Home   |   Structure   |   Research   |   Resources   |   Members   |   Training   |   Activities   |   Contact

EN | PT

EuPTHUHu0874-55602009000200004

EuPTHUHu0874-55602009000200004

National varietyEu
Country of publicationPT
SchoolHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN0874-5560
Year2009
Issue0002
Article number00004

Javascript seems to be turned off, or there was a communication error. Turn on Javascript for more display options.

Por um feminismo queer: Beatriz Preciado e a pornografia como pre-textos

Pornografia: de objecto de censura a espaço de emancipação Na década de 1980, nos Estados Unidos, a pornografia1 era campo de aceso debate entre feministas, tendo as discussões ficado cunhadas como «guerras feministas do sexo» (Preciado, 2007). Catharine Mackinnon e Andrea Dworkin, figuras proeminentes do chamado feminismo «anti-sexo» ou «pró-censura», vêem a pornografia como modelo explicativo e multiplicador da opressão política e sexual das mulheres. Para estas feministas, e para o movimento do qual eram porta-vozes, a pornografia era uma forma de promoção da violência e da dominação política e sexual sobre as mulheres. Tal violência derivaria da objectificação das mulheres e da sua redução, de acordo com Lynne Segal (1992: 2), à passividade e à condição «de corpos ' ou pedaços de corpos ' eternamente disponíveis para servir os homens»2. Assim, a pornografia objectificaria as mulheres e tudo o que as objectifica seria considerado pornografia.

De acordo com Dworkin (1981: 49), os homens veriam, invariavelmente, as mulheres como objectos, independentemente da sua orientação sexual, filosofia política, nacionalidade ou classe. Esta visão das mulheres como objectos tratar-se-ia de uma das múltiplas formas de exercício soberano do poder masculino; de um poder que «alguns asseguram que ( ) sobrevive à morte física» (idem: 13). Nesta compreensão do masculino, Dworkin denota uma visão totalizadora e totalizante dos homens, apagando as suas diferenças e criando uma identidade masculina única, fixa e essencialista. Simultaneamente, parece atribuir aos homens um poder sobrenatural, transcendental3 que, para os propósitos feministas de «libertação das mulheres ' objecto», me parece especialmente contraditório, uma vez que mais não faz do que reificar e subentender a inevitabilidade e eterna dominação masculina. Para além da visão da identidade masculina como única e invariável, também a feminina é homogeneizada. Nesta concepção da pornografia como violência, as mulheres teriam um papel único: o de vítimas, sem voz, sem acção4.

Ao denunciar esta passividade, Dworkin não mais faz que reforçá-la. Por um lado, parece indicar que as mulheres não são sujeitos (apresenta-as como meros receptáculos de uma vontade masculina), por outro lado, a própria autora não «lhes », uma vez que seja, voz. Em nenhuma parte do seu tratado antipornografia ' Men possessing women (1981) ' as mulheres têm voz. A única que se ouve é a de Dworkin, num tom abafador de vozes outras.

Este movimento feminista «anti-sexo» concebe a pornografia não apenas como representação da submissão feminina aos desejos masculinos, mas sendo, ela própria, construtora dessa realidade, como afirma MacKinnon (apud Butler, 2004: 113):

[ ] Mais do que representar uma mensagem da realidade, a pornografia apresenta-se como sendo a realidade [ ]. A pornografia, através da sua produção e uso, transforma o mundo num espaço pornográfico, [ ] construindo a realidade social do que é uma mulher [ ].

Sendo construtora da submissão feminina, a única estratégia possível e viável para fazer face à pornografia, segundo os movimentos «anti-sexo», é a sua censura e abolição. E é neste sentido que foram (e vão) as reivindicações abolicionistas da pornografia e do trabalho sexual em geral.

De acordo com Preciado (2007), Ellen Willis será, em 1981, a primeira a criticar este discurso abolicionista, argumentando que reivindicar a censura e a actuação do estado «sobre» a pornografia é conferir e perpetuar o poder que aquele exerce sobre as representações da sexualidade. Com Willis inaugura-se um feminismo «pró-sexo» (expressão que a própria funda) em que o corpo, a sexualidade e a pornografia são entendidos, de acordo com Kipnis (apud Attwood, 2004: 9), como «um reino de transgressão às normas dominantes dos corpos, sexualidades, e do desejo em si». Os corpos, sexualidades e pornografia deixam, assim, de ser objecto de censura e regulação para passarem a ser vistos, neste movimento, como espaços que possibilitam, às mulheres e às minorias sexuais, o empoderamento económico e político.

Pós-pornografia: a contra-sexualidade De-preciado ou a-preciado: Beatriz e o manifesto contra-sexual Beatriz Preciado, apropriando-se, segundo a própria, de conceitos de teóricos e teóricas como Michel Foucault, Monique Wittig, Teresa De Lauretis, Antonio Negri, Gilles Deleuze, Felix Guattari, Donna Haraway, Halberstam ou Judith Butler, assim como da desconstrução Derridiana, vai propor, no seu Manifiesto contra-sexual, um vulcânico romper do hímen epistemológico que tem marcado as recentes reflexões sobre a política da sexualidade e do género, não no feminismo como nas teorias do corpo e da performatividade e, consequentemente, na visão da pornografia.

Com um «humor corrosivo» (como diz Bourcier no prefácio da obra), Preciado denuncia, no Manifiesto contra-sexual, as tecnologias sexuais e sociais que criam a diferenciação sexual e a naturalizam, bem como apresenta práticas contra-sexuais (descritas e ilustradas) que permitem uma nova cultura do sexo/ uma resignificação das experiências sexuais5. A proclamação da equivalência de todos os corpos-sujeitos que se comprometem a seguir o contrato contra-sexual, bem como a procura de desconstrução da pretensa «Natureza» (que é usada para legitimar a sujeição de uns corpos a outros) constituem as grandes propostas da nova sociedade contra-sexual6, em que o dildo assume um papel de destaque.

No princípio era o dildo Butler (2007: 266), na senda da sua teoria da performatividade, afirma que «a essência ou a identidade [ ] são invenções fabricadas e preservadas mediante signos corpóreos e outros meios discursivos», por via da regulação pública e social e com vista a manter a ordem (hetero)sexual; também Preciado (2002: 18) considera que as diferenças sexuais são performatividades normativas inscritas nos corpos como verdades biológicas. No entanto, Preciado vai reclamar a materialidade do «género» que Butler teria ignorado, isto é, convoca as formas de incorporação e de corporeidade específicas que caracterizam distintas inscrições performativas da identidade. Assim, e de acordo com Preciado (idem: 25), o «género» não é apenas discursivo e linguístico, mas sobretudo protésico, «puramente construído e ao mesmo tempo internamente orgânico»7. Na sequência desta visão do género como prótese, Preciado propõe que pensemos o género como um dildo, como uma prótese que ultrapassa a mera imitação, criando e reconfigurando o que pretende complementar.

O dildo é, para Preciado, não uma mera reposição de um ente ausente, nem uma simples reprodução mimética do órgão que pretende substituir, mas sim um mote para a modificação e o desenvolvimento de um órgão vivo ' tal como o telefone que, como prótese do ouvido, apura a possibilidade de comunicação com corpos distantes. Para Preciado, o dildo não é apenas um objecto mas uma operação de deslocalização/des-territorialização do suposto centro orgânico de produção sexual (de desejo, prazer) para um lugar externo ao corpo. Esta operação de corte e trasladação que o dildo representa inaugura a deslocação do significante que, por seu turno, inicia o processo de destruição da ordem heterocêntrica. O dildo não é, então, uma «falsa imitação» do pénis-falo, antes deixa antever como se constrói o pénis-falo como significante sexual autêntico.

Esta reconfiguração dos limites erógenos que o dildo vem introduzir coloca em questão a ideia de que os limites da carne coincidem com os limites do corpo (idem: 71). Uma vez que a prótese não pode ser estabilizada, definida como orgânica ou mecânica ou como corpo ou máquina, vai pertencer por um tempo ao corpo vivo, mas resiste à incorporação definitiva. Este estatuto borderline da prótese expressa a impossibilidade de traçar limites nítidos entre o «natural» e o «artificial», entre o «corpo» e a «máquina». Como no mito do ciborgue, de Donna Haraway (in Macedo, 2002: 222-225), os corpos tornam-se num «organismo cibernético, um híbrido de máquina e organismo, simultaneamente uma criatura com realidade social e uma criatura de ficção» em que a fronteira que separa a «ficção da realidade social é uma ilusão de óptica» e a «natureza e a cultura são reelaboradas; uma não pode ser alvo de apropriação e incorporação pela outra».

Como objecto móvel que é possível «deslocar», desprender e separar do corpo, ou como algo cujo uso é reversível, o dildo ameaça constantemente as oposições órgão natural/máquina, dentro/fora, passivo/activo, penetrar/cagar, oferecer/ tomar (Preciado, 2002: 70).

Confrontada com este pequeno objecto, a totalidade do sistema heterossexual de papéis de «género» perde sentido, que o dildo não é apenas uma reprodução mimética do pénis que, utilizado, entra na ordem heterossexual, mas uma conversão de qualquer espaço como centro; tudo é dildo e, como tal, tudo se torna orifício (idem: 69). Assim, a tecnologia (hetero)sexual que destaca determinadas partes do corpo (sexuais-reprodutoras) para as naturalizar e as apresentar como exclusivos significantes sexuais e como centros erógenos (em detrimento de qualquer outra parte do corpo) é ameaçada. O corpo não mais respeita a biopolítica heterossexual sendo reconfigurado, tal como dita o artigo 11 dos princípios da sexualidade contra-sexual: «a sociedade contra- sexual estabelecerá os princípios de uma arquitectura contra-sexual», em que novos espaços contra-sexuais são criados e a fronteira entre o público e o privado é desconstruída (Preciado, idem: 35). Indo um pouco mais além na leitura de Preciado, aquilo que a sociedade contra-sexual parece sugerir é a desconstrução do público e privado dentro do próprio privado, uma vez que, nesta «esfera», partes do corpo são mais privatizadas (menos públicas) que outras, como é exemplo o ânus.

As tecnologias (hetero)sexuais No Manifiesto contra-sexual, Preciado (idem: 99-104) recorre, ainda, às cirurgias de «mudança de sexo» de pessoas transexuais para reflectir sobre as dinâmicas da tecnologia (hetero)sexual. A faloplastia, uma das cirurgias realizadas a pessoas transexuais, consiste, segundo os discursos médicos e legais contemporâneos, na reconstrução do pénis e necessita de, pelo menos, quatro intervenções cirúrgicas complexas. a vaginoplastia não é referenciada como construção dos órgãos genitais femininos, mas como a cirurgia que permite transformar («invaginar») um pénis numa vagina. Ora, se este processo se executa como uma «invaginação» do pénis, tal significa que, no discurso médico heterossexual, a masculinidade contém em si mesma a possibilidade da feminilidade: não é necessário construir uma vagina, bastando encontrar a vagina que está no interior do pénis. Assim se reforça a visão médica do século XVIII de que a «biologia» feminina é o masculino que não se desenvolveu biologicamente.

Outro cenário que, para Preciado (idem: 104-117), torna visível o labor da tecnologia heterossexual é o processo de «atribuição de sexo» a pessoas «intersexuais», os tratamentos hormonais e as cirurgias «reconstrutivas» inerentes. é possível observar que o ideal científico consiste em evitar qualquer tipo de ambiguidade, procurando que a atribuição de sexo coincida com o nascimento. A ambiguidade seria muito perigosa e ameaçadora da ordem sexual hegemónica e, portanto, que catalogar os corpos e órgãos intersexuais como «subdesenvolvidos», «mal-formados», «inacabados», como «excepções patológicas», etc., mas nunca como verdadeiros órgãos. Esta exclusão da ordem heterossexual (a sua conotação como desvio) a vem reforçar e estabilizar enquanto isso mesmo: norma (l). A atribuição de sexo aos/às recém-nascidos/as intersexuais depende, no modelo criado por John Money (e que serve ainda hoje de base a este processo), exclusivamente dos órgãos sexuais (as zonas não sexuais são consideradas periféricas). A partir da «reconstrução» do nariz ou da boca, denuncia Preciado, é impossível, nesta lógica, reconstruir a totalidade do corpo como sexuado, ao passo que através da reconstrução dos «órgãos genitais» o é. Se um/a recém-nascido/a intersexual se considera geneticamente feminino (XX) que accionar uma série de tratamentos e cirurgias, uma das quais a formação de um canal vaginal que deve estar sobretudo preparado para receber um pénis. Esta visão da vagina como orifício que alberga um pénis desnuda os sistemas de pensamento heterossexuais em que, tal como afirma Atkinson (apud Wittig, 1992), «o coito é visto como instituição» e ilumina a afirmação de Wittig quando diz que as lésbicas não têm vagina. Mas nem sempre a análise dos cromossomas é determinante para a atribuição de sexo. Mesmo que, depois de uma análise dos cromossomas, se identifique geneticamente o recém-nascido intersexual como masculino, é atribuído o sexo feminino se o corpo for susceptível de gravidez, revela Preciado (idem: 116). Esta atribuição de sexo feminino com base na capacidade de parir vem reforçar a lógica heterossexual em que a sexualidade/diferença sexual se define pela maternidade. Ainda que um bebé intersexuado possa ser cromossomaticamente feminino, diz-nos Preciado (idem: 113), se apresentar uma «protuberância de tamanho apropriado» será definido como masculino, por se acreditar que um pénis é suficiente para provocar uma identidade masculina. Por esta razão, é possível afirmar que nos discursos médicos e legais contemporâneos, o pénis adquire um carácter quase- transcendental, situando-se para dos artifícios, como se fosse a única «Natureza». E é precisamente aqui, afirma Preciado (idem: 117), que o dildo irrompe como um «espectro vivo».

Para Preciado, também a pornografia constitui uma tecnologia sexual central8 «na biopolítica global de produção e normalização do corpo», sexualidade e prazer, por excluir todas as expressões, práticas e corpos que não se encaixam nessa «normalidade». No entanto ' e apesar de considerar a pornografia tradicional como tecnologia sexual ', Preciado não propõe, ao contrário das feministas «anti-sexo», que a estratégia utilizada seja a censura. Preciado (2007) afirma, antes, que «o melhor antídoto contra a pornografia dominante» é «a produção de representações alternativas, criadas a partir de olhares divergentes». Nas representações «pornográficas» alternativas têm especial destaque as partes do corpo que foram privatizadas/silenciadas em prol de uma normatividade heterossexual, bem como as práticas sexuais catalogadas como «monstruosas» (como o Sado-masoquismo). Assim, a pornografia aparece como uma plataforma política de acção e intervenção pública e resistência aos códigos normativos da pornografia tradicional. À reapropriação deste espaço e a sua «transformação» em plataforma de contra-poder/sexualidade Preciado (2004) vai designar de políticas das multitudes queer.

O corpo e o prazer como plataformas políticas de resistência ' as Multitudes Queer As multitudes queer, isto é, os corpos, partes dos corpos e os desejos considerados abjectos9, «os órgãos que não funcionam para a norma heterossexual, os defeitos, o que está fora do padrão» (Borges e Bensusan, 2008) e que é descartado e invisibilizado pela norma sexual ' as lésbicas, os maricas, os negros, as pessoas transexuais, as putas, as travecas, as drag- kings, as mulheres barbudas, o sado-masoquismo, a bissexualidade ' outrora representados como objectos monstruosos são agora, nesta política, sujeitos de enunciação e «lugares de resistência ao ponto de vista universal, à história branca, colonial e hetero do humano» (Preciado, 2004). Esta resistência pode assumir, de acordo com Preciado (2002: 29), várias estratégias, entre as quais a des-identificação, tal como nos mostram os artigos 1 e 2 dos princípios da sociedade contra-sexual:

Artigo 1 A sociedade contra-sexual ordena que se cague nas denominações «masculino» e «feminino», correspondentes às categorias biológicas ( ) do bilhete de identidade, assim como de todos os formulários administrativos e legais de carácter estatal ( ).

Artigo 2 Para evitar a reapropriação dos corpos como feminino ou masculino ( ), cada novo corpo ( ) terá um novo nome que escape às marcas de género ( ).

Esta des-identificação passa, então, pela negação e não identificação com categorias naturalizadas (homem, mulher, transsexual, homossexual, lésbica, etc.), caminhando, progressivamente, para a des-ontologização dos sujeitos e das políticas identitárias (uma outra estratégia/ambição da sociedade contra- sexual e da política das multitudes queer). Apesar da sua relevância estratégica, a des-identificação não será, para Preciado (2004), suficiente para o desmantelar e reconverter as tecnologias da sexualidade e dos corpos.

São necessárias, igualmente, identificações estratégicas.

O que Preciado propõe com estas identificações estratégias baseia-se na re- significação dos textos10 em que modalidades de poder são voltadas contra si próprias a fim de produzir estruturas de poder alternativas, tal como afirma Butler (2004: 117), «se o texto actua uma vez, poderá actuar novamente, e é possível que dessa vez o faça contra o acto precedente, sendo que esta re- significação abre possibilidades a uma leitura alternativa da performatividade e da política».

Para minar e destruir a ordem (hetero)sexual, esta re-significação deve ser multiplicada, sendo que tal proliferação não implica uma estabilização dos significados alternativos e subversivos nem a substituição de um significado normativo por outro, mas sim a proliferação de corpos, desejos, prazeres e formas de intimidade (Seidman, 1994: 116) «que recusam replicar-se fielmente uns aos outros» (Salih & Butler, 2004: 198).

A contra-sexualidade implica, então, estas re-significações mas que não se podem ficar apenas pelo domínio dos discursos, até porque, como vimos, Preciado reclama a materialidade dos corpos. Assim, Preciado vai apresentar, no Manifiesto contra-sexual11, sugestões práticas (que não excluem, obviamente, os discursos) de contra-sexualidade que vão desde masturbar um braço à autopenetração anal. No artigo 4 dos princípios que regem a sociedade contra- sexual, Preciado (2002: 30-31) propõe ainda:

( ) a universalização das práticas estigmatizadas como abjectas no quadro heterocêntrico e ( ) encontrar e propor novas formas de sensibilidade e afecto ( ). Resexualizar o ânus ( ) como centro contra-sexual universal [«Pelo ânus, o sistema tradicional da representação sexo/género caga-se» (Preciado, 2002: 27)].

Difundir, distribuir e colocar em circulação práticas subversivas de re-citação dos códigos, das categorias de masculinidade e feminilidade naturalizadas no quadro do sistema heterocêntrico. A centralidade do pénis, como eixo do poder no quadro do sistema heterocêntrico, requer um imenso de trabalho de re-significação e desconstrução. Como tal, ( ) o dildo e todas as suas variações sintácticas ' tais como dedos, línguas, vibradores, pepinos, cenouras, braços, pernas, o corpo inteiro, etc. ', assim como as suas variações semânticas ' tais como ( ) pistolas, ( ) etc. ' serão utilizadas por todos os corpos ou sujeitos falantes ( ).

Parodiar e simular de forma sistemática os efeitos habitualmente associados ao orgasmo, para assim subverter e transformar uma reacção natural ideologicamente construída ( ).

Este conceito de multitudes queer, as estratégias políticas nele intrincados, bem como as práticas contra-sexuais e as novas formas de prazer-saber reconfiguram profundamente a forma dos feminismos encararem, produzirem e sentirem a pornografia que, sendo assim subvertida, supera o próprio binarismo antipornografia/pró-pornografia. Não se trata, então, de regular e censurar a pornografia, uma vez que esta é espaço de subversão, nem de fazer a apologia da pornografia tradicional. Trata-se, antes, de reapropriar o dispositivo pornográfico, transformando-o num espaço de subversão, contra-biopolítica e reconfiguração das identidades sexuais e de género, através da representação de práticas sexuais, prazeres, afectos e «identidades subalternas» (transgender12) e em que a sexualidade é difusa, não se reduzindo, a geografia corporal, aos genitais (transformados, através da insistente filmagem de penetração e sexo oral, em centros de prazer exclusivos). Assim, as representações pornográficas alternativas transformam-se, sobretudo, em exercícios de contra-biopolítica, como é exemplo, para Preciado (2002: 44-45), a performance «Ânus Solar» de Ron Athey, em que o artista, depois de tatuar, em torno do seu ânus, um sol negro, injecta um líquido que deforma o seu pénis e testículos13. Estas representações das «subalternidades», re-significam a pornografia dando lugar à pós- pornografia.

Um feminismo queer? A reconfiguração, re-significação e re-citação das sexualidades, a des- ontologização dos sujeitos, as multitudes queer colocam em questão o feminismo, uma vez que abalam o seu sujeito político e a validade da categoria «género».

No entanto, e como afirma Preciado, as multitudes queer não querem actuar sem o feminismo nem são pós-feministas, por não se fazerem fora da crítica ao sistema de género. As multitudes queer são, antes, resultado da confrontação reflexiva do próprio feminismo «com as diferenças que este silenciava para favorecer um sujeito político «mulher» hegemónico e heterocentrado», e a sua consequente renovação.

Os projectos das multitudes queer confrontam os feminismos com a possibilidade destes reforçarem as lógicas opressivas, quando o propósito seria combatê-las.

Ao basearem as suas políticas em identidades que foram naturalizadas pelas tecnologias sexuais, os feminismos acabam por ser cúmplices dessas mesmas tecnologias. É, assim, exigido aos feminismos que repensem os seus discursos e práticas discursivas, a fim de não sublinharem, mais de que questionarem, os mecanismos de exclusão.

O desafio que as abordagens queer, onde Preciado se inclui, colocam aos feminismos é o de abandonar a identidade natural (homem/mulher) ou definições baseadas nas práticas (heterossexuais/homossexuais) para passar a basear-se e a actuar com «uma multiplicidade de corpos que se erguem contra os regímenes que os constroem como normais ou anormais» (2004). As abordagens queer incitam os feminismos a reclamar a música punk ' essa música muitas vezes descrita como «barulho e berros», esse ruído que ameaça o sistema melodioso e, como tal, que silenciar, tal como os corpos, prazeres e afectos que não se incluem na (hetero)norma; incentivam, igualmente, à perspectivação dos filmes pornográficos e de terror, do gótico, dos ciborgues e da performance no espaço público, como plataformas artísticas e políticas de criação de um futuro comum.

As abordagens queer desafiam os feminismos a reinventarem-se e a imaginarem um novo activismo que tenha em conta o impacto das novas tecnologias na construção das subjectividades, bem como desafiam à visão da sujeição dos corpos não se fazendo (apenas) a partir do exterior, mas a partir do próprio corpo e no corpo; desafiam à visão da tecnopolítica como assumindo a forma do corpo como uma incorporação (Preciado, 2008: 66-67). As perspectivas queer lançam bases para um activismo atento e baseado na micropolítica14 das células, que procura pontos de fuga ao controlo estatal dos fluxos (hormonas, esperma, sangue, etc.) e dos códigos (imagens, nomes, instituições), bem como às formas de escapar à privatização e mercantilização, por parte das multinacionais médicas e farmacêuticas, das tecnologias de produção e modificação do género e do sexo (Preciado, 2004). Num imaginário queer, o projecto feminista não passa tanto pela libertação das mulheres e a sua igualdade legal, mas antes, e como afirma Preciado (2007), pelo «desmantelar dos dispositivos políticos que produzem as diferenças de classe, de raça, de género e de sexualidade». A reinvenção dos feminismos passa, assim, pela mudança epistemológica «desde o ponto de vista humanista dos sujeitos individuais como criadores de si próprios e próprias para uma ( ) análise do código homo/hetero [género] e a sua transversal estruturação dos modos de pensamento, conhecimento» (Seidman, 1994: 130).

Num feminismo que se pretende e imagina queer, o conceito naturalizado de diferença sexual é abandonado, em detrimento da denúncia, transgressão e subversão das tecnologias que criam essa diferença e espartilham práticas, discursos, prazeres e desejos «Outros». Neste feminismo queerizado, prevalece a anarquia dos afectos15, em que no princípio era: o sem-princípio.


Download text