A fortuna de um autor chamado Menandro
Após trinta anos de vida artística, em que produziu um número próximo de 105 ou
108 comédias (cf. Aulo Gélio, Noites Áticas17. 4. 4), Menandro falecia em 292/
1 a. C. Reservava-lhe o destino, nos séculos que se seguiram, um aplauso mais
sonoro do que aquele que alcançara em vida (cf. Quintiliano 3. 7. 8; Marcial 5.
10. 9)[1]. A Antiguidade grega e romana havia de alimentar sobre a sua produção
dramática um grande entusiasmo, que, ao cabo de um percurso incerto de êxito e
esquecimento, veio a estiolar-se com os primórdios da época medieval. O facto
de ter sido adoptado, na época alexandrina, como um padrão cultural[2]
contribuiu decisivamente para fazer das suas criações uma referência de grande
valor pedagógico[3], quer no plano básico do ensino, quer a nível das escolas
de retórica. Este interesse fervilhante por Menandro deve-se em boa parte à
política de preservação e recolha dos textos dos clássicos gregos e latinos
empreendida pelos eruditos ao serviço da biblioteca de Alexandria, no séc. III
a. C. Além do inventário de toda a literatura conhecida, organizaram-se
listagens dos melhores autores de cada género, os famosos cânones, o que
defendeu a sobrevivência das obras e dos nomes inventariados. Além dos textos
completos, que se ficaram a dever em boa parte a esta política praticada no
Egipto, aos papiros aí encontrados se deve também a popularidade do Menandro
das sentenças. Daqui resultou a abundância de papiros e de inscrições, que,
provindos já do séc. III a. C., têm para nós hoje uma expressão mais
significativa sobretudo a partir do séc. I a. C.[4]. A popularidade de Menandro
manteve-se ao longo dos séculos com luz intermitente e através de instrumentos
vários. De acordo com uma tradição largamente difundida, numa época em que os
textos das peças integrais pareciam já raros, circularam resumos das criações
de Menandro feitos por Miguel Pselo (séc. XI)[5]. No Egipto, porém, a
popularidade de Menandro perdurou por toda a Antiguidade, até meados do séc.
VII, o que justifica a importância dos papiros mais tarde aí recolhidos. Na
verdade, pode constatar-se modernamente a permanência do poeta ao longo de toda
a época do papiro, ou seja, do séc. III a. C. ao II d. C.
Em finais do séc. I d. C., Plutarco (Moralia854 a-b) faz-se eco dos louvores
que lhe são dirigidos e testemunha-lhe a popularidade, pela presença que tem em
cenários sociais da maior expressão cívica ' nos teatros, nos discursos, nos
banquetes, em leituras públicas, em representações públicas ou privadas, no
ensino e nos concursos dramáticos. Além da reposição frequente das suas peças,
a aceitação de que gozava nos banquetes, onde citações e leituras de cenas de
Menandro eram muito apreciadas (cf. Moralia712 b)[6], contribui para a mesma
imagem de sucesso. Mas, como documenta ainda o Queroneu, o comediógrafo
conquistou também um lugar de relevo entre as camadas mais eruditas, que
encontravam nas suas peças versos apropriados à abonação de variadas questões
de natureza intelectual. O mesmo Plutarco, que é dessa prática um exemplo
expressivo, deixa até evidente em que áreas o velho poeta pode ser
particularmente útil. Pela natureza das suas criações, a figura de Menandro é
paradigmática de um certo padrão de poesia dramática, onde ofusca, na opinião
dos pensadores e educadores do final do séc. I, o sucesso retumbante de
Aristófanes. Plutarco, que dedicou um capítulo dos seus Moralia a uma
comparação entre os dois comediógrafos[7], não hesita em condenar a grosseria e
vulgaridade de Aristófanes, por contraste flagrante com a elegância, coesão e
equilíbrio do estilo do poeta da Nea(853 d-e). São consideradas oportunas as
reflexões que emitiu a propósito de questões de ética e de filosofia, a teoria
que defende e a prática de que é exemplo em questões de retórica, além do
tratamento de um tema que lhe é particularmente caro e que constitui uma
espécie de espinha dorsal da sua obra (Moraliafr. 134 Loeb), o amor, onde se
mostrou uma verdadeira autoridade' (Moralia654 d). Do seu tema favorito,
Menandro omitiu a vulgaridade ou os excessos, para lhe dar um tom marcadamente
filosófico, o que o torna propício para discussões entre eruditos ou
simplesmente aceitável no lar de uma família digna (Moralia fr. 134).
Percebemos que neste novo universo cultural, Menandro resistia ainda em cena,
mas sobretudo circulava em citações retiradas das suas peças, com os mais
diversos objectivos pedagógicos, culturais e lúdicos. Nesta nova utilização têm
origem as famosas sentenças[8], constituídas por versos retirados das suas
peças, que serviam, pelo seu teor filosófico e reflexivo, não apenas como
modelos de expressão, mas sobretudo como orientação moral para os jovens em
formação. Num plano escolar mais especializado, o da formação de retóricos,
nomes como Dio Crisóstomo (Discursos18. 6-7) e Quintiliano (Ensino da
Oratória10. 1. 69-72) recomendam igualmente as virtudes do seu estudo[9]. Todo
este espectro de intervenção coloca Menandro entre os autores mais célebres da
Antiguidade, ao lado de Eurípides e Píndaro na opinião de Plutarco (Moralia 706
d), ou mesmo, de acordo com o gramático Aristófanes de Bizâncio (séc. II d.
C.), num honroso segundo lugar, apenas precedido por Homero[10].
Sobretudo nos séc. III-II a. C., o sucesso de Menandro ecoou em Roma, pela
fidelidade com que os nomes de referência da comédia latina ' Plauto, Terêncio
e Cecílio Estácio[11] ' o tomaram por modelo. É relevante recordar que, entre a
morte de Menandro e a adopção pelos comediógrafos latinos dos padrões da Nea,
tinham decorrido escassos cinquenta anos. Do mesmo modo que é flagrante o
ajuste a que, por diversas razões que se prendem com as características da
Comédia Nova[12], esta produção grega se prestou relativamente aos interesses
do público romano. A tendência para pensar que essa afinidade, entre o
comediógrafo grego e os seus sucessores em Roma, era mais nítida no caso de
Terêncio, o dimidiatus Menander, veio a ser corrigida pelos achados mais
recentes do poeta ateniense, que acentuaram a dependência de Plauto face aos
seus originais. Menandro aparece como a fonte privilegiada para o Sarsinate,
pela influência determinante que exerceu sobre Bacchides, Cistellariae Stichus
(que retomam o Dis Exapaton[13], Synaristôsaie Adelphoi A' menandrinos
respectivamente), para além da eventual relação entre a Aululariae o Apistos
ateniense, ou do Poenuluse o original menandrino com o mesmo título.
Consideremos, no entanto, também a tradicional dependência que Terêncio manteve
com o glorioso poeta da Nea. Desta vez com maior segurança, Menandro pode ser
identificado como referência para a Andria (uma contaminatiodas suas Andriae
Perinthia), o Heautontimoroumenos(contaminatiodo Eunuchuse do Colax) e Adelphoe
(inspirados nuns Adelphoe B'menandrinos que não os que Plauto utilizou)[14].
Do mesmo modo que a época helenística grega expandia a influência de Menandro
para além do mundo do teatro e o fazia penetrar em todos os domínios da
actividade intelectual, outro tanto se passou em Roma: importado para a cena
latina pelos criadores dramáticos, Menandro veio a interessar a classe erudita,
cativando as atenções, no séc. I a. C., de nomes de referência como Cícero,
César ou Varrão. Para Cícero (De Finibus1. 4), que discute a vantagem de
aceder, em versão latina, aos originais de Menandro, a propósito do caso
concreto dos Synephebide Cecílio Estácio e da Andriade Terêncio, a prioridade
está em ler, sublinhando um outro processo de divulgar o sempre apreciado
autor de Atenas[15]. César (Suetónio, Vida de Terêncio7, p. 9 W) não tem dúvida
em dar a Menandro vantagem sobre o seu imitador latino, o tal, apenas por seu
mal, dimidiatus Menander. Por fim Varrão ' encarregado por César de recolher a
herança alexandrina (Suetónio, Júlio César44. 4) e de organizar uma biblioteca
a partir de modelos gregos ', mostrava-se um perito na criação cómica de Atenas
e de Roma e podia emitir juízos comparativos baseado no conhecimento, por igual
minucioso, de ambas as matérias.
Ainda em pleno florescimento da literatura latina, já no tempo de Augusto,
Menandro continuava a merecer a atenção dos melhores, como Horácio, Ovídio ou
Propércio. O sentido desses testemunhos tem a ver com o reconhecimento de que o
agora já clássico Menandro continua a gozar, entre os intelectuais, de um
grande prestígio, na mesma galeria onde alinha ao lado de Homero, Safo,
Arquíloco, Platão Cómico, Êupolis ou Demóstenes, entre outros nomes igualmente
sonantes (Horácio, Sátiras2. 3. 11-12; Propércio 3. 21. 25-28). Pini[16]
sublinha também como Menandro parece concorrer com Homero, dentro de um grupo
de autores que proporcionam o tipo de ensinamento de que um orador carece, e
como, expressivamente, nas listas em que são mencionados ocupam posições
estratégicas, na abertura e no fecho, o que lhes confere particular
visibilidade (cf., e. g., Quintiliano, Ensino da Oratória10. 1. 70; Dionísio de
Halicarnasso, Sobre a imitação2. 204, 207; Ovídio, Amores1. 15. 9-18, Tristes2.
369-370; Plínio, História natural7. 107 sq., 111; Díon de Prusa, Or. 18. 6
sqq.; Suetónio, Vespasiano23. 1). Propércio não hesita em o classificar de
cultus(3. 21. 28, Loeb), nem Ovídio, Tristes2. 369-370, de recordar o amor como
o seu tema predilecto[17]. É, como um paradigma, por ele que se afere o mérito
de outros, como o de Afrânio, do nível de um Menandro (Horácio, Epístolas2.
1. 57). Numa palavra, as razões que constituíam o prestígio de Menandro
prosseguiam aquelas que tinham estimulado o interesse grego em torno da sua
personalidade literária. Mas um aspecto parece cada vez mais sensível: o de que
o acesso a Menandro se faz pela leitura, que responde agora a um outro padrão
de expectativa (cf. Horácio, Sátiras2. 3. 11-12; Propércio 3. 21. 23-28).
Ovídio, Tristes2. 369-370, recomenda-o como leitura para ambos os sexos[18].
Sintetizando com A. Pociña[19]: Assim, mais de três séculos depois de ter
deixado de ser representado nos teatros gregos, e cerca de dois após ser levado
à cena em Roma sob as criações latinas a que as suas peças serviram de modelo,
as comédias do maior representante da Nea eram lidas com deleite, como qualquer
outro tipo de poesia destinado à leitura, por pessoas cultas de Roma, por
jovens que se preparavam para ocupar os mais altos cargos na vida pública,
pelos filhos das melhores famílias.
Mas são vários os tons com que o séc. I manifesta interesse por Menandro[20]. É
disso prova o empenho com que Quintiliano (1. 10. 18, 10. 1. 70) recomenda a
leitura das suas peças como treino para um orador em formação; dentro desta
perspectiva pedagógica, justifica-se o seu interesse particular pelo
Hypobolimaeus, uma peça que tratava do tema prioritário da educação, ou, por
exemplo, por agonescomo aquele que anima a intriga da Arbitragem. E não estava
isolado Quintiliano, porquanto outros vultos de peso na época ' Plínio,
História natural7. 111, 30. 7; Marcial, 5. 10, 14. 187, 14. 214 ' insistiram em
incluir Menandro entre os nomes mais sonantes da velha literatura grega, dentro
de uma lógica semelhante à dos cânones na tradição alexandrina[21]. Dele se
serviram, em particular Plínio, como de um manancial de pormenores da cultura
grega e como testemunho de um vocabulário preciso de uso quotidiano (cf.
História natural13. 13, 18. 72, 20. 252, 23. 159, 37. 106).
Não pode, por outro lado, deixar de considerar-se que, em época romana, o grego
era, para muitos leitores, uma língua estrangeira, o que exigia, para a
acessibilidade dos textos, anotações e comentários à margem, que facilitassem a
sua compreensão. Na mesma linha da tradição alexandrina, estas notas foram
muito úteis na preservação de lições autênticas e na devolução de fragmentos. É
perceptível que a decadência cultural, que se fez sentir a partir do séc. II d.
C., reduziu o número daqueles que eram capazes de ler e entender os autores
gregos da época clássica. Cada vez mais reduzido, no acesso, a uma camada
restrita de estudiosos e eruditos, o texto dos autores helénicos foi confinado
a interesses cada vez mais técnicos e específicos, de que são exemplo as
perspectivas gramatical, métrica ou lexicográfica (caso do lexicógrafo Pólux,
ou do coleccionador de anedotas e citações que foi Ateneu, a quem se deve a
recuperação de alguns fragmentos de Menandro). Estas finalidades específicas
favoreceram a prioridade de selectas antológicas sobre a leitura das obras
completas. É também em ambientes eruditos que Aulo Gélio, Noites Áticas2. 23,
testemunha a possibilidade de uma leitura, a proporcionar comparações, entre a
versão latina do Plociumde Cecílio Estácio e o original grego de Menandro.
Também nesta passagem do séc. II para o III, Cláudio Eliano, um rhetorgrego
cujos escritos foram muito apreciados por moralistas posteriores (Epístolas13-
16), criava uma troca epistolográfica[22] entre Calípides e Cnémon, que se veio
a mostrar, quando o Misantroporeapareceu na modernidade, inspirada nesta
comédia; na referida correspondência, que não existe no contexto da peça,
Eliano mostra conhecer com clareza o sentido dos conceitos e relações
encarnados por Menandro nas suas duas personagens[23]; como nota Gallavotti
[24], não se trata apenas de um conhecimento directo, mas de um verdadeiro
estudo e compreensão da comédia de Menandro. Dentro da mesma linha
epistolográfica, vinha já a correspondência simulada entre Menandro e Glícera,
de Álcifron. Esta é uma época marcante para a recolha dos versos sentenciosos e
com sabor moralizante, bem como de referências sugestivas de realia. Com o
distanciamento, progressivamente mais acentuado, em relação às peças completas,
foi este material fragmentário o que teve continuidade na tradição manuscrita,
recolhido, em ocorrências ocasionais, como exemplo, pelos gramáticos e
lexicógrafos[25]. Mas sobre o que era, nesta época, a projecção de Menandro,
Cristodoro (APII, 357-360) atesta que, no Ginásio de Zeuxipo, fundado em
Bizâncio no tempo de Septímio Severo (séc. III), se tinha erigido, em honra de
Cratino, uma estátua, ao lado de outra de Menandro, o melhor da Archaia lado a
lado com o primeiro da Nea[26].
Uma palavra é devida à presença que a poesia dramática teve junto dos autores
cristãos[27]. Apesar das críticas que veiculam a propósito do efeito negativo
dos espectáculos, é inegável o conhecimento que têm da tradição teatral, ou por
os frequentarem antes de convertidos, ou por os conhecerem através da leitura.
Esse contacto livresco remonta, naturalmente, ao período escolar (cf.
Agostinho, Confissões1. 16. 26), apesar de poder acompanhar o já convertido,
como confessa S. Jerónimo (Epístolas22. 30), um adepto de Plauto. Segundo
Schneider[28], os autores dramáticos conhecidos dos cristãos eram, entre os
gregos, Eurípides e Menandro, e, entre os latinos, Séneca, Plauto e sobretudo
Terêncio. De onde se depreende que, também neste caso, o acesso a Menandro se
fazia por via directa, a da leitura das suas peças, e indirecta, pelos autores
latinos que influenciou. Esse conhecimento justifica a naturalidade com que S.
Paulo, por exemplo, cita Menandro, aproveitando-lhe os versos sentenciosos. É
disso exemplo a I Cor.15. 33 (fr. 218 K), onde adapta o pensamento expresso
pelo autor pagão, Menandro ' as más companhias corrompem os bons costumes '
aos seus objectivos[29], citação notada por Fócio nos finais do séc. IX nos
Amphilochia, 151. Mas há também os que, como Apolinário de Laodiceia (séc. IV),
compõem, à maneira menandrina, peças com finalidades doutrinárias.
Menções relativamente isoladas, como a de Ausónio, Protrepticus ad Nepotem45-
47, mostram que o séc. IV prosseguia com a mesma reverência por Menandro, entre
os autores que se podem enumerar como fundamentais da literatura grega antiga.
No termo deste século, Macróbio (Comentário ao sonho de Cipião1. 2. 8)
apregoava também o agrado que a leitura de uma comédia de Menandro produzia. E
até finais do séc. V, altura em que o império romano ruiu (476), a situação não
se alterou[30]. É disso testemunho Sidónio Apolinar, que continua a referir o
agrado que a leitura do velho comediógrafo produz. É também interessante
assinalar, na perspectiva que nos transmite, o problema constante da
apreciação, em paralelo, dos originais de Menandro e das comédias latinas que
inspirou. Assim Terêncio, apreciado por Sidónio Apolinar, só pode ser lido e
entendido por comparação com o modelo menandrino (Carmina23. 147, Epístolas4.
12. 1). Dentro das glórias da literatura latina, Menandro ganha, nas
preferências deste erudito, um lugar semelhante ao que cabe a Virgílio
(Carmina13. 36). Em paralelo, o trabalho de compilação de textos antológicos de
poetas e prosadores gregos prosseguia[31], para proliferar por todo o mundo
grego até final do período bizantino; registe-se o exemplo do Florilegiumde
Estobeu[32] que, no séc. V, foi responsável pela salvaguarda de um número muito
apreciável de fragmentos, pertencentes a diversas peças de Menandro (Escudo,
Lavrador, Duplo engano, Arbitragem, Herói, Possessa, Cartaginês, Citarista,
Bebedoras de cicuta, Mulher do cabelo rapado, Moça de Perinto, Siciónio), o que
documenta a variedade de peças então ainda conhecidas. No mesmo séc. V, dentro
da tradição retórica da epistolografia, Aristéneto é o exemplo do autor que
incorpora citações constantes do escol da literatura grega antiga, onde se
inclui Menandro, como o achado do Misantropoveio provar[33]. Arnott é
expressivo sobre a metodologia usada: Aristéneto insere num contexto estranho
uma frase plagiada que reteve de memória por o ter impressionado; daí o
isolamento de muitas dessas citações em termos vocabulares. Apesar da atenção
ainda despertada por Menandro, este é o século que assiste ao fim das
representações teatrais[34].
Do que se passou com a transmissão dos clássicos entre os séc. VI-VIII, em
paralelo com a decadência do saber e da formação cultural, pouco sabemos. Mas
esta terá sido a fase de uma perda significativa dos originais de Menandro. São
vagos os indícios, sugeridos sobretudo por ecos estilísticos, como em Procópio
de Gaza (e. g., Declamações5. 30, Epístolas43. 3, 123), onde se pressente a
citação de terminologia e o uso de motivos do clássico da Nea; ou em Corício
de Gaza (Apologia dos mimos32, 145, Declamações12. 1 sqq,), discípulo de
Procópio, em princípios do séc. VI, que parece ter ainda lido algumas obras
completas; ou, já no séc. VII, do historiador Teofilacto Simocata (Epístolas27,
29, 61, 77), que cita versos de Menandro[35] e testemunha uma leitura directa
das suas peças[36]. Somem-se menções esporádicas, feitas particularmente pelos
comentadores de Terêncio. Venâncio Fortunato e Eugráfio (finais do séc. VI),
por exemplo, apenas lhe referem o nome. Com os séculos seguintes surgiu, no
entanto, em Bizâncio uma época de renascimento e renovado interesse associado a
nomes como o de Fócio (séc. IX), o patriarca bizantino, que foi figura capital
dos estudos gregos da época e a quem devemos a devolução de fragmentos do Duplo
engano, Arbitragem, Herói, Possessa, Cartaginês, Citarista, Odiento, Moça de
Perinto, Siciónio; ou de Eustácio (séc. XII), bispo de Tessalonica, também ele
autor de comentários sobre os autores gregos. Por outro lado a Suda, um léxico
ou enciclopédia literária compilado em finais do séc. X, retoma os léxicos
anteriores e integra escólios e citações de historiadores, gramáticos e
biógrafos[37]. Multiplicam-se os comentários[38]: assim Dídimo de Alexandria e
Soteridas (cf. Suda s. u.Soteridas; Etymologicum Gudianum338 e 25), Timáquidas
de Rodes, autor de um comentário ao Adulador (Anecdota Graeca4. 25), Nicádio de
um sobre a Possessa(Etymologicum Magnum388, 36). É desnecessário assinalar a
importância de todo este material para a recuperação de Menandro, embora as
lições preservadas não garantam a genuinidade em relação à versão original,
tanto mais que se tratava de o reproduzir fora do seu contexto. Grilli[39]
sublinha como a própria vulgarização de alguns conceitos e citações e os
recursos usados para autonomizar os versos são responsáveis por inúmeras
variantes e por uma difícil opção em termos de crítica textual. Este processo
conduziu à metamorfose que Liapis[40] refere como uma transformação de versos
originalmente dramáticos em monostichoi in usum scholarumde tom edificante'
[41]. P. Bádenas de la Peña[42] chama a atenção para o facto de poucos códices
antigos terem chegado às bibliotecas bizantinas, e, no entanto, haver menções a
exemplares das comédias de Menandro como existentes na Biblioteca Patriarcal de
Constantinopla, num catálogo do séc. XVI, mesmo se a informação suscita dúvidas
[43]. Particularmente relevantes para a preservação de Menandro até ao
Renascimento e séculos posteriores foram as recriações de Plauto e Terêncio
nele inspiradas, que, essas sim, nunca deixaram de ser lidas[44].
Por razões que se desconhece, Menandro não figura na tradição medieval.
Blanchard[45] sugere que o mesmo tema que o celebrizou, o amor, possa ter sido
objecto de uma censura severa pela igreja e ter contribuído para essa
desaparição. As menções que lhe são feitas apresentam-se obscuras; refere ainda
o mesmo estudioso que Demétrio Carcôndilo, professor de grego em diversas
universidades italianas entre os séc. XV e XVI, seria o testemunho desta
censura e dos motivos atrás invocados. Tradição semelhante é relatada, pela
mesma época, por Pietro Alcionio, também professor de grego em Florença e Roma,
e repetida, já no séc. XIX, por estudiosos de Menandro como Benoit e Guizot. No
entanto, a tradição dos florilégios não se quebrou na época medieval; por toda
a Europa continuou pujante a recolha de excertos de autores tanto pagãos como
cristãos.
A partir do Renascimento, e graças à sua projecção do passado, apoiada na
popularidade que ganharam alguns autores que na Antiguidade o apreciaram,
repetiram e louvaram ' casos paradigmáticos podem ser os Moraliade Plutarco e a
obra retórica de Hermógenes[46] ', Menandro conhece alguma revitalização. J. A.
López Férez[47] recorda, a propósito do encantamento de Erasmo pelos clássicos
gregos e latinos e das frequentes citações que deles faz, uma que dedica a
Menandro, nas suas Anotações ao Novo Testamento: exprime o humanista de
Roterdão o quanto lamenta a perda das obras de Menandro, a quem poderia ter
conferido, de acordo com a fama que dele subsistia, o primeiro lugar entre os
Gregos, a par do que concede a Terêncio entre os latinos. Apesar dessa perda,
Erasmo, nas edições sucessivamente aumentadas dos Adagia, cita com frequência
Menandro; outro tanto se passa no Moriae encomium, no De ratione studii (onde
recomenda quatro poetas gregos ' Aristófanes, Homero, Eurípides e Menandro ',
para concluir que este último seria sem dúvida o primeiro, caso tivéssemos as
suas obras), em Lingua (onde diz que, à licença de Aristófanes e à indignatio
de Juvenal e Pérsio, prefere Menandro, Luciano, Horácio, além de Plauto e
Terêncio), e nos Colloquia (veja-se o caso do Exorcismus siue Spectrum, onde a
personagem Anselmo conta uma história que o seu interlocutor, Tomé, identifica
com a comédia do Fantasma: haec fabula, ut uideo, uincit Phasma Menandri'
[48]).
A importância fundamental de Erasmo na cultura da época tornou-o, sem dúvida,
num transmissor de relevo para o impacto que Menandro manteve, mesmo se apenas
como uma referência, entre os poetas da Antiguidade.
Se os textos dramáticos do comediógrafo da Neatinham desaparecido, a sua fama
como autor de sentenças continuava, como testemunha a presença expressiva que
lhe era dada nos léxicos ou enciclopédias então em voga, na mesma linha que
vigorara desde a Antiguidade. É evidente que preocupações didácticas
continuavam responsáveis por esta actividade de recolha e reedição; ao mesmo
tempo que as inúmeras antologias disponíveis por toda a Europa funcionavam de
repositórios de citações à disposição dos retóricos humanistas. Neste contexto
se integra o De inuentoribus rerumde Polidoro Virgílio (c. 1470 ' 1555), uma
famosa enciclopédia, que teve mais de cem edições antes do séc. XVIII, onde vem
a propósito uma reflexão de origine satyrae nouaeque comoediae (DIR, 1.11); aí
se reconhece a decadência da comédia antiga e, por conveniência social e
política, o sucesso de um novo padrão mais brando e de agrado geral, onde tem
intervenção relevante o Menandro inventor: Cuius Menander et Philemon autores
fuere, qui omnem prioris comoediae acerbitatem mitigarunt'[49]. Pode ainda
servir de exemplo a Polyanthea de Domenico Nani Mirabelli, uma espécie de
enciclopédia de conceitos, discutidos e abonados com citações abundantes dos
autores referenciais do mundo antigo, publicada pela primeira vez em Savona
(1503) e repetidamente reeditada (e. g. em Colónia 1552)[50], de que se
adivinha a circulação ampla; o número de citações retiradas de Menandro (s. u.
abstinentia, amicitia, auaritia, coniuratio, curiositas, só para dar alguns
exemplos) deixa clara a popularidade do seu pensamento ético, em obras que
prosseguiam, no séc. XVI, com o teor de recolha, sistemática e pedagógica, que
já a época bizantina tinha, como vimos, praticado. Sirva ainda de exemplo o
dicionário de Iacobus Ravisius Textor (nome por que ficou conhecida a
colectânea Officina partim historiis partim poeticis referta disciplinisde Jean
de Tixier) que, no seu vocabulário de Epitheta (1524), s. u. Menander, recorda
o poeta como legítimo detentor de epítetos laudatórios (iucundus, facundus,
amabilis, doctus, blandus) que a tradição lhe atribuiu, valorizando o
equilíbrio do seu estilo, a qualidade ética e sentenciosa do seu pensamento,
para além da nunca desmentida preferência pelo amor como tema central das suas
intrigas.
Para além deste tipo de obras de referência, o texto literário não lhe negava
também uma apreciável simpatia, ainda que justificada de forma indirecta. Podem
ser significativos os testemunhos da sua recepção, em França, por exemplo.
Consideremos, em primeiro lugar, a observação de M. Lazard[51] sobre a forma
assimétrica como os modelos greco-latinos aí foram importados no que se refere
à comédia; naturalmente os latinos conheceram um grande aplauso, que foi, em
contrapartida, discreto no caso de Aristófanes; quanto a Menandro refere aquela
autora: Menandro, mencionado pelos teóricos, foi mal conhecido, através dos
fragmentos, escassos e dispersos, e sobretudo como modelo de Terêncio. É
sabido que, no séc. XVII, Racine traduziu alguns fragmentos de Menandro, a
partir de uma edição publicada por Guillaume Morel, em 1553; no seu Préface de
Bérénice mostrara-se entusiasmado pela simplicidade paradigmática do dramaturgo
grego[52]. Esta informação de que fragmentos de Menandro circulassem no séc.
XVI entre os intelectuais franceses vem ao encontro do comentário proferido por
aquele que foi o primeiro autor e encenador de uma comédia à maneira clássica,
publicada e representada em francês no séc. XVI parisiense[53], Étienne
Jodelle, aluno distinto do Collège de Boncourt, em 1553 (onde foi também
regente Georges Buchanan). Sobre essa experiência teatral é explícito Charles
de la Motte, o editor da obra de Jodelle, em 1574: Em 1552[54], apresentou e
foi o primeiro dos franceses que exprimiu na sua língua a tragédia e a comédia
em forma antiga. No prólogo de Eugène, a única conservada das duas comédias,
Jodelle afirma as suas intenções: pretende remodelar a comédia nacional,
recusando as moralidades em voga entre os autores de farsa, e criar um outro
modelo de comédia literária, que sem propriamente importar os temas antigos, se
sirva do teatro clássico como de um padrão. Menandro é, no v. 1, referido por
Jodelle a propósito do seu próprio projecto teatral: L'invention n'est point
d'un vieil Ménandre; e porque este é o único autor nominalmente referido neste
prólogo, como que representa, só por si, a comédia grega. Jodelle consagrou-se,
assim, como o restaurador do teatro antigo em língua francesa, preservando, na
imitação, uma saudável independência criativa. O sucesso obtido por esta
iniciativa, ao que parece sonora no seu tempo, justifica que Ronsard, ao
publicar, no mesmo ano, a segunda edição do Livro V das suas Odes, na Elegie à
J. de la Peruse com que encerrava a obra, louvasse a bem sucedida ousadia de
Jodelle. Depois deste elogio a quente', insistia, anos mais tarde (1561), no
seu Discours à Jacques Grevin, em sublinhar o mesmo sucesso, de um Jodelle que,
perante as autoridades máximas (devant nos rois), se saíra tão bem com o
regresso aos modelos gregos que Sophocle et Ménandre tant fussent-ils sçavants
y eussent peu apprendre. O próprio Ronsard se serviu do Florilégiode Estobeu,
publicado em 1543 em Zurique e, mais tarde, de novo em Paris, no ano de 1552,
onde pôde encontrar diversos fragmentos, eróticos, sentenciosos e morais,
provindos de autores como Mimnermo, Sófocles, Filémon e Menandro[55].
Apesar, ao que parece, de muito circunscrito, o conhecimento de Menandro
prosseguiu no séc. XVII. Racine, na sua comédia Les Plaideurs, inspirada em
Vespasde Aristófanes, escreve uma nota prévia, dirigida au lecteur, onde se
defende da ousadia e das críticas de que a sua criação foi objecto. Trata-se de
uma polémica em torno de diferentes propostas e regras da arte de fazer rir.
Tal receio seria sem sentido se, em vez de Aristófanes, o modelo usado fosse
Menandro. É com ironia que Racine[56] protesta: La régularité de Ménandre et
de Térence me sembloit bien plus glorieuse et même plus agréable à imiter que
la liberté de Plaute et d'Aristophane. É verdade que o pouco que se sabia de
Menandro dependia de fragmentos, que aliás Racine conhecia e de que foi
tradutor[57]. Mas apesar de uma grande ignorância sobre a Comédia Nova em
função das perdas graves entretanto sofridas, o prestígio de Menandro
prosseguia como eco de uma tradição, que fazia dele, ao lado de Terêncio, um
verdadeiro paradigma do género. No mesmo séc. XVII francês, La Fontaine
(Oeuvres complètes, ed. H. Régnier, VIII (Paris 1892) 83) voltava a colocar
Menandro ao lado de Sófocles, como modelos para comédia e tragédia
respectivamente; e Boileau (Dissertation sur la Joconde, ed. Ch. Boudhors
(Paris 1942) 83) afirmava ter de Menandro um conhecimento indirecto através de
Terêncio. Mais próximo de Plauto, nas suas criações, Molière foi, pelos seus
contemporâneos, comparado com Menandro e Terêncio[58]. Gross[59] insiste em
que, para além das réplicas latinas, os contemporâneos de Racine, La Fontaine e
Boileau, conheciam também Menandro através dos testemunhos indirectos da
Antiguidade e regista o caso de Baillet cuja apreciação de Menandro assentava
em Quintiliano: Ménandre avoit l'imagination très féconde, une facilité
admirable de s'exprimer avec grace, avec force, et avec beaucoup d'éloquence.
Menandro funcionou, na época, como o autor de comédia conforme às regras.
A Espanha é um exemplo expressivo da presença de Menandro, como fica patente da
recolha que López Férez[60] fez de vestígios da comédia grega e latina na sua
herdeira espanhola a partir do Renascimento. Assim, Luis Vives (1492-1540), no
seu De tradendis disciplinis (1531), recomenda, a propósito da pureza do
dialecto ático, a leitura, entre outros autores de teatro (Sófocles, Eurípides,
Aristófanes), também de Menandro. E não hesita em considerar abundantes as
referências feitas ao poeta, de que cita várias sentenças. Juan Mal-Lara (1527-
1571), na sua Philosophia vulgar, recolhe citações numerosas dos autores gregos
e inclui contributos de Menandro. Pedro Juan Núñez, nas Institutiones
Grammaticae Linguae Graecae (Valencia, 1555), para provar que o ditongo grego
'ou- se devia ler 'u-, invoca a transcrição do genitivo grego na forma
Menandru. Mais tarde, em 1579-80 ao que parece, o Brocense terá utilizado
alguns textos de Menandro, sentenças naturalmente, durante o seu magistério
salmantino. Juan Lorenzo Palmireno, responsável por uma assinalável actividade
teatral, professor em Valência nos anos 60 do séc. XVI, na sua Fabella aenaria
(1574), louvava as virtudes pedagógicas do teatro e, numa tentativa de chegar
mais perto do seu público estudantil, propunha-se acolher modelos da
contemporaneidade, abandonando Menandro e Terêncio, para enveredar por um
padrão mais popular e actual, com predomínio do castelhano[61]. Pedro Simón
Abril (1577), na obra Las seis comedias de Terencio, louva a influência
construtiva que Menandro e Terêncio tiveram sobre o seu auditório; como também
o mesmo Simón Abril, na Gramática griega(1586), a primeira escrita em
castelhano, entre os textos que recomenda para a aprendizagem das línguas
clássicas inclui os trágicos e os cómicos, Aristófanes e, embora quase
completamente perdido, Menandro. Em Salamanca, Francisco Sánchez de las Brozas
lia, em 1579-1580, alguns textos de Menandro. Pedro López de Montoya, professor
de retórica e de grego na mesma Universidade, conhece também sentenças
menandrinas e outro tanto acontece com Cristóbal de Villalón (1505-1581), que,
a propósito da ventura humana, cita Menandro juntamente com Cícero e Platão.
Juan de la Cueva (1559-1609), em Los cuatro libros de los inventores de las
cosas(1608), inclui Menandro, a par de Filémon, entre os poetas da Comédia Nova
que moderaram o rigor e a aspereza da Antiga. O Padre Juan Bonifácio (1539-
1606), ao excluir Terêncio dos interesses pedagógicos do teatro escolar,
recordava-o como o Menandro latino, insistindo na velha tradição.
No séc. XVII a mesma tradição prossseguia em Espanha. Lope de Vega, no Arte
nuevo de hacer comedias en este tiempo(1609), refere Menandro como modelo de
Terêncio e como responsável pela supressão do coro; recorda ainda a simpatia
com que Plutarco o colocava em vantagem sobre Aristófanes. Francisco Quevedo y
Villegas (1580-1645), nas suas obras Virtud militante, La constancia y
paciencia del santo Jobe Vida de San Pablo Apostol, faz três referências a
sentenças de Menandro. Francisco de Barreda, na Invectiva a las comedias que
prohibió Trajano y apología de las nuevas(1622), acusa Menandro de
licenciosidade e de excesso, para além de ter sido modelo para Plauto e
Terêncio. Juan Pablo Mártir Rizo, na Poética de Aristóteles traducida de latin
(1623), considera Menandro modelo de Terêncio pela moderação da linguagem.
Francisco Cascales (1564-1642), nas Tablas poéticas (1617), refere
concretamente a Andriade Terêncio como exemplo dessa dependência, que considera
displicente para o autor latino. José Pellicer de Tovar, na Idea de la comedia
de Castilla (1635), louva-o entre os melhores dramaturgos da Grécia. Fr. Manuel
de Guerra y Ribera, na Verdadera quinta parte de las comedias del célebre D.
Pedro Calderón de la Barca(1682), recorda o Menandro criador de temas amorosos.
Censura mais vibrante lhe é feita por este motivo por Juan Caramuel de
Lobkowitz, como também pelo Padre José Alcázar, na sua Ortographia Castellana
(1690).
Já no séc. XVIII, Ignacio de Luzán (1702-1704), na Poética, continuava a
aproximar Aristófanes de Plauto e Menandro de Terêncio, considerando Menandro
responsável pelo esplendor e alinho da Comédia Nova. Juan Pablo Forner (1756-
1797), nas Exequias de la lengua castellana, inclui-o entre os melhores da
tradição greco-latina. Pela sua importância, importa citar ainda, no séc. XIX,
Mariano José de Larra (1809-1837), na Satírico-mania(1833), que considerava
Menandro uma evolução positiva a partir do modelo mais violento de Aristófanes;
e sobretudo Juan Valera (1824-1905), que lembra Menandro como modelo de
Terêncio e fala da leitura dos fragmentos menandrinos. López Férez[62] chama a
atenção para a frequência com que este autor menciona sentenças do poeta da
Nea, famosas desde a Antiguidade, e pode testemunhar: Nos fragmentos que ainda
nos restam do poeta cómico Menandro, há tais tiradas e sentenças de um
cepticismo melancólico e misantrópico, que Lord Byron as teria invejado.
A circulação de sentenças menandrinas, que mantiveram o nome do poeta vivo no
séc. XVI, atingiu também Portugal. Disso dão prova as diversas menções que lhe
são feitas, de que exemplificamos algumas. António Luís, nas duas edições do
seu De pudore (de Antuérpia a de 1537, e de Lisboa a de 1540), cita, com base
em Estobeu (Eclogarum physicarum et ethicarum libri II,sermo 32), a propósito
do conceito de impudentia, Menander optimus.O infante D. Duarte, na Oração que
disse no Real Collegio da Costa, dia de S. Jeronymo, em louvor da Filosofia
(1542), entre todo um património de autores clássicos gregos (Homeroxe
"Homero"xe "Plutarco", Píndaroxe "Píndaro",
Heródotoxe "Heródoto" e Plutarco) e latinos (Cíceroxe "Cícero,
Marco Túlio", Quintilianoxe "Quintiliano", os comediógrafos
latinos, Valério Máximoxe "Valério Máximo", Virgílioxe
"Virgílio" e Séneca), integra Menandro, pelo seu valor como autor de
apotegmas e moralista[63]. André de Resende no Discurso pronunciado no Colégio
das Artes, em Coimbra (1551), num contexto relativo à importância da justiça,
refere-se a Menandro como homo peritissimus, de quem cita a propósito uma
sentença: se fores justo, terás um procedimento conforme à lei[64]. João de
Barros, na Rópica Pnéfema[65], lembra também o sentido da penitência como
fomentadora da virtude que apregoa.
Só o séc. XIX, e ainda de forma tímida, conseguiu algo de mais significativo
com a recuperação de oito dezenas de versos do Lavrador, publicadas em Genève,
em 1898. Já antes, em 1844, se tinha feito um outro achado, de fragmentos da
Arbitrageme Fantasma, num manuscrito de Leninegrado. Mas basta seguir o desafio
de A. Clota[66] e folhear a edição dos fragmentos publicada por Dubner em 1856
para avaliarmos quão insignificante era o corpusmenandrino em meados do séc.
XIX[67].
Mas constitui caso único, no que toca à recuperação de autores antigos, a
diferença abissal entre o que o mundo conheceu até esta altura e o que o séc.
XX veio a conhecer, a partir de 1907, com achados significativos de papiros no
Egipto: em primeiro lugar, como é bem sabido, o Papiro do Cairo (séc. V), com
trechos longos da Arbitragem, Mulher do cabelo rapadoe Rapariga de Samos; e, a
meio do século, em 1959, o Papiro Bodmer (séc. IV), que tornou o Misantropona
primeira peça conservada praticamente na íntegra da Comédia Nova ateniense[68].
Estes continuam a ser, para além de outros achados menores, os dois marcos
essenciais na recuperação moderna de Menandro.
Repetindo ainda uma vez J. García López[69], será bom recordar que em nenhum
autor antigo como em Menandro será tão grande a diferença entre o que nos havia
sido transmitido até finais do séc. passado e o que temos agora. Um acaso que,
mesmo assim, tem por detrás em linha contínua, o génio do poeta. É verdade que
o percurso que fez através dos séculos foi acidentado, apagando os aplausos a
saudarem o homem de teatro, para fazer avultar as potencialidades pedagógicas
que o seu pensamento possuía. Reduzido, durante séculos, à leitura, ou mesmo
oculto por trás de uma legenda simbólica ' a de modelo primeiro da arte cómica
na Grécia, em concorrência, diferentemente valorizada, com Aristófanes ',
Menandro viria a recuperar a sua verdadeira identidade, com o regresso aos
palcos e à admiração do público dos séc. XX e XXI.
Parte final de um texto manuscrito de Menandro; onde consta o nome deste autor
(Biblioteca Bodmer ' Genebra)