O encanto da criança em Homero
Não é frequente os autores clássicos greco‑latinos tomarem a criança e as suas
manifestações como tema. Mas a primeira obra literária conhecida da literatura
ocidental, os poemas homéricos, deixaram‑nos alguns trechos emocionantes sobre
as reacções infantis, que continuam actuais, passados cerca de vinte e oito
séculos sobre a data provável da composição dos referidos poemas[1].
Um dos trechos mais célebres é o da Canto VI da Ilíada (vv. 466‑493), a
despedida de Heitor, o mais célebre guerreiro troiano, e da sua mulher
Andrómaca, quando o guerreiro parte para o combate de onde se pensa que não
regressará.
São várias as traduções parciais dos poemas para a língua portuguesa que
privilegiam este trecho, além das traduções completas desde o séc. XIX ao séc.
XXI. A primeira tradução parcial de que tenho conhecimento é a de António
Ribeiro dos Santos que usou o pseudónimo literário de Elpino Duriense[2]. Foi
notável historiador e ilustre tradutor de autores gregos e latinos. Exerceu
altos cargos culturais e políticos. No primeiro volume das suas Poesias,
podemos encontrar 26 versos, traduzidos do canto VI da Ilíada, com o citado
trecho[3].
Busto de Homero, datando do Período Helenístico
(Museu Capitolino, Roma)
Do séc. XIX restam‑nos ainda, que eu saiba, mais duas traduções parciais do
referido episódio. Uma delas é a de António Maria do Couto, publicada no
semanário Beija‑Flor, (1838, pp. 133‑134).
Frontispício do incunábulo florentino de 1488-89 com as obras de Homero, Ilíada
e Odisseia, na oficina de Demétrios Damilas, onde os caracteres procuram
reproduzir a elegância da letra grega manuscrita
António Maria do Couto, que morreu em 1843, foi professor de grego em vários
estabelecimentos de ensino, entre os quais o Liceu Nacional de Lisboa, de que
foi nomeado Reitor. Publicou numerosas obras sobre os acontecimentos do seu
tempo e várias sobre autores clássicos greco‑latinos[4].
Outra tradução parcial, também do séc. XIX, é a de António José Viale, que se
publicou nas Memórias da Academia Real das Sciências (nova série), classe 2,
tomo 1, parte 2.ª[5].
António José Viale, além de Professor do Curso Superior de Letras e membro da
Academia das Ciências, foi mestre de grego do Rei D. Pedro V[6].
Das traduções parciais do séc. XX, citaremos um trecho da Hélade, Antologia de
Cultura Grega. Ed. Asa,
8.ª ed., 1994, pp. 25‑26. A autora é a Professora Maria Helena da Rocha
Pereira. É justamente este curto texto da eminente filóloga de Coimbra que peço
licença para citar, pela exactidão da tradução, que nos transmite o encanto da
criança, conhecido, como disse, há cerca de 28 séculos.
Depois que assim falou, o ilustre Heitor estendeu os braços ao filho.
Logo a criança se voltou aos gritos, para o seio da ama de bela
cintura,
assustado com o aspecto do seu amado pai,
com medo do bronze e do penacho de crinas de cavalo,
que via tremer, assustador, no alto do capacete.
Desatou a rir o pai querido e a mãe venerável.
Logo o ilustre Heitor retirou o capacete da cabeça e pousou no solo,
todo resplandecente.
Depois que beijou o caro filho, e o embalou nos braços, dirigiu esta
prece a Zeus e aos outros deuses:
Zeus e demais deuses, concedei‑me que este meu filho
venha a ser como eu, se distinga entre os Troianos,
seja assim forte e governe Ílion com o seu poder.
E que alguém diga: É bem mais valente que o pai.
Quando regressar do combate, que traga os despojos sangrentos do
inimigo que abateu, para gáudio de sua mãe.
Dito isto, pôs nos braços da esposa
o filhinho; ela recebeu‑o no seio perfumado,
entre risos e lágrimas; condoeu‑se o marido ao vê‑la,
acariciou‑a, e dirigiu‑lhe estas palavras, chamando‑a pelo nome:
Louca, não te aflijas assim no teu coração.
Ninguém me lançará no Hades contra as ordens do Destino.
Garanto‑te que nunca homem algum, bom ou mau,
escapou ao seu Destino, desde que nasceu.
Vai para casa tratar dos teus trabalhos,
o tear e a roca, e dá ordem às tuas aias
de fazer o seu serviço; a guerra diz respeito aos homens,
a quantos nasceram em Ílion, e a mim mais que a nenhum.
Quanto às traduções completas dos poemas, são conhecidas, do séc. XIX, a de
Odorico Mendes e a de João Félix Pereira, já mencionados por mim em comunicação
à Academia de História (em 15 de Fevereiro de 2006). Do séc. XX, há varias
traduções completas em língua portuguesa. Das traduzidas do original grego,
podemos citar a de Manuel Alves Correia e de Eusébio Dias Palmeira (1.ª ed. Sá
da Costa, Lisboa, 1938), reeditadas em 1944‑45.
De todas as edições completas, a mais notável parece‑me a de Frederico
Lourenço, do séc. XXI (Edições Cotovia, 2001 e 2005, várias vezes reeditadas).
Um outro busto de Homero
Às outras traduções portuguesas integrais, do séc. XX e XXI, não farei
referência expressa porque os tradutores respectivos não dão informação sobre
se traduziram do original ou de um texto traduzido em qualquer língua
ocidental.
Além do episódio da despedida de Heitor e de Andrómaca, encontramos nos poemas
homéricos algumas outras referências ao comportamento infantil, que nos
despertam sorrisos pela sua naturalidade e actualidade.
Na Ilíada, Canto VIII, vv. 267‑272, uma manobra de Teucro, guerreiro grego,
que, abrigado sob o escudo de Ájax, faz pontaria ao inimigo com as flechas
sugere ao poeta uma comparação com a criança que se refugia ao pé da mãe.
Ouçamos o poeta:
Posicionou‑se debaixo do escudo de Ájax Telamónio
e Ájax moveu o escudo por cima dele. O herói aguardava
até que com o disparo atingisse alguém na multidão:
tombava então esse homem e perdia a vida, ao que Teucro
de novo recuava como a criança para junto da mãe,
neste caso para junto de Ájax, que o cobria com o escudo luzente.
E ouçamos agora uma evocação da vida caseira e da alimentação infantil,
expressa pela boca do preceptor de Aquiles, como se fosse uma ceia de um dia de
hoje num infantário (Ilíada, IX, 485‑491):
E fui eu que te fiz assim, ó Aquiles semelhante aos deuses,
amando‑te do coração. Pois com nenhum outro querias
tu ir ao festim, nem banquetear‑te no palácio,
antes que eu te tivesse sentado ao meu colo
e cortado uma lasca de carne e dado um gole de vinho. Muitas vezes a
túnica sobre o meu peito molhaste de vinho,
engasgando‑te na tua pobre criancice!
E, como um flash sobre uma cena actual, o poeta descreve‑nos as construções na
areia que as crianças fazem na praia (Ilíada, XV, 301‑366):
(Apolo) Deitou abaixo a muralha dos Aqueus com a facilidade
do menino que espalha a areia na praia, junto do mar
quando nela constrói brincadeiras infantis
e logo de seguida com as mãos e os pés a espalha, brincando.
Foi assim que tu, ó Febo archeiro, derrubaste o longo trabalho
e o esforço dos Argivos, lançando contra eles a debandada.
Nem as atitudes do menino que pede colo escapam ao olhar do poeta (Ilíada, XVI,
7‑10):
Por que razão choras, ó Pátroclo, como uma rapariga,
uma menina que corre para a mãe a pedir colo
e, puxando‑lhe pelo vestido, impede‑a de andar,
fitando‑a chorosa até que a mãe pegue nela ao colo?
E aquele mesmo Astíanax, que se assustara com o elmo do pai, é invocado, na sua
tenra idade, pela mãe, que chora a morte de Heitor (Ilíada, XXII, 500‑504):
Astíanax, que anteriormente nos joelhos do pai
só comia o tutano e a rica gordura das ovelhas,
e quando sobrevinha o sono e parava de brincar,
dormitava no leito, nos braços da sua ama,
numa cama macia, seu coração saciado de coisas boas.
Esta evocação da criança, a quem a morte do pai irá privar do conforto e dos
mimos de que gozava, proporciona‑nos informações sobre alimentação infantil,
composta de produtos macios e facilmente mastigáveis. Proporciona‑nos ainda o
quadro da criança a cair de sono, embriagada de brincadeira, como hoje.
O comportamento da criança, sobretudo na primeira infância, pouco modelada
ainda pela mentalidade da época, sugere‑nos que a criança é um produto da
natureza, sempre igual a si mesma através dos milénios, como nos informam estes
instantâneos do primeiro poeta da literatura ocidental.
A mentalidade e o comportamento do adulto é que mudaram através do tempo.
Notas
[1] Sobre a tão falada «questão homérica» consultar: Maria Helena da Rocha
Pereira, Estudos de História de CulturaClássica, I vol. Cultura Grega. Fundação
Calouste Gulbenkian, 9.ª ed., 2003.
[2] Inocêncio Francisco da Silva, Dicionário Bibliográfico Português, tomo
VI, p. 98: Fragmentos de versões de Homero Metrificadas em Língua Portuguesa. A
edição citada é a do séc. XIX.
[3] As poesias foram publicadas em 1812 (tomos 1.º e 2.º) e em 1817 (tomo
3.º), na Imprensa Régia, Ver: I. F. da Silva, DBP.
[4] As poesias foram publicadas em 1812 (tomos 1.º e 2.º) e em 1817 (tomo
3.º), na Imprensa Régia, Ver: I. F. da Silva, DBP.
[5] Sobre a sua bibliografia consultar, além do já citado DBP, A Grande
Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. VII, Editora Enciclopédia, Lda.
Lisboa ‑ Rio de Janeiro
[6] Ver também a obra intitulada «Miscelânea Hellénico‑Literária
oferecida aos Estudantes do Curso Superior de Letras de Lisboa pelo professor
da mesma Instituição, António José Viale, do conselho de Sua Majestade, Sócio
da Academia Real das Sciências, Lisboa, Imprensa Nacional, 1868.
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