Uma aproximação à problemática do labirinto em alguns andamentos diacrónicos de
inspiração helénica (de Ovídio a Pausânias e de Boccaccio e Agricola a
Valkenborch)
1 - Evocação de um erudito
O estudo, mesmo que sumário, que aqui vamos empreender, com uma primeira secção
sobre a mitologia helénica ' e, em particular, numa incursão pela fascinante
temática do labirinto enquanto convite para a fuga ' constitui uma homenagem ao
helenista francês Jean‑Pierre Vernant. Há a assinalar, com efeito, o
desaparecimento daquele erudito francês em Janeiro de 2007[1] e (para além das
razões pessoais que nos ligam aquele erudito, as quais não vêm aqui a
propósito) e, sobretudo, o seu indesmentível legado nessa área dos estudos
clássicos.
Pretendemos também dar aqui, no essencial, como historiador do livro, o
testemunho acerca desse bem cultural (evoluindo de codex a liber) que continuou
como continua a enriquecer o homem, desde o Mundo Antigo à Idade Moderna. É
nessa qualidade (e vertente de formação), e ainda na de iconólogo, enquanto
semioticista[2], que aqui fundamentalmente nos assumimos.
Os caminhos heurísticos que Jean‑Pierre Vernant abriu, ao longo de mais de
quatro décadas de intensa actividade docente e de pesquisa ' uma parte desse
tempo ao serviço do Collège de France, Paris ' no terreno dos mitos clássicos
(Vernant 1942), constituem o filão de abordagem para o testemunho que aqui
deixamos. Esse seu percurso entronca, naturalmente, no de outros classicistas
que o precederam, tendo trabalho também eles nessa fascinante área de estudos.
Foi o caso, entre outros, de Louis Gernet[3] e de Pierre Lavedan[4], pelos
quais também iremos guiar as nossas incursões nesta temática.
Entrando‑se mais estritamente na história de testemunhos materiais dos
repertórios mitológicos (e, indirectamente, no âmbito da história da escrita
do homem grego) ' compilados numa vertente simbólica estritamente legislativa '
J.‑P. Vernant considera Biblioteca, do Pseudo‑Apolodoro, Fábulas e
Astronómicas, de Higino, livro IV da Histórias de Diodoro, Metamorfoses, de
Antoninus Liberalis, a colecção dos Mitógrafos do Vaticano.
Todo esse esforço intelectual do homem culto da Hélade visou apresentar,
segundo aquele classicista, sob forma abreviada e segundo uma ordem
sistemática, o fundo comum das lendas gregas (Vernant, 1991: 22).
Olhando todo esse rico património fixado pelos mais díspares testemunhos
documentais, o autor de O Mito e a Religião na Grécia Antiga estabelece que
por trás da variedade dos nomes, das figurações, das funções próprias de cada
divindade, pressupõe‑se que o rito opera a mesma experiência do divino' em
geral, enquanto poder supra‑humano (to kreitton).
E acrescenta: Este divino indeterminado, em grego to theion ou to daimonion,
subjacente a cada deus, diversifica‑se em função dos desejos ou dos medos a
que o culto tem que responder. Deste tecido comum do divino, os poetas vão por
sua vez talhar figuras singulares; irão animá‑las imaginando, para cada uma,
uma série de aventuras dramáticas (Vernant, 1991: 26). Esta realidade,
afinal, constitui um empreendimento colectivo comum (e com as naturais
correspondências[5]) quer à vasta população da Hélade, quer à do não menos
amplo império romano.
Este nosso estudo constituindo‑se, como se disse, uma homenagem a J.‑P.
Vernant, procura, com efeito, ir além da problemática dos mitos helénicos ' em
que se especializou esse investigador ' para se centrar numa análise diacrónica
de vários conceitos de labirinto. Assim, partimos das premissas de Ovídio e da
forma como este, no Livro VIII das Metamorfoses, cantou o labirinto cretense de
Cnossos e a fuga de Dédalo e de seu filho Ícaro. Centrando‑nos, de seguida, na
viagem de Giovanni Boccaccio pelo mundo dos afectos, na sua obra Labirinto de
amor, chega‑se ao século XV e às experiências de Agricola, enquanto compositor
quatrocentista. Essas incursões inovadoras pela arte da música levam o leitor,
enfim, à experiência da construção pictórica do labirinto, por parte dos
artistas quinhentistas flamengos, Lucas I van Valkendorf e Hans Bol, um pouco
em resultado das suas múltiplas viagens de auto‑exílio.
SECÇÃO I
DE UMA PERSPECTIVA DOS MITOS DE DÉDALO E DE ÍCARO NO SÉC. I, DA FUGA DESTES DO
LABIRINTO CRETENSE E DA TEORIA DO DESEJO MIMÉTICO NO HOMEM‑PÁSSARO
2 - A História e o mito: as tradições documentais por via dos textos de Ovídio
a Pausânias
Dista não muito mais de um século a leitura do mito de Dédalo e de Ícaro, por
parte do poeta latino Ovídio e do historiador helénico Pausânias (séc. II
d.C.). Uma criteriosa abordagem feita aos mitos dos impérios grego e latino
ocorre, e do mito de Dédalo e de Ícaro em particular, ocorre como é sabido nos
inícios da era actual, por via do longo poema de Ovídio (43 a.C./ c. 17‑18
d.C.), As Metamorfoses[6].
Na obra de Ovídio ' uma das que mais contribuiu para estruturar a linguagem
poética na Europa Clássica ' são abordados os mitos de Dédalo (um arquitecto
ateniense convidado pelo rei Minos e que, a seu pedido, edificou o labirinto),
bem como o seu filho Ícaro. Importa estabelecer, no entanto, que já antes
daquele poeta latino se debruçar sobre tais mitos, estes tinham sido objecto de
análise por poetas gregos e latinos como Virgílio, Juvenal, Diodoro de Sicília,
Arriano ou Apolodoro (J. Lacarrière. 2006: 266 e 131).
Bem conhecidas dos estudiosos que se dedicam às literaturas latina e helénica
do período Clássico são as versões das Metamorfoses, de Ovídio e da Periegesis
Hellados (Descrição da Grécia), de Pausânias. Em ambas as obras, com efeito, é
feita alusão aos mitos de Dédalo e de Ícaro e à sua fuga do labirinto do rei
Minos onde dominava (como monstro todo poderoso), o Minotauro[7].
Quanto à lectio textual das Metamorfoses de Ovídio, a porventura mais
credenciada deve‑se, em particular, a J. Tarrant (Oxford, 2004). No
respeitante ao público em Portugal e em língua portuguesa ' não se ignorando
alguns esforços promissores de Bocage e A. Feliciano de Castilho, nesse mesmo
sentido, no século XIX, as recentes versões (por ordem cronológica) de Domingos
Lucas Dias, que de algum modo se complementam, são aquelas de que nos servimos
para este efeito, com recorrência aqui, com a devida vénia, a algumas
transcrições textuais do texto fixado pelo primeiro.
Esta leitura dos mitos de Ícaro e de Dédalo ' nesta primeira parte do presente
trabalho ' só a veríamos como satisfatória numa análise comparativa sumária,
com efeito, com os pressupostos de algumas das lições do referido texto
helénico da referida obra de Pausânias. Estas são da responsabilidade,
respectivamente, do mesmo J. Tarrant[8] e, por seu lado, de Maria Helena da
Rocha Pereira, 1989‑90 e, ainda, da conceituada editora francesa Belles
Lettres, 1992‑99.
2‑1. As Metamorfoses de Ovídio numa componente conceptual mitográfica
helénica
Desde há muito que as Metamorfoses são consideradas uma obra de vincada feição
helenística. Alguns dos modelos mais directos poderão ter sido colecções de
metamorfoses estabelecidas por autores helénicos. Entre as fontes documentais
utilizados por esse poeta romano podem contar‑se o poema de Beo (séc. III),
acerca de metamorfoses em pássaros, bem como os Catasterismos, de Eratóstenes
(do mesmo século), acerca de transformações em astros.
Foram então também de uma significativa aceitação na capital do império os
Heteroeumena, de Nicandro (do séc. anterior), colecção esta que abrangia todo
o tipo de metamorfoses, explicando os acontecimentos que tinham levado à
transformação. Pode referir‑se, ainda, o caso de que Parténio de Niceia tinha
escrito também sobre metamorfoses (e do qual também Ovídio havia recolhido
diversas histórias). Ou ainda o caso de Emílio Macro, um amigo antigo de
Ovídio, que havia escrito ou traduzido uma obra acerca de transfigurações em
pássaros (P. Farm- house Alberto, 2007: 17‑19).
2‑2. Quatro noções operativas para a leitura dos mitos de Dédalo e de Ícaro
(dados heurísticos)
Seja como for o labirinto e os mitos de Dédalo e de Ícaro ' herdados por Ovídio
de outros autores ' remetem sempre para os conceitos:
2‑2‑1. do espaço;
2-2‑2. da mutação‑transformação, da metamorfose;
2‑2‑3. da superação e do enfrentamento; e
2‑2‑4. da vivência do mimetismo.
São estes pontos que iremos abordar, mesmo que sumariamente.
2‑2‑1. Quanto ao labirinto cretense propriamente dito, a sua existência
pressupõe a existência de um espaço (J. Lacarrière, 2006: 130). Trata‑se,
neste caso, de um espaço interior, fechado, mas onde o seu arquitecto, Dédalo,
sabe encontrar as respectivas saídas escapatórias (com reminiscências ao longo
de todos os séculos, chegando até à literatura portuguesa do século XX[9]).
Antigo selo referente ao labirinto de Cnossos, lendariamente edificado por
Dédalo, produzido precisamente na ilha de Creta (apud Pierre Lavedan, 1931)
Mosaico da vila de Teseu, em Paphos, do século III, no qual se representa
Teseu, Ariadne e o Minotauro (constantes do mito do labirinto de Creta); e mapa
de Jericó, tal como consta da Bíblia Farhi
A existência do labirinto como espaço interior não invalida, no entanto, a
existência de outras formas de labirinto, como espaço exterior. Uma das
tipologias frequentemente referenciadas, neste caso, é as dos
jardins‑labirinto que estiveram em grande voga sobretudo até ao período do
Renascimento europeu quatrocentista e quinhentista.
Esse mesmo espaço do labirinto tanto pode ser um meio de opressão como um meio
de libertação e viagem. Depende, ao fim e ao cabo, como se potencia a vivência
desse antro.
No primeiro dos casos, o labirinto como espaço de opressão, ele só poderá ser
deixado por via da astúcia. Cabe, com efeito, aquele que pretende abandonar o
labirinto desenvolver as acções adequadas (por via da razão prática; e, para
outros, por via da fé e auto‑convicção) para poder deixar esse espaço de
reclusão.
No segundo dos casos, o labirinto como espaço de libertação e viagem, ele pode
ser, sempre, um incitamento ao encontro ou reencontro, um incitamento, em fim,
à (auto) descoberta. Um dos exemplos porventura mais fascinantes neste aspecto
particular é o de algumas formas de evolução da livraria ou biblioteca, ao
longo dos séculos. ' Exemplo recente disso é a biblioteca de Umberto Eco
(conforme testemunha um recente documentário fílmico sobre a sua vida e
convívio com amigos na região transalpina da Toscânia), o qual nunca escondeu o
seu encantamento do livro como suporte material de cultura, de vivências, de
sensações.
O engenho e a arte de cada um no seu labirinto (só presente nas histórias
perpetuadas pelos homens que são os mitos), vão disciplinar, pois, as formas
encontras de mutação‑transformação, ou seja, de metamorfose, que vão permitir
a acção de abandono desse antro. Assim ' e considerando que os mitos de Dédalo
e Ícaro já estiveram presentes nos testemunhos escritos de Diodoro da Sicília,
de Virgílio, Arriano, Apolodoro ou Juvenal (J. Lacarrière, 2006: 131 e 266) '
tais histórias, com o seu pendor também moralizante tinham uma razão de
perpetuarem de geração em geração. As pessoas acreditavam na necessidade do
mito, tinham necessidade dessas lendas para afirmar e confirmar o poder
soberano dos deuses (idem, 2006: 131).
2‑2‑2. Quanto à mutação‑transformação, à metamorfose propriamente dita, o
agente de acção só pode abandonar o labirinto ' no plano do mito ' se numa
perspectiva do ser, ou seja, numa vertente ontológica, se operar nele a
transfiguração.
Há que se encontrarem, então, as respectivas formas para essa transfiguração.
Assim, no caso dos mitos lidos e interpretados por Ovídio, a
mutação‑transformação encontrada foi a do homem‑ave. Assim, nessa leitura por
aquele poeta latino, a transfiguração passou, já se vê, pela assunção de um
pensamento mimético: o mito carnalizou, por assim dizer, no homem (neste caso
Dédalo e Ícaro) com as suas próteses naturais, as asas. Deste caso ' como aliás
de diversas outras fontes iconográficas alusivas ' dá testemunho um vaso
helénico encontrado em Nápoles.
Se mito está associado à cristalização da lenda, da ficção, da pequena‑grande
história ' carregado sempre da sua narratividade e da sua força frutificadora
de proveito e exemplo ' pode‑se associar também a estes dois trânsfugas do
labirinto a necessidade de reencontro com alguma da pureza original do homem
(que parte, também, um tanto à procura de uma sua essência outra). Assim, não
poderá haver nunca mutação‑transformação sem a vivência dos passos da
superação.
Vaso helénico referente aos mitos de Dédalo e de Ícaro, encontrado na cidade de
Nápoles (apud Pierre Lavedan, 1931)
Neste aspecto particular da mutação‑transformação, há, ainda, como que um
complemento simbólico do homem para com a sua projecção em anjo. Assim, em
termos de antítese, o homem, no mito, como que se descarnaliza na
imaterialidade de uma pureza recôndita.
2‑2‑3. O aspecto da superação, por seu lado, é a passagem ao estádio da
concretização da saída ou fuga do labirinto (após a vivência da
mutação‑transformação pelo herói ou agente de acção). Deste modo, todo e
qualquer acto de superação ocorre após um estádio de enfrentamento, nalguns
casos do inimigo, da fera, ou do adversário simbólico.
No caso do labirinto cretense, o herói ' mesmo tendo sido ele quem, com a sua
ciência, construiu esse espaço arquitectural ' enfrenta, na adversidade, o
monstro ou Minotauro. O mito necessitou, assim, ao longo da sua evolução (num
patamar de criatividade oral e literária), de corporizar a fera dentro do seu
próprio reduto, o labirinto.
Essa corporização do dragão ou do monstro, ou seja, do adversário, só faria
verdadeiro sentido ideológico no sentido do enfrentamento, da luta e,
consequentemente, do triunfo do herói. Há que perspectivar, por outro lado, que
o caso da luta com o monstro e da devida superação pelo maravilhoso herói '
encontra, na cultura helénica, múltiplas situações‑tipo.
Importa perspectivar, neste âmbito, a luta de Apolo com Píton ' a guardiã do
santuário de Delfos ' ou seja, com um ser nascido da putrefacção subterrânea
que destruía toda a vida em seu redor[10] (Y. Balbás, 2009: 75‑76). Tendo esta
situação sido enriquecida pela iconologia renascentista, um exemplo ilustrativo
a tal respeito é uma gravura de Virgilio Solis[11]. (1514‑1562).
Apolo vence em Delfos o dragão Pitón, segundo uma gravura do renascentista
Virgílio Solis, apresentada numa edição seiscentista das Metamorfoses de Ovídio
Um outro caso de luta contra o monstro, na mitologia helénica, é protagonizado
por Zeus, figura‑topo do respectivo panteão. Este deus, com efeito, destruiu o
gigante Tifón, criado pelo referido monstro Pitón, na obscuridade do Tártaro,
mediante um raio que o sepultou na ilha da Sicília, de onde, segundo a lenda, o
seu sangue fluía através do vulcão Etna[12] (idem, 2009: 76).
No caso conceito, no labirinto de Cnossos (e do mito de Dédalo) o enfrentamento
do herói é com o mostro ou dragão a que é dado o nome de Minotauro). Assim ' e
voltando‑se ao terminus deste terceiro estádio ' o agente de acção, o herói do
mito carnaliza. O mito só poderá cumprir a sua função social quando satisfaz a
necessidade de carnalizar o seu herói no próprio homem (M. Detienne, 1989:
172).
Assista‑se, pois, à ascensão de Dédalo e de seu filho Ícaro, pelo céus fora,
após as suas fugas do labirinto cretense. São homens? São deuses? A sua
assunção no patamar das crenças colectivas motivou que eles se revestissem da
forma humana.
Para a superação, a forma humana precisou de uma outra dimensão. E essa
dimensão ' no âmbito da teoria mimética ' foi‑lhe dada, apenas, pelas asas das
aves? Evidentemente que não. Às aves, agora humanizadas, acresceram as formas
dos anjos (que não apenas as asas), os quais lhes vieram emprestar, no plano da
transfiguração, um novo paradigma discursivo, uma nova forma mobilizadora.
2‑2‑4. Quanto às práticas miméticas, por assim dizer ' e mesmo que, mais
adiante, voltemos necessariamente a este sub‑tema específico ' a superação das
situações de enfrentamento é complementada pela vivência de uma prática
mimética.
No respeitante aos Dédalo‑Ícaro analisados por Ovídio, a prática mimética é
potenciada pela figura do homem‑ave, a quem as asas emprestaram uma outra
dimensão. Passando‑se ao modo como Pausânias, também num contexto helénico,
passou a assumir ' ainda no plano do mito ' a fuga dos pai e filho daquele
labirinto cretense, a criatividade do narrador potenciou não já uma vivência
mimética mas, nesse outro caso concreto de fuga e superação (como também se
verá um pouco adiante, mais em pormenor), a descoberta de um novo engenho, até
então desconhecido, a vela marítima. Nesse caso também para Ícaro foi fatal a
navegação.
Enfim, seja pelos ares, seja por mar, o que os mitos de Dédalo e de Ícaro acaba
por vir a pôr em relevo é que o homem não deve desejar o impossível, e que o
seu domínio é a terra e não o céu (J. Lacarrière, 2006: 131), nem o mar (no
caso do mesmo mito, desta feita exponenciado por Pausânias).
Em síntese, pela abordagem ovidiana destes dois mitos helénicos, no referido
livro VIII das Metamorfoses, o leitor confronta‑se com uma teia relacional
bastante complexa (A. S. Hollis, 1970), estando interligados em torno do
complexo labirinto cretense ' um conjunto de conhecidas personagens míticas
que, pelo empolgamento da sua acção, chegariam por tais feitos simbólicos até
aos dias de hoje.
Tais personagens são Minos, rei de Creta; Parsifaé, sua mulher; Ariadne, a sua
filha; os já referidos Dédalo e seu filho Ícaro. A acrescentar a estes Teseu,
príncipe vindo de Atenas para matar o Minotauro, o que ele fará sem pena,
graças à ajuda de Ariadne e sobretudo de Dédalo, que lhe fornecerá os meios
para poder sair do labirinto e deixar Creta (L. Lacarrière, 2006: 264).
É esta, no essencial, a complexa teia relacional em que decorre a acção mítica
ovidiana centrada em Dédalo e Ícaro. Tal acção tem os seus predicados e
ingredientes próprios, a sua textura literária, por assim dizer. É evidente que
o conceito de labirinto, como bem observou J. Lacarrière, está sempre associado
a impasse e, ainda, a reclusão. Tal situação de impasse só poderia ser
ultrapassada pondo os heróis ' num plano mítico ' a empreender proezas
verdadeiramente sobrenaturais.
Um pouco posterior a esta leitura e recriação desses mitos por Ovídio, uma nova
e diferenciada abordagem ' e que, assim, se materializa numa lectio textual
autónoma sobretudo em relação a Ícaro ' decorre, como se verá um pouco adiante,
na obra de Pausânias, Periegesis Hellados (Descrição da Grécia).
3 - Ovídio e os empreendimentos simbólicos da fuga: desde o labirinto de Creta
à separação dos heróis
Não são coincidentes, em termos de significação, como se disse, os testemunhos
romano (de Ovídio) e helénico (de Pausânias) acerca da fuga do labirinto
cretense. Principiemos assim por sumariar ' mesmo que incorrendo no risco de
repisar alguns lugares que têm sido sucintamente debatidos por especialistas em
mitografia clássica ' algumas das passagens de Metamorfoses, VIII, 166‑168,
principiando pela sumária descrição do labirinto cretense:
ita Daedalus implet innumeras errore uias uixque ipse reuerti ad
limen potuit
assim Dédalo enche de voltas os incontáveis caminhos, de tal modo
que, mesmo ele, teve dificuldade em retornar à entrada (Ovídio /vº.
D. L. Dias, 2008: 20‑21).
É neste contexto de mítica reclusão que se impõe a Dédalo a decisão ' pensando
inclusivamente em seu filho Ícaro e, ainda, na legítima liberdade para ambos '
da fuga daquele labirinto. Voltando‑se ainda a Ovídio, o poeta romano clama
(VIII, 183‑187):
Daedalus interea Creten longumque perosus exilium tactusque loci
natalis amore clausus erat pelago. terras licet inquit et unda
obstruat: et caelum certe patet; ibimus illac: omnia possideat, non
possidet aera Minos.
Entretanto Dédalo, saturado de Creta e do longo exílio e mordido de saudade da
terra natal, estava [naquele labirinto] rodeado de mar. Embora Minos me barre
o caminho por terra e por mar, diz, aberto fica‑me o céu. É por aí que eu
irei. Seja de tudo senhor, não há‑se sê‑lo do ar' (Ovídio /vº. D. L. Dias,
2008:22‑23).
As acções dos mitos em presença descritos por Ovídio terão de ser enquadradas
ao nível não apenas da inteligência como da própria astúcia: vencer as forças
da gravidade, através de máquinas de voo, para abandonar aquele labirinto fazia
cair por terra, na área do mito, que o domínio do homem passava a ser o céu,
mais do que a terra (J. Lacarrière, 2006: 130‑131).
Esta textura do entrecho de Ovídio ' numa parte do referido Livro VIII das
Metamorfoses, e para além de outras deambulações transformistas oníricas ou não
do autor (M. Cadafaz de Matos, 2005: 137 e 142)[13] ' deixa antever,
naturalmente, aquele sentido das coisas que René Girard referencia como teoria
do mimetismo. O homem sonha ser ave, constrói extensões aos seus próprios
braços, ganham assim forma as asas. Recorre‑se à madeira, ao linho, às penas e
à cera, entre outros materiais[14].
É precisamente neste contexto da fuga que principia a cavar‑se um fosso entre
a referida lectio de Ovídio e a de Pausânias em torno de Ícaro. Tal sentido
hermenêutico ' variando embora em pequenas nuances, de tradutor para tradutor '
permitiu ao longo dos séculos o estabelecimento de tradições textuais com um
fundo comum, grande parte das vezes. Desenvolveu‑se, assim, o conceito de
estema, na multiplicidade das suas ramificações e variantes.
3‑1-1. Breves reflexões sobre as fugas de Dédalo e de Ícaro no confronto entre
a lectio romana de Ovídio e a helénica de Pausânias
Quanto à leitura do mito de Dédalo e Ícaro, após a fuga destes do labirinto
cretense, Ovídio no século I ' depois de se deter sobre as técnicas de
construção das asas (antecedendo em c. de 15 séculos os engenhos de da Vinci) '
dá ao leitor a sua lectio muito própria de quais foram os primeiros conselhos
paternos acerca da navegação aérea:
Instruit et natum medio que ut limite curras, Icare, ait moneo,
ne, si demissior ibis, unda grauet pennas, si celsior, ignis_adurat:
inter utrumque uola. Nec te spectare Booten aut Helicen iubeo
strictumque Orionis ensem: me duce carpe uiam
Aconselho‑te, Ícaro, a que voes a meia altura, não vá a água, se
fores mais baixo, tornar‑te as asas pesadas, ou queimar‑tas_o_fogo,
se voares mais alto. Voa entre um ponto e o outro. Não fixes o
Boieiro, nem Hélice, nem a espada desembainhada de Órion,
aconselho‑te (Ovídio / D. L. Dias, 2008: 22‑23, sublinhados
nossos).
O mesmo poeta romano patenteia ainda, nesse seu texto (Livro VIII), como se
propiciou a elevação pelos ares fora de ambos, pai e filho, bem como a queda do
segundo no mar:
cum per audaci coepitr gaudere uolatu deseruit- que ducem caelique
cupidine tractus altius egit iter. Rapidi uicinia solis mollit
odoratas, pennarum uincula,ceras; tabuerunt cerae: nudos quatit ille
lacertos, remigioque carens non ullas percipit aura, oraque caerulea
patrium clamantia nomen excipiuntur aqua, quae nomen traxit ab
illo.at pater infelix, Nec iam pater, Icare', dixit ubi es'? Qua te
regione requiram?', Icare', dicebat: pennas aspexit in undis
deuouitque suas artes corpusque sepulcro condidit, et tellus a nomine
dicta sepulti.
O jovem começou a comprazer‑se com a audácia do voo. Abandonou o
guia [Dédalo] e, atraído pela voragem do céu, buscou caminho mais
alto. A proximidade do sol amolece a aromática cera que ligava as
penas. A cera começa a fundir‑se. Ícaro bate os braços desnudos,
mas, sem o batimento das asas, não há ar a que se prenda. A sua boca,
que gritava o nome do pai, é acolhida pelas azuladas águas que dele
tomam o nome. Seu infeliz pai, que já pai não é, clama: Ícaro!
Ícaro, onde estás? Onde posso procurar‑te? Ícaro!' Gritava. Viu nas
águas as penas, amaldiçoou suas artes e deu à terra o corpo do filho.
Do nome do sepultado tirou essa terra o seu (Ovídio / D. L. Dias,
2008: 24‑25).
Esta leitura específica, por Ovídio, acerca da fuga de Dédalo e de seu filho
Ícaro do labirinto, através dos céus do Mediterrâneo, nas suas
máquinas‑voadoras, não é, porém, consensual em relação a outros autores
clássicos. Vários pensadores helénicos puseram em relevo a sua leitura sui
generis deste mito. Pausânias, entre eles, salientou, no século seguinte, a
fuga do labirinto de um Ícaro distinto, desta feita como navegador marítimo.
Este último, com efeito, estabeleceu que não foi como homem‑voador que Ícaro
deixou aquele labirinto cretense. Dédalo não teria inventado a asa mas a vela,
que antes dele ainda não existia. Assim, Dédalo e Ícaro teriam fugido de Creta
' e do seu antro infestado pelo referido monstro ' num barco munido de uma
vela que lhes teria permitido distanciarem‑se dos marinheiros do rei Minos,
que se haviam lançado em sua perseguição (J. Lacarrière, 2006: 267).
Apesar de tudo o dramático desfecho para Ícaro ' nesta outra versão do mito '
manteve‑se. Em vez de seguir, na sua navegação marítima, os conselhos
judiciosos de Dédalo, este seu filho, por má orientação ou por inconsciência,
acaba por fazer uma perigosa manobra e morre no mar (idem, ibidem).
3‑1-2. Das práticas miméticas de Dédalo e Ícaro (breves contributos de J.
Lacarrière e René Girard)
Deve‑se a René Girard um dos mais interessantes contributos téoricos do século
XX para a leitura e interpretação sistémica dos comportamentos do homem comum,
que é a teoria mimética. Esta é aplicável claramente, também, ao domínio do
mito. Há que estabelecer, por outro lado, que Jacques Lacarrière deixou ainda
algumas notas, no seu estudo de Dédalo, que permitem uma adequação das
coordenadas do mimetismo à problemática dedaliana.
Importa precisar, com efeito, existir nos mitos de Dédalo e de Ícaro o sonho de
alguém que pretende e ser vai tornar no homem‑pássaro. Este sonho ' isto é,
este desejo mimético, na teoria de René Girard ' só se torna possível graças
a uma técnica precisa, ou seja, asas de águia sabiamente adaptadas ao corpo
(J. Lacarrière, 2006: 133).
Também o desejo mimético, com efeito, pode ser enquadrado neste âmbito da
teoria dos mitos helénicos, e em particular numa adequação ao mito de Dédalo na
imitação do voo das aves. Há que estabelecer, em primeiro lugar, seguindo os
postulados de Girard, que o desejo mimético não põe frente a frente um objecto
desejado e um sujeito desejante, mas forma uma estrutura triangular, composta
por um sujeito, imitante, um mediador, imitado, e um objecto (Charles
Ramond, 2005: 14).
Por vezes o desenvolvimento do desejo mimético pode estar, ainda, associado a
bruscas e incompreensíveis mudanças da amizade em ódio (Charles Ramond, 2006:
16). Este facto (de que dão testemunho, por exemplo, algumas das obras‑primas
do teatro de Shakespeare) parece estar presente também num ponto da análise de
J. Lacarrière (op. cit.) quando regista que Dédalo, ao construir assim,
imitando, as asas de seu filho Ícaro, poderá também ter contribuído, mesmo que
involuntariamente, para o seu próprio aniquilamento.
O mesmo antropólogo francês (a residir nos Estados Unidos) chama ainda a
atenção para um aspecto particular desta teoria da imitação. Depois de ter
transformado os modelos em obstáculos, o desejo mimético transformará os
obstáculos em modelos (René Girard, 1978: 458); e C. Ramond, 2005: 17).
SECÇÃO II
O LABIRINTO NA INVENTIO LITERÁRIA DO SÉCULO XIV: OU O TESTEMUNHO DE GIOVANNI
BOCCACCIO
4 - No pré‑renascimento italiano (do séc. XIV): a invectiva de Boccaccio
contra as mulheres
O labirinto ' para além do universo do mito e das suas inerentes linguagens '
pode ser perspectivado, numa outra vertente, o das complexas teias amorosas em
fins da Idade Média. Na leitura que é dada a esta problemática, em pleno século
XIV em Itália, por Boccaccio, permite‑se vislumbrar já os ideais estéticos
pré‑renascentistas.
Na História das Ideias literárias, no período trovadoresco, quer na região do
sudoeste da França quer na do norte e nordeste da Península Ibérica, o amor
profano ' mais duque um tema de evocação de donzelas e amigas ' constituía
fundamentalmente um objecto de estudo e, também, de prazer (mesmo que, por
vezes, narcísico). Na produção artística do século XIV ' regista Christopher
Page, na antologia de canções The Study of Love que faz acompanhar do seu
trabalho L'Étude de l'Amour, Chansons et motets français du XIVe. siècle, de
1992) ' o conhecimento do amor é puramente livresco e pode encontrar‑se uma
certa ressonância erudita em numerosos rondeaux, virelais e, sobretudo,
embaladas.
Esses poetas do século XIV, grande parte das vezes com aspecto reservado e
taciturno, são aqueles que ' contemporâneos de Guillaume de Machaut (c.
1300‑1377) ' aprofundam nos seus versos questões amorosas sobre Martícius (no
tema Martícius qui fu), Euclides e Pigmalião (no tema Fist on, dame) ou o
labirinto que Dédalo tinha edificado para Minos (no tema En la maison Dedalus),
todos estes considerados anónimos. Há, pois, num plano semiológico, uma dupla
interpretação do sentido da voz, como emissora de um discurso organizado,
tentando atingir um público‑alvo. Isso atendendo ao facto de Roland Barthes
considerar, em paridade, uma pintura, uma partitura, ou um discurso oral como
entidades de onde emana uma voz e, dai, uma inerente atribuição de sentido.
A voz e a música que se conjugam na composição francesa do século XIV En la
maison Dedalus contribuem, pois, para construir uma estátua do inacessível. O
seu criador está, assim, no plano da alegoria, a dar voz em direcção ao corpo
de uma mulher inacessível que, no seu próprio discurso, se encontra morta para
os olhares do mundo e da tangibilidade do afecto de um trovador‑mortal.
Christopher Page (e os seus Gotic Voices), neste The Study of Love, permitem
antever e depois, visualizar, assim, aquela mulher que, no seu labirinto de
inacessibilidade está a ser cantada por esse trovador anónimo nestes versos:
En la maison Dedalus enfermée / Est ma dame vers qui ne puis aler, /
Car je n'i voi issue ni entrée / Par où je puisse a son gent corps
parler, / Dont maint souspir me convient estrangler / Et en tourment
me convendra languir; / Si ne la voy, briefment m'estuet morir. / Car
c'est la flour de mon cuer desirée; / Nul ne treuve qui m'i sache
mener / Et c'est tout bien m'amour et ma pensée, / Ne je n'ay nulle
autre rien à penser. / Or ne la puis ne veoir n'encontrer, / Ne je ne
say comment a li venir; / Se ne la voy, briefment m'estuet morir.
Na leitura que é dada a esta problemática amorosa, em pleno século XIV em
Itália, por Boccaccio, permite‑se vislumbrar já os ideais estéticos
pré‑renascentistas.
Essa teia relacional, ou seja, esse complexo enredo de aventuras e desventuras,
é objecto da teorização por parte de um amoroso transalpino ' o bem conhecido
poeta Giovanni Boccaccio (1313‑1375) ' ao tratar do seu trama amoroso com uma
viúva por quem cai de amores.
A aventura amorosa de Boccaccio ocorre quando ele já é quarentão. Tendo‑se
apaixonado pela dita viúva, decerto graciosa, ele revela‑lhe por carta, os
seus desejos. Acontece, então, que a referida dama ' na síntese desta obra
estabelecida por Enzo Orlandi ' lhe transmite uma resposta devidamente
reticente e capciosa.
Perante este facto, é agora o poeta de Certaldo que dirige, à mesma mulher, uma
segunda e mais apaixonada missiva. Esta viúva, porém, desdenha neste a avançada
idade e o sangue plebeu.
Acontece, entretanto, o inesperado. A viúva, tendo dado preferência a um amante
mais abastado, não apenas dá as cartas de Boccaccio a ler ao amigo, como troça
publicamente do poeta, que se vê assim escarnecido à guisa de marido
atraiçoado (Enzo Orlando, 1972: 39). É face a esta desilusão e ao insulto
sofridos que Giovanni Boccaccio decida compor, então uma nova obra literária,
desta feita sob o título Corbaccio, uma vingança literária contra a escarninha
viúva? (G. Boccaccio, 1582).
Interroga‑se, a propósito, Enzo Orlandi: que significa o título? E adianta que
Corbacciosignificaria feio corvo, ave de mau agoiro, ou, segundo outros,
chicote, do espanhol corbacho'.
Nesta obra, no respectivo título, aparece praticamente sempre ' em subtítulo ou
não ' a menção de Labirinto de Amor, tal como sucede na referida edição de
Florença de 1487. Donde vem, pois, o essencial para a ideia de
labirintoconstante desse título?
Frontispício do Laberinto d'Amore, obra literária produzida na Itália do século
XIV por Giovanni Boccaccio
Giovanni Boccaccio, contemporâneo de Dante, imagina aqui, em sonho,
encontrar‑se em encantadores sítios que, de súbito, se transformam em
impenetrável e horrenda floresta onde se acham expiando a sua culpa, em forma
de animais, os homens que se embriagaram nas fontes do amor terreno (G.
Boccaccio, 1582).
É precisamente aí que o poeta fiorentino vai encontrar aquele que foi, em vida,
o marido da formosa viúva, o qual se oferece como guia para o tirar a salvo
daquele labirinto. A sombra acaba por lhe revelar todos os vícios e fraquezas
femininas e a vida pecaminosa da consorte, bem como as suas inumeráveis
astúcias. É imposto a Boccaccio revelar quanto ouviu, coisa, aliás, que ele
cumpre com muito agrado.
Meu pobre amigo(diz‑lhe o defunto), pois nem a idade nem a
experiência e, sequer, os teus assíduos estudos te fizeram
compreender quem são essas que se chamam mulheres?( G. Boccaccio,
1582).
Elas mais não são, afinal, regista o escritor transalpino trecentista, do que
animais imperfeitos, agitados de mil paixões e que sabem muito bem disfarçar
com as mentiras e a hipocrisia as suas intenções acerca do homem. Com a
malícia, armam‑nos laços para aprisionar a nossa liberdade, pintando‑se e
perfumando‑se, aclarando os negros cabelos para que se pareçam aos raios solar
e ajeitando‑os em graciosas formas para cegar os nossos olhos. Com danças e
cantigas conseguem conquistar‑nos e depois levar‑nos ao casamento.
Mas, mesmo assim, essas mulheres astuciosas ' revela ainda Boccaccio ' não
ficam satisfeitas. Elas querem vestidos de luxo, objectos de oiro e precisos
ornatos e com permanentes súplicas e manhas obtêm quanto desejam dos míseros
maridos e tornam‑se famélicas lobas' sem tolerarem que nenhuma outra mulher
as suplante em qualquer campo (G. Boccaccio, 1582).
Nestas circunstâncias, regista ainda o autor de Corbaccio, para essas mulheres
a atenção de um só homem não lhes basta para o galanteio. Assim, sem
descriminação, satisfazem os seus ardentes desejos com quem lhes cai às mãos,
seja servo, trabalhador, moleiro, e até negro etíope'. Mas conseguem ainda
dominar o homem, falando‑lhe da sua fragilidade: receiam as vertigens, têm
medo de um rato, do vento que bate numa janela, ou desmaiam por causa de um
vulto.
E depois ' acrescenta o mesmo Boccaccio ' ei‑las a fazer escadas para irem
ter com o amante, prontas a escondê‑lo aos olhos do marido e a abandonar os
filhos nascidos do pecado. Elas são, além disso ' de acordo com a argumentação
aí aduzida ' mexeriqueiras e intrometidas, irritáveis em extremo, ávidas de
dinheiro e doidas pelo luxo. E deste modo educam as filhas (G. Boccaccio,
1582).
O interlocutor do autor destas desapaixonadas considerações, o referido viúvo,
acaba ' naquele labirinto de (des)amores ' por vir ao de cima com estas duas
questões:
Mas se eu(insiste o viúvo)acabei por cair, como podes tu deixar‑te
tentar pela aparência das suas graças, quando tens o espírito voltado
para o estudo e para a poesia? Não sabes de que mulher te enamoraste?
(G. Boccaccio, 1582).
Assim, para o ajudar, o viúvo revela‑lhe as miseráveis artimanhas da que fora
sua mulher, as designadas por torpes intimidades e os vícios considerados
horríveis em que assentara a sua existência. Boccaccio, afinal, como que denota
ter ficado satisfeito com este quadro. Ao fim e ao cabo, no século XIV, a
invectiva contra as mulheres era uma tema literário bastante em voga ao qual
ele acabava agora, por vir também a dar o seu contributo.
Em suma, as afirmações e, até, os questionamentos, apresentador por Boccaccio
em torno deste tema da mulher medieval ' deixando antever, aos leitores de
hoje, algumas manifestações mesmo de gracejo ' permitem antever como que um
escape (aliás conhecido) para sair daquele labirinto. Não se trata, afinal, de
um labirinto sem fim à vista. Ou seja, contrariamente a Dédalo ' cantado nas
Metamorfoses de Ovídio ' o seu caminho para a saída parece ter sido
(esclarecidamente) encontrado. Está‑se, pois, perante o problema e a
respectiva solução.
De sublinhar, ainda, que tendo esta obra de Boccaccio ' vulgarmente
referenciada como O Corbaccio ' sido o resultado dos seus amores enquanto homem
já quarentão, a sua produção literária foi acompanhada, num plano
cronológico, de uma outra sua obra, Genealogiae deorum gentilium (Genealogias
dos deus dos gentios). Esta, por sua vez, está ideologicamente muito mais perto
da problemática mitográfica a que nos reportámos na primeira parte do presente
estudo.
Frontispício de uma edição quinhentista veneziana de Genealogiae deorum
gentilium, de Giovanni Boccaccio e incipit do livro XIV da mesma obra, sobre
teoria poética
Giovanni Boccaccio, na Genealogiae deorum gentilium 'que resultou de mais de
uma década de intenso trabalho do autor, entre 1346 e 1360 (e constitui, sem
dúvida, a sua mais poderosa obra de erudição) ' apresenta, numa quinzena de
livros ou secções, um repertório crítico da mitologia, segundo os
conhecimentos em voga na época. O autor ilustra assim ' para além de alguns
aspectos também pertinentes de teoria literária[15] avant la lettre ' os
vários parentescos e descendências dos deuses, interpretando o mito, fábula que
habitualmente esconde uma verdade concreta (Enzo Orlandi, 1972: 41)
SECÇÃO III
DUAS OUTRAS PERSPECTIVAS DE LABIRINTO: NAS PAUTAS DO COMPOSITOR QUATROCENTISTA
ALEXANDRE AGRICOLA E NOS JARDINS E ESPAÇOS ARBÓREOS DO SÉCULO XVI, COMO UMA
LEITURA COMPLEMENTAR À DO HORTUS CONCLUSUS
5 - Lugares de encantamento ou jardins de Dédalo (como os labirintos eram
designados no século XV)
Entretanto no século XV a ideia de labirinto, para além da literatura, era uma
realidade concreta também no universo da música erudita. Avaliando‑se, de uma
forma necessariamente sumária (até por não ser essa a nossa especialidade), a
vertente da produção musical de Alexander Agricola, este compositor
quatrocentista (falecido em 1505) também perfilhou, de algum modo, o conceito
de labirinto.
Agricola no seu tempo ' num período em que laboraram outros intelectuais com o
mesmo apelido[16] (porventura do mesmo ramo) ' é o único a possuir a chave do
seu labirinto (Paul van Nevel, 1999: 22). O labirinto, enquanto metáfora de
uma situação difícil de esclarecer, tem em Agricola o seu próprio lugar.
A este respeito, o Jardim de Dédalo ' como os contemporâneos de Agricola
chamavam o labirinto, regista o leaderdos Huelgas Ensemble (que aqui
transcrevemos, com a devida vénia) ' era um símbolo frequentemente empregue
para designar a procura de uma solução única (idem, ibidem).
Registe‑se que, já ao longo de toda a Idade Média, muitas das catedrais
abrigavam um número importante de labirintos. Tal sucedeu, designadamente,
em muitos desses templos construídos por mestres na região norte de França.
Agora, nesta segunda metade do século XV, a ideia de labirinto encontrava‑se
também transportada para o domínio da composição musical.
Paul van Nevel sustenta que o labirinto secreto de Agricola ' um dos mais
prolixos compositores europeus do século XV (P. van Nevel, 1999; Rob C. Wegman,
1997) ' é o mais notável na sua maneira heterodoxa de tratar as modulações do
hexacórdio que podem frequentemente resolver‑se de vários modos. E regista,
ainda, este musicólogo e dirigente dos Huelgas Ensemble que para ouvir essas
modulações, na obra daquele músico erudito, basta escutar a sua composição
Sanctusecomparar os dois entrechos musicais do Hosana I e do Hosana II.
Nos dois casosAgricola ' que durante as suas relações com Itália beneficiou da
edição de alguns trabalhos seus, em 1501, por Ottaviano dei Petrucci[17] (antes
deste passar a residir em Fossombrone[18], no mesmo país) ' recorreu a
soluções clássicas a fim de evitar as dissonâncias interditas obtendo
resultados verdadeiramente diferentes. É essa, pois, segundo o dirigente dos
Huelgas Ensemble, a língua secreta de Agrícola, ou seja, o seu jardim de
Dédalo (Paul van Nevel, 1999: 24).
Frontispício da edição de Harmonice Musices Odhecaton, por Ottaviano dei
Pettruci (Veneza, 1501), onde foram difundidas pelo impresso algumas obras
musicais do compositor Alexander Agricola
Este recôndito jardim germânico ' na multiplicidade dos seus meandros, nos seus
labirintos ' envolve o visitante em desafios similares aqueles que, na Idade
Média, empolgavam o homem de meditação e oração no seu hortus conclusus? Cremos
existirem efectivamente, de algum modo, traços de aproximação nessas duas
construções mentais.
Este compositor renascentista ' que veio a falecer em Valladolid, Castela, em
15 ou 16 de Agosto de 1506[19] ' sentiu, sem dúvida, também a necessidade de se
fechar (e ao seu espírito ávido de sensações), nesses espaços de interioridade
e de meditação. Essa forma de se fechar não constituiria para ele decerto, de
igual modo, um meio de libertação? Estamos em crer que sim.
6 - Um pintor protestante, as suas práticas continuadas de fuga e o seu modo
sui generis de teorizar de tratar (e se refugiar?) no labirinto
Da Música passemos à arte da Pintura e, em particular, a dois pintores
quinhentistas, ambos naturais da cidade flamenga de Malines. A apreciação que
vamos desenvolver decorre tendo em vista não a mais commumente visitada
Renascença artística italiana, mas a Renascença (em tempos de guerras de
religião) nos territórios da Europa do Norte, mais precisamente na Flandres.
Os dois pintores em análise são Lucas van Valkenborch e Hans Bol. Ambos
conheceram a aventura e a errância. Tiveram os dois, por outro lado, uma
particular sensibilidade para, em algumas das suas telas, repensarem os mitos
da cultura helénica. O primeiro ficou ligado, pela sua produção pictórica, a
uma representação do labirinto (sob a forma de jardim artificioso). O outro
fixou na tela, por sua vez, a representação das figuras de Dédalo e de Ícaro.
Principiemos por Lucas van Valkenborch e pela representação renascentista dos
jardins. É por demais sabido que a concepção dos espaços dos jardins '
simbólicos ou não ' se prende, de uma forma ou de outra, com o domínio da
Arquitectura. Também não se desconhece, decerto, que esses mesmos espaços tanto
podem representar para o homem um ponto de encontro como, também, tal se
tratasse de uma sinfonia, de um ponto de fuga.
É neste último aspecto que se procurar desenvolver, aqui, uma reflexão sobre o
jardim do Renascimento enquanto labirinto. Nesses mesmos labirintos botânicos,
os homens / mulheres que os idealizaram tanto pretenderam, nalguns casos,
encontrar e legar tais espaços como centro de encantamento como também, noutros
casos, um ponto para o corpo e a alma se poderem perder, em vários patamares de
navegabilidade.
Importa assim situar‑nos na segunda metade do século XVI e constatar como, em
1587, o pintor flamengo Lucas I van Valckenborch pôde não apenas entrar num
desses jardins‑labirinto, como percepcionar uma parte significativa da sua
essência filosófica.
Este artista plástico, tendo nascido em Malines, na Flandres, c. de 1537, é o
caso de um intelectual e homem de fé que, a seu modo, bem ilustra as vivências
do exílio e da fuga, por razões de militância do seu protestantismo. E, ainda,
pelas razões de não pactuação com alguma da política militar filipina na época.
Quando contava c. de 29 anos, seguindo já então o protestantismo, Valkenbroch
tomou parte, precisamente em Malines, nas lutas contra os espanhóis. Face a
essa contingência, viu‑se forçado a ter de abandonar a sua cidade natal.
O pintor passou então a viver, durante algum tempo, em Antuérpia. Passando
nessa cidade a viver durante algum tempo com seu irmão Martin, admite‑se com
forte probabilidade que ele teve ensejo de poder estudar no atelier do já então
bem conhecido Pieter Breughel (E. Bénézit, 1976, t. X: 377).
A religião e a política faziam então, da vida deste jovem malinense, como que
um refugiado político, que tinha necessidade de se fechar nos labirintos
sociais (níveis de reclusão étnico‑religiosa) que se lhe iam propiciando. Após
Antuérpia, desta vez foi o caso da fuga do jovem pintor protestante para Liège
e, logo algum tempo depois, para Francoforte sobre o Meno.
Fazendo lembrar a figura do judeu errante que, de lugar em lugar, vai
transportando a cruz do seu credo, Lucas I van Valkenborch ainda não fica
fixado nessa cidade do rio Meno. Alguns documentos parecem apontar que terá
voltado, então, aos Países Baixos. Os agentes políticos flamengos do rei mui
cristão Filipe, e os sucessos militares dos espanhóis na região, não lhe
permitem ainda, no entanto, fixar‑se aí neste período.
Já em 1570 ' Wurbach, por seu lado, sustenta que tal só sucedeu em 1580 (E.
Benézit, 1976: 377) ' van Valkenborch trabalha, na cidade de Linz, para o
Arquiduque Mateus. Teria, então, finalmente, este pintor encontrado um
labirinto seguro? Os parcos documentos existentes não permitem muito mais
ilacções a este respeito.
7 - Um labirinto arbóreo e vegetal na Alemanha de 1587, ou a narratividade
(autobiográfica?) de um pintor na procura de refúgio
São conhecidas, também deste pintor flamengo, algumas representações pictóricas
de Torres de Babel.Estas constituíram, ainda segundo Bénézit, a sua
especialidade como artista. Não é um facto que, já nas sua Torres de Babel o
artista procurava indiciar um mundo de loucuras transitórias, sempre
transitórias, onde o homem inventou e investiu a sua capacidade de se perder?
É de pouco depois de ter entrado ao serviço do Arquiduque Mateus, mais
precisamente de 1587, que data porventura a realização, por Lucas I van
Valkenborch, de uma das suas pinturas mais apreciadas, intitulada Fruhlings-
landschaft ' Mai (Paisagem primaveril ' Maio). Esta obra de arte é vulgarmente
também referenciada como Flusslandschaft mit kunstlichem Labyrinth (Paisagem
fluvial com labirinto artificioso). Assinale‑se ainda que este quadro ' que
foi produzido num período em que as relações técnicas e artísticas de Portugal
com a Alemanha[20] continuavam a decorrer com algum ritmo e regularidade ' se
encontra depositado em Viena, no Kunsthistorisches Museum.
Pintura sobre Paisagem fluvial com labirinto artificioso(no seu aspecto geral e
num pormenor) pelo artista flamengo quinhentista Lucas I Valkendorf
Há uma leitura que, decerto, não deverá passar despercebida ao leitor do espaço
argumentativo (em particular na sua parte superior) desta pintura de Lucas I
van Valkenborch. Ela permitirá estabelecer ' além das ilacções já aqui expostas
' que se tratará, porventura, de uma incursão aos patamares mnemónicos dos anos
de exílio do pintor. A sua assumida vivência do credo protestante, tê‑lo‑á
feito refugiar‑se, algumas vezes, em labirintos que ocultassem a sua fuga a
norma, a sua fuga ao convencional estabelecido, nos patamares da fé.
8 - Hans Bol (outro pintor flamengo de Malines) e a sua colagem indirecta à
ideologia estética de Valkendorf por via de Dédalo e de Ícaro
Contemporâneo de Lucas I van Valkendorf, e natural da cidade flamenga de
Malines como ele, é o referido pintor Hans Bol. Com uma reconhecida propensão
para a representação pictórica em miniatura.
Distam poucos meses, decerto, entre os nascimentos dos dois artistas naquela
cidade, pois sabe‑se que Hans Bol veio ao mundo em 16 de Dezembro de 1534.
Desconhecem‑se as razões por que terá saído, desde muito novo, da sua cidade
em direcção a outras da actual Alemanha. Não será despiciendo admitir‑se a
hipótese de que tal se ficou a dever ao desejo de ele aprofundar os seus
conhecimentos em pintura.
Primeiro o jovem Hans terá trabalhado em Heidelberga e, de seguida, em Mons.
Algum tempo depois terá regressado à sua vila natal, pois sabe‑se que em 10 de
Fevereiro de 1560, contando apenas 25 anos de idade, procedeu à sua inscrição
precisamente na gilda de Malines (E. Bénézit, t. II, 1976: 132).
Entretanto em 1572 Hans Bol, após a pilhagem de Malines, optou por fixar
residência ' mesmo quem numa grande estreiteza de recursos ' na cidade de
Antuérpia. Aí teve a sorte de ser protegido de um tal Anton Couvreur e, já em
1574, teve o privilégio de ser admitido na gilda dessa cidade.
Dez anos depois, assolando a guerra esta urbe, viu‑se forçado uma vez mais a
partir, optando desta feita por se estabelecer em Berg‑op‑zoom, permanecendo
aí cerca de dois anos. A partir de então ' como um verdadeiro sentido de
vivência do auto‑exílio e de procura (tal como Valkendorf), passou
respectivamente a Dordrecht e a Delft, antes de se fixar em Amesterdão, onde
casou com uma viúva[21].
Nesse período, em Harlem, tem oportunidade de fixar num retrato o bem conhecido
Goltzius (idem, ibidem). Não distará também muito ' de um ponto de vista
cronológico ' desta sua fase de produção pictórica, o seu contributo para a
História do Livro e da Edição quinhentista, ou seja, a sua produção de
miniaturas para o Livro de Horas do Duque de Alençon, que hoje se conserva na
Bibliothèque Nationale de France.
Admite‑se ainda que sejam sensivelmente deste mesmo período, algumas das suas
pinturas votadas ao tema mitológico que aqui mais vem a propósito, ou seja,
sobre as representações de Dédalo e de Ícaro. São hoje conhecidos, com efeito '
e muito tempo antes de Breughel e de Rubens votarem a este tema as suas bem
conhecidas interpretações pictóricas ' os seus (pelo menos) dois quadros sobre
a presente temática: o Dédalo e Ícaro (Malines, colº. Bruyn); e a uma pintura
homónima (Estocolmo)[22].
É interesante constatar‑se como dois pintores (Volkenborch e H. Bol, nascidos
na mesma cidade de Malines num período muito próximo um do outro) se
interessaram por estes dois temas, o do labirinto e o de Dédalo e Ícaro, na sua
natural afinidade. Prova disso é a água‑forte e buril, Paisagem com uma cena
com a queda de Ícaro, produzida na segunda metade do período quinhentista (em
lugar não identificado) que se conserva na Biblioteca Nacional de Espanha[23].
Quadro de um outro pintor flamengo de Malines, Hans Bol, Paisagem com uma cena
com a queda de Ícaro, da segunda metade do século XVI
Num período de guerras de religião, o miniaturista Hans Bol soube transportar,
para as suas telas e pergaminhos alguns efeitos estéticos ainda relevados por
E. Bénézit: os seus quadros aproximam‑se precisamente aos de Jean Breughel,
filho do grande pintor Breughel, pelo seu tipo de apresentação panorâmica,
enquadrada por casas e árvores, destacando‑se finamente sobre um céu nebulado
(E.Bénézit, t. II: 132). Este investigador acentua, de igual modo, neste
pintor, tanto as cena da vida urbana como as aldeãs e, ainda, de um ponto de
vista cromático, a recorrência aos tons avermelhados.
Algumas conclusões
Ascendem a um período anterior ao da génese do Cristianismo na Europa do
ocidente ' sobretudo em meios geográficos afectos à cultura helénica
(magistralmente estudada por Jean‑Pierre Vernant, a quem é dedicado, in
memoriam, o presente estudo) ' várias incursões mitológicas e mitográficas em
torno da problemática do labirinto.
Sabe‑se que autores como Virgílio, Arriano, Apolodoro ou Diodoro da Sicília
deram testemunho nos seus escritos, mesmo que de uma forma sumária, sobre o
mito de Dédalo e de Ícaro. Devem‑se porém a Ovídio, no livro VIII das
Metamorfoses, e a Pausânias no século II, algumas das mais interessantes
sínteses poéticas sobre aqueles dois mitos e, em particular, sobre aspectos
relacionados com a fuga do labirinto de Cnossos, em Creta.
Numa consciencialização do pensamento e da mentalidade antigas, naquele período
da História da Civilização pré‑Clássica e Clássica helénicas, são abordados os
aspectos interpretativos da fuga de dois lendários heróis do labirinto dominado
pelo Minotauro. Procura‑se trazer aqui, neste enfoque, uma leitura específica
dessa fuga, da construção das máquinas de voo dos dois heróis. Detemo‑nos,
sobretudo, na interpretação ' à luz das teorias de René Girard em torno do
desejo mimético ' de como estes dois homens‑pássaro, imitando o voo das
aves, deram testemunhos distintos de como os seus domínios deve(ria)m ser
considerados (na lógica analítica de Jacques Lacarrière) a terra e não o céu.
Essa percepção do labirinto ' como espaço de auto‑encontro e de fuga ante a
hipótese de perda ' vista de um ângulo da Antiguidade, não é muito distante da
de fenómenos idênticos, na sua leitura em fins do período medieval. Em pleno
século XIV, porém, investigadores de temas mitológicos (e simultaneamente
escritores), como Giovanni Boccaccio, têm o engenho para transportar esse tema
do labirinto para um outro mundo: o da consciencialização dos próprios afectos
humanos.
O escritor de obras como Labirinto de amor e de Corbaccioteve um sábio e
inovador ensejo de dar testemunho sobre o seu sonho, onde há
encantadores sítios que, de súbito, se transformam em impenetrável e
horrenda floresta onde se acham expiando a sua culpa, em forma de
animais, os homens que se embriagaram nas fontes do amor terreno.
Perante este discurso directo de Boccaccio vemo‑nos, irremediavelmente, ante
duas ilacções de pensamento obrigatório:
' Essa transformação dos referidos homens em animias não constituirá, no
pensamento boccacciano, uma dívida para com Ovídio, uma retomada do pensamento
deste mestre da arte poética e da Arte de amar?
' A presente leitura trecentista deste autor, amigo de Petrarca ' no período de
uma já significativa degradação de costumes na classe média e alta (incluindo
em meios eclesiásticos) ' ostenta claramente, para além dos seus considerandos
expostos nos livros do Decameron, uma perspectiva de efeitos moralizantes e
moralizadores.
As construções mentais do labirinto, no século seguinte, conhecem, porém,
outros andamentos, outras variações. Assim em pleno séc. XV, no plano da Música
erudita, surge o compositor Alexander Agricola e a construção dos seus próprios
arquétipos estéticos, por uma nova formulação da arte dos sons, edificando um
outro tipo de catedrais sonoras.
Olhando‑se os seus labiríntico meandros ' em que se alicerça, por exemplo,
alguma da sua produção de incidência litúrgica e, em particular, o Sanctus '
levanta‑se estas questões, sem dúvida, pertinentes. Será que ele não se
agiganta como um precursor religioso, sem fronteiras de credo, antecipando
(para aquela época) o vanguardismo de um Luigi Nono (1924‑1990) '
salvaguardando‑se, naturalmente, as gramáticas comunicacionais de cada um ' ao
escrever, em pauta musical transgressora[24], que a floresta está cheia de
sons? Poder‑se‑á afirmar também, e seguindo o pensamento expresso pelo
musicólogo e dirigente musical, Paul van Nevel, em 1999, que a ensombrada
floresta ou labirinto da arte musical do século XV, com a lufada de ar fresco
de Agricola, veio a ser vislumbrada de uma outra forma?
Entretanto já no século XVI o labirinto passava a contemporizar com outras
nuances de expressão. Por via da policromia pictórica, o flamengo Lucas I van
Valkenborch, com os seus pincéis, fixava os traços de um outro tipo de
labirinto. Sendo convictamente protestante, Valkenborch vira‑se forçado ' ante
o domínio espanhol castelhano na Flandres ' a viver a condição de isolado (em
diversificadas circunstâncias e lugares). Ele sentiu, assim, a necessidade de
refúgio em paraísos imaginários, estabelecendo cromaticamente o seu próprio
labirinto, procedendo eventualmente à transposição da mente para um dos
refúgios da sua carnalidadeda alma.
Essa leitura do labirinto, por parte daquele artista plástico de Malines,
encontra, afinal, alguma afinidade temática com os interesses do seu
conterrâneo (e também ele pintor) Hans Bol. Os quadros dados a público por
este, sobre a temática da queda de Ícaro, constituem, também, para o período
aqui em referência, interessantes desafios interpretativos.
Reconhece‑se que, nesta leitura transversalizante dos efeitos estéticos e
morais do labirinto, tanto no Mundo antigo como no período medieval e
renascentista, algumas outras vertentes (num período em que o labirinto já está
a ser estudado no plano dos hipermídia[25]) poderiam ser aqui afloradas.
Deixa‑se aqui a consciência, no entanto, de que o homem, como ser plural, no
sere no tempo heideggeriano, está muito para além dos seus mitos na genuína
procura de uma verdadeira identidade, misto de pacífica e de transgressora.
Madrid, 15 de Janeiro de 2009