Queer, ou a crítica da "Política do Possível"
Queer, ou a crítica da "Política do Possível"
Bruno Maia, Patrícia Louro e Sérgio Vitorino
Panteras Rosa
Da teoria às práticas
«Queer», hoje, é uma miríade de entendimentos, com diferentes contextos e usos.
Pode ser um termo guarda-chuva reivindicando orientações sexuais não-
heteronormativas, identidades de género e características sexuais não-conformes
ao binarismo; é um termo guarda-chuva de diversas e distintas correntes de
pensamento académico sobre a sexualidade, o género, o sexo (biológico) e as
identidades; é o nome escolhido para expressões recentes e actuais de
recomposição de movimentos radicais em muitas sociedades ocidentais, por
oposição à institucionalização
das últimas décadas e à apropriação e fixação ideológica e comercial de
identidades LBT e sobretudo Gay (masculinas, «naturalmente»).
Os primeiros movimentos políticos queer são fundados nos EUA num período de
recuos sociais e políticos (Reagan, Bush) e no contexto da crise do surgimento
da Sida, final dos anos 80. São portadores de uma démarche política que rompe
com as concepções essencialistas de alguns movimentos gays e feministas.
É com o crescimento do movimento e a sua consequente visibilização, que a
estratégia de guerrilha sexual subversiva dá lugar a muitas e variadas formas
de luta. É com o aparecimento de um movimento cada vez mais influente e
aproximado às instituições de decisão política (e também próximo, cada vez
mais, de uma abordagem académica), que estas identidades de luta se começam a
apagar (politicamente e na realidade cultural gay) em prol de um movimento mais
intrinsecamente ligado ao binarismo e à normalidade dos comportamentos. Parte
das minorias sexuais pode ser integrada, enquanto uma outra parte passa a ser
encarada como cópias defeituosas do modelo heterossexual ou mesmo do
homossexual «integrado» (obviamente integrado num contexto que permanece
ferozmente heteronormativo). Gays e Lésbicas tornam-se modelos legitimados pela
proximidade à norma comportamental patriarcal, com a recusa de uma boa parte do
movimento em afirmar travestis, drag-kings, drag-queens, butch-femmes, etc.,
como entidades de luta.
Curioso é que os actuais movimentos radicais, ou queer, são acusados
frequentemente de condenar as opções pessoais das pessoas LGBT «integradas» ou
com modos de vida relativamente «normalizados», quando na verdade estão a fazer
uma crítica cultural, e não a dirigir um julgamento sobre vidas particulares.
Esse engano é partilhado, por exemplo, por Miguel Vale de Almeida (MVA), na sua
comunicação «De vermelho a violeta e vice-versa»1. No mesmo, o autor sustenta
igualmente que «a sociedade está organizada e tem determinado tipo de
privilégios, tem determinado tipo de regalias e de medidas fiscais no sentido
de promover a família».
Não. A sociedade está organizada para defender as uniões heterosexuais e
sobretudo o seu modelo, aliás facilmente transponível para as relações entre
pessoas do mesmo sexo, bem como a «naturalidade» do mesmo, com reflexo no
entendimento dos laços de sangue, de «propriedade» parental, nas relações entre
homens e mulheres, e entre LGBT e hetero-cultura.
Na verdade, num contexto LGBT que se hetero-normaliza, são as identidades ainda
incapazes de integração, vidas concretas, que são excluídas, marginalizadas e
criticadas pela «maioria da minoria». E um movimento político não pode fingir
não o ver, sob risco de não se dirigir a tod@s nem ser fundado na
solidariedade.
Um pensamento académico pode prescindir de categorias. Um movimento político
tem de brandi-las, manuseá-las e reconhecer a sua existência, mesmo
desconstruindo e relativizando. Tem de imaginar, como tem de gerir realidade.
Ignorá-las, às categorias sexuais e de género, é ingenuidade e é perigoso,
correndo mesmo o risco de deixar de saber distinguir e nomear grupos sociais
discriminados. Mas desistir de fazer a sua crítica em nome de uma
«visibilidade» aceitável (para a sociedade hetero), é derrotar à partida um
projecto que poderia ser emancipatório. Não se trata de um julgamento das vidas
das pessoas LGBT que procuram legitimar-se/integrar-se socialmente, mas sim a
um movimento político que prescinde da crítica cultural às bases da homofobia e
da transfobia, quer o patriarcado, quer a heteronormatividade. A luta política
e a crítica cultural não são de facto, opostas nem incompatíveis, mas no
movimento LGBT mais institucional em Portugal, parecem particularmente
divorciadas. Se este argumenta com «a política do possível», convém lembrar que
o «possível» é mutante, conforme variam as condições, mas também a ambição, a
visão e as cedências dos seus actores. A «política do possível» pode também ser
medida pela «crítica cultural» possível, se nos dermos ao trabalho, e pela
diversidade de opiniões e contributos.
Aparte a teoria e aparte o queer: as práticas e as questões estratégicas e
políticas
No plano estratégico e das práticas, não deve haver dogmas. O contexto
português tem muitas particularidades, como todos. Em Portugal não existem
verdadeiros grupos políticos queer. Também não existem ' e as panteras não o
são ' grupos incapazes de compreenderem e se aliarem pela conquista e defesa
dos direitos, das bandeiras amplas do movimento LGBT, mesmo aqueles cuja base
social tenha um desejo «normalizador». O combate à discriminação e à
discriminação legal são igualmente importantes. O contexto da intervenção
política de um movimento como as panteras rosa pode ser complementar à acção do
movimento institucional, mas também, naturalmente, exprimirá as suas
discordâncias com as práticas políticas deste quando é o caso, e vice-versa.
O argumento de MVA de que temas «marginais» como o poliamor, ou minoritários,
como as questões transsexuais, não podem impedir a obtenção de direitos para as
maiorias LGBT, facilmente significa outro bastante mais banal: o de que os
direitos das minorias, estão sempre atrás dos das maiorias, como a revolução
sexual que nos partidos maioritários da esquerda devia esperar eternamente o
dia da revolução geral. O que nos aproxima de outros movimentos LGBT radicais
de vários países, reinvindicados queer ou não, com quem partilhamos pensamento
e acção?
Uma leitura de partida feminista, que não é partilhada por todo o queer, e
antipatriarcal. Um regresso a algumas reivindicações originais do movimento
LGBT nascido nos anos 60 e 70 no sentido de uma libertação sexual e do
aprofundamento do combate à homofobia e à hetero-cultura enquanto sistema
cultural e político opressivo, e não apenas por direitos corporativos ou
mudanças legais. Embora sem negar a importância da evolução legal, questionar e
expandir os alegados limites da «política do possível», do que hoje é possível
e concreto alterar, propor novas alianças, explorar as possibilidades de novos
fôlegos.
Uma flexibilidade de alianças múltiplas no campo dos direitos sexuais e
relacionais, para lá do universo LGBT ' grupos feministas, luta pela
despenalização do aborto, movimentos de trabalhadores/as do sexo, grupos
poliamor, e questionamento, portanto, também dos modelos relacionais
dominantes.
Uma compreensão do reforço mútuo e da semelhança de mecanismos entre
discriminações, que abre pontes com outros movimentos sociais que não trabalham
directamente a questão dos direitos sexuais ' como os movimentos de imigrantes
' em vez de encerrar o movimento nas exclusividades estanque das questões
«LGBT», numa espécie de autismo social, e numa leitura das pessoas
exclusivamente pela orientação sexual ou identidade de género.
A solidariedade interminorias, com particular atenção aos mais desfavorecidos
dentro do LGBT, e a solidariedade internacional num mundo tão ferozmente
repressor das nossas identidades, com particular atenção aos movimentos
emergentes ou aos países onde a criminalização continua efectiva.
Um entendimento do patriarcado e do heterossexismo como sistemas políticos que
correspondem a relações sociais de poder complexas e multifacetados, e não
apenas como problema cultural ou de mentalidades, ou apenas como sistema legal
desmantelável.
Face às conquistas legais de direitos como o casamento (para nomear não
necessariamente a mais urgente, mas uma que mal ou bem está centralizada em
Portugal neste momento), a homofobia vai simplesmente desvanecer-se porque é só
cultura, ou é também sistema baseado no privilégio e supremacia da
heterossexualidade, e no domínio masculino?
Não temos as respostas. Mas limitarmo-nos hoje a brandir a limitação de uma
pretensa política do «possível» que faz tábua rasa da diversidade em nome dos
interesses maioritários, com prejuízo de uma visibilidade diversa, lutar por
uma evolução cultural e legal sem olhar e criticar as contradições vivas dentro
da própria comunidade e nas vivências LGBT (o que não as torna menos legítimas,
repetimos), é, de novo, responder a esta questão como faziam os partidos da
esquerda, ao prometerem a resolução dos problemas do sexismo e da homofobia
para depois da instauração do socialismo.
Notas
1 Apresentada no 2.º Congresso Feminista e disponível no website do autor:
http://site.miguelvaledealmeida.net/
Bruno Maia, neurologista, fundador Panteras Rosa Porto.
Correio electrónico: brunocruzmaia@gmail.com
Patrícia Louro, tradutora, fundadora Panteras Rosa.
Correio electrónico: dijk@walla.com
Sérgio Vitorino, jornalista e tradutor, fundador Panteras Rosa.
Correio electrónico: svitorino@gmail.com