Feminismos queer: disjunções, articulações e ressignificações
Antecedentes do s(ab)er queer1
Nos anos setenta do século XX, a proliferação das tecnologias mediáticas
permitiu a disseminação de micropolíticas de resistência por todo o globo e a
criação de espaços alternativos de produção da subjectividade, semiótica e
discursivamente desvinculados das hegemonias da sexualidade, do género, da
classe e da raça. O feminismo radical lésbico insurgia-se então na vanguarda da
teoria crítica norte-americana, fazendo dos modos periféricos de edição e
distribuição dos seus textos uma tecnologia de combate, uma rede textual de
contra-discursos que circulavam não apenas nas antípodas do pensamento
académico malestream (Unger, 1998), mas também do reduto heterossexista que
transpirava de alguns sectores do feminismo cultural da época (Nogueira, 2001).
Falar de feminismo lésbico não nos parece possível no singular, se
considerarmos a impossibilidade das categorias reflectirem as relações,
interligações e as tensões existentes. Podemos considerar que nas últimas três
décadas os interesses políticos e académicos dos feminismos e dos feminismos
lésbicos convergiram pontualmente, mas a maioria das vezes divergiram devido à
heterossexualidade compulsiva (Rich, 1980) presente no próprio movimento.
O conceito de feminismo lésbico surgiu com o panfleto das RadicaLesbians (1970)
que criticava o movimento de libertação das mulheres por não assumir que a
estrutura heterossexual da sociedade era um factor a considerar na análise e
definição das políticas e acções. Este manifesto definia as lésbicas como «a
raiva de todas as mulheres condensada ao ponto de explosão».2 (RadicaLesbians,
1970: 1), portanto como uma categoria de identificação política. Para este
grupo o lesbianismo era uma escolha política e por isso muitas feministas
declararam-se lésbicas-políticas encarando o feminismo como a teoria e o
lesbianismo como a prática (Nogueira, 2001).
Segundo Echols (2003), as feministas lésbicas forçaram as feministas
heterossexuais a reconhecer a sexualidade como uma construção social e não
biológica e a heterossexualidade institucionalizada como a origem da opressão
das mulheres. Apesar de terem conseguido convencer as feministas de que o
lesbianismo era um imperativo político para o movimento, também o aproximou
duma abordagem mais essencialista/cultural que celebrava a sexualidade e as
experiências da contracultura feminina por oposição à cultura masculina/
patriarcal (ver, por exemplo, Daly, 1978).
Como mostra Crowder (2007), foi Monique Wittig (2005) quem contrariou esta
tendência essencialista afirmando:
«Lésbica é o único conceito que conheço que está para além
das categorias de sexo (mulher e homem), pois o sujeito
designado (lésbica) não é uma mulher nem economicamente,
nem politicamente nem ideologicamente» (Wittig, 2005: 43).
Para Wittig (2005), a categoria «mulher» só existe para servir os interesses do
regime heterossexual patriarcal. Como Beauvoir (1975), Monique Wittig (2005)
recusa a biologização do feminino. O carácter naturalizador destas categorias
de homem ou de mulher, implica uma naturalização da própria opressão, de
fenómenos que são históricos e políticos. A opção por um feminismo assente na
diferença contribui para este processo, nomeadamente pela capitulação ao
patriarcado: a celebração das diferenças e das características positivas da
feminilidade corresponde a assumir os melhores traços que as relações de
dominação atribuem às mulheres. A opção de Wittig (2005) é pela desconstrução
da categoria mulher, sugerindo às feministas que analisem as categorias
«mulher» e «homem» como políticas do patriarcados e não como grupos naturais. E
deste modo reformularem não só o conceito de feminismo mas também as suas
estratégias políticas.
Para lá das propostas teóricas feministas, a própria afirmação das comunidades
homossexuais e trans no espaço público das metrópoles contemporâneas, assim
como as trajectórias de des-marginalização operadas pelos seus movimentos de
reivindicação, formam parte inevitável de um longo processo de conquistas
sociais e políticas, o qual nos parece hoje indissociável do paradigmático
devir tecnológico que caracterizou a segunda metade do século XX.
A história da teoria queer funde-se com a emergência e expansão de uma nova
forma de capitalismo à escala do globo, na qual os processos de produção e de
consumo deixam de ser idealizados segundo a lógica fordista da indústria
automóvel, passando a depender da democratização das novas redes de informação
e da exploração imaterial da subjectividade, do trabalho afectivo (Hardt &
Negri, 2004). Informatização e biotecnologia são os dois compostos que
sintetizam a modernização do aparato capitalista, a partir da qual o corpo e a
máquina perdem a sua conflituosa relação de descontinuidade, tal como McLuhan
(2001) havia intuído, ao mesmo tempo que o público e o privado se confundem
cada vez mais. A orgânica pós-fordista já não se alimenta do controlo
disciplinar do uno, mas sim das urgentes subjectividades dos muitos, pelo que o
idioma privilegiado do seu corpus social passa a ser o da multitude, em
detrimento de uma ideia de povo (Virno, 2003). No capitalismo contemporâneo, a
«proliferação das margens » (Guattari, 2004) e dos seus desejos conjuga-se de
modo interdependente com a regulação sexopolítica da multitude (Preciado,
2004).
Em França, o Centre d'Etudes, de Recherches et de Formation Institutionnelles
(CERFI) publicava um número especial da revista Recherches, em parceria com
activistas lésbicas da Front Homosexuel d'Action Révolutionnaire (FHAR) sob o
título Trois Milliards de Pervers: Grande Enciclopedie des Homosexualités (ver
Querrien, 2002), cuja circulação foi depressa desautorizada por se considerar
moralmente indecente («pornográfica»).
Nesta cartografia, meios privilegiados de informação até então submetidos às
ortodoxias institucionais passavam também a agenciar os «perversos» desejos de
feministas, de activistas, de homossexuais, de ecologistas, transformando-se em
poderosas tecnologias de subversão política, de des-marginalização das minorias
e das suas subjectividades. Registavam-se assim micro-fracturas em múltiplas
latitudes do tecido social urbano, capazes de desencadear o que Guattari (2004)
nomearia de «revoluções moleculares» ' biliões de coming-outs irrecuperáveis
para o sistema dominante; momentos de irreparável desconcerto da tentacular
máquina capitalista, cuja engrenagem, indiferente às fronteiras do estado-nação
e às suas macro-revoluções ideológicas (molares), tendia a normalizar a
totalidade do desejo e da vida do planeta. A emergente condição molecular deste
capitalismo mundial integrado ' na qual o micro se impõe sobre o macro '
implicava, afinal, a ambivalente possibilidade da sua manutenção e da sua
própria ruptura. Aliás, esta nova visão da orgânica do mundo sugeria já um
entendimento queer da própria sexualidade, concebida neste modelo teórico como
uma trama subjectiva de constantes relações entre formas de sexualidade molares
(heterossexuais) e moleculares (homossexuais) (Deleuze & Guattari, 1972),
por sua vez incapazes de produzir verdades ontológicas permanentes. Não
obstante as evidentes fragilidades deste modelo binarista, nem as fortes
resistências por parte de activistas homossexuais que, na época, muito
defenderam a «homossexualidade molecular» de Deleuze, podemos aqui perspectivar
o surgimento de uma teoria contra-sexual (ver Preciado, 2002), na qual o «sexo»
perde a sua mitológica condição de essência.
Tal subversão do sistema dominante (biomédico) de representação sexual já
indiciava, sem dúvida, um projecto queer de des-significação ontológica, de
desterritorialização das identidades fixadas pelo regime molar da
heterossexualidade.
É mais tarde que as distópicas visões de Guattari ' a ascensão da sociedade de
controlo (Deleuze & Guattari, 1980) ' ganham uma materialidade mais
consequente na vida quotidiana, não só com a progressiva democratização da
Internet mas também com a proliferação biotecnológica. Muitos dos debates
feministas viam-se ainda enredados nas chamadas «guerras do sexo», polarizando
os posicionamentos de activistas e teóricas relativamente ao trabalho sexual
(Pinto, Nogueira & Tavares, no prelo) e às suas grandes indústrias ' a
pornografia e a prostituição. A heterogeneidade deste movimento assumia cisões
internas cada vez mais expressivas, com a sua vanguarda teórica gritando das
suas margens contra silenciosos processos de invisibilização, enquanto alguns
feminismos trabalhavam com os poderes institucionais (Sáez, 2005).
Com o aval político da direita conservadora, algumas feministas norte-
americanas anti-porn (entre as quais se salientam Catherine MacKinnon e Andrea
Dworkin) tentavam então conquistar algum terreno jurídico contra o exponencial
crescimento da indústria pornográfica, protagonizando o um momento sombrio da
história do feminismo contemporâneo (ver Pinto, Nogueira & Oliveira, no
prelo). Para MacKinnon (1987), a pornografia corresponde não a uma
representação de um acto sexual, mas ao acto sexual em si. Dado que é punido o
uso de palavras e expressões que constituem actos de assédio sexual, a
pornografia deveria ser igualmente punida. A sexualidade é vista como um dos
domínios da opressão numa cultura masculinizada. Para Dworkin (1987), a
pornografia corresponde ao cerne da dominação masculina e incentiva o abuso
sexual e a violação. As suas propostas de censura, construídas sobre os
discursos essencialistas da diferença sexual, levariam à proibição privilegiada
de pornografias não normativas, sobretudo sadomasoquistas e lésbicas, pelo seu
recurso a técnicas e a brinquedos sexuais que cristalizavam, nesta óptica
moralista, formas de violência contra as mulheres (Preciado, 2008).
Ainda nos anos noventa, a teoria feminista tendia a demonizar o desenvolvimento
biotecnológico capitalista, privilegiando um enquadramento heterocentrado desta
problemática. Ao mesmo tempo incidindo sobre os efeitos de homogeneização que a
cirurgia cosmética produziria sobre os corpos das mulheres (e.g. Morgan, 1998),
o seu criticismo alertava sobretudo para os perigos da globalização das
tecnologias do sexo e da sexualidade, sobremaneira circunscrevendo-as à
medicalização hegemónica da reprodução (e.g. Riessman, 1998). De um modo geral,
os feminismos remetiam tais tecnologias para um conjunto de processos médico-
farmacológicos de regulação bioquímica do corpo (sendo a pílula contraceptiva o
seu baluarte), desviando por completo as suas atenções do potencial subversivo
das tecnologias produtoras de prazer (como os brinquedos sexuais ou a própria
pornografia). A análise contra-sexual dos seus discursos (Preciado, 2002)
permite-nos perceber que a noção de tecnologia era transversalmente
conceptualizada como um sofisticado aparato «masculino» ao serviço do
patriarcado, logo impensável como espaço de resistência «feminina», pelo que as
tecnologias do sexo não seriam mais do que uma forma de controlo adúltero da
natureza das mulheres e da mais essencial capacidade do seu corpo ' a
reprodução. Tal visão diminuta destas tecnologias ' em particular a sua redução
a tecnologias da reprodução ' produzia o efeito perverso de re-naturalizar as
oposições que sustentam a assimétrica arquitectura do género: natureza-cultura,
heterossexualidade-homossexualidade, homem-mulher. Em última análise, os
feminismos não compreendiam ainda que a natureza era o produto último da
tecnologia e não o contrário; que «ser homem» e «ser mulher» consiste na
permanente produção e reprodução tecnológica da sua diferença. Para mais, ao
recorrerem extensivamente ao conceito de gender para explicar a construção
assimétrica do «masculino» e do «feminino» nas nossas sociedades, os feminismos
mantinham uma relação de acrítico silêncio com o «sexo», produzindo uma falsa
dicotomia entre feministas essencialistas (crentes nas qualidades
transformadoras da natureza feminina) e construcionistas (incapazes de
desconstruir essa irredutível «verdade» biológica do corpo).
Articulações e disjunções nos estudos feministas e queer
Ainda em finais da década de setenta, dando início a um contributo esmagador
para a teoria do género (Kessler & McKenna, 1978; Kessler, 1990; Kessler,
1998), Susan Kessler demonstrava o carácter heteronormativo e falocêntrico dos
códigos estéticos que regulam os protocolos médicos de intervenção em crianças
intersexuais, consideradas anatomicamente «ambíguas» pelos monolíticos padrões
da diferença sexual. Estes protocolos foram desenvolvidos no final da década de
quarenta por John Money, psicólogo e sexólogo americano que
cunhou o conceito de género (Money, Hampson & Hampson, 1957),
diferenciando-o do sexo para se referir à pertença dos indivíduos a grupos
culturalmente reconhecidos como masculinos ou femininos. O género foi criado
enquanto «verdade» psicológica do sexo, tornando-o numa ordem pré-existente à
morfologia dos corpos e um mapa da sua possibilidade de modificação cirúrgica e
hormonal (Fausto-Sterling, 2000; Haussman, 1995; Kessler, 1990; Lorber, 1993;
Preciado, 2002, 2008). Como Kessler (1990) foi evidenciando, os processos de
assignação do sexo não são baseados numa lógica de cientificidade (atenta a
possíveis complicações fisiológicas, por exemplo), seguindo apenas critérios
visuais estéticos, hiper-naturalizados na nossa cultura por um sofisticado
regime de normalização tecnológica do olhar (Haraway, 1991). Neste âmbito
também as teorias trans (Stryker, 2006) trazem um importante contributo na
medida em que vêm consagrar um espaço de entendimento das vivências trans para
lá do discurso médico do corpo errado (Stone, 2006) e necessariamente da
patologização e da subjugação dos saberes trans (Stryker, 2006). Estes saberes
vão questionar o discurso biomédico sobre as pessoas intersexuais (Chase,
2006), transexuais (Stone, 2006) e transgénero (Stryker, 2006), nomeadamente
pela desconstrução da homologia presumida entre sexo e género tomada como
pressuposto discursivo.
É pois a partir da década de cinquenta que podemos situar a homogeneização
estética dos corpos sexuais nas culturas ocidentais contemporâneas,
continuamente genderizados pelas tecnologias institucionais a partir do
nascimento ' processo que Beatriz Preciado (2002) define como a produção
prostética do género, consistente com um estilo de design anatómico (sobretudo
genital) que a autora chama ironicamente de moneysmo. Ao abordar os processos
cirúrgicos da intersexualidade, Kessler e MacKenna (1978) traziam
retrospectivamente à tona dos feminismos a utilização fundadora do conceito de
género, sugerindo que este é em si mesmo uma tecnologia e o produto de
tecnologias, um aparato de práticas e discursos capaz de produzir «natureza»,
não podendo por isso ser reduzido a um mero efeito de poderes biologicamente
(sexualmente) determinados.
Os conceitos de género e de sexualidade foram alvo de alguma contestação,
nomeadamente por influência do conservadorismo do feminismo cultural (de que já
vimos os exemplos de MacKinnon e Dworkin). Por reacção (Jagose, 2009), a obra
de Gayle Rubin (1984) consagrou uma separação entre feminismo e o estudo da
sexualidade, relegando o género para o espaço teórico das perspectivas
feministas e relendo a sexualidade como não sendo completamente percebida no
quadro estrito do género, dado constituir uma forma particular de opressão.
Este foco de atenção na sexualidade, já iniciado por Foucault (1994), foi
determinante para a construção da teoria queer.
Este projecto de Rubin (1984) inspirou Sedgwick (1990) a propôr um quadro
epistemológico que permite ler os estudos gay/lésbicos a partir de uma
cartografia definida por dois eixos: o eixo do género, que pode ser utilizada
como forma de optar por um posicionamento separatista (essencialista) que
assegura uma proximidade de lésbicas com as outras mulheres e dos gay com
outros homens ou pelo contrário por um modelo de inversão ou liminaridade em
que a proximidade é determinada pela partilha de elementos comuns (por exemplo,
modelos que destacam a solidariedade entre gays e lésbicas ou entre gays e
mulheres heterossexuais); já no plano da definição da sexualidade, diferencia-
se uma tendência separatista, assente na essencialização de grupos marcados por
um projecto identitário realista por oposição a um pólo integracionista, que
salienta a continuidade com outros grupos ou a bissexualidade universal como
proposta. As tensões entre estes campos são igualmente úteis para pensar sobre
o modo como a própria constituição do campo queer corresponde à opção por um
modelo não identitário tanto no plano do género como no plano da sexualidade e
pela recusa do binarismo que a própria Sedgwick (1990) tão bem identifica na
sua obra.
Esta oposição propõe pois uma separação entre as perspectivas feministas e o
projecto dos gay and lesbian studies. Este processo de cisão veio dar origem a
uma série de mal entendidos entre a teoria queer e as teorias feministas, como
detectou Judith Butler (1994), propondo o próprio campo teórico dos estudos
feministas, gay/lésbicos e queer como um terreno instável, apto para a troca e
diálogo conceptual.
É nesta perspectiva que Teresa De Lauretis (1987) nos leva a compreender que o
género é simultaneamente uma tecnologia e o seu produto e que tal como qualquer
forma de representação, acaba por produzir aquilo que pretende descrever. O
sexo foi sendo apresentado como uma realidade imutável e não sujeita a
alterações históricas e culturais. Para Butler (1990), o sexo é uma categoria
genderizada. Ao contrário de uma imutabilidade biológica, o sexo é estabelecido
pelos dispositivos de produção de género (Butler, 1990, 1993). Logo, o género é
mais do que a atribuição de significados sobre a diferença biológica, é
igualmente um meio discursivo, através do qual se constitui a naturalização do
sexo ou a natureza dos sexos. O género é uma norma que é diariamente expressa e
repetida por via destes actos reiterativos dessa norma (Butler, 1990). A
repetição das performances de género, dentro da heterossexualidade hegemónica
(Butler, 1993), cria as condições para a sua reprodução, reiterando-o e
legitimando-o pela via das práticas. Butler (1993) encontra na
performatividade, uma modalidade discursiva que irá construir os sujeitos, pela
atribuição de uma ontologia. A performance consiste na reiteração de actos,
citando a perfomatividade e já implica um sujeito (construído pelo processo de
performatividade). A distinção é, pois, assente na performance das normas de
género que se diferencia das modalidades discursivas de constituição dos
sujeitos.
Esta distinção permite induzir que para Butler (2004), o género opera num
sistema de normas e as performances de género partem dessas normas para se
concretizarem em consonância ou para as tentarem ressignificar, no caso de
performances subversivas de género como sejam o drag ou as afirmações queer.
Não se trata, como por vezes simplisticamente é afirmado, de uma teoria da
consagração da liberdade de escolha no género. Tal, como mostra Butler (1993,
2004), corresponde a uma forma de resistência aos padrões de género com custos
elevados em termos humanos, não permitindo descrever os processos regulatórios
através dos quais as normas de género operam e dão inteligibilidade às
performances de género.
É Beatriz Preciado (2008) quem verdadeiramente amplifica o carácter semiótico-
técnico dos processos de genderização, cruzando a perspectiva tecnológica de De
Lauretis com a performatividade proposta por Butler: «o género (a masculinidade
e a feminilidade) é um dos produtos ( ) que foi fabricado com maior êxito pela
indústria farmacêutica e da comunicação dos finais do século XX» (p. 93).
Caracterizando os modos pós-fordistas de governo da vida (Virno, 2003) pela
dominante acção sexopolítica que exercem sobre os corpos da multitude
(Preciado, 2004), a autora demonstra como a produção de subjectividades sexuais
e de género se encontra, na cultura contemporânea, na absoluta dependência de
um permanente diálogo entre a pornograficação (McNair, 1996) das linguagens e
técnicas de representação mediáticas e a proliferação de formas de gestão
bioquímica do corpo. Em rigor, mais do que numa cultura de efeitos
genderizáveis, vivemos sob uma ecologia político-económica de «tecnogénero»
(Preciado, 2008), sustentada por um superlucrativo aparato tecnológico
multiforme. «O sistema farmacopornográfico, poderíamos dizer seguindo De
Lauretis, funciona como uma máquina de representação somática, onde texto,
imagem e corporalidade fluem no interior de um circuito cibernético»(Preciado,
2008, p. 83). Preciado (2008) prefere assim substituir a casta designação de
pós-fordismo por farmacopornismo para sintetizar o sistema idealizado de
produção do capitalismo contemporâneo, onde qualquer mercado ou indústria
«aspira a uma produção molecular intensificada do desejo corporal semelhante à
narcoticosexual» (p. 37). Partindo deste enquadramento, poderemos hoje entender
a industrialização da diferença sexual enquanto protagonista maior dos
processos de fixação de identidades naturais, tanto no que se refere à sua
performatividade quanto à sua materialidade.
Uma importante desconstrução da equivalência entre sexo e género, desmantelada
por Butler e De Lauretis foi o trabalho de Judith Halberstam (1998) sobre a
masculinidade das mulheres. Halberstam (1998) questiona a masculinidade como
uma propriedade exclusiva dos homens e de como este sentimento de posse
pretende eliminar a produção de masculinidades por parte das mulheres e das
lésbicas. Halberstam é clara ao rejeitar as masculinidades convencionais e
contundente na crítica aos estudos da masculinidade que persistem em relacionar
a masculinidade com o corpo dos homens como se duma propriedade essencial se
tratasse. Segundo a autora esta é uma das questões que afasta os estudos queer
dos estudos da masculinidade e que não ajudam a pensar a masculinidade das
mulheres e das lésbicas.
Se para o sistema heteronormativo todas as pessoas que não cumprem os
requisitos dos dois géneros (não mulher/não homem) são consideradas e até
patologizadas como desviados/as sexuais, para Halberstam (1998) elas
representam os diferentes modos através dos quais os seus corpos transgéneros
vivem e falam.
Esta proposta encontra igualmente expressão no quadro conceptual proposto por
Preciado (2008). Trata-se de denunciar a plasticidade tecnológica do género e a
constituição de multitudes de corpos marcadas não pela adesão a uma natureza
essencialista, mas pela produção de ficções de um sistema fármaco-pornográfico
que irá constituir humanos sexuados. Para Preciado já não existe uma base
natural (categorias como mulher ou gay) que possa legitimar a acção política, e
o que importa não será a «diferença sexual» nem a «diferença entre @s
homossexuais » dado que:
«Não há diferença sexual, mas uma multitude de diferenças,
uma transversalização das relações de poder, uma
diversidade de potências de vida. Estas diferenças não são
representáveis, dado que são monstruosas e por isso,
questionam não só os regimes de representação política mas
também os sistemas de produção de saber científico dos
normais» (Preciado, 2004: 25).
É precisamente na postura crítica à diferença sexual e no escrutínio nos
discursos que a inaguram e a legitimam que um olhar crítico feminista queerdeve
atender.
Conclusão: ressignificações do feminismo queer
Regressando a Wittig (1973), retomamos o corpo lésbico. Este conceito de corpo
é útil para os feminismos queer porque problematiza a noção de subjectividade
como um processo que se materializa na carne, na experiência das vivências e
não numa identidade idealizada ou contida dentro de categorias fixas que
obliteram a possibilidade dos corpos existirem para além do reconhecimento que
lhes é concedido pelos discursos hegemónicos da biologia, da religião e da
cultura. Reclamar um corpo lésbico, construído fora da norma, e por isso
monstruoso, excêntrico e fora da ordem estabelecida (Wittig, 1973) é uma
dimensão central dos futuros feminismos queer pós-Wittig, mas profundamente
devedores à mesma.
É com De Lauretis (1991) que a teoria queer é consagrada academicamente, para
três anos mais tarde, a autora (De Lauretis, 1994) renunciar ao conceito por
vacuidade teórica e uso excessivo pelo mercado editorial. Contudo uma
reapropriação do conceito num plano feminista crítico permite um uso não
constrangido pelas agendas liberais como mostram trabalhos influenciados quer
pelo feminismo, quer pelas propostas queer que apresentámos aqui.
Foi Butler (1993) quem evidenciou as possibilidades da emergência das questões
queer. Para a autora, queer reporta-se à manipulação de significados em torno
de um insulto e que passa a ser ressignificado. Antes o termo constituía não só
uma injúria, mas uma interpelação que construía um sujeito marcado pela
patologização, criminalidade e pelo próprio insulto. A apropriação e
consequente ressignificação implica não só reconhecer a própria genealogia do
conceito, mas torná-lo uma interpelação (Althusser, 1971) cujos significados
não estejam completamente definidos. Queer é uma citação dessa genealogia de
injúria homofóbica, cujos efeitos estão fora do controlo da homofobia e que vem
contestar directamente a separação entre público e privado implicada na própria
injúria. Trata-se de uma prática localizada como uma reacção política à
epidemia da SIDA e que permite devolver os efeitos da injúria ao discurso que a
criou. Podíamos recorrer à ideia de figuração de Donna Haraway (2004), para
pensar o lugar queer, uma metáfora incarnada numa figura, que recusa as
fronteiras de inclusão e de exclusão usadas para delimitar o que conta como
humano (Oliveira, 2009). Trata-se de assumir que «o género passará não só a
construir e simultaneamente a desconstruir as categorias de homem e de mulher,
mas também a estudar @s innapropriate/d others (Trihn, 1989), aqueles que estão
fora do sistema sexo/género (Haraway, 1991)»(Oliveira, 2009: 88).
Teresa de Lauretis (1987) consagrou o género como o sujeito possível do
feminismo contemporâneo ' e já não as mulheres ' e é a partir desta proposta
que podemos falar do nascimento de uma teoria queer, conceptualmente pensada
como hoje a conhecemos.
Do mesmo modo que só será viável falarmos de teoria feminista a partir do
momento que esta questiona o seu próprio modelo, expondo o seu potencial
normativo. O cruzamento destas duas ideias permite-nos compreender que a génese
política da teoria queer não está tanto ligada aos movimentos homossexuais, mas
muito mais a um momento crucial de reinvenção, um coming-out molecular, a
partir do qual o feminismo rejeita a redução normalizadora do seu próprio
sujeito. Se as políticas de identidade ' poderíamos afirmar relendo Slavoj
Zizvek (1989) ' constituem o efeito retroactivo dos discursos normativos que
reproduzem (mulheres, homossexuais, género), com Preciado (2004) compreendemos
que, em contrapartida, o sujeito possível das políticas queer é uma multitude
de devires «perversos», «desviados», «anormais»; é o devir-comum (Hardt &
Negri, 2004) de uma imensa multitude de corpos e de subjectividades que não se
deixam fixar por identidades politicamente reguladas. A teoria queer não é um
braço avançado e auxiliar da teoria feminista, um glamouroso ramo vanguardista;
é uma das condições de viabilidade dos feminismos contemporâneos.
Para Ana Cristina Santos (2006), a importância de um compromisso entre ciência
e activismo como forma de gerar conhecimento e acção útil e relevante no campo
dos estudos queer é relevante enquanto forma de reposicionar conceptualmente as
ciências sociais, colocando a sua reflexão ao serviço da mudança social.
Os feminismos queer entendem as categorias de género como produtos/efeitos duma
ficção social heterossexista em que as categorias mulher, homem, lésbica e gay
resultam duma produção fluida de discursos performativos que desestabilizam a
universalização dessas mesmas categorias identitárias. Também Halberstam (2005)
se propõe desligar as questões queer do circuito da identidade sexual ligando-
o aos circuitos temporais e espaciais através dos quais se vivem, incorporam e
representam modos de vida excêntricos. Esta nova concepção do queer como um
estilo de vida inclui todas as identidades de género, sexuais, sociais,
culturais desde que ocupem zonas fora do sistema heteronormativo regulado pelos
tempos da família, do capitalismo, da reprodução. Como refere Vale de Almeida
(2004) o termo queer descreve uma população aberta, cujas características
partilhadas não são a identidade mas um posicionamento antinormativo em relação
à sexualidade.
Para um feminismo queer, esta crítica às noções estanques de identidade trata-
se de uma parte fulcral das multitudes queer que correspondem a uma
multiplicidade de modos de vida que não podem ser subsumidos à orientação
sexual e que correspondem a contestações do sistema heteronormativo de sexo/
género (Preciado, 2004). Para Preciado (2008), a certeza de ser bio-mulher é
uma ficção somato-política. Esta conclusão é uma constatação simultaneamente
feminista e queer e permite subsumir as bases para um feminismo, no âmbito das
propostas da teoria feminista e também no quadro das perspectivas queer. A
leitura de Annamarie Jagose (2009) é que ambos os terrenos foram analisados de
uma forma necessariamente homogénea, deixando de lado quer a heterogeneidade do
projecto feminista, quer as comunalidades com as propostas antifundacionalistas
das perspectivas queer. Nas palavras da autora: «A teoria feminista, tal como a
teoria queer, é um projecto amplo e heterogéneo de crítica social que é
trabalhada ao longo de bases provisórias, contingentes e não-unitárias, sem ser
constrangida por nenhum campo de pesquisa pré-definido e sem estar ancorada à
perspectiva de nenhuma população demográfica especificável» (Jagose, 2009: 172)
No nosso entendimento, uma análise não fundacionalista das identidades e
resistente à metafísica da substância da diferença sexual é um projecto fulcral
no quadro dos feminismos marcados pela heteroglossia (Haraway, 1991). Como
mostrámos, o feminismo queer trata-se de um feminismo crítico (Nogueira, 2001),
marcado por disjunções e possibilidades provisórias de articulação. É uma
possibilidade de diálogo, sem estar determinada pelas fronteiras dos campos
disciplinares. Trata-se a nosso ver, de uma possibilidade de construir acções
políticas e científicas em que os saberes se aliam para constituírem uma forma
de viabilidade tanto dos feminismos como das perspectivas queer, permitindo
repensar e reler a teoria do género e da sexualidade.