Perceção de justiça, discriminação e sexismo
Apesar dos progressos verificados na maior parte dos países desenvolvidos no
acesso das mulheres ao mundo do trabalho, continua a verificar-se discriminação
em certas áreas, como a da política (Santos, 2010), e no acesso a cargos de
poder e tomada de decisão em geral. Quem contribui para a manutenção das
desigualdades baseadas no sexo? Serão os membros dos grupos dominantes, dos
grupos dominados, ou ambos? Como reagem, mulheres e homens, a estas
desigualdades e em que situações adotarão, ou não, ações (individuais ou
coletivas) para as enfrentar? Este artigo pretende responder a estas questões,
através de uma revisão de literatura em torno das dinâmicas das relações
intergrupais e da perceção da justiça, com especial atenção para os estudos
sobre as categorias de sexo e as relações de género. Para isso, recorre a
alguns modelos da psicologia social, articulando os diferentes níveis de
análise considerados relevantes para a análise das relações entre grupos
sociais, em particular os níveis intergrupal e ideológico (Doise, 1982).
O artigo começa por abordar três teorias clássicas sobre as relações
intergrupais e o conflito intergrupal: a teoria da identidade social, o modelo
dos cinco estádios e a teoria da privação relativa. Em seguida, centra-se em
algumas formas de pensamento comum que justificam a discriminação ou o sistema,
procurando mostrar que há uma série de ideologias, sistemas de crenças,
avaliações e normas, que justificam e mantêm uma ordem estabelecida de relações
sociais. Entre estas formas de pensamento, salienta-se a ideologia
meritocrática, a justificação do sistema e a dominância social, procurando
mostrar, em resposta à primeira pergunta enunciada acima, que os membros dos
grupos discriminados, como é o caso das mulheres nas relações de género,
contribuem para a manutenção do status quo. Em seguida, procuramos perceber em
que situações estas adotarão, ou não, estratégias/ações (individuais ou
coletivas) para enfrentar a discriminação. O artigo encerra demonstrando que as
novas formas de expressão do sexismo, mais subtis, também contribuem para
manter o status quo.
Abordagens das Relações de Género numa Perspetiva Intergrupal
Segundo Taylor e Moghaddam (1994), quando nos referimos a relações
intergrupais estamos, geralmente, a falar de any aspect of human interaction
that involves individuals perceiving themselves as members of a social
category, or are perceived by others as belonging to a social category(p. 6).
Existem diversas abordagens sobre relações intergrupais em psicologia social,
nomeadamente, a teoria dos conflitos realistas (Sherif, 1967), a teoria da
identidade social (TIS) (Tajfel & Turner, 1979), a teoria da auto-
categorização (Turner, Hogg, Oakes, Reicher, & Wetherell, 1987), o modelo
dos cinco estádios (Taylor & McKirnan, 1984) e a teoria da privação
relativa (e.g., Crosby, 1976). Este artigo centra-se na TIS e nas duas últimas
teorias, nomeadamente, porque procura conhecer as perceções, os sentimentos e
os comportamentos dos membros dos grupos sociais (sobretudo dos desfavorecidos)
perante situações de discriminação ou injustiça, e assume que o conflito que
marca as relações sociais entre homens e mulheres se baseia numa assimetria
simbólica (Amâncio, 1997) que coloca os homens na posição dominante e as
mulheres na posição de grupo dominado, como veremos.
Teoria da Identidade Social
A formulação clássica da TIS deu-se num artigo onde Tajfel e Turner (1979) a
apresentaram como sendo uma teoria integradora do conflito intergrupal. A TIS
surgiu com o objetivo de explicar os fenómenos grupais, através de um quadro
teórico capaz de apreender a mudança social associada aos comportamentos
coletivos, nomeadamente no conflito entre grupos e movimentos sociais (Tajfel,
1984). A teoria defende que os grupos sociais podem competir entre si por
prestígio social ou estatuto (Tajfel & Turner, 1979) e sugere que a busca
de uma distintividade positiva do grupo de pertença, relativamente aos outros
grupos, pode conduzir a um conflito intergrupal.
Esta teoria é importante no âmbito das relações intergrupais, nomeadamente,
porque sugere que a mera categorização pode bastar para que ocorra
discriminação intergrupal. Também define as características do sistema social
que podem conduzir a comportamentos de natureza individual ou de natureza
intergrupal. Trata-se do que o autor designou continuum interpessoal/
intergrupal das relações sociais (e.g., Tajfel, 1978, 1981/1982; Tajfel &
Turner, 1979). Um extremo, o polo puramente interpessoal ou interindividual,
inclui os comportamentos recíprocos que as pessoas dirigem umas às outras,
enquanto indivíduos. O outro extremo, o polo puramente intergrupal, inclui os
comportamentos que as pessoas dirigem (ou recebem) a outras pessoas que as
consideram (e são consideradas por elas) apenas enquanto membros de um
determinado grupo ou categoria social. Segundo a TIS, é o grau em que as
pessoas se identificam como membros de um grupo social, numa determinada
situação, que afetará a sua tendência para atuar através de ações/estratégias
individuais ou coletivas (Tajfel, 1981/1982; Tajfel & Turner, 1979). O
fator que determina como os membros de um grupo desfavorecido irão responder à
desigualdade é a sua perceção da estrutura intergrupal. Se esta for percebida
como ilegítima ou instável, isso contribui para a consciência das alternativas
à estrutura intergrupal existente, o que conduzirá a uma variedade de respostas
coletivas para melhorar a situação do grupo. A ausência de consciência de
alternativas conduzirá apenas a tentativas individuais de mobilidade ou à
aceitação da posição de desvantagem.
Esta teoria influenciou vários dos modelos que abordaremos neste artigo,
podendo ser útil para se perceber melhor as relações de género (Cameron, 2001;
Cameron & Lalonde, 2001), particularmente em contextos com fronteiras
intergrupais restritas - conhecidos na literatura por tokenism (e.g., Kanter,
1977; Wright, 2001) -, como é o caso da política (Santos, 2010). Contudo,
também é sabido que a TIS é, por vezes, redutora, tendo várias aplicações
falhado na apreensão quer dos contornos afetivos, quer ideológicos, das
relações de género (e.g., ver Amâncio, 1994; Cameron & Lalonde, 2001), que
se revelaram mais complexas do que o que a investigação sobre a identidade
social reconheceu inicialmente.
Modelo dos Cinco Estádios
Um dos modelos influenciado pela TIS é o modelo dos cinco estádios de Taylor e
McKirnan (1984), sobre o conflito intergrupal e a mudança. Segundo este modelo,
raramente existe uma relação de perfeita igualdade entre os grupos sociais. Por
isso, procura explicar as relações entre os grupos nas situações em que um dos
grupos é dominante (e.g., os homens) e o outro é dominado (e.g., as mulheres),
centrando a sua análise em ambos os grupos no sentido de identificar as suas
respostas/ações face à situação de desigualdade.
O modelo assume que todas as relações intergrupais envolvem cinco etapas na
mesma ordem sequencial. Estas tanto podem completar-se em longos períodos de
tempo, como num curto espaço de tempo, dependendo de fatores históricos,
sociais, económicos, políticos e psicológicos. Para além da relevância da
situação social global, das táticas de dominação do grupo dominante e das
propostas do grupo dominado, os processos básicos da atribuição causal e da
comparação social estão subjacentes a cada um dos estádios e controlam a
transição entre eles (Taylor & McKirnan, 1984). As etapas são as seguintes:
I. elações intergrupais claramente estratificadas - a primeira etapa
caracteriza-se por apresentar uma situação social de estratificação baseada
exclusivamente na pertença de grupo, resultando numa relação rígida dominante-
subordinado entre os grupos, onde as barreiras parecem de tal forma
intransponíveis a ambos que estes nem sequer as questionam;
II. emergência da ideologia sócio-individualista - nesta fase acreditam que a
estratificação se baseia na realização individual (ideologia meritocrática). As
fronteiras entre os grupos já não parecem intransponíveis e o grupo dominante
vê-se obrigado a modificar as suas táticas. Ambos os grupos sociais consideram
que o baixo estatuto do grupo dominado se deve à sua baixa capacidade e
esforço. Ao culpar o grupo dominado pela sua situação, o grupo dominante exime
a sua própria responsabilidade na criação das barreiras sociais entre os grupos
e, por seu lado, os membros do grupo dominado legitimam a perceção de que o
estatuto social depende da capacidade e do esforço de cada pessoa;
III. mobilidade social- nesta fase um número restrito de membros do grupo
dominado tenta ultrapassar as fronteiras intergrupais e passar para o grupo
dominante e uma parte consegue fazê-lo. Porém, trata-se ainda de uma rutura
parcial e limitada, porque só alguns têm sucesso (i.e., os que se destacam pela
sua capacidade, designados tokens). Neste caso, o grupo dominado divide-se,
fortalecendo as atribuições e as comparações sociais que permitem que a
situação permaneça igual, como pretende o grupo dominante, ou seja, os que
conseguiram melhorar a sua posiçãoatribuirão esse sucesso ao seu próprio mérito
e os que não o conseguiram atribuirão esse fracasso à sua baixa capacidade.
Nesta etapa, as comparações continuam a estabelecer-se entre indivíduos e não
entre os grupos;
IV. tomada de consciência- esta acontece aos membros do grupo dominado que, na
etapa 3, são mal sucedidos na tentativa de mudança de posição. Neste caso,
tentam persuadir os membros do seu grupo de que o seu estatuto é coletivamente
definido e ilegítimo, podendo levá-los a adotar ações coletivas para tentarem
alterar a situação;
V. relações intergrupais competitivas- tendo tomado consciência da situação, o
grupo dominado já faz comparações intergrupais e compete diretamente com o
grupo dominante, podendo então adotar ações coletivas para tentar melhorar a
situação. As estratégias coletivas previstas neste modelo são as mesmas que
Tajfel e Turner (1979) definiram, ou seja, a competição coletiva, a redefinição
das características do grupo (e.g., o movimento Black is beautiful entre os
negros norte-americanos) e a criação de novas dimensões de comparação social
por parte do grupo dominado.
Estimulados pelo modelo de Taylor e McKirnan (1984), vários autores (e.g.,
Wright, 2001; Wright, Taylor, & Moghaddam, 1990) têm desenvolvido a sua
investigação centrando-se no tokenism. São assim designadas as dinâmicas dos
contextos com fronteiras intergrupais restritas que os grupos sociais
desfavorecidos, como as mulheres, encontram (ver Santos & Amâncio, no
prelo, para uma revisão da literatura). Avançaremos apenas que o tokenism
constitui uma forma de discriminação, subtil, mas muito poderosa (Taylor &
Moghaddam, 1994), nomeadamente porque, como são contextos ambíguos (por não
serem nem totalmente abertos, nem totalmente fechados), conduzem apenas a ações
individuais por parte dos grupos desfavorecidos (Wright et al., 1990), mantendo
o status quo.
Teoria da Privação Relativa
Um dos grandes desafios para qualquer teoria sobre relações intergrupais é
perceber as condições que levam os membros dos grupos dominados a adotar ações
para melhorarem a sua situação (Taylor & Moghaddam, 1994), ou a razão pela
qual aceitam, muitas vezes, a situação, como acontece frequentemente no caso
das mulheres (Crosby, 1982; Roux, Perrin, Modak, & Voutat, 1999). Na
verdade, apesar do seu estatuto, visivelmente menos elevado, há poucas
evidências que mostrem que, em geral, as mulheres estão mais descontentes com a
sua situação dos que os homens (Crosby, 1982). Aparentemente, no que diz
respeito aos sentimentos das pessoas, não há qualquer relação entre o seu
estatuto (objetivo) e as suas experiências (subjetivas). Os primeiros
investigadores a captarem este fenómeno foram Stouffer e colaboradores
(Stouffer, Suchman, DeVinney, Star, & Williams, 1949). Os autores
recorreram ao conceito de privação relativa para explicar a diferença de
aspirações e expectativas entre os dois grupos, sendo a identificação com o
grupo central nesta teoria. A partir desta investigação inicial, várias/os
autoras/es têm analisado esta questão (e.g., ver Crosby, 1976, 1982, 1984;
Foster & Matheson, 1995; Runciman, 1966, Walker & Smith, 2002)
desenvolvendo a teoria (ou teorias) da privação relativa.
Faye Crosby, para além de ter realizado uma revisão de literatura sobre o tema,
também deu origem a uma nova teoria, clarificando a natureza e o número de pré-
condições necessárias e suficientes para se experimentar o sentimento de
privação relativa (Crosby, 1976).Para a autora, a pessoa pode experimentar
sentimentos negativos de privação relativa quando: percebe que outra pessoa tem
X, quer X, considera ter o direito a ter X, considera que é possível obter X, e
não se sente pessoalmente culpada por não ter X. Assim, são pré-condições da
privação relativa o desejo, o ter direito, a comparação com os outros, a
praticabilidade/possibilidade e a ausência de culpa. A não satisfação destas
condições pode provocar deceção, indignação ou ciúme. Importa sublinhar que o
conceito de privação relativa integra duas componentes: uma componente
cognitiva (e.g., a perceção de que há, efetivamente, diferenças ilegítimas) e
uma componente emotiva (e.g., um sentimento de descontentamento, de raiva).
Houve, inicialmente, alguma evidência empírica que suportou este modelo (e.g.,
Bernstein & Crosby, 1980). Contudo, mais tarde, baseando-se em resultados
de outros estudos (e.g., Crosby, 1982), a própria autora conclui que bastam
duas pré-condições para prever adequadamente a privação relativa - o desejo e o
sentimento de ter direito a. Crosby acredita que pode haver uma discrepância
entre os resultados reais e os desejados e entre os resultados reais e os
merecidos. Estudos mais recentes (e.g., Olson, Roese, Meen, & Robertson,
1995) suportam parcialmente o modelo, apesar de os seus resultados não
mostrarem que os dois fatores são ambos necessários para produzir
ressentimento, já que o desejo foi o preditor mais importante.
Tougas e colegas (e.g., Tougas & Veilleux, 1989; Tougas & Beaton, 2002;
Veilleux & Tougas, 1989) salientam outro tipo de privação relativa,
introduzido por Runciman (1966): a privação relativa pelos outros. Trata-se
de um sentimento de descontentamento que é experimentado por um membro do grupo
favorecido que percebe que um membro de outro grupo está desfavorecido na
sociedade. Recorrendo ao exemplo da ação positiva, enquanto a privação relativa
coletiva já foi usada como preditor do apoio das mulheres aos programas de ação
positiva (e.g., Tougas & Veilleux, 1989), no caso dos homens pode haver
reações opostas, mas também pode haver reações favoráveis2. Alguns autores
(e.g., Pettigrew, 2002; Walker & Smith, 2002) consideram que a privação
relativa pelos outros é suficientemente comum para ser digna de mais atenção.
Runciman (1966) foi pioneiro a analisar a privação relativa em contextos
interpessoais e intergrupais, distinguindo entre a privação egoísta (produzida
por comparações interpessoais) e privação fraterna (produzida pela comparação
intergrupal). Porém, Crosby (1982) contribuiu para se perceber melhor esta
diferenciação, ao distinguir privação pessoal (egoísta) e grupal(fraterna).
Runciman (1966) considera que estes dois tipos de comparações têm consequências
diferentes. No caso em que as pessoas experimentam um sentimento de privação
relativa fraterna, isso pode fazer com que elas adotem comportamentos coletivos
que procuram tanto a mudança social, como a manutenção do status quo.Já
osentimento de privação relativa egoísta (e.g., o stresse) pode levar a
comportamentos individuais que visam apenas a alteração da situação pessoal.
Há, de facto, investigação que mostra que os protestos coletivos estão mais
correlacionados com os sentimentos de privação fraterna do que com os de
privação egoísta (e.g., Dubé & Guimond, 1986; Guimond & Dubé-Simard,
1983) e que o descontentamento pessoal prediz os comportamentos autodirigidos.
Contudo, há algum consenso na literatura em como a distinção pessoal/grupal é
muitas vezes mal compreendida, mal operacionalizada ou ignorada (e.g.,
Bernstein & Crosby, 1980; Walker & Pettigrew, 1984). Mesmo quando tal
acontece, a passagem para o comportamento continua a ser um problema para esta
teoria (Wright et al., 1990). Apesar de tudo, há estudos que ilustram a
relevância desta distinção entre as variáveis pessoais e grupais, tanto a nível
das pré-condições, como das consequências comportamentais (e.g., ver Olson et
al., 1995). Neste âmbito, a TIS sugere uma solução importante (Tyler &
Smith, 1998), ao defender que há dois tipos de identidade que contribuem para o
autoconceito: a identidade pessoal e a identidade social. Esta distinção sugere
que se a identidade pessoal está saliente, as pessoas farão mais comparações
interpessoais entre elas próprias e as outras que levam a sentimentos de
privação relativa individual. Mas se a identidade social é relevante, ou a
relação com o grupo está saliente, as pessoas estão mais predispostas para
realizar comparações intergrupais entre os membros do grupo de pertença e os do
outro grupo, podendo conduzir a sentimentos de privação relativa do próprio
grupo. Assim, o mais importante não é o alvo de comparação, mas antes se as
pessoas se veem como indivíduos isolados ou como membros de um grupo. Todavia,
para Tropp e Wright (1999), a simples distinção pessoal/ grupal pode ser
problemática, visto não considerar situações onde as pessoas expressam privação
pessoal, em comparação com membros de outros grupos sociais (e.g., no caso das
mulheres, podem ocorrer três situações: haver comparações entre uma mulher e
outra mulher; entre uma mulher e um homem; ou entre mulheres e homens). Para
além da importância do grupo alvo de comparação, Tropp e Wright (1999)
mostraram que a identificação com o grupo de pertença também é importante na
distinção entre privação relativa fraterna e egoísta. Quando uma pessoa
expressa insatisfação relativamente à posição do seu grupo, presume-se uma
segmentação da sociedade em grupos e a identificação da pessoa com o grupo de
pertença (Guimond & Dubé-Simard, 1983). Segundo Tougas e Veilleux (1989), a
intensidade desta identificação pode afetar o nível de privação relativa
fraterna experimentado e este, por sua vez, pode levar as pessoas a adotar, ou
não, ações coletivas.
Apercebendo-se da complexidade da questão que levará, ou não, as pessoas à ação
coletiva, Foster e Matheson (1995) retomam o conceito identificado por Runciman
(1966), e propõem um modelo que liga os dois tipos de privação, a privação
relativa dupla, correspondendo aos casos em que há, simultaneamente, perceção
da privação relativa pessoal e grupal. Aparentemente, a privação relativa
individual pode motivar as pessoas a agirem coletivamente (e.g., quando uma
pessoa é sujeita a uma situação de extrema violência, pode agir para prevenir
que volte a repetir-se), no entanto, muitas vezes, não recorrem à ação, nem
agem em benefício do grupo de pertença. Tal pode dever-se à tendência para as
pessoas tolerarem a privação pessoal (Olson & Hafer, 2001). Por outro lado,
como vimos, a privação relativa grupal é um importante percursor para a ação
coletiva (Dubé & Guimond, 1986), mas a literatura revela uma relação apenas
moderada entre a privação relativa grupal e a ação coletiva (Guimond &
Dubé-Simard, 1983; Hafer & Olson, 1993). Com efeito, muitas mulheres, e
membros de minorias visíveis, reconhecem que o seu grupo é discriminado, mas
poucas são as que adotam ações para alterar a situação (Taylor, Wright,
Moghaddam, & Lalonde, 1990). Segundo Foster e Matheson (1995), tal acontece
quando há apenas privação relativa grupal. É provável que se deva ao facto de
as pessoas geralmente minimizarem as suas experiências de discriminação
pessoais. Este fenómeno que, por exemplo, Crosby (1982) designou por "efeito de
negação da discriminação pessoal", será desenvolvido adiante. Nestes casos, a
pessoa até pode considerar o sistema injusto, mas se não sente privação
relativa individual, pode pensar que o problema não é dela e, por isso, não
recorre à ação coletiva para alterar a situação. Smith, Spears e Oyen (1994)
mostraram que os sentimentos de privação relativa coletiva podem inclusivamente
ser subvertidos se as pessoas estiverem em vantagem pessoal. Assim, o
reconhecimento da privação relativa individual não parece implicar o
reconhecimento da privação relativa grupal e vice-versa. Aliás, não parece
haver uma conexão lógica entre as duas formas de privação (Ellemers, 2002).
Para haver ação, o ideal é que se experimente a privação relativa dupla (Foster
& Matheson, 1995). No ponto seguinte, abordaremos a discriminação, focando
particularmente algumas das estratégias e ideologias que a procuram justificar.
Ideologias que justificam o sistema
A literatura tem salientado várias ideologias que servem para justificar a
discriminação ou o status quo (Jost & Hunyady, 2005). Estas são uma base de
poder fundamental, constituindo um elemento estruturador e legitimador do
sistema (Pratto & Walker, 2004), nomeadamente, porque também são
assimiladas pelos membros dos grupos dominados. Destacamos a ideologia
meritocrática, a justificação do sistema, a dominância social e, no ponto
seguinte, a crença num mundo justo.
Ideologia Meritocrática
A meritocracia é particularmente eficaz quando se trata de justificar a
discriminação face a certos grupos sociais. Segundo esta ideologia, considerada
fundamental na sociedade ocidental (Jost & Hunyady, 2005; Sidanius &
Pratto, 1999; Taylor & McKirnan, 1984), o sucesso ou fracasso da mobilidade
individual é determinada por fatores internos, ou seja, qualquer pessoa, sem
restrições, poderá chegar até onde a sua própria capacidade, mérito, esforço,
desempenho, etc., lho permita.
Como já foi referido noutro trabalho (ver Santos & Amâncio, 2010), a
meritocracia tem sido entendida como um dos princípios centrais da justiça
distributiva (e.g., Deutsch, 1975; ver também Bobocel, Son Hing, Davey,
Stanley, & Zanna, 1998; Son Hing, Bobocel, & Zanna 2002; Son Hing,
Bobocel, Zanna, Garcia, Gee, & Orazietti, 2011), sendo considerada por
muitas pessoas como um princípio de justiça ideal, porque, quando é feita a
distribuição dos resultados, apenas os resultados relevantes, como as
habilidades, devem ser considerados e outros fatores como a classe, a etnia e o
sexo, devem ser ignorados (Son Hing et al., 2011). Evidências mais recentes
mostram que, na prática, os últimos fatores interferem na distribuição dos
resultados (McNamee & Miller, 2004), favorecendo os grupos dominantes que
são quem, geralmente, controla o processo de avaliação (Son Hing et al., 2011).
Por essa razão, a meritocracia também tem sido entendida como uma ideologia que
serve para ajudar a manter e legitimar as desigualdades que existem na
sociedade (e.g., Jost & Banaji, 1994; Sidanius & Pratto, 1999). Com
efeito, o facto de vários grupos sociais, como as mulheres, sofrerem
discriminações coloca em causa a justiça da ideologia meritocrática (Blanchard
& Crosby, 1989). Portanto, mais do que de meritocracia parece antes tratar-
se de uma ilusão da meritocracia (Ellemers & Barreto, 2009) que serve
para manter a desigualdade entre os grupos sociais (e.g., Jost & Banaji,
1994; Sidanius & Pratto, 1999). Trata-se de uma ilusão, porque parece que é
aplicada a todos os indivíduos, independentemente da sua pertença grupal,
contudo, as oportunidades dos membros dos grupos de baixo estatuto são bastante
restritas devido à sua pertença grupal e não uma mera falta de capacidade,
esforço, ou de mérito. Por exemplo, no caso da política, contexto ainda
dominado pelos homens (Bettencourt & Pereira, 1995), o argumento do mérito
só parece relevante no caso das mulheres, como se percebe nos debates sobre as
quotas e a Lei da Paridade que promovem a sua representação na política
(Santos, 2010). Ora, (...) falar de quotas contrapondo o mérito é partir do
princípio do desmérito das mulheres (Barbosa, 2008, pp. 55-56), o que revela a
existência de preconceito. A ilusão da meritocracia permite, assim, que os
membros dos grupos dominantes aumentem a confiança e a autoestima, mantendo as
suas consciências limpas (Montada, Schmitt, & Dalbert, 1986) e, por outro
lado, que os membros dos grupos dominados permaneçam com a sua situação
desfavorecida, mas satisfeitos, como veremos no ponto seguinte. Em suma, a
meritocracia pode ser entendida como uma ideologia legitimadora da hierarquia
social, servindo para justificar o sistema e manter o status quo(e.g., Jost
& Banaji, 1994; Sidanius & Pratto, 1999). Numa investigação recente, a
partir da distinção entre crenças descritivas (i.e., crença de que a
meritocracia existe na sociedade) e prescritivas (i.e., crença de que a
meritocracia deve existir na sociedade) sobre meritocracia, Son Hing et al.
(2011) acrescentam que só as crenças descritivas podem, de facto, servir de
ideologia legitimadora da hierarquia que justifica as desigualdades sociais
atuais. Já as crenças prescritivas refletem uma preferência por uma norma da
justiça distributiva, podendo apoiar políticas que desafiam o status quo(ver
Son Hing et al., 2011).
Teoria da Justificação de Sistema
A teoria da justificação do sistema (TJS), avançada por Jost e Banaji (1994) e
apoiada pela investigação realizada ao longo de mais de uma década (e.g., Jost,
Banaji, & Nosek, 2004; Jost & Hunyady, 2002, 2005; Jost, Burgess &
Mosso, 2001; Jost, Blount, Pfeffer, & Hunyady, 2003; Jost, Pelham, Sheldon,
& Sullivan, 2003), propõe que há desigualdades entre os grupos em todas as
sociedades e que há um motivo, socialmente adquirido, para as pessoas
perceberem o status quo como sendo bom, justo, legítimo e desejável. Uma
consequência desta tendência é que as disposições sociais, económicas e
políticas existentes tendem a ser preferidas e as alternativas ao status quo
tendem a ser menosprezadas. A justificação do sistema refere-se, portanto, a
uma tendência inerentemente conservadora para defender, justificar e
racionalizar o status quo simplesmente porque ele existe e, às vezes, mesmo à
custa do interesse da própria pessoa ou o do seu grupo. Frequentemente, as
pessoas desfavorecidas pelo sistema social (e.g., as mulheres) tornam-se as
suas maiores defensoras (e.g., Jost et al., 2004).
A TJS surgiu num esforço de integrar e expandir algumas das teorias existentes,
no sentido de perceber como é que os processos de estratificação da sociedade
se tornaram legitimados (Jost & Hunyady, 2002). Por exemplo, como a TIS
localiza todo o comportamento social num continuum que varia entre o
comportamento interpessoal e o intergrupal (Tajfel & Turner, 1979), não
consegue responder adequadamente ao facto de as desigualdades que existem nos
sistemas sociais serem mantidas porque as pessoas os apoiam, mesmo quando há
outro sistema diferente que possa servir melhor os seus interesses ou os do
grupo de pertença (Jost, 1995). Também o trabalho sobre a tolerância à
injustiça por parte das pessoas desfavorecidas parece contradizer a noção de
que as pessoas e os grupos defendem os seus interesses e identidades (Jost
& Hunyady, 2002). O mesmo acontece com a teoria da crença num mundo justo,
segundo a qual as pessoas acreditam (ainda que implicitamente) que têm o que
merecem e merecem aquilo que têm (Lerner & Simmons, 1966; ver Alves, 2008 e
Correia, 2003, para uma revisão da literatura).
Embora pareça não haver dúvidas de que o interesse pessoal e a identificação
com o grupo motivam o comportamento humano, esta linha de investigação tem
revelado um motivo diferente e, muitas vezes, poderoso, ou seja, o motivo para
defender e justificar o status quo, mesmo entre as pessoas que são menos
favorecidas por ele (Blasi & Jost, 2006; Jost et al., 2004). Para Jost
(1995), a legitimação das sociedades altamente estratificadas está, de alguma
forma, dependente da falsa consciência3 destas pessoas.
A teoria explica os contornos deste motivo, assim como os contextos em que ele
opera. Defende que as pessoas não estão apenas motivadas para se avaliarem
positivamente a si próprias e aos grupos de pertença (pressuposto da TIS),
estão também motivadas para avaliarem positivamente o sistema social em que se
inserem. Assim, as pessoas não pretendem apenas beneficiar de atitudes
favoráveis sobre si próprias (justificação do ego ou autointeresse) e sobre os
seus grupos (justificação do grupo ou favoritismo do grupo de pertença), também
pretendem atitudes favoráveis sobre a ordem social (justificação do sistema, da
estrutura social, das instituições, das organizações ou do governo) em que se
inserem (Jost & Banaji, 1994; Jost et al., 2004). O motivo expresso nas
atitudes e comportamentos variará consoante a pessoa e a situação. Por exemplo,
as pessoas nem sempre irão apoiar o status quo, porque os motivos da
justificação pessoal ou do grupo podem exceder o motivo da justificação do
sistema em certas circunstâncias (Blasi & Jost, 2006). Contudo, na maior
parte das vezes, há uma tendência conservadora para estas aceitarem a
legitimidade de qualquer "ordem hierárquica" existente e para perceberem as
instituições existentes e as práticas como sendo razoáveis e justas (Blasi
& Jost, 2006).
Nesta perspetiva, as pessoas podem apoiar o sistema devido a razões que se
prendem com fatores cognitivos (e.g., fatores de processamento da informação,
como a consistência cognitiva, o conservadorismo cognitivo, redução da
incerteza), motivacionais (e.g., medo da igualdade, ilusão de controlo e crença
num mundo justo, Jost et al., 2003) e variáveis estruturais e ideológicas.
Ao nível individual, as crenças e ideologias que justificam o sistema
(sobretudo quando entra em conflito com outros interesses e motivos) servem de
função paliativa, reduzindo os efeitos negativos associados à desigualdade
social, como a ansiedade, a culpa, a dissonância e a incerteza, e aumentando os
efeitos positivos, como a satisfação com a situação (Jost et al., 2003; Jost
& Hunyady, 2002, 2005). Por exemplo, usar a ideologia meritocrática serve
para as pessoas se sentirem melhor com a sua própria situação,
independentemente de como ela, de facto, está. Por isso, é prejudicial para os
membros dos grupos dominados, visto que a satisfação que provoca previne a luta
pela mudança da estrutura social. Em vez de atribuírem a sua situação à
discriminação ou a injustiças sociais, acreditam que se trata de uma situação
merecida e legítima. Esta ilusão da meritocracia permite que as pessoas
desfavorecidas permaneçam numa situação de desvantagem social, mas
aparentemente satisfeitas e, por outro lado, que as favorecidas aumentem a
confiança e a autoestima (Montada et al., 1986), mantendo o poder. Do ponto de
vista da perspetiva de coping, há, segundo Jost e Hunyady (2002), várias razões
para as pessoas aceitarem os potenciais custos resultantes da adoção das
ideologias que justificam o sistema, incluindo, por exemplo, a preservação da
esperança ou a negação da discriminação e a perceção de controlo, a que
voltaremos adiante. Basicamente, as pessoas adotam a justificação do sistema
para lidarem melhor com as realidades injustas e desagradáveis que parecem
inevitáveis.
Ao nível grupal tanto os membros dos grupos dominantes, como os dos grupos
dominados, que recorrem às ideologias para justificar o sistema, tendem a
perpetuar ostatus quo, avaliando mais favoravelmente os membros dos grupos
dominantes do que os dos grupos dominados, tanto através de medidas implícitas,
como explícitas (Jost & Hunyady, 2002, 2005). Contudo, há algumas
diferenças importantes consoante o estatuto do grupo (Jost & Hunyady,
2005). No caso do grupo dominante, a justificação do sistema está associada ao
aumento da autoestima, ao bem-estar subjetivo (Jost & Thompson, 2000) e ao
aumento do favoritismo do grupo de pertença (Jost et al., 2004). Já no caso do
grupo dominado, a justificação do sistema está associada à diminuição da
autoestima e do bem-estar subjetivo (Jost & Thompson, 2000), ao aumento do
neuroticismo e depressão (Jost & Hunyady, 2002), à ambivalência do grupo de
pertença (Jost & Burgess, 2000), à diminuição do favoritismo do grupo de
pertença e ao aumento do favoritismo pelo outro grupo (Jost et al., 2004). Os
membros dos grupos dominados estão confrontados com um potencial conflito entre
a necessidade de justificarem ostatus quo e o motivo que adotam para aumentar a
sua própria autoestima e ostatus quo do seu grupo. Consequentemente tendem a
sofrer, em termos de bem-estar subjetivo (Jost & Thompson, 2000).
Finalmente, aonível do sistema, há consequências claras da justificação do
sistema para a legitimidade percebida e a estabilidade do sistema social (e.g.,
Jost et al., 2003). Por exemplo, os estudos realizados por Jost et al. (2003)
sugerem que os motivos para racionalizar o status quo podem levar os dominados
a defender as autoridades e as instituições existentes, a apoiar as limitações
que existem nos direitos a criticar o governo e a reconhecer legitimidade no
sistema económico. Em síntese, o ser humano é um animal ideológico (Jost
& Hunyady, 2005); a maioria das pessoas possui pelo menos alguma motivação
para perceber as disposições sociais, económicas e políticas que as afetam como
sendo justas e legítimas.
Teoria da Dominância Social
A teoria da dominância social (TDS), de Sidanius e Pratto (1999), procura
perceber os fenómenos da opressão, do preconceito e da discriminação existentes
nas sociedades. Para tal, procura integrar diferentes níveis de análise no
sentido de explicar como as forças psicológicas, sociais, estruturais,
ideológicas e institucionais contribuem para a produção e reprodução das
diferentes formas de opressão social. A teoria parte do pressuposto de que
todas as sociedades tendem a estruturar-se através de sistemas de grupos
baseados em hierarquias sociais (Sidanius & Pratto, 1999). Supõe a
existência de uma perceção da sociedade estruturada, com um grupo dominante e
hegemónico no topo da pirâmide (ou um número reduzido de grupos) e os demais
grupos dominados na parte inferior da pirâmide. O grupo dominante é
caracterizado por possuir valores sociais positivos desproporcionalmente
compartilhados (i.e., os bens materiais e simbólicos que as pessoas se esforçam
para conseguir, como poder, autoridade, elevado estatuto). Já os grupos
dominados possuem valores sociais negativos amplamente compartilhados (e.g.,
baixo poder e estatuto social e ocupações com risco elevado). A teoria procura,
por um lado, identificar os mecanismos que produzem e mantêm esta hierarquia
baseada nos grupos sociais e, por outro, perceber como estes mecanismos
interagem.
Sidanius e Pratto (1999) distinguem entre as hierarquias sociais baseadas nos
grupos e nos indivíduos. As hierarquias sociais baseadas nos grupos estão
relacionadas com o poder social, o prestígio e privilégio que uma pessoa possui
por pertencer a um determinado grupo (e.g., a uma classe social, etnia ou
sexo). Nas hierarquias sociais baseadas nos indivíduos,as pessoaspodem
desfrutar do poder, do prestígio, etc., graças às suas características
individuais (e.g., inteligência e talento). Os dois tipos de hierarquias não
são independentes, sendo mais comum que as realizações pessoais e o estatuto
das pessoas estejam relacionados com o estatuto e o poder dos grupos de
pertençado que o contrário.
Sidanius e Pratto (1999) também distinguem três sistemas de estratificação que
consideram universais: (i) um baseado na idade (onde as pessoas adultas e de
meia idade têm um poder desproporcionado sobre as crianças e as jovens); (ii)
outro baseado no género (segundo o qual os homens têm mais poder social e
político do que as mulheres); e (iii) outro baseado no que designam conjunto
arbitrário (arbitrary set, que consiste em determinadas distinções,
socialmente construídas e altamente salientes, baseadas em características como
etnia, estado, nação, classe social e religião). De todos estes sistemas, o
mais estável, e em que é mais improvável a mudança do papel, é o que se baseia
no género. O sistema baseado em divisões arbitrárias está mais associado a
elevados graus de violência, opressão e barbárie.
Segundo esta teoria, a hierarquia social baseada nos grupos produz-se e mantém-
sedevidoa três processos básicos: (i) conjunto de discriminações individuais -
refere-se aos atos individuais quotidianos simples, e por vezes bastante
discretos, de discriminação de uma pessoa face a outra; (ii) conjunto de
discriminações institucionais - refere-se às regras, procedimentos e ações das
instituições públicas ou privadas (e.g., parlamentos, hospitais ou escolas) que
promovem, implícita ou explicitamente, distribuições assimétricas e
desproporcionadas de valores negativos e positivos, a partir da hierarquia
social instituída. As instituições também ajudam a manter a hierarquia social,
através do uso do terror sistemático (i.e., violência direcionada
desproporcionalmente aos grupos dominados); e (iii) a assimetria comportamental
- refere-se às diferenças comportamentais das pessoas que pertencem a grupos
situados em diferentes níveis do continuumdo poder social. Estas diferenças
podem contribuir e ser reforçadas pelas relações hierárquicas baseadas nos
grupos dentro do sistema. Segundo Sidanius e Pratto (1999), estes três
processos são regulados por mitos legitimadores(i.e., atitudes, valores,
crenças, estereótipos, ideologias que justificam, moral e intelectualmente, as
práticas sociais que mantêm os valores sociais dentro do sistema social) que
servirão às pessoas para apoiar um sistema de hierarquia social baseado nos
grupos, isto é, justificam a dominância social. Há mitos paternalistas (a
hegemonia serve a sociedade, olha pelas minorias incapazes); mitos recíprocos
(sugere que a hegemonia e os outros grupos são realmente iguais); e mitos
sagrados (o direito Divino dos reis - mandato aprovado pela religião para a
hegemonia governar).
Nesta perspetiva, o sexismo pode ser visto como uma ideologia que mantém as
diferenças entre homens e mulheres, favorecendo a superioridade dos homens
(Sidanius & Pratto, 1999). Também a meritocracia é um exemplo de um mito
legitimador, sendo o sistema social discursivamente baseado no mérito. As
pessoas mais orientadas para a manutenção da hierarquia social baseada nos
grupos (i.e., com uma maior orientação para a dominância social4) são mais
propensas a apoiar as crenças associadas ao mérito (e.g., a crença num mundo
justo, a crença de que há igualdade de oportunidades entre os grupos e a ideia
de que os resultados refletem a competência das pessoas) (Pratto et al., 1994).
Ambiguidade da Situação, Negação da Discriminação e Manutenção do Status Quo
O interesse pela investigação sobre a perspetiva das pessoas que são sujeitas a
preconceito e discriminação (e.g., Crocker & Major, 1989; Crosby, 1982,
1984) conduziu a um novo desenvolvimento teórico, centrado nas consequências da
discriminação para estas pessoas. Segundo Crocker e Major, a pertença a um
grupo discriminado/estigmatizado tem consequências importantes para os membros
que o integram. Crocker, Major e Steele (1998) identificaram quatro
consequências importantes - a experiência de sofrer preconceito e
discriminação; a consciência de ter uma identidade social negativa; a ameaça do
estereótipo; e a ambiguidade atribucional - das quais destacamos a última.
Segundo Crocker e Major (1989), muitas vezes, os membros dos grupos
estigmatizados não têm a certeza quanto à razão pela qual são tratados da forma
como o são, nem porque têm os resultados que têm, sejam maus ou bons, ou seja,
vivem num estado crónico de ambiguidade atribucional (p. 346). Esta
ambiguidade prende-se com o grau de incerteza sobre se as consequências
derivadas de um facto são indicativas do que se merece pessoalmente ou do
preconceito social que os outros manifestam face aos membros do grupo social a
que se pertence (Major & Crocker, 1993). É, provavelmente, devido a esta
ambiguidade que se têm encontrado discursos contraditórios por parte de algumas
mulheres portuguesas, nomeadamente, em posições de liderança (Nogueira, 1996),
como gestoras (Rodrigues, 2008), médicas e juízas (Marques, 2011) e políticas
(Santos, 2010), que, ao relatarem o seu percurso profissional, ora salientam o
mérito pessoal, ora destacam os enormes obstáculos que tiveram de enfrentar
para chegarem aos cargos que ocupam.
Esta teoria analisa a forma como as pessoas resolvem a situação de ambiguidade,
mostrando como elas utilizam a informação disponível para determinar se existe,
ou não, preconceito tanto nos casos em que há sinais claros para uma resposta
afirmativa, ou negativa, como nos casos em que os sinais são mais subtis
(Crocker & Major, 1989). Geralmente, consideram que a consequência negativa
obtida se deveu ao preconceito quando têm a certeza de que a pessoa responsável
é preconceituosa e quando há fortes normas sociais contra a expressão das
atitudes preconceituosas (Major & Crocker, 1993). Nesta perspetiva, as
pessoas estigmatizadas são percebidas como ativas, podendo posicionar-se quando
têm consciência das formas de preconceito e discriminação existentes na
sociedade, nomeadamente através da adoção de ações individuais ou coletivas.
Porém, como vimos, no caso das relações de género, este posicionamento não é
linear. De facto, as mulheres nem sempre reconhecem que o seu grupo é
discriminado. E nos casos em que o reconhecem, nem sempre estão cientes da sua
própria desvantagem pessoal (Crosby & Clayton, 2001). Este fenómeno tem
sido ilustrado pela literatura como um "efeito de negação da discriminação
pessoal" (Crosby, 1982); de "minimização da discriminação pessoal" (Roux et
al., 1999); ou "discrepância entre discriminação pessoal/ grupal" (Taylor et
al., 1990), e que se caracteriza pelo facto de, neste caso, as mulheres
perceberem uma maior discriminação dirigida ao seu grupo do que a elas
próprias.
Allport (1954) já tinha especulado que as minorias tendem a acomodar-se à
maioria e a negar ou minimizar a sua experiência pessoal com a discriminação,
como um meio de se defenderem dela. Porém, Crosby (1982, 1984) aprofundou o
conhecimento sobre a origem deste paradoxo. Analisando a privação pessoal e
grupal, a autora verificou que as mulheres, mesmo em situações de discriminação
evidente (e.g., a nível salarial), raramente se perceberam a si próprias como
vítimas, não expressando uma maior insatisfação do que os homens. Desde então,
outras investigações têm sido realizadas, com mulheres e minorias (e.g.,
Cameron, 2001; Guimond & Dubé-Simard, 1983; Olson et al., 1995; Ruggiero
& Taylor, 1995; Taylor et al., 1990), confirmando a existência dessa
discrepância. Muitas mulheres continuam a acreditar que as coisas estão pior
para as outras do que para elas próprias (Clayton & Crosby, 2000). Trata-se
de um fenómeno psicológico relevante, sobretudo quando se procura perceber como
é que a experiência da discriminação é vivida pelas pessoas que a sofrem, e
como atuam para a enfrentar. Têm sido avançadas várias explicações,
nomeadamente, relacionadas com fatores motivacionais e cognitivos.Segundo a
primeira explicação, amotivação para negar a discriminação pessoal baseia-se
num impulso de autoproteção (Crocker & Major 1989) para evitar as
consequências emocionais negativas (Crosby, 1984) e manter um sentido de
controlo sobre o mundo (Roux et al., 1999; Ruggiero & Taylor, 1995). De
acordo com a segunda explicação, há dificuldades em obter e processar a
informação sobre a evidência e a prevalência da discriminação (Crosby &
Clayton, 2001).
Teoria da Crença num Mundo Justo
Segundo Crosby (1984), a discrepância da negação também pode ser percebida como
um sintoma da necessidade que as pessoas têm para acreditar que o mundo é
justo. De facto, Lerner, autor da teoria da crença num mundo justo (CMJ) (e.g.,
Lerner, 1980; Lerner & Simmons, 1966), considera que, como é difícil as
pessoas aceitarem a arbitrariedade que caracteriza o mundo, estas precisam de
acreditar que vivem num mundo justo, onde cada uma tem o que merece e merece
aquilo que tem. Daí que indícios de situações em que coisas boas acontecem a
pessoas más, ou coisas más acontecem a pessoas boas, ameacem a conceção de um
mundo justo. Para manterem a ilusão fundamental de que o mundo é justo (Lerner,
1980), podendo, assim, fazer planos a longo prazo (Lerner, 1977), muitas vezes,
as pessoas alteram a sua perceção da vítima ou do comportamento da vítima, para
que esta seja desvalorizada e/ou culpada pelo seu sofrimento (Rubin &
Peplau, 1973).
Assim, importa abordar aqui a CMJ como: (i) um recurso para tolerar ou negar a
privação pessoal. Segundo Olson e Hafer (2001), a maior parte das pessoas está
motivada para acreditar que o mundo é justo e para minimizar as experiências de
discriminação pessoal. Lipkus e Siegler (1993) analisaram a relação entre a CMJ
e a frequência de atos de discriminação pessoal relatados e verificaram que os
participantes que tinham uma CMJ elevada relataram menos atos de discriminação
pessoal contra si próprios do que os que tinham uma CMJ baixa. Tal significa
que é menos provável que as pessoas com uma CMJ elevada se percebam como
vítimas; e como (ii) um mecanismo de manutenção do status quo.Alguns resultados
de investigações que têm cruzado a CMJ e fatores, nomeadamente, ideológicos,
mostram que esta crença está associada a uma orientação política de direita, a
uma maior religiosidade, a uma menor perceção de injustiças e a menos ações de
protesto social (Rubin & Peplau, 1975). Em Portugal, Correia (2003)
verificou que, apesar de baixas, há associações entre a CMJ e a religiosidade e
a ideologia de direita, e uma associação entre a CMJ e a ideologia de direita.
Confirmou ainda a associação negativa entre a CMJ e a perceção de injustiças e
entre a CMJ e a ação política.
Se é verdade que, a curto-prazo, este tipo de ações/estratégias pode ter
consequências positivas em vários contextos, também é verdade que pode servir
para manter o status quo. A CMJ pode ser considerada estratificadora do sistema
(Kluegel & Smith, 1981) ou um mito legitimador (Sidanius & Pratto,
1999), sendo, a par com outras ideologias, como a meritocracia (pelo menos, as
crenças descritivas, Son Hing et al., 2011) e a orientação para a dominância
social (Jost & Hunyady, 2005), um dos pilares das sociedades
individualistas ocidentais e da sua própria legitimação.
Novas Formas de Sexismo
Embora a situação das mulheres tenha evoluído favoravelmente nas últimas
décadas, continuam a existir desigualdades de género no mundo do trabalho. Com
efeito, persistem vários obstáculos informais invisíveis, a nível vertical e
horizontal, que impedem que as mulheres alcancem os lugares de decisão e de
poder (Barreto, Ryan, & Schmitt, 2009), como é o caso da política (Santos,
2010). Mesmo quando as mulheres conseguem aceder a cargos de poder, como muitas
vezes estes estão associados a riscos elevados e a pressão, há uma maior
probabilidade de desistirem. Este fenómeno foi identificado por Bettencourt e
Pereira (1995), no caso das mulheres políticas portuguesas. A sua ocorrência
pode dever-se ao sexismo que existe na nossa sociedade (Poeschl, Pinto, Múrias,
Silva, & Ribeiro, 2006) e que, como vimos, pode ser entendido como um mito
legitimador (Sidanius & Pratto, l999) que favorece os homens.
A literatura mais recente tem mostrado que, provavelmente devido aos movimentos
sociais que decorreram nos anos 60/70, às mudanças normativas e legislativas, à
prevalência de valores igualitaristas na sociedade e à censura social sobre as
expressões mais flagrantes de sexismo, a expressão das atitudes sexistas tem
vindo a mudar e a esconder-se por detrás de comportamentos mais contidos e
socialmente aceitáveis (Barreto & Ellemers, 2005). Com o objetivo de
identificar estas novas atitudes sexistas, e decorrendo de investigações
prévias sobre racismo, foram desenvolvidas novas escalas de medida: o neo-
sexismo (Tougas, Brown, Beaton, & Joly, 1995), o sexismo moderno (Swim,
Aikin, Hall, & Hunter, 1995) e o sexismo ambivalente (Glick & Fiske,
1996). Tougas et al. (1995), por exemplo, fazendo uma analogia com o racismo
moderno, definem esta nova forma de sexismo como uma manifestação resultante
de um conflito entre os valores igualitaristas e sentimentos residuais
negativos face às mulheres (p. 843). Apesar de mais subtis, as novas formas de
preconceito, continuam a ser nocivas, porque embora sejam contra a
discriminação aberta, consideram, por exemplo, que já há igualdade e que, por
isso, já não é necessária qualquer medida de ação positiva (Barreto &
Ellemers, 2005; Tougas et al., 1995), impedindo que se caminhe para a
igualdade. Consideremos o sexismo moderno:
Segundo Barreto e Ellemers (2005) o sexismo moderno, em comparação com o velho
sexismo, é uma expressão de preconceito tolerada ou socialmente aceite. De
facto, num estudo realizado pelas autoras, a maior parte das/os participantes
concordou mais com expressões do sexismo moderno do que com expressões do velho
sexismo, sendo esta diferença maior no caso das mulheres. As autoras
verificaram que a deteção do preconceito depende de um conjunto de situações
(i.e., a forma de preconceito), assim como das características das/os
preceptoras/es. Verificaram, por exemplo, que o sexismo é mais facilmente
reconhecido quando é expresso pelos homens do que pelas mulheres; que é mais
provável que estas percebam o sexismo quando este é flagrante e menos provável
quando é subtil. No caso dos homens, ambas as formas de sexismo são percebidas
como igualmente prejudiciais. Estes resultados podem decorrer do efeito de
negação da discriminação pessoal. Como vimos, trata-se de uma estratégia de
autoproteção que tem uma função paliativa, procurando prevenir os custos
psicológicos. Contudo, também pode impedir a deteção do preconceito. Esta
relutância das mulheres para conhecerem a realidade pode torná-las menos
disponíveis para reconhecerem o preconceito quando este é expresso de forma
politicamente correta. Barreto e Ellemers (2005) constataram, ainda, que o
velho sexismo provocou mais sentimentos hostis entre homens e mulheres, mas o
sexismo moderno desencadeou mais ansiedade nas mulheres e menos nos homens.
Aparentemente, o velho sexismo desencadeia respostas de combate (i.e., ações
ativas) e o sexismo moderno desencadeia respostas mais tímidas (i.e., inação)
(p. 83).
Quando alguém defende que já existe igualdade de oportunidades entre homens e
mulheres na política, por exemplo, está implicitamente a sugerir que o
insucesso das mulheres se deve à sua falta de capacidade, esforço, motivação ou
que é uma opção pessoal. O sexismo moderno parece, portanto, basear-se na
ideologia meritocrática e não depender tanto da discriminação (Ellemers &
Barreto, 2009), responsabilizando as mulheres pela sua própria situação de
desvantagem na sociedade, muitas vezes, com o contributo das próprias mulheres
que também se responsabilizam (Wright, 2001). Podemos, assim, concluir que, ao
individualizar os processos de discriminação grupal, o sexismo moderno
constitui um obstáculo à mobilidade das mulheres (Barreto & Ellemers,
2005), contribuindo para limitar as mudanças nas relações de género.
Conclusão
Perante a persistência da discriminação baseada no sexo, nomeadamente no acesso
a cargos de poder e tomada de decisão, este artigo analisou diversos modelos
teóricos sobre as dinâmicas das relações intergrupais e da perceção da justiça,
com especial incidência nos estudos de género. Procurou, assim, perceber a
razão da persistência destas desigualdades, quem contribui para a sua
manutenção (os homens, as mulheres, ou ambos) e em que situações adotarão, ou
não, ações para as enfrentar. A revisão de literatura revela que homens e
mulheres contribuem para a persistência destas desigualdades. De acordo com os
modelos clássicos, tal depende muito do grau em que estas/es se identificam
como membros de um determinado grupo social e da situação. Na perspetiva da
TIS, se a estrutura intergrupal for percebida como ilegítima e instável, as
mulheres irão recorrer mais à ação para procurar mudar a situação. Para que tal
aconteça, segundo o modelo dos cinco estádios, será necessário que elas tomem
consciência da existência da desigualdade. As teorias da privação relativa
acrescentam que o ideal é que haja privação relativa dupla (i.e., pessoal e
grupal). Os restantes modelos expostos revelam que, para além disto, há
ideologias (e.g., meritocracia, justificação do sistema, dominância social,
crença num mundo justo, sexismo) que servem para justificar e manter as
assimetrias que existem nas relações de género (favorecendo a superioridade dos
homens), para as quais homens e mulheres contribuem. De facto, devido à
ambiguidade das situações, estas nem sempre estão conscientes da discriminação
existente na sociedade, e a que elas próprias estão sujeitas, levando à inação.
Desta forma, estão a contribuir para manter o status quo.