Empatia radical @ MySpace: A construção de uma autoficção política
Empatia radical @ MySpace.
A construção de uma autoficção política
Cristiana Pena
CEMRI, Universidade Aberta
Este é apenas um relato ficcionado duma viagem de três anos na rede social
MySpace.
Tomo a liberdade de não utilizar uma linguagem uniforme ou consequente porque
acredito no texto como uma aventura que se deve percorrer com prazer. O rigor
fica para depois, agora é o hipertexto, a elipse, a dispersão e
intertextualidade que me importam.
Em 2006, aderi ao MySpace por curiosidade mas com desconfiança, ou seja, aquela
desconfiança feminista queer que é necessário possuir para retirar o maior
partido duma ferramenta de comunicação criada para alimentar o sistema
farmacopornográfico, tão bem descrito por Beatriz Preciado (2008).
Apercebi-me, no entanto, de que esta rede social, que serve de plataforma para
a indústria musical/cultural heterossexual se expandir, poderia afinal ser uma
excelente via para integrar uma sub-rede trans(g)local de feministas-lésbicas-
queer que <não encontro/sinto> na vida material que habito com o meu corpo, a
cidade de Lisboa.
<Amputada,_mutilada,_isolada_pela_ausência_d@s_seres
radicalmente_queer_que_me_fazem_acreditar_na_vida_como
possibilidade_de_viver_sem_um_ponto_de_origem _um_espaço
onde_se_atravessam_as_fronteiras_das_identidades_prescritas
pelo_regime_heterossexista_normalizado_assimetricamente>.
Descobri que o MySpace é mais uma das tecnologias de género, parte dos
dispositivos sexopolíticos (Preciado, 2003), que pode ser reapropriada e
subvertida como espaço de resistência à normalização dos géneros.
Rapidamente, a minha curiosidade <transformou-se_em_necessidade>.
< _necessidade_quotidiana_de_querer_conhecer_mais_gente
queer_mais_música,_mais_feministas,_mais_activistas_queer
subitamente,_estava_embrenhada_numa_rede_de_afectos_e
reflexos,_de_projectos_artísticos,_políticos,_sociais_e
académicos>.
O meu ciberactivismo começava ali e mais uma fase da minha vida também,
codificada mas pronta a conectar-se com outr@s seres.
Finalmente, podia experienciar a minha autoficção política e a minha pertença a
uma comunidade imaginada de avatares e perfis de zeros e uns. Se anteriormente
lésbicas e feministas resistiram editando fanzines e criando grupos de
autoconsciencialização, agora é na internet que essa resistência pode ser
exercida e experienciada em tempo real e translocalmente.
As lésbicas, queers, transgéneros e gays compreenderam a potencialidade da
tecnologia para a criação de uma rede virtual que permitisse reinventar formas
de acção pública. Representações e discursos subversivos, paródicos e
alternativos podiam agora ser disseminados em grande escala.
Login
utilizador@espectador@protagonist@
O MySpace aparece assim como um espaço imaginário de construção e desconstrução
do que penso ser, através do contacto com @ Outro. A tal <empatia_radical1>
mencionada por Suzanne Lacy.
discovering the Other to discover oneself
<o_Outro_que_também_sou._o_reencontro_na_ausência_do
corpo _o_meu_corpo_são_os_dedos_que_teclam,_apagam,_copiam
e_colam,_flirtam _viciados_os_olhos_espiam_e_espelham
fluxos_de_narrativas_pessoais,_confessionais _a_excitação_e
a_frustração,_o_stress_da_confusão_mental_de_falar_sem
cheirar,_de_falar_sem_ouvir_e_todas_aquelas_pessoas
fantasmáticas_invadem_o_meu_quotidiano _A_mesmidade
aborrece-me_e_sufoca-me,_a_mesmidade_surpreende-me_e
conforta-me>.
wired with the world i feel connected to myself
Corporificada pela máquina (Haraway, 1991), personalizo o
<meu_perfil>
<quem_sou_eu?_Quem_quero_eu_que_@s_outr@s_conheçam?_Quem
procuro?_Quem_eu_quero_que_me_encontre?>
Primeiro, adicionei as minhas bandas favoritas, os perfis de sites feministas e
lésbicos que já conhecia. Depois comecei a procurar amig@s. Apareceram croatas,
australianas, norte-americanas, alemãs, espanholas de repente, movia-me
mentalmente de continente para continente.
Por esta altura, a febre The L Word estava no seu auge. A maioria dos perfis
de lésbicas, europeias ou americanas, coleccionavam fotografias, excertos da
série e discussões sobre qual das personagens seria mais sexy ou
interessante. No início da minha cibervida, ter tido acesso a esta série
desde que começou a ser exibida nos EUA, em 2004, foi determinante para o
aprofundamento das minhas relações on-line.
A primeira pessoa que adicionei para amig@ é croata e tem escrito no seu perfil
I'm a little GrrlBoi tryin make my way in this world. Este statement passou
a servir de critério para as minhas buscas transcontinentais de seres marginais
que se expõem e vivem através desta rede social.
Interessava-me conhecer pessoas que utilizassem esta plataforma não só como
forma de activismo político, mas também como extensão dos seus corpos des-
materializados em representações de múltiplas e marginais performatividades de
género.
A possibilidade de poder ser, sem as restrições impostas tanto pelo espaço
público físico como pelas práticas discursivas de género, potenciava aquilo a
que Preciado denominou de des-identificação2.
Nesta busca, encontrei artistas queer como Emilie Jouvet3 e Kael T. Block4. As
suas fotografias e filmes registam novos modos de ser da vida queer e
transgender e abrem espaço para diferentes discursos visuais marginais que se
encontram fora das temporalidades e dos espaços5 regulados pela
heteronormatividade.
A minha identidade dyke desvanecia-se cada vez mais à medida que as
representações queer inundavam o meu ecrã tal como se desvanecia a sensação de
isolamento por ausência de identificação assim que comecei a viajar para
conhecer @s amig@s digitais.
Em 2006, viajei até à Zagreb para visitar a minha primeir@ amig@. A ligação à
Croácia permitiu-me, mais tarde, publicar um artigo na revista electrónica
Cunterview6. No ano seguinte, aterrei em Bilbao para ver a exposição Kiss Kiss
Bang Bang ' 45 Años de Arte y Feminismo e para conhecer a Mónica, uma activista
lésbica queer feminista. A minha estadia coincidiu com as festas da cidade e,
por isso, tive oportunidade de participar no almoço organizado pelas feministas
bascas e de trabalhar na tenda/bar que estas montaram para angariar fundos para
a sua associação.
O MySpace passou a ser muito mais do que <o meu espaço> onde deambulava
sozinha, sonolenta, por perfis desinteressantes, exibicionistas e demasiado
heterornormalizados.
< _o_meu_imaginário_ligado_a_pontos_reais_próximos_e
longínquos _em_tempo_real_vivo_todos_os_tempos_do
hemisfério_norte_ao_hemisfério_sul _uma_combinação_de
linguagens_agregam-se_e_misturam-se_em_movimentos _em
ficções_com_diversas_possibilidades_narrativas >
Estas viagens transformaram a minha vida, fazendo-me sentir realmente ligada a
uma rede de queers, lésbicas e feministas que lutam e resistem quotidianamente
para transformar as sociedades e os mundos por onde transitam.
na minha autoficção política posso ser todos os géneros e não ser nenhum.
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