O Serviço de Psicoterapia e Aconselhamento (Adultos) Aberto à Comunidade da
Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa (12
anos de serviço): Caracterização, Perfis de Utentes e Resultados
Introdução
Os serviços de psicoterapia e aconselhamento das Faculdades de Psicologia,
abertos à comunidade, têm como finalidade básica possibilitar o treino prático
e supervisionado dos alunos finalistas mediante a aplicação dos conhecimentos
teóricos adquiridos em sala de aula, o que contribui para a formação de
profissionais adequadamente habilitados e capazes de expandir as práticas
psicológicas em consonância com novas realidades e exigências sociais,
políticas e culturais.
Além disso, estes serviços também exercem um papel social de extrema
importância, uma vez que oferecem à população economicamente desfavorecida uma
possibilidade de acesso a serviços psicológicos gratuitos ou de baixo custo
financeiro (Herzberg, 1996).
Devido à sua relevância, os serviços de psicoterapia e aconselhamento têm sido,
sobretudo além fronteiras, objecto de vários estudos que se focalizam, em
linhas gerais, na caracterização dos utentes (Enéas, Faleiros & Sá, 2000;
Peres & Coelho, 2001; Santos, Moura, Pasian & Ribeiro, 1993), na
descrição dos serviços oferecidos (Mito, 2001; Santos, 1987; Silvares, 2000;
Yamamoto, 1997), na problematização das dificuldades inerentes ao trabalho
clínico-institucional (Ropa & Duarte, 1985; Silvares, 1996; Silvestre,
1987; Tozoni-Reis, 1994) e na elaboração de novas propostas de intervenção que
se diferenciam das modalidades de atendimento tradicionalmente oferecidas
(Barros, Corrêa & Germano Jr., 2001; Peres, 1997; Peres, 2001; Salinas
& Santos, 2002; Simon, 1989; Vaisberg & Machado, 1999). Com base na
avaliação dos níveis de eficácia das estratégias oferecidas e da identificação
das necessidades reais da população, tais estudos mostraram-se imprescindíveis,
tanto para o refinamento das práticas clínicas já existentes, como para a
criação de novos serviços ou modalidades de atendimento.
O presente estudo, insere-se nesta temática e tem como objectivo traçar o
perfil dos utentes adultos do Serviço de Psicoterapia e Aconselhamento Aberto à
Comunidade, pesquisando mais especificamente alguns dados sócio-demográficos
(número de acompanhamentos iniciados por ano, género, faixa etária, estado
civil, nacionalidade, escolaridade/curso universitário) e clínicos
(referências, queixas iniciais, patologia de personalidade e/ou sintomatologia,
número médio de sessões, drop-out's e os resultados percepcionados das
intervenções), relativamente ao período compreendido entre 1990 e 2002.
Características Gerais Do Serviço
Inserido na Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa (FP-UL), o
Serviço de Psicoterapia e Aconselhamento Aberto à Comunidade foi criado em 1982
com o intuito de proporcionar prática supervisionada a estagiários do 5º ano de
Psicologia do Núcleo de Psicoterapia e Aconselhamento, e de oferecer à
comunidade uma possibilidade de consulta psicológica gratuita. As intervenções
são efectuadas numa perspectiva terapêutica integrativa de base Cognitivo-
Comportamental.
Características Gerais Das Sessões
A primeira sessão consiste numa triagem/avaliação de características,
funcionamento geral e problemáticas dos utentes. Inclui-se a entrevista clínica
e a aplicação de questionários de avaliação da personalidade (e.g., MCMI-II,
Inventário Clínico Multiaxial de Millon II, Millon, 1987) e da sintomatologia
(e.g., BSI, Inventário Breve de Sintomas, Derogatis, 1992). As sessões
seguintes iniciam-se pela construção de uma relação terapêutica que se
caracterize por confiança e segurança, tomando em consideração o grau de
motivação do paciente (Vasco, 2005) e que funciona como suporte para a
intervenção, possibilitando a exploração e potencial alívio das queixas do
utente. Estas sessões têm habitualmente a duração de cerca de cinquenta
minutos.
Metodologia
Tendo em vista o objectivo proposto, adoptou-se o referencial metodológico de
pesquisa documental, enfatizando o carácter descritivo, retrospectivo e com uma
abordagem quantitativa e qualitativa. Desta forma, a presente investigação
consiste numa pesquisa naturalística, uma vez que procura descrever um fenómeno
(as características dos utentes que procuram o serviço psicológico e resultados
da intervenção), tal como ele ocorre num ambiente natural (Selltiz, Wrightsman
& Cook, 1987).
Para cada utente que contacta o serviço é preenchida uma ficha contendo os seus
dados pessoais, sendo posteriormente contactados para iniciarem o processo
psicoterapêutico. No final do ano lectivo, os estagiários elaboram um relatório
com a informação clínica do utente, contendo a descrição do desenrolar do
processo terapêutico e respectivos resultados. Os dados da presente pesquisa
foram extraídos destas duas fontes e basearam-se numa amostra de 251 utentes.
Resultados e Discussão
Os dados obtidos são apresentados de acordo com as variáveis propostas
anteriormente, em figuras com as respectivas frequências e percentagens.
1) Atendimentos
Quanto ao número de atendimentos realizados (Figura_1), observou-se uma menor
incidência de acompanhamentos nos anos de 1990 (n=6, 2,4%) e de 1991 (n=2,
0,8%) e uma certa estabilidade, em torno dos anos de 1992 a 2001, com excepção
de 1993 (n=32, 12,7%), 1996 (n=26, 10,4%) e 1998 (n=26, 10,0%). Em 2002,
observou-se uma maior incidência do número de acompanhamentos (n=48, 19,1%). As
variações encontradas ao longo dos anos reflectem a disponibilidade do Serviço,
particularmente o número de estagiários e a duração dos processos
psicoterapêuticos, que ao serem mais breves permitem um maior número de casos
atendidos.
2) Género
A maioria dos utentes do Serviço é do género feminino (n=192, 76,5%), como pode
ser visto na Figura_2a. O facto de haver uma notável predominância de mulheres
na composição da amostra seria previsível, pois os estudos existentes que
exploram a caracterização dos utentes deste tipo de serviços, patenteiam uma
maior procura de apoio psicológico por parte das mulheres (Enéas etal., 2000;
Santos etal.,1993). Um outro estudo efectuado por Vasco, Santos & Silva
(2004) na população portuguesa aponta também para uma maior frequência do
género feminino na procura de apoio psicológico (56,7%). Estes dados
correspondem à proporção habitual no recurso a serviços de saúde mental.
Pode pensar-se que tais evidências reflectem os condicionamentos socioculturais
moldados pelas relações de género, uma vez que durante o processo de
socialização há uma construção de género que molda características, atitudes e
valores mais associados a cada sexo e determina, por exemplo, que as mulheres
devem exteriorizar as suas emoções e solicitar ajuda sempre que necessário, ao
passo que os homens, pelo contrário, devem desde cedo ocultar os sentimentos e
cultivar a coragem heróica, a bravura e a resistência à manifestação emocional
diante das adversidades que enfrentam no quotidiano (Peres, Santos, &
Coelho, 2004). Contudo, como é visível na Figura_2b, tem aumentado nos últimos
anos a procura do Serviço por parte dos homens, facto este que pode representar
mudanças socioculturais associadas às dimensões de masculinidade e
feminilidade dos papéis psicossexuais (Nelson-Jones, 2004).
3) Idade
No que respeita à faixa etária, os registos indicam que a maioria dos utentes
que recorreram à consulta psicológica oferecido pelo Serviço tinham entre 20 a
25 anos de idade (n=75, 29,6%), 51% (n= 128) entre 25 e 50 anos de idade, e
6,4% (n=16) com mais de 50 anos, como pode ser visto na Figura_3. A procura do
Serviço primordialmente por jovens adultos pode dever-se, em parte, ao facto de
a adultidade jovem ser o período de transição entre o final da adolescência e o
início da vida adulta, uma fase habitualmente marcada por incertezas e crises
existenciais que podem culminar com a eclosão e/ou acentuação de conflitos
psicológicos (Yamamoto, 1997). Por outro lado, estes dados já eram esperados na
medida em que o Serviço se encontra no campus da Universidade, encontrando-se,
por esta razão, particularmente acessível aos estudantes.
4) Estado Civil
No que diz respeito ao estado civil (Figura_4), os utentes solteiros
representam a maioria (n=142, 56,6%), seguidos pelos casados (n=65, 25,9%), e
pelos divorciados (n=19, 7,6%), sendo que os demais (ou vivem em regime de
união de facto ou são viúvos ou encontram-se separados, ainda e sem dados)
representam apenas 10% da amostra. Estes dados são facilmente explicados se
tomarmos em consideração, uma vez mais, o facto de que a maioria dos utentes é
composta por jovens adultos, e como tal, previsivelmente solteira.
5) Nacionalidade
Em relação à nacionalidade dos utentes (Figura_5), verifica-se sem surpresa uma
predominância de Portugueses (n=220, 87,6%), seguidos pelos países de língua
oficial portuguesa (n=21, 8%).
6) Escolaridade
Quanto ao nível de escolaridade constata-se que o estatuto de frequência
universitária ocupa a maior fatia (n=93, 37,1%), como é visível na Figura_6. É
de notar que, como é habitual neste tipo de estudos, se verificou um número
superior ao conhecido pelas estatísticas oficiais no que se refere ao nível
educacional: 82,0% têm habilitações literárias superiores ao 9º ano completo.
Vasco, Santos & Silva (2004) no seu estudo, chegaram a uma percentagem
semelhante: 70%. O aspecto da escolaridade, como apontado por Enéas etal.
(2000) reflecte o local em que ocorre a prestação do serviço; no nosso caso, o
Campus da Universidade. Esse universo e o facto de se tratar, uma vez mais, de
um serviço inserido numa Universidade, ajuda a explicar a alta escolaridade da
população adulta quando comparada com estudos que focam outros serviços de
saúde mental.
Analisando os utentes por licenciatura (Figura_6.1), verifica-se uma maior
frequência dos alunos de Psicologia (n=24, 32,4%), seguindo-se as Letras e as
Engenharias com 12,2% e 8,1%, respectivamente. A maior predominância de
estudantes de Psicologia era também um resultado já esperado. Peres etal.
(2004) apontam como motivos para tal facto estes utentes possuírem uma visão
mais realista ou menos preconceituosa acerca dos objectivos de um processo
psicoterapêutico. De notar ainda a divulgação informal do Serviço entre os
discentes de Psicologia, uma vez que os estagiários do serviço geralmente
mantêm uma proximidade maior com os companheiros de curso do que com alunos de
outras licenciaturas. Refira-se também a diversidade de licenciaturas que estão
representadas.
7) Fontes de Referência
Quanto às fontes de referência (Figura_7), os dados desta pesquisa revelaram
que a maioria dos utentes chega ao Serviço por indicação de funcionários,
alunos, familiares ou utentes (n=145, 57,9%) . Em segundo lugar, aparecem os
encaminhamentos formais de profissionais de saúde, nomeadamente psicólogos,
psiquiatras e médicos de família (32,4%).
8) Queixas e Perturbações
Na amostra constituída pelos utentes do Serviço (Figura_8a), a Depressão
revelou-se a queixa mais frequente (n=78, 31,3%), seguida da Ansiedade ( n=45,
18,1%), dos Problemas com Familiares/Colegas (n=36, 14,5%) e de Problemas
Conjugais (n=24, 9,6%).
Os estudos de Vasco, Santos & Silva (2004) e de Welling & Vasconcelos
(em preparação) obtiveram dados relativos à população portuguesa relativos às
queixas que levam as pessoas a procurar ajuda psicológica. No primeiro estudo
17,5% das pessoas referiram depressão e 15,5% referiram ansiedade. No segundo
estudo verificou-se também que a depressão (59%) era a queixa mais frequente.
A categorização das queixas no presente estudo compreendeu 13 categorias:
nervosismo/ansiedade/dificuldades de concentração, depressão/sentimento de
solidão/perda/esgotamento/tentativas de suicídio, fobias/ataques de pânico,
problemas conjugais, dificuldades no relacionamento com familiares/colegas,
auto-conhecimento, problemas no desempenho académico/profissional, timidez/
dificuldades no relacionamento com o sexo oposto, comportamento alimentar,
problemas sexuais/identidade sexual, questões vocacionais, consumos,
alucinações/perda do contacto com a realidade.
Com base nas perturbações identificadas pelos instrumentos clínicos utilizados
na primeira sessão (MCMI-II e BSI) e na avaliação clínica feita pelos
estagiários ao longo das sessões, foi possível categorizar as perturbações
evidenciadas pelos utentes do Serviço de acordo com a classificação do DSM-IV
(1994). Deste modo, as perturbações podem pertencer ao Eixo I (perturbações
sintomáticas, como a ansiedade e a depressão) ou ao Eixo II (perturbações de
personalidade). De um modo geral, esta distribuição segue uma curva normal com
os casos puros de perturbação de personalidade raramente a existirem isolados,
existindo na maioria dos casos situações de comorbilidade ao nível dos eixos.
Como pode ser visto na Figura_8b, deparamo-nos com um predomínio da
comorbilidade entre eixos (n=144, 57,2%), seguido das perturbações
exclusivamente de Eixo I (n=100, 40%) e de Eixo II (n=7, 2,8%).
9) Número de Sessões Efectuadas
Quanto ao número de sessões efectuadas, os utentes tiveram em média 12,7
sessões. Na Figura_9 pode observar-se que a maioria (n=63, 25,1%) teve entre 6
a 10 sessões, seguidos por aqueles que tiveram entre 1 a 5 sessões (n=57,
22,7%). Isto significa que cerca de metade dos utentes teve até 10 sessões. Se
atendermos ao facto de a investigação (Howard etal., 1986; Pereira, Welling
& Gonçalves, 2004) mostrar que se podem verificar melhoras significativas
ao nível da sintomatologia e algumas melhoras ao nível da personalidade até à
oitava sessão, e se pensarmos que em 40% dos utentes apenas foram identificadas
perturbações no Eixo I (sintomatologia), estes resultados podem ser melhor
compreendidos.
10) Drop-out's
Ao nível dos drop-out's, ou desistências do processo psicoterapêutico, os dados
apontam para 24,3% dos processos iniciados, ou seja, 61 utentes abandonaram o
processo precocemente, sem o acordo do terapeuta estagiário. Na Figura_10
podemos observar essa distribuição em função do número de sessões. Deste modo,
57,4% dos drop-out's ocorreram até à 3ª sessão. Este dado pode ser atribuído
quer a uma insatisfação inicial do utente em relação ao terapeuta ou ao modelo
de avaliação/intervenção, quer ao facto de os objectivos inicialmente acordados
entre utente e terapeuta terem sido alcançados. Ou seja, muitos utentes podem
ter ficado satisfeitos com um número reduzido de sessões, abandonando
precocemente o processo psicoterapêutico, mas tendo uma opinião favorável em
relação ao terapeuta estagiário e/ou modelo de avaliação/intervenção.
11) Resultados Percepcionados da Intervenção
Relativamente aos resultados da intervenção, inferidos com base na percepção
dos utentes e do terapeuta, da comparação entre os pontos de entrada e de saída
do processo terapêutico (Figura_11), em 16,9% (n=42) dos utentes não se
verificou qualquer alteração no seu estado geral, em 0,5% (n=2) dos casos
registou-se alguma deterioração, 73,8% (n=135) apresentaram algumas melhoras
com o processo psicoterapêutico e 8,7% (n=22) apresentaram bastantes melhorias.
Os valores de deterioração são, para todos os efeitos, inferiores aos apontados
em estudos de eficácia da psicoterapia por Lambert & Ogles (2004), que os
situam entre 5% e 10%. Por sua vez, o valor relativo às melhoras é semelhante
ao valor global geralmente apontado para a eficácia da psicoterapia, cerca de
80%. Estes valores são também muito semelhantes aos encontrados por Vasco,
Santos & Silva (2004): em 22,7% dos indivíduos que recorreram a psicólogos
não se verificou qualquer alteração no estado emocional geral e em 1,0% dos
casos registou-se deterioração (76,3% melhoraram com a terapia). Parece pois,
que a intervenção dos terapeutas estagiários, em regime de supervisão semanal,
é percepcionada com níveis elevados de efectividade.
Conclusões
A pesquisa documental dos utentes acompanhados entre 1990 e 2002 no Serviço de
Psicoterapia e Aconselhamento Aberto à Comunidade da FPCE permitiu constituir
um retrato robot do utente: cidadão de nacionalidade portuguesa (87,3%), do
género feminino (76,5%), com idade compreendida entre os 20 e os 25 anos
(29,6%), solteiro (56,6%), com frequência num curso universitário (37,1%),
referenciado por um funcionário ou aluno da Faculdade (30,7%), com uma queixa
inicial de sintomas depressivos (31,3%), com comorbilidade de perturbações
sintomáticas e de personalidade (57,2%), que teve entre 6 a 10 sessões de
terapia (25,1%), e que no final do processo psicoterapêutico percepcionava
melhorias no seu estado geral de satisfação e funcionamento (82,5%).
Parece-nos ainda importante salientar alguns dos resultados mais
significativos. Em primeiro lugar, o aumento do número de casos acompanhados
que se tem verificado nos últimos anos, que pensamos poder ser atribuído, tanto
a uma maior procura do Serviço por parte de potenciais utentes, como a uma
maior disponibilidade em termos de número de estagiários.
Igualmente relevante parece ser o aumento da procura do Serviço por parte de
utentes do sexo masculino que pensamos poder ser atribuído a uma diminuição do
preconceito estereotípico masculino relativamente à procura de apoio
psicológico.
Também nos parece importante salientar a diversificação das fontes que
referenciam os utentes, que vão desde funcionários, alunos e antigos ou
presentes utentes, até instituições, passando pelos diversos profissionais de
saúde.
Por último, o leque amplo das queixas/perturbações que surgem nas consultas,
bem como, particularmente, o nível de eficácia do atendimento prestado.
De facto, o aumento da procura de apoio psicológico nos últimos anos parece
apontar para a importância e reconhecimento do Serviço na comunidade no qual se
insere e reflectir a eficácia dos acompanhamentos efectuados pelos alunos
estagiários.
Terminaremos, sublinhando que os resultados do estudo parecem apontar, não só
para o facto de o Serviço ter vindo a cumprir o objectivo de contribuir para a
formação de psicólogos clínicos competentes, como também a realizar a função
social de providenciar aconselhamento e psicoterapia com qualidade a quem não
possui recursos financeiros para os obter em contexto de prática clínica
privada.