Fazendo género na escola: uma análise performativa da negociação do género
entre jovens
Desde finais da década de 1980, várias/os autoras/es têm alertado para a
necessidade de reconhecer o carácter situacional e performativo das
masculinidades e feminilidades, teorizando o género não como algo que se é ou
tem, mas que se vai fazendo. Estes debates produziram transformações
significativas nos paradigmas de teorização do género, colocando a
performatividade no centro da agenda. No entanto, essas transformações não
aconteceram de igual forma e ao mesmo ritmo em todas as disciplinas e países.
Em Portugal, por exemplo, não existe um corpo alargado e consolidado de
reflexão teórica e produção empírica sobre género numa perspectiva
performativa, o que significa que são ainda limitados os conhecimentos sobre os
modos como as pessoas «fazem» género nos mais variados espaços (sociais e
geográficos) no nosso país. Araújo et al. (2002: 4) salientam a necessidade de
«reestruturar a teorização das relações de género» de forma a que «em vez de
ver uma ideologia dominante a ser «transmitida» para reproduzir acriticamente
( ) desigualdades de género», se acentue «a [sua] negociação no contexto da
experiência vivida». Miguel Vale de Almeida considera que «precisamos ( ) de
gente das ciências sociais trabalhando ( ) para lá da (necessária)
identificação dos valores (tanto inquérito já, meus deuses ). Precisamos de
perceber como eles são vividos, postos em acção, negociados. Precisamos de
etnografia» (2006).
O objectivo deste artigo é contribuir para aprofundar esses conhecimentos,
estudando a negociação do género entre jovens a partir de uma perspectiva
feminista, etnográfica e performativa. Interessa-me compreender como é que
estas/es jovens acentuam e minimizam, reforçam e contestam diferenças e
semelhanças assentes nas categorias «masculino» e «feminino». Situando estes
processos nas redes de relações (de amizade, conflito, poder e desigualdade)
entre pares, analisarei masculinidades e feminilidades não como produtos
estáveis e acabados de socializações genderizadoras, mas performances que as/os
jovens vão (re)configurando quotidianamente. Não negando a influência da
socialização na formação de subjectividades, capacidades e interesses (Vieira,
2004), perspectivo estes/as jovens como sujeitos activos e criativos de uma
negociação do género contínua e variável.
Conceptualizando a dimensão performativa do género
A ideia de que as interacções podem ser analisadas como performances não é
recente ou exclusiva do estudo do género. No século XVI, Shakespeare escreveu
«todo o mundo é um palco, /e todos os homens e mulheres apenas actores, /todos
têm as suas saídas e entradas, /e um homem [sic] na sua época desempenha vários
papéis»2 e desde meados do século XX que se recorre à metáfora do teatro para
descrever a vida social3. A partir do final da década de 1980, verificou-se uma
mudança gradual mas profunda na utilização do conceito de performance. Deixa-se
de interpretar performance como a representação, em função de guiões, de papéis
em larga medida padronizados que são exteriores a cada indivíduo, e salienta-se
a sua dimensão de (re)criação e negociação, isto é, o modo como as performances
contribuem para construir (e não apenas reproduzir) o social.
Também o género pode ser conceptualizado como performance. A ideia de que a
feminilidade é, em certa medida, uma representação ou máscara está já presente
em textos da primeira metade do século XX, como o artigo Womanliness as
Masquerade de Joan Rivière em 1929 e a obra Le Deuxième Sexe de Simone de
Beauvoir, publicada em 1949. No entanto, só a partir da década de 1980 se
formalizam propostas de análise do género como algo que se faz, se (per)forma
na interacção. O artigo Doing Gender de Candace West e Don Zimmerman (1987) é
um dos textos fundadores dessa perspectiva. Inspirados em estudos
etnometodológicos, West e Zimmerman argumentam que o género não pode ser
reduzido a um papel ou conjunto de traços individuais e deve ser estudado
enquanto produto de uma construção metódica, rotineira e recorrente. Defendem
que ao gerir a sua conduta com base em normas sobre as atitudes e actividades
apropriadas ao seu sexo e ao descrever, avaliar ou explicar as condutas e
traços de outras pessoas em função do sexo delas, os indivíduos fazem género,
isto é, constroem diferenças entre mulheres e homens que não são naturais ou
biológicas. Fazer género é, em larga medida, inevitável porque o sexo é (quase)
sempre encarado como dimensão estruturante e relevante da interacção. Isto não
significa que fazer género implica necessariamente actuar segundo expectativas
genderizadas, mas antes que as condutas dos indivíduos são susceptíveis de
contínuas avaliações de género.
Também Judith Butler (1990, 1993) põe em causa a ideia de que a feminilidade e
masculinidade são traços estáveis dos indivíduos, fixos e prévios às suas
manifestações situacionais. Butler conceptualiza género enquanto conjunto de
performances cuja repetição e cristalização ao longo do tempo produz a ilusão
da existência de uma identidade de género natural, real e verdadeira. Segundo
ela, as feminilidades e masculinidades não existem substantiva e autonomamente,
mas apenas enquanto representações na interacção, e o género como construção
contingente e contextual só se torna «real» na medida em que é sistemática e
activamente produzido na interacção. Apela a uma reconceptualização do género,
assente no reconhecimento do seu carácter performativo, já que segundo Butler
esta ilusão de que o género é estável e essencial actua como uma poderosa
«ficção reguladora» que legitima regimes de poder não só entre mulheres e
homens, mas também entre identidades de género e sexualidades. A sua obra teve
um profundo impacto na reflexão e investigação sobre género e sexualidade
(Breen e Blumenfeld, 2005). É uma proposta teórica complexa e bastante
contestada, mas tem sido utilizada como ponto de partida e quadro de referência
para a exploração empírica de dimensões da construção do género que durante
muito tempo tinham sido ignoradas e invisibilizadas.
Analisar o género a partir de numa perspectiva performativa não significa
entendê-lo como a soma de muitas performances autónomas. Há que olhar para além
de cada performance situacional e considerar o processo contínuo de
performatividade (Butler, 1990, 1993). Isto implica problematizar a forma como
a sucessão de performances contribui para a genderização dos corpos e
cristalização ou transformação dos padrões de género considerados «normais».
Implica também examinar o modo como os discursos sobre a «normalidade» e
«naturalidade» dessas representações camuflam o seu carácter performativo. Além
disso, a produção do género não é a soma de performances escolhidas e
desempenhadas individualmente e aceites sem contestação ou interferência, mas
sim um conjunto de dinâmicas de auto e hetero posicionamento que podem ser
contrariadas e são objecto de lutas variadas, não só em cada interacção
particular, mas também em termos mais «macro», como no caso dos movimentos
feministas ou reacções de backlash (Faludi, 1992) a esses movimentos. Isto
permite integrar na reflexão os efeitos sociais e políticos mais ou menos
duradouros das performances e assim traçar pontes para as questões da
institucionalização e reprodução social.
Centrar a análise na negociação performativa do género coloca a agência em
primeiro plano e implica perspectivar os indivíduos como produtores activos do
género. Isto não significa que as pessoas criam performances de género a partir
do «nada», de forma totalmente original e livre. Às categorias «feminino» e
«masculino» estão associados significados e valorizações que ultrapassam o
contexto particular de cada situação de interacção (Amâncio, 1994; Bourdieu,
1999). Além disso, as regras (formais ou informais) que regulam a interacção em
cada contexto fazem com que nesses espaços determinadas performances sejam mais
eficazes, vantajosas ou perigosas do que outras. Por outro lado, existem
estruturas de desigualdade (de género mas também de classe, «raça», etc.) que
tendem a limitar as oportunidades e recursos a que os indivíduos podem aceder,
bem como as feminilidades e masculinidades que podem assumir.
Uma perspectiva performativa tem potencialidades fundamentais. Por um lado,
permite explorar o envolvimento activo dos indivíduos na produção de
diferenciações e desigualdades de género, contrariando a tendência presente na
literatura de carácter mais estruturalista para substituir o determinismo
biológico por um determinismo social assente no conceito de socialização. Por
outro lado, reconhece e explora a pluralidade de masculinidades e feminilidades
e põe em causa a lógica dualista e homogeneizante que posiciona homens e
mulheres como grupos internamente homogéneos. Além disso, coloca no centro da
análise o carácter dinâmico da produção do género, questionando uma visão
estática e essencialista da masculinidade e feminilidade como traços estáveis
dos indivíduos. Em suma, as abordagens performativas permitem «olhar» de outra
forma para o género e proporcionam recursos para a crítica de discursos,
nomeadamente científicos, que naturalizam, dicotomizam e reificam a
diferenciação e desigualdade (Amâncio, 2003; Nogueira, 2001; Oliveira e
Amâncio, 2006). Nesse sentido, têm aberto possibilidades de investigação e dado
origem a inovadoras interpretações de material familiar (Burke, 2005). É
precisamente nessa óptica que me interessa explorá-las aqui: não como uma
fórmula que oferece todas as respostas, mas sim um instrumento riquíssimo para
conceber questões novas e experimentar modos diferentes de pensar questões
velhas.
Estudando a negociação do género entre jovens numa perspectiva performativa
Segundo Bronwyn Davies (1993), as interacções entre crianças e entre jovens são
um estimulante e pertinente lugar de observação etnográfica do género «em
acção». Fazê-lo numa óptica performativa implica analisar a saliência variável
do género (Thorne, 1993) nessas interacções, isto é, observar de que modos, em
que contextos e com que objectivos é que as/os jovens marcam e desmarcam,
reforçam e contestam diferenças e semelhanças de género. Em vez de assumir a
existência de um eixo de diferença sexual sempre estruturante e observar o
quotidiano em função dele, comparando e contrastando as práticas, atitudes e
discursos de raparigas e rapazes (como fazem alguns estudos em escolas
portuguesas, como argumentarei adiante), foco a análise nos processos de
(des)construção de fronteiras de género (Ferreira, 2004).
Interpreto a diferenciação de género como o conjunto de processos através dos
quais se marcam diferenças e semelhanças entre pessoas (e espaços, artefactos,
cores, alimentos, ad nauseam) usando as categorias «masculino» e «feminino».
Torna-se assim possível incluir na análise não apenas a produção de
diferenciação entre rapazes e raparigas, mas também a associação da
feminilidade aos rapazes e da masculinidade às raparigas, bem como a
caracterização (e hierarquização) de certos rapazes como mais (ou menos)
«masculinos» do que outros e de certas raparigas como mais (ou menos)
«femininas» do que outras.
Uma abordagem performativa exige, além disso, que se considere a marcação de
diferenças e semelhanças também enquanto processo de (re)produção de
desigualdades. É fundamental examinar os modos como o poder é exercido e
resistido, legitimado e contestado, não numa óptica de identificação de um eixo
de poder estruturante e permanente, mas de exploração das suas múltiplas e
variáveis configurações, por vezes ambíguas ou contraditórias, como propõe
Michel Foucault (1979). Os grupos de pares de jovens são contextos estruturados
por dinâmicas de poder intensas, assentes em regimes de vigilância e
monitorização cerradas (Kehily, 2002; Mac an Ghaill, 1994). Pretendo então
explorar como se avaliam diferentes masculinidades e feminilidades, como estas
avaliações servem de justificação para a afirmação de hierarquias entre jovens
e como é que performances de género actuam enquanto estratégias para obter,
demonstrar ou contestar poder.
Fazendo género no recreio: uma etnografia
A Escola Azul4 é uma escola pequena com 400 alunas/os do 2.º e 3.º ciclo. O 8.º
X, uma das quatro turmas de 8.º ano, tem 23 alunas/os ' 12 raparigas e 11
rapazes ' com uma idade média de 13,5 anos. Como a quase totalidade das/os
alunas/os da escola, as/os jovens da turma são brancas/os e de nacionalidade
portuguesa e provêm de famílias com recursos económicos e culturais médios e
elevados. Recorrendo ao indicador socioprofissional familiar de classe (Costa,
1999), 21,8% das/os alunas/os podem ser descritos/as como pertencendo a
famílias de «Empresários/as, Dirigentes e Profissionais Liberais», 60,9% de
«Profissionais Técnicos e de Enquadramento» e 17,3% de «Empregados/as
Executantes». Trata-se de um grupo onde as classes mais altas estão claramente
sobrerepresentadas.
Entre Março e Maio de 2006 frequentei diariamente as aulas com as/os jovens do
8.º X, passando uma média de oito horas por dia com elas/eles dentro e fora da
escola. Durante este período, recorri a diversas técnicas de recolha de dados:
i) observação participante durante aulas e intervalos; ii) entrevistas semi-
estruturadas com alunas/os, professoras, funcionárias e a presidente do
Conselho Executivo; iii) inquéritos de caracterização socioeconómica; iv)
pedidos às/aos jovens que escrevessem textos sobre o tema «mulheres e homens» e
tirassem fotografias e fizessem vídeos sobre o quotidiano na escola. Estes
materiais foram sujeitos a uma análise de discurso qualitativa no sentido de
identificar diferentes momentos e formas de negociação de diferenças e
semelhanças de género. Neste artigo, centro-me em duas manifestações dessa
negociação: a gestão do acesso a espaços na escola e a mobilização de
categorias sexuais (heteronormativas e homofóbicas) na regulação das
masculinidades5.
Construindo diferenças na regulação do acesso ao espaço
Vários/as autores/as têm demonstrado que o acesso ao e o controlo sobre o
espaço do recreio na escola é objecto de várias lutas materiais e simbólicas
entre jovens de diferentes sexos e idades (Silva e Araújo, 2007; Thorne, 1993)
e que estas lutas definem «geografias de género» (Epstein et al., 2001) e
«cartografias genderizadas» (Ferreira, 2002, 2004), no contexto das quais
certos espaços são definidos como «masculinos» ou «femininos» e usados como
recursos na performance de género e negociação de relações de poder entre
rapazes e raparigas e entre jovens do mesmo sexo.
É isto que acontece também no recreio da Escola Azul. Nos intervalos, todos os
espaços exteriores e interiores do recreio são frequentados por rapazes e
raparigas, mas o campo de futebol está quase sempre ocupado exclusivamente por
rapazes do 8.º e 9.º ano (os mais velhos da escola). Afonso e Paulo explicam-me
que quem chega primeiro ao campo é quem tem direito a jogar ali e como «os
miúdos mais pequenos demoram muito tempo a sair da sala», são os rapazes do 8.º
e do 9.º quem ocupa sempre o campo. Pergunto-lhes por que é que quase nunca há
ali raparigas; dizem-me que é porque «as raparigas não se interessam nada por
fazer desporto», num tom surpreendido, como se esta resposta lhes parecesse
óbvia e não percebessem a razão da minha pergunta.
No entanto, durante os períodos de aulas, quando o recreio está quase vazio, é
frequente ver raparigas a jogar no campo. Também nos intervalos há raparigas a
praticar desporto (futebol, voleibol e basquetebol) em zonas periféricas do
recreio, fora do campo principal. Isto parece contrariar a ideia de que elas
«não se interessam nada por fazer desporto» e de que a sua ausência do campo
pode ser explicada exclusivamente como um resultado dos seus traços e
interesses enquanto raparigas. Importa, então, analisar o modo como se marcam
fronteiras simbólicas e geográficas entre as zonas «adequadas» a rapazes e
raparigas. Este excerto descreve uma situação em que essas fronteiras foram
contestadas.
Nove raparigas do 9.º ano treinam remates no campo
principal. Um rapaz vem pedir-lhes, num tom amigável, que
saiam porque os rapazes querem jogar. Uma rapariga diz,
«não saímos porque já cá estávamos antes e temos tanto
direito a estar aqui como vocês!». A guarda-redes
acrescenta, «o campo é de todos!». O rapaz diz «por favor»
três vezes, mas elas continuam a jogar. Ele fica zangado e
grita «ai é, não saem?! Eu pedi a bem, com jeitinho. Nós
vamos jogar à mesma. Se vocês levarem uma bolada, o
problema é vosso!». Enquanto ele se afasta, uma das
raparigas grita «quando são os rapazes a jogar, tudo bem,
quando são as raparigas, vocês não deixam. Vocês são
machistas».
Aparece outro rapaz. Ele apanha a bola delas e diz-lhes
«não sejam chatas! Por que é que vocês não vão jogar para o
espaço atrás da baliza [zona exígua, frequentemente
atingida pelas bolas chutadas do campo]?» Uma rapariga
responde «por que é que não vão vocês jogar para aí? Nós
chegámos primeiro!».
Começa o jogo dos rapazes e elas saem do campo. Gritam
«isto é injusto, é machismo!». Vão treinar num canto do
recreio. Pergunto-lhes se isto acontece frequentemente.
Dizem-me que sim, «mas na próxima vez vão ter que nos
deixar jogar, eles não pensem que isto vai ser sempre
assim».
Este episódio demonstra que não é reconhecida a todas/os legitimidade para
jogar no campo principal. Alguns rapazes mais velhos reservam o direito de
admissão ao campo, isto é, de definir quem o «merece» ' e segundo o Luís, mesmo
quando «não jogam nada mal», as raparigas não jogam suficientemente bem para
merecer usar o campo nos intervalos. No entanto, o domínio de alguns rapazes
mais velhos sobre esse espaço não é aceite por todas/os e para sempre: é
sujeito a contestação e questionamento explícitos, efectuam-se tentativas para
o subverter, e para salvaguardar o seu controlo do espaço estes rapazes têm de
usar uma série de estratégias verbais e físicas para persuadir e, em último
caso, forçar a sair do campo as raparigas (e os rapazes mais novos).
Tal como tem sido observado noutras escolas (Renold, 1997; Swain, 2000), jogar
bem futebol parece ser, na Escola Azul, um elemento fundamental de uma
masculinidade «respeitada», usando os termos de Luís. São os rapazes que jogam
bem e frequentemente futebol que são considerados mais «populares». Jogar no
campo principal é uma forma de demonstração dessa masculinidade «respeitada»,
prática que tem um carácter fortemente performativo, não só no sentido
sociológico do termo mas também na sua dimensão mais dramatúrgica. Por um lado,
porque tem uma grande componente de teatralização: os rapazes tentam fazer
jogadas «bonitas», realçam (exageram?) o esforço que estão a fazer e jogam com
roupas especiais (ou tronco nu). Por outro lado, porque o campo ocupa um lugar
central no recreio, é visível a partir de quase todas as zonas do recreio (e
também de muitas salas) e está rodeado de bancos onde jovens se sentam a ver os
colegas jogar, comentando (entre si ou para os jogadores ouvirem) as suas
aptidões futebolísticas e corpos ' como se de um «espectáculo» se tratasse.
Embora a pressão sobre os rapazes para ter um corpo «ideal» seja muito mais
reduzida do que a exercida sobre as raparigas6, também eles são escrutinados
pelas/os colegas, enquanto objectos de desejo e crítica, especialmente quando
estão a jogar futebol no campo principal. Assim se compreende melhor por que é
que os rapazes mais velhos investem tanto na marcação do campo principal como
sendo o «seu» espaço, regulando ou impossibilitando o acesso a rapazes mais
novos e raparigas.
As diferenças entre rapazes e raparigas na sua utilização do espaço são
representadas em vários estudos como uma realidade estável e não contestada
(por exemplo Askew e Ross, 1993; Golombok e Fivush, 1995). Considera-se que uma
socialização que, por um lado, encoraja os rapazes a dominar o espaço e
praticar desporto e, por outro, inibe o desenvolvimento desses traços nas
raparigas, produz desde cedo uma diferença entre os sexos que leva as/os jovens
a ocupar distintos espaços. Além disso, a caracterização de um dado espaço como
masculino ou feminino tende a aparecer como algo que é consensual, um
significado «inscrito» de modo duradouro nesse espaço. Os episódios que
descrevi demonstram que esta ocupação do espaço não é apenas a concretização
previsível de uma socialização genderizadora, mas também o resultado de um
trabalho contínuo de negociação de fronteiras simbólicas e geográficas de
género (como Ferreira, 2004, também verifica no «seu» jardim de infância).
Demonstra também que essas fronteiras não se mantêm a si próprias: sujeitas a
contestação e transgressão (mais ou menos frequente e directa), a sua
manutenção implica o recurso sistemático a estratégias de exclusão e discursos
de (re)afirmação das diferenças entre os sexos.
Heteronormatividade e homofobia na regulação das masculinidades
A negociação do género é um processo que também envolve, e interage com, a
produção de identidades sexuais. Masculinidades e feminilidades são
desempenhadas, vigiadas e avaliadas em (grande) parte em função de prescrições
e proscrições sobre as práticas e desejos sexuais consideradas apropriadas a
homens e mulheres. Na medida em que a heterossexualidade é entendida como
requisito e sinal de uma masculinidade ou feminilidade «normal» (Butler, 1990,
1993; Rich, 1980), as normas acerca do comportamento sexual e formas de
expressão de afecto actuam como princípio de regulação e hierarquização das
performances de género entre jovens. Vários/as autores/as têm demonstrado que é
frequente a utilização de insultos homofóbicos, em particular dirigidos aos
rapazes, e argumentam que estes podem ser entendidos como performances através
das quais estes reiteram publicamente a sua própria masculinidade «normal»
(i.e., heterossexual), questionando a identidade sexual de outras/os (Epstein,
1996; Kehily, 2002; ver Santos, 2006, e Silva e Araújo, 2007, para análises da
heteronormatividade em escolas portuguesas).
Na Escola Azul, termos como «gay», «maricas» ou «paneleiro» são usados para
criticar a conduta de qualquer rapaz, independentemente das suas práticas
sexuais, e geralmente por referência a comportamentos que não estão
relacionados, ou apenas muito indirectamente, com questões de carácter sexual.
Liliana e Lúcia comentam o corpo de um rapaz. Manuel diz
«aquelas duas estão sempre com essa conversa! E ele nem é
giro!». Pergunto-lhe que tipo de rapazes costuma ser
considerado giro na escola. Ele responde, indignado «por
que é que me estás a perguntar isso a mim?! Olha que não
sou gay, não olho para o corpo dos outros rapazes! Não sou
gay, sou saudável!».
Toca para o início das aulas. No meio da confusão, com as
pessoas apertadinhas a
subir as escadas, Luís grita «Bernardo, estás a pôr-me a
mão no cu ou quê? O que é
isso? Olha que eu não sou desses, não sou como tu!!».
Todas/os se viram para olhar
para eles. Bernardo grita «estás parvo, sabes que não sou
nada disso!»
Nas entrevistas, as/os jovens salientam a frequência com que se fazem estes
insultos na escola e explicam que chamar homossexual não significa achar que a
outra pessoa é homossexual, mas sim que está a fazer algo que não é
apropriadamente masculino.
Matilde: Quando chamam homossexuais, o conceito deles de
homossexuais não é que gostem, hmm, do mesmo sexo, é que
não fazem as coisas normais que o sexo deles supostamente
deveria fazer, e por isso é que eles chamam virado, sei lá,
quando alguém hmmm, não joga futebol, se ouve certa música,
às vezes até nas músicas eles são preconceituosos, se um
rapaz ouve pop ou Shakira, «os rapazes não devem ouvir
isso».
Parecer gay é considerado tão negativo na escola que a maioria dos rapazes gere
activamente o comportamento de forma a evitar associações desse tipo. Além
disso, muitos rapazes e também raparigas monitorizam continuamente o
comportamento dos outros e não hesitam em apontar qualquer comportamento
«inapropriado». Esta monitorização e denúncia de condutas potencialmente
«maricas» assume geralmente o carácter de ridicularização pública. Noutras
situações, é feita através de advertências e conselhos e há rapazes que tomam a
iniciativa de «ensinar» outros ' particularmente colegas mais novos ' a não
parecer «paneleiro».
Há miúdos, do 5.º ano até ao 9.º, que a falar mexem muito
as mãos, põem a mão muito na cara, têm aqueles gestos que
normalmente as mulheres é que têm, estar sempre a mexer no
cabelo, ou metê-lo atrás da orelha. Há a maneira de os
homens porem e há a maneira das mulheres. Há rapazes que
têm aquele tique mesmo à menina! Eles então aí gozam!
Viram-se para ele: «olha lá, parece que és mesmo maricas!
Olha como é que metes o cabelo para trás da orelha! Não é
assim!» e há alguns que explicam, ensinam como é que deve
ser.
Entrevista a uma funcionária
Este esforço de ensinar «como é que deve ser» demonstra que também a
heterosexualidade é uma construção com uma dimensão performativa, algo que se
faz e por vezes é necessário aprender a fazer melhor, e não algo que se é ou
tem «naturalmente».
Contrapondo conclusões sobre género na Escola
As observações aqui discutidas ilustram apenas uma (pequena) parte do
quotidiano do 8.º X, mas permitem formular conclusões sobre os modos como
negoceiam género. Fronteiras e normas de género têm um peso muito significativo
no quotidiano dos/as jovens porque são entendidas como «normais» e «naturais» e
não como construção contextual, o que significa que aquelas/es que as
desrespeitam são potencialmente marcadas/os como desviantes e sujeitas/os a
variadas formas de violência. No entanto, estas fronteiras não são sempre
consensuais ou aceites passivamente. Alguns/mas jovens fazem esforços (mais ou
menos frequentes e eficazes) para questionar e desmontar fronteiras de género e
por vezes transgridem essas fronteiras, nomeadamente tentando frequentar
espaços que não são considerados adequados a elas/es. Estas dinâmicas de auto/
hetero-monitorização e sanção em caso de «desvio» demonstram que a
diferenciação de género dá muito trabalho a manter no quotidiano. Comprovam que
essa diferenciação é algo que se faz todos os dias, e não que pura e
simplesmente «existe» na sequência de uma socialização que (re)produz papéis
genderizados estáveis.
Este estudo focou-se numa turma específica. Como vimos, é um grupo em que as
classes mais altas estão claramente sobrerepresentadas. Por outro lado, as
culturas da Escola Azul têm muito em comum com as de outras escolas, mas não
são idênticas a elas. Como tal, não pretendo propôr ' nem é esse o objectivo do
trabalho etnográfico ' conclusões generalizáveis a todas as escolas sobre a
negociação do género no quotidiano de jovens. No entanto, considero que é
pertinente relacionar estas conclusões com as formuladas em estudos realizados
segundo perspectivas sociológicas mais mainstream. O estudo de João Teixeira
Lopes sobre práticas culturais em quatro escolas secundárias do Porto (1996) e
o trabalho de Pedro Abrantes sobre os sentidos que atribuem à escola as/os
alunas/os de uma escola secundária em Lisboa (2003) dedicam atenção ao género,
mas não assumem uma abordagem performativa. Como tal, interessa-me traçar
ligações entre este e aqueles estudos, não tanto para comparar resultados, mas
sim para contrapôr linguagens e modelos analíticos.
Nos estudos de Lopes e Abrantes entende-se a análise de género como a divisão
da população em dois grupos com base no sexo, e a identificação de diferenças
entre eles. O foco da reflexão são as diferenças que existem entre rapazes e
raparigas e não o modo como essa diferenciação vai sendo construída. Diz-se,
por exemplo, que há uma «maior adesão das raparigas à cultura escolar »,
enquanto «os rapazes demonstram com maior frequência indicações de saturação
face às aulas» (Lopes, 1996: 158)7. A linguagem é geralmente dualista: Abrantes
chama a um subcapítulo «Integração Feminina, Resistência Masculina» (2003: 88),
enquanto Lopes contrasta a «postura de maior obediência» das raparigas com a
«independência dos rapazes» (1996: 158). Os sexos são apresentados
fundamentalmente como homogéneos ' há referências breves a diferenças entre
pessoas do mesmo sexo (nomeadamente entre rapazes/raparigas de classes
diferentes), mas aparecem mais como apontamentos do que como uma dimensão
importante da análise.
As diferenças entre sexos são perspectivadas como consequências da socialização
que já estão «profundamente enraízadas» (Lopes, 1996: 159). Abrantes escreve
que «[r]esultado da sua socialização primária, as raparigas são, em geral, mais
sossegadas e simpáticas, mais obedientes e organizadas, mais conversadoras e
perseverantes ( ), o que dita uma melhor integração na sala de aula» (2003: 89,
itálicos meus). Ao centrarem-se na socialização como factor explicativo das
diferenças, os estudos não consideram a agência das/os jovens. Isto é
perceptível no seguinte excerto:
As escolas do Porto vivem-se no feminino e no masculino.
Elas e eles aparecem divididos em territórios distintos,
onde as conversas são diferentes como a água o é do vinho.
( ) Reina a divisão entre rapazes e raparigas nas escolas
portuenses. Podem apreciar-se e falar do sexo oposto ' mas
apenas entre si, dentro das barreiras culturais que a sua
identidade sexual vai edificando, à espera de serem
quebradas.
Lopes, 1996: 161
Note-se que a própria construção da frase invisibiliza a agência e exagera a
estabilidade da distância entre sexos: é a «identidade sexual» (e não os
indivíduos) que edifica barreiras e o acto de as «quebrar» aparece como algo
longínquo, pelo qual se espera. No entanto, vimos que no seu quotidiano as/os
jovens do 8.º X ' como as crianças do estudo de Manuela Ferreira (2002, 2004) '
criam activamente estas barreiras e há tentativas recorrentes de as
transgredir. Esta quebra quotidiana de barreiras não é um acto revolucionário
de transformação massiva e desconstrução absoluta de todos os dualismos ou
assimetrias ' mas não deixa de ser uma dimensão importante da construção do
género. Os estudos de Lopes e Abrantes apresentam narrativas sobre género que
realçam a diferença entre sexos e a sua homogeneidade interna e salientam a
estabilidade dessa diferença8. Como tal, são narrativas bastante diferentes das
que são produzidas a partir de uma perspectiva performativa.
Não faz sentido formular esta diferença em termos de «veracidade» e discutir
que narrativa é mais «verdadeira» porque ambas reflectem dimensões importantes
de um mesmo fenómeno: o género não é só fluidez, contextualidade, agência ou
negociação, mas também fixação, constrangimento, estabilidade e reprodução, e
todas estas dimensões têm de ser problematizadas. A questão crucial é que em
Portugal a investigação sociológica mainstream com jovens se tem focado
principalmente nas determinações da socialização, quase sempre sem o
reconhecimento explícito de que as narrativas que daí resultam contam apenas
uma parte da história. Na medida em que essa perspectiva não é necessariamente
entendida como parcial, a sua conceptualização particular tende a ser
confundida com a «realidade» do género e tornam-se invisíveis as dimensões
(importantíssimas) que essa perspectiva não permite conceptualizar. É
fundamental que se construam modelos analíticos que reconheçam e visibilizem as
múltiplas e dinâmicas configurações da negociação quotidiana do género, e que
evitem descrevê-las em termos deterministas e dualistas que tendem a reproduzir
uma conceptualização de mulheres e homens como grupos internamente homogéneos e
definidos pela sua diferença. É urgente, portanto, explorar o género a partir
de uma perspectiva performativa ' não porque o estudo da performatividade nos
permitirá ficar a compreender tudo sobre género, mas porque há muito sobre
género que não podemos compreender sem ela.