente diferente do elitismo anterior ' isto conferiu à minha
geração uma responsabilidade peculiar, nem sempre cumprida, mas sobretudo
conferiu um privilégio.
6. O que fizemos? Correndo o risco de algum narcisismo, mas sobretudo por não
querer falar do trabalho dos outros e, assim, correr o risco de cometer alguma
injustiça por omissão, deixem-me tentar usar o meu caso como mero exemplo,
recorrendo o mais possível a uma visão distanciada.
Em 1989 publiquei o meu primeiro texto de antropologia (Almeida 1989). Foi num
volume de homenagem a Ernesto Veiga de Oliveira, alguém que tive ainda o
privilégio de conhecer e que tinha a qualidade extraordinária de se entusiasmar
com os meus anseios juvenis. O meu texto era sobre homossexualidade numa visão
antropológica. Era o resultado de um trabalho feito nos EUA, numa cadeira de
mestrado. Reparem como estes elementos ' mestrado nos EUA, trabalho sobre
homossexualidade naquela época e um volume de homenagem a Ernesto ' condensam
um tempo e um modo de transição.
Em 1986, regressado desse mestrado tinha entrado para o corpo docente do ISCTE,
como assistente de Raúl Iturra, com quem faria o meu doutoramento sobre género,
especificamente sobre construção social da masculinidade (Almeida 1995). Também
aqui, notem a composição dos elementos: o crescimento do ensino da
antropologia, a nova licenciatura do ISCTE feita a partir do retorno de
exilados em contextos anglo-saxónicos, a escolha de uma temática praticamente
ausente da antropologia portuguesa anterior e conectada com preocupações
político-sociais.
O meu trabalho de campo também apontava no sentido de elementos de charneira.
Feito em Portugal e em ambiente não urbano, no entanto não buscava um retrato
de cultura popular rural, associada tradicionalmente ao Norte do país: não só
versava uma localidade alentejana, como a atividade económica principal daquela
não era já rural. Mas o trabalho de campo de um ano, com residência continuada,
ainda foi possível; se bem que a escolha do meu próprio país tivesse a ver já
com a vontade de fazer uma antropologia que não assentasse na especialização
étnico-linguística do antropólogo, mas sim no real próximo ' o meu país não
como busca da tradição, mas o meu país como o banal da vida corrente.
Se a educação norte-americana facilitou e confirmou a viragem para a influência
anglófona, isso significou sobretudo, no entanto, a viragem para a pluralidade
global. De facto, dois elementos foram importantes na minha carreira doravante:
a integração em redes europeias de antropologia e a integração em redes
lusófonas de antropologia, nomeadamente com a antropologia brasileira. Acho que
foi a minha geração que incentivou e garantiu que isto acontecesse, hoje
provavelmente um fenómeno bem mais sólido do que as afinidades eletivas com os
três anteriores contextos clássicos, os EUA, o Reino Unido ou a França. O meu
segundo terreno, no Brasil, e preocupado ainda com categorias de classificação
e discriminação sociais (agora a raça, como antes o género ou, depois, a
orientação sexual) é sintomático do que afirmei acima. Para mais, foi muito
forte em anos recentes, entre muitos de nós, a preocupação em lidar, a partir
de Portugal, ou a partir da Europa, ou a partir da conexão luso-brasileira, com
as influências ou modas que a globalização americocêntrica foi produzindo, dos
estudos culturais aos pós-coloniais.
Ao longo de todo este percurso raramente houve ancoramentos a escolas, a
teorias, a mestres, num movimento de bricolage e de abertura e de suspensão
da crença que creio caracterizar todo o pensamento em ciências sociais dos anos
80 para cá. Por vezes só mesmo a herança ' os clássicos que lemos, as estórias
internas e criadoras de identidade numa disciplina ' ou a prática etnográfica
distinguem o nosso trabalho de tantos outros noutras áreas disciplinares, ou em
ativismos vários, ou mesmo nas artes e humanidades. A minha terceira pesquisa,
sobre a questão do casamento entre pessoas do mesmo sexo, com ancoramento
etnográfico em Espanha, significou uma assunção do caráter interventivo da
própria ciência social. Tal já vinha acontecendo com crónicas em jornais,
intervenções televisivas, ativismo social e político e, por fim, o papel de
deputado na Assembleia da República. Esta vertente de diluição das fronteiras
entre ciência e participação cívica, ao mesmo tempo obrigando a um pensamento e
ação em que se consiga manter algumas fronteiras de método e postura, creio
sintetizar muito do que tenho dito até aqui, salvaguardando evidentemente tudo
o que é específico num exemplo pessoal. Curiosamente ' e assim assumo também a
influência que a minha geração sofreu dos debates pós-modernos, sobre a escrita
etnográfica, o papel do conhecimento científico, etc. ' o meu último livro
(Almeida 2009) torna a ser sobre questões de sexualidade, tal como o primeiro
texto publicado, acima referido.
Termino com o que não podia deixar de ser uma dúvida sobre qualquer noção de
geração. Antes quis referir-me aos contextos ' histórico, de economia política,
de ar do tempo ' que moldaram pessoas que, como eu, ainda tiveram um pé dentro
da antropologia portuguesa anterior aos anos 80, do ressurgimento da
disciplina, e que evoluíram com um pé fora, em todos os sentidos da
expressão. E que ficaram com a responsabilidade de construir ' nas
licenciaturas das diferentes universidades, nos centros de investigação, nas
revistas, nas associações profissionais nacionais e internacionais, nas redes
internacionais, no financiamento científico e na sociedade em geral com
intervenções de todo o tipo ' a antropologia que se faz em Portugal no século
XXI.