Entre mulheres: Género e representações das relações íntimas
Introdução
Autores como Pierre Bourdieu (1998), Manuel Castells (1998) ou Anthony Giddens
(1997) sublinharam o papel do feminismo na transformação dos entendimentos
acerca do género e da sexualidade e das práticas sociais a eles ligadas.
Especialmente sob os impactos do feminismo de segunda vaga, as relações íntimas
– nomeadamente, as amorosas – teriam passado a guiar-se por uma ideologia que
recusa a hierarquização dos parceiros em função do género, um ideal igualitário
e simétrico que haveria de estender-se à relação homoerótica (cf. Gillies,
2003; Heilborn, 1993; Weeks, Heaphy e Donovan, 2001). A "relação
pura", considerada por Giddens (1997) o protótipo relacional da
modernidade tardia, apresenta ligação estreita a esse ideal. Internamente
referencial, isto é, não dependente de fatores externos para o seu encetamento
ou preservação, a relação pura exige o trabalho e o investimento mais ou menos
contínuo dos parceiros (idem) e tem sido lida como demonstração "de que a
intimidade, hoje, depende menos de esquemas de género como meio de organização
das relações e mais da negociação igualitária deliberativa" (Santore,
2008: 1209).
Um dos domínios onde o ideal igualitário parece ser mais fortemente posto à
prova diz respeito à divisão do trabalho doméstico, ao cuidado com os filhos e
à conjugação das vidas profissional e privada/familiar. Considerada a
persistência das assimetrias de género nos casais heterossexuais a estes
níveis, esse ideal parece, entretanto, surgir mais como ambição do que como
realidade (Jamieson, 1999, 2003; Poeschl, 2000; Wall e Amâncio, 2007). Este
aspeto terá estado na base da eleição da relação homoerótica como protótipo,
por excelência, da relação pura (Diamond e Butterworth, 2009; Dunne, 2003;
Giddens, 1997; Gillies, 2003; Jamieson, 2003; Weeks, Heaphy e Donovan, 2001).
Não só o ideal igualitário parece ter-se tornado dominante entre os/as que
escapam à heterossexualidade normativa, como estes/as tendem a encarar as suas
relações amorosas como mais igualitárias do que as relações entre parceiros de
sexo diferente, características que têm sido explicadas pela necessidade de
criar novos modelos de conjugalidade face à inadequação do modelo heterossexual
e pela homogamia de género dos/as parceiros/as (Diamond e Butterworth, 2009;
Dunne, 2003; Gillies, 2003; Jamieson, 2003; Weeks, Heaphy e Donovan, 2001).
A preservação e o sucesso da relação homoerótica implicariam, assim, um
trabalho de negociação que envolve explicitar e refletir sobre o seu estado e
uma particular atenção às desigualdades de poder, assentando num compromisso
claro com o ideal igualitário (Weeks, Heaphy e Donovan, 2001). Todavia, isto
não elimina a influência do género no modo como a relação homoerótica é
concebida ou vivida. Por um lado, a similaridade dos/as parceiros/as em termos
de género tem sido apontada como um dos fatores que contribuem para o facto de
a divisão de tarefas não obedecer ao padrão dominante de distinção entre
masculino/ /homem e feminino/mulher (Diamond e Butterworth, 2009; Dunne, 2003;
Gillies, 2003; Heilborn, 1993; Jamieson, 2003; Weeks, Heaphy e Donovan, 2001).
Por outro lado, os estudos que revelam um maior igualitarismo na relação entre
parceiros/as do mesmo sexo indicam, frequentemente de forma implícita, a
presença daquilo que Maria Luiza Heilborn (1993: 19) classificou como um
fenómeno aparentemente paradoxal de intensificação do género: na relação
homoerótica feminina, como na masculina, são intensificados os valores
associados ao feminino e ao masculino, respetivamente. Assim, e a despeito de a
relação homoerótica poder apresentar-se como mais igualitária do que a relação
heteroerótica, parece mais questionável a sua capacidade de subverter as
categorias de género e a ordem social que nelas assenta, como pretendia o
feminismo radical, em especial no que respeita ao lesbianismo (cf. Echols,
1989; Ferreira, 1988; Tavares, 2011).
Pretende-se, com este artigo, contribuir para a discussão da influência do
género – aqui entendido como a "construção social e cultural da diferença
dos sexos" (Perrot, 1995: 39)2 – nos modos como as relações amorosas são
percebidas e vividas. Centrando a análise nas representações de um conjunto de
mulheres envolvidas em relações homoeróticas, sugere-se que estas parecem
contribuir para o desenvolvimento de uma consciência acrescida dos efeitos da
dominação masculina, sem que, todavia, lhes seja, necessariamente, atribuída
uma orientação no sentido da subversão das classificações sociais dominantes.
Pelo contrário, o género tende a ser encarado como diferença ontológica que
explica os moldes de funcionamento das relações amorosas, traduzindo aquilo que
Amâncio (2003: 707) classificou de "corrupção do género pelo sexo".
Os dados discutidos fazem parte de um estudo de casos de caráter qualitativo
que tomou como objeto teórico os processos de construção social das identidades
sexuais e referem-se às histórias de vida de dezoito mulheres com idades
compreendidas entre os 23 e os 54 anos, com maior concentração entre os 30 e os
39 anos, todas residentes na região Norte de Portugal à data da entrevista e
maioritariamente originárias das frações de classe superiores (Brandão, 2007)3.
As entrevistadas foram localizadas por recurso combinado a informantes
privilegiadas e a um procedimento em bola de neve. O único critério de selecção
das entrevistadas foi o facto de terem mantido, nalgum momento das suas vidas,
uma relação amorosa com outra mulher, a despeito de se definirem, ou não como
lésbicas. A esmagadora maioria das entrevistadas manteve, igualmente, relações
amorosas com homens, das quais algumas bastante duradouras. Todas as
entrevistas foram submetidas, após transcrição integral, a uma análise de
conteúdo temática. Embora não fizesse parte do guião de entrevista, a
comparação entre as relações heteroeróticas e homoeróticas que sustenta esta
análise surgiu espontaneamente nas narrativas das entrevistadas, tendo sido
subsequentemente explorada. Considerando as características sociodemográficas
do objeto empírico da pesquisa, os resultados devem, todavia, ser encarados com
cautela, abrindo sobretudo pistas de aprofundamento futuro.
De homens e mulheres: O que define a relação?
Embora com exceções que sublinham a influência das atitudes face aos papéis de
género (cf. Kamano, 2009; Sullivan, 2004: 93-123), as investigações realizadas
até à data sugerem, de forma consistente, que os casais do mesmo sexo procedem,
em geral, a uma divisão mais equilibrada e justa das tarefas domésticas e das
responsabilidades pelo cuidado com os/as filhos/as (quando estes estão
presentes), atendendo, nessa divisão, entre outros aspetos, às características
e exigências das atividades profissionais respetivas (Diamond e Butterworth,
2009; Dunne, 2000, 2003; Heilborn, 1993; Kurdek, 2004, 2005, 2006, 2007;
Sullivan, 2004: 93-123). Em Portugal, a generalidade dos estudos neste domínio
tem tomado como objeto central o casal heterossexual, salientando, a despeito
de algumas mudanças, a persistência da diferença de género na distribuição
diferencial das responsabilidades domésticas dos/as parceiros/as, em detrimento
das mulheres (e.g., Inglez, 2007; Núncio, 2008; Perista, 2002; Poeschl, 2000;
Torres, 2004; Wall e Amâncio, 2007). As poucas exceções a esta regra enquadram-
se na linha das conclusões avançadas para outras realidades sociais, reforçando
a ideia da prevalência de um maior igualitarismo a esse nível entre os casais
do mesmo sexo – ou, pelo menos, da perceção da sua presença (cf. Meneses, 2000;
Moreira, s.d.; Nico e Rodrigues, 2009; Paulus, 2002).
Ainda que a preponderância do ideal igualitário e das práticas que lhe estão
associadas possam estar ligadas à similaridade dos/as parceiros/as em termos de
pertença socioeconómica e a uma maior representação de camadas sociais onde
esse ideal tende a ser privilegiado (cf. Heilborn, 1993), fator nem sempre
considerado nas pesquisas, o equilíbrio na divisão do trabalho doméstico é,
precisamente, um dos aspectos que as entrevistadas mais sublinham como traço
distintivo da relação homoerótica. Isto é muito claro especialmente no caso das
entrevistadas mais velhas, como Teresa, ou Carolina, que esteve casada com um
homem durante vinte anos:
A minha ligação de trinta anos é porreirinha porque eu encontrei,
realmente, uma pessoa que vai ao encontro do meu projeto de vida e
porque nos damos muito bem e porque as tarefas são todas divididas e
porque há uma harmonia! […] se uma está a fazer o arroz e a outra vai
não sei aonde, passa pela cozinha, acrescenta um bocado mais de água…
Não é preciso dizer "Olha, vai ver o arroz!" // Há uma
cumplicidade extraordinária! (Teresa, 52 anos, PTE)
Há uma maior cumplicidade. É totalmente diferente. Se vivem juntas
numa casa, o que uma faz, a outra também faz. Se é um homem, a pessoa
está habituada a fazer a lida da casa. O marido vem, janta. A comida
está pronta. Se não está, levanta-se e vai embora – a maior parte
deles, não é? – e, hoje, eu já não aceitava isso do meu marido. // E,
quando vejo isso, irrita-me […], mesmo, seja com quem for. /
/ Portanto, há mais igualdade. Estão as duas em igualdade de
circunstâncias. // Se uma quer, também faz. Não está à espera que a
outra tome a iniciativa e faça aquilo. (Carolina, 43 anos, EE)
Ora, a igualdade que as entrevistadas fazem assentar na maior cumplicidade
entre mulheres e que as leva a classificar a relação como "mais
fácil", decorre, como refere Gillian Dunne (2003: 63), da capacidade
aprendida por algumas mulheres de estar em sintonia com as exigências do
trabalho doméstico, emergindo o equilíbrio de uma monitorização dos contributos
de ambas as parceiras que assenta na partilha de critérios idênticos. Ao
contrário do que acontece na relação heteroerótica, a dinâmica do género
constitui, neste caso, uma vantagem para as mulheres (idem). E parece ser a
mesma dinâmica a sustentar a classificação da relação entre mulheres como
"mais fácil" numa outra dimensão: a da comunicação. As relações
heteroeróticas são frequentemente retratadas pelas entrevistadas como
apresentando maiores dificuldades de comunicação e contrastadas com a comunhão
efetiva entre mulheres. A intimidade, entendida como a capacidade de conhecer o
outro e a consideração recíproca nas relações, assente num processo de
revelação mútua que exige "avenidas de comunicação abertas"
(Santore, 2008: 1203), é particularmente valorizada e frequentemente
apresentada como traço distintivo da relação homoerótica feminina. A descrição
de Bárbara da relação que manteve com um homem durante quase sete anos, e a de
Leonor das relações entre mulheres, são exemplificativas do que se acaba de
afirmar:
[…] foi sempre uma coisa a dois mundos: o meu mundo e o mundo dele,
com uma interseção, aliás, muito pequena e nada dirigida para o
entendimento e para a verbalização. // Havia ali, obviamente, uma
interseção grande em termos de gostar de fazer isto e gostar de ir
para aqui, fazer campismo, e isto e aquilo e aqueloutro... Mas, em
termos de entendimento, era sempre uma distância de uma margem à
outra do rio, enorme, um rio enorme! (Bárbara, 31 anos, PTE)
As mulheres envolvem-se realmente numa relação e vivem os problemas e
sentem da mesma forma que a outra sente. // […] tu sentes […] quando
a outra pessoa está a mentir! Tu sentes quando a outra pessoa está a
sofrer! Tu sentes isso tanto ou mais de uma forma muito mais forte do
que numa relação com um homem em que tu não fazes muito bem ideia do
que ele está a pensar, do que ele está a sentir… // É uma coisa muito
mais vivida, muito mais sentida! (Leonor, 35 anos, EE)
O excerto de Leonor, em especial, ilustra um traço frequentemente atribuído à
relação homoerótica feminina: a tendência para a fusão, isto é, para a
dissolução da fronteira entre o self e o outro através da qual o sentimento de
união suplanta o de separação (Burch, 1993, cit. in Kamano: 137)4.
Característica que pode levar à entropia, ela não deixa de refletir a presença
e o reforço das dinâmicas de género a dois níveis: por um lado, resulta da
socialização a que as mulheres são sujeitas, que se traduz na valorização da
ligação e da partilha emocionais e na abnegação; por outro lado, o
autocentramento na relação e o fechamento das fronteiras do casal enquanto tal
seriam também uma resposta de proteção à pressão social que impende sobre a
relação homoerótica feminina, nomeadamente por representar uma fuga à dominação
masculina e ao seu potencial de diluição desta (Greene, Causby e Miller, 1999;
Krestan e Bepko, 2004; Mackey, Dimmer e O’Brien, 2000; Pardie e Herb, 1997).
É, na verdade, interessante notar como a própria subcultura gay e lésbica
traduz, muitas vezes, a presença de tais dinâmicas, especialmente visível no
modo como os seus protagonistas são representados: "Os gays são máquinas
sexuais, ao passo que as lésbicas valorizam o relacionamento" (D’Augelli,
1994: 127). Esta visão está bem presente no discurso de Leonor:
Dois homens juntos é mesmo... sexo e pouco mais. Eu não conheço
nenhuma relação entre dois homens que eu diga: são felizes!
Completam-se um ao outro. Gostam de estar um com o outro. // Não têm
nenhum tipo de affaires. Não conheço uma! (Leonor, 35 anos, EE)
Os discursos das entrevistadas traduzem, assim, a incorporação de esquemas
dicotómicos de género presentes tanto nas suas representações das relações
entre parceiros de sexo diferente, como das relações entre parceiros do mesmo
sexo, ainda que de formas distintas. São as noções dominantes de feminilidade e
masculinidade que subjazem à forma como as relações amorosas e as vivências
conjugais são descritas e que sustentam uma visão da relação homoerótica
feminina como mais igualitária do que a relação heteroerótica e mais próxima do
ideal da relação pura tal como definido por Giddens (1997) no que respeita, em
especial, à reciprocidade e aos processos de comunicação que implicam a
revelação mútua enquanto parte da procura da intimidade.
Da consciência da dominação à intensificação do "feminino"
O papel primordial da heterossexualidade na preservação da dominação masculina
e a visão do lesbianismo não só como uma ameaça a esta, mas sobretudo como
recusa mais ou menos consciente da opressão a que as mulheres estão sujeitas no
quadro de uma sociedade patriarcal têm sido sustentadas, em especial, no âmbito
do feminismo lésbico (Kitzinger, 1995; Rich, 1980; Wittig, 1993), em parte como
resultado da extensão das teses do feminismo radical (cf. Echols, 1989;
Ferreira, 1988; Tavares, 2011). Neste quadro, a identificação de muitas
mulheres como lésbicas poderia dever-se menos à "orientação sexual"
do que à sua vontade de escapar à submissão ao poder masculino (Echols, 1989;
Ferreira, 1988; Weeks, Heaphy e Donovan, 2001). Ora, apesar de a relação
homoerótica feminina ser entendida pelas entrevistadas como uma relação mais
igualitária e de a maioria delas se definir como lésbica, esse argumento surge
apenas no caso de Teresa, que esteve envolvida no feminismo português de
segunda vaga. Quando questionada, na sequência das suas respostas, sobre se
considerava que o seu lesbianismo tinha uma relação com a recusa do papel
tradicionalmente reservado às mulheres, não hesita:
Completamente! Cada vez tenho mais consciência disso [...]. /
/ Felizmente que eu seria incapaz de viver com um indivíduo entre
quatro paredes e gramar o papel que ele tem e o papel que me impinge
a mim como mulher! Felizmente que eu sou feminista! // Os casamentos
existem na continuidade, hoje em dia, em Portugal (lá fora também,
mas já é diferente, um bocadinho) à custa da subserviência das
mulheres, quanto mais subservientes elas forem! (Teresa, 52 anos,
PTE)
Apesar de Teresa ser a única entrevistada a articular diretamente estas
questões, em cerca de metade das entrevistas, com maior peso entre as mulheres
que se situavam próximo ou acima dos 40 anos, as referências à recusa de uma
posição de subalternidade face aos homens são múltiplas, estando ausentes entre
as que se situavam na casa dos 20 anos. Estas diferenças geracionais podem
sugerir várias coisas. Por um lado, é provável que tenha ocorrido uma redução
das desigualdades de género na sociedade portuguesa, visto que, entre as
entrevistadas mais jovens, a comparação nunca é enunciada nesses termos. Trata-
se, todavia, de uma explicação que deve ser temperada pelos resultados de
estudos recentes que apontam para a persistência de um discurso ideológico de
negação da discriminação que continua a sustentar a reprodução da dominação
masculina (e.g., Nogueira, 2006; McRobbie, 2009). Por outro, uma maior
visibilidade do homoerotismo nos contextos socioculturais das gerações mais
jovens pode conduzir a um envolvimento mais precoce numa relação homoerótica e/
ou a um menor número de relacionamentos heteroeróticos ao longo do trajecto de
vida, traduzindo-se numa menor perceção da desigualdade, sobretudo no âmbito da
relação amorosa. Em qualquer caso, trata-se de alterações que parecem retirar
força a uma postura feminista entre as mulheres mais jovens, nomeadamente
porque tornam menos visível a dominação masculina.
Nos casos em que a questão da desigualdade de género surge, poder-se-ia,
entretanto, classificar as apreciações da generalidade das entrevistadas como
uma espécie de "feminismo de ação", um feminismo sem teoria, na
terminologia de Adrienne Rich (1980: 652), visto que, por um lado, a esmagadora
maioria delas não se classifica como feminista e, por outro, tende a concentrar
as suas reflexões em torno da divisão das tarefas e responsabilidades
domésticas, face mais visível da desigualdade. Teresa e Marisa são as únicas
entrevistadas que se assumem espontaneamente como feministas e que estabelecem
uma relação entre lesbianismo e feminismo. Ambas consideram que o seu feminismo
é anterior ao seu lesbianismo, embora em moldes diferentes. Ao passo que o
discurso de Teresa é claramente politizado, enunciando uma recusa clara de
submissão à dominação masculina, a postura de Marisa não vai no mesmo sentido:
Onde é que eu sou feminista? // É no meu discurso, para defender a
minha integridade e a minha liberdade de ação porque senão tenho tudo
em cima de mim a querer reduzir, a querer espezinhar, porque a coisa
pior que existe é uma mulher ser inteligente, é uma mulher saber o
que quer, é uma mulher reivindicar seja o que for! (Teresa, 52 anos,
PTE)
Acho que, de alguma maneira, já era feminista antes de ser lésbica,
mas não neste sentido militante de "Viva as mulheres e,
portanto, só me posso relacionar com mulheres porque temos que estar
na vida como mulheres, então, não vou estar com homens, só vou estar
com mulheres". Não, eu acho que é mais no sentido de eu ter
tido sempre muita facilidade em relação às mulheres, como amigas, em
termos de intimidade, em termos do mundo feminino. (Marisa, 37 anos,
PTE)
É possível deduzir das palavras de Marisa uma proximidade com a noção de
"contínuo lésbico" proposta por Rich (1980). A expressão pretende
designar um leque – ao longo da vida de cada mulher e ao longo da História – de
experiências identificadas como femininas5 que não se resume ao desejo
consciente ou à presença da experiência sexual genital com outra mulher,
podendo abarcar outras formas de intensidade primária entre mulheres, incluindo
"a partilha de uma vida interior mais rica, a aliança contra a tirania
masculina, o dar e receber apoio prático e político" (idem: 648). A noção
parece ser aplicável a muitas entrevistadas, cuja referência a esse tipo de
experiência é recorrente. A tónica é colocada no envolvimento num mundo
"feminino", definido como mais emotivo, complementar e igualitário,
e são esse mundo e a ideia de feminilidade que lhe está associada a emergir
como fatores centrais de atração amorosa, como resulta claro das declarações de
Margarida:
[…] eu gosto de pensar como uma mulher, gosto de alguém que pense
como uma mulher. // [...] há um relacionamento intelectual,
emocional, que eu nunca consegui ter com um homem e consigo ter com
uma mulher. // Faltava-me o complemento que a mulher me dá, que é
muito mais para além do sexo... Eu acho que é o ser mulher... Não te
sei explicar, mas acho que é isso, que é o ser mulher... Um homem
pensa como um homem. // É muito mais sexuado, mais físico, para já
não falar na parte machista... A mulher é um ninho de carinho, de
complementaridade, que eu não encontro num homem [...]. (Margarida,
33 anos, EE)
A noção de "contínuo lésbico" adquire potencialidade no quadro de
uma sociedade onde homens e mulheres são socializados de modo diferente,
aprendendo a valorizar, a treinar e a expressar de modo distinto os afetos. Ela
convoca, portanto, o género das parceiras como elemento caracterizador das sua
relações íntimas e, neste sentido, pode ser lida como fazendo parte daquilo que
Barbara Ponse (1978: 99) designou de "aristocratização do
lesbianismo", um processo através do qual se atribuem qualidades
especiais e atributos desejáveis ao lesbianismo que vão para além da sua mera
normalização, e que é levado a cabo de duas maneiras: afirmando a natureza
superior das relações entre mulheres quando comparadas às relações entre homens
e mulheres; e atribuindo qualidades especiais às mulheres. De entre estas,
Ponse (1978) encontrou, no seu estudo, as que são geralmente associadas à
feminilidade hegemónica (o cuidado, a sensibilidade, a empatia, o calor, a
compreensão) e as que se relacionam com o seu estatuto socialmente
desvalorizado (a resistência, a força, a persistência), ainda que algumas
mulheres reclamassem, igualmente, qualidades associadas à masculinidade
hegemónica, como a competência, a assertividade ou a agressividade.
Como sublinha Ponse (1978: 100-102), a tendência para a aristocratização do
lesbianismo atingiu o seu ponto mais alto nos setores politizados e ativistas
da cultura lésbica, embora possa ter também lugar no domínio da convicção
privada, levando, por vezes, a uma postura separatista, isto é, à recusa de uma
relação heteroerótica por esta simbolizar a opressão a que as mulheres, em
geral, e as lésbicas, em particular, estão sujeitas6. No entanto, é importante
estabelecer uma diferença entre a aristocratização do lesbianismo, que apela a
uma idealização das características "femininas", e a postura de
questionamento dessa idealização que representa uma visão mais radical das
identidades sexuais e de género7. Esta é sumariada por Monique Wittig (1993:
105) quando defende que o que "o conceito "mulher é
maravilhoso" consegue fazer é reter, para definir as mulheres, os
melhores traços (melhores de acordo com quem?) que a opressão nos atribuiu e
não questiona radicalmente as categorias "homem" e
"mulher", que são categorias políticas e não dados naturais".
Na verdade, muito poucas entrevistadas defendem, como Bárbara, que
[…] o mundo não se divide entre homens e mulheres! Ou dividir-se-á,
nalgumas coisas, por exemplo, na cama, mas acho que, de resto, tem a
ver com as características das pessoas, não tem a ver com o sexo.
Isso, para mim, não faz sentido, se é homem ou se é mulher… (Bárbara,
31 anos, PTE)
As categorias de género são, pelo contrário, encaradas pela generalidade das
entrevistadas como ontologicamente determinantes e são as características
atribuídas ao género a emergir como elemento central de definição da relação
íntima a dois níveis: enquanto fator de atração amorosa e enquanto variável
determinante da (des)igualdade entre parceiros/as. Assim, se no contexto da
relação homoerótica feminina a intensificação do género parece reforçar a
consciência do funcionamento da dominação masculina, como defende Celia
Kitzinger (1995: 63), esta não se traduz, forçosamente, numa visão politizada
dessa relação ou das identidades sexuais e de género das parceiras voltada para
a destruição das categorias que as definem. A postura de questionamento e/ou de
confrontação clara dos pressupostos culturais dominantes acerca dessas
categorias está presente apenas num pequeno número de casos, todos
correspondentes a entrevistadas originárias das frações de classe dominantes.
Algumas destas mulheres, não chegando a apresentar um discurso sistematizado
acerca da desigualdade de género e da sua relação com o lesbianismo, exibem
maior reflexividade acerca destas temáticas quando comparadas com as restantes,
em que elas tendem a surgir de forma mais ou menos implícita e desarticulada.
Notas conclusivas
As entrevistas realizadas a um conjunto de mulheres envolvidas em relações
homoeróticas ilustram a presença do género nas suas representações das relações
íntimas e os seus efeitos aparentemente paradoxais ao nível da relação
homoerótica feminina, em particular. A incorporação de um esquema de género
binário está presente numa noção de alteridade que entende homens e mulheres
como categorias ontologicamente distintas com efeitos nos modos como os termos
e os conteúdos das relações são descritos. A um primeiro nível, as relações
entre parceiros de sexo diferente surgem intimamente ligadas aos efeitos da
dominação masculina, com tradução prática direta numa divisão das
responsabilidades domésticas que opera em detrimento das mulheres. A mesma
noção de alteridade sustenta a ideia de que a relação heteroerótica apresenta
maiores dificuldades de comunicação, colocando dificuldades à construção da
intimidade. A um segundo nível, são as características atribuídas ao feminino a
emergir como principal fator de atração amorosa e de valorização da relação
homoerótica feminina, sugerindo uma intensificação do género nesse contexto que
se traduziria num maior igualitarismo e numa mutualidade acrescida quando
comparada com a relação heteroerótica ou com a relação homoerótica masculina.
Assim, se, por um lado, o género é entendido como fator de desequilíbrio nas
relações heteroeróticas, ele emerge como fator de equilíbrio na relação
homoerótica pela sua aproximação ao ideal igualitário e por parecer facilitar a
intimidade dos/as parceiros/as. Paralelamente, a relação homoerótica feminina
parece criar, pela intensificação do género, condições favoráveis à perceção de
formas de desigualdade que se tornam menos legíveis para outras mulheres e que
são tomadas como inerentes à diferença de sexo dos parceiros. Por esta razão,
para algumas mulheres, os arranjos homoeróticos podem ser considerados
preferenciais por serem considerados mais igualitários e também por responderem
de forma mais satisfatória às suas necessidades afetivas. É importante
salientar, a este propósito, que não se encontra, na generalidade das
entrevistas, uma reflexão sistematizada e articulada acerca da desigualdade de
género, ou a sua ligação a uma decisão consciente de optar por uma ligação
amorosa com outra mulher, ainda que algumas mulheres apresentem maior
reflexividade acerca destas temáticas. Assim, se a não conformidade à
heterossexualidade normativa parece facilitar a perceção dos efeitos da
dominação masculina, raramente as categorias de género são questionadas e em
nenhum caso a relação homoerótica é verbalizada pelas entrevistadas como
detendo potencial subversivo a esse nível. Não se pretendendo, com isto, negar
que as relações homoeróticas possam ser favorecidas por muitas mulheres
precisamente por permitirem escapar ao poder masculino, pelo menos nos casos
analisados isto pode corresponder mais ao aproveitamento da liberdade que elas
oferecem do que a uma atitude politizada e consciente de combate a esse poder.
Se no que respeita à construção da intimidade e à intensidade emocional
atribuída à relação homoerótica feminina a origem de classe e a idade das
entrevistadas, esta última através do duplo efeito da extensão do trajeto de
vida e da pertença geracional, não apresentam potencial diferenciador, já no
que se refere à questão dos efeitos da dominação masculina no contexto da
relação heteroerótica o caso parece ser outro. É entre as entrevistadas mais
velhas – que são também, por definição, aquelas cujo trajeto de vida se
apresenta mais longo, englobando uma experiência mais diversificada no que
respeita aos relacionamentos íntimos – que a questão da desigualdade de género
e o modo como opera em detrimento das mulheres surge com mais frequência. A
ausência deste tipo de referências no discurso das entrevistadas mais novas
poderá ter diferentes explicações, provavelmente concorrentes entre si: por um
lado, a redução da desigualdade de género na sociedade portuguesa pode tornar
menos visíveis os efeitos da dominação masculina, possibilidade que não deve
fazer esquecer a presença de uma ideologia de negação da discriminação que
esconde os seus verdadeiros fundamentos; por outro lado, a adolescência das
entrevistadas mais jovens teve lugar num quadro sociocultural bastante diverso
no que respeita à possibilidade de envolvimento mais precoce numa relação
homoerótica, tornando mais distante o contacto com os efeitos do género no
contexto de uma relação heteroerótica. Quanto à origem de classe, é entre as
entrevistadas originárias das frações dominantes que o discurso acerca da
dominação masculina surge de forma mais articulada, nalguns casos voltado para
o questionamento das próprias categorias de género, revelando a posse de e o
acesso a recursos discursivos socialmente filtrados, claramente centrados na
defesa do ideal igualitário ao nível das relações íntimas. Em qualquer caso,
atendendo à composição do objeto empírico desta investigação, os efeitos destas
variáveis carecem de aprofundamento em trabalhos futuros.