A Velhice como Performativo: Dissidências (Homo)Eróticas
Entre sussurros e gemidos1, os cochilos de uma norma. Arranjos introdutórios
Este artigo apresenta algumas dentre as reflexões derivadas dos resultados de
minha pesquisa de doutorado2 (Pocahy, 2011) realizada junto ao Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, localizada
em Porto Alegre, região sul do Brasil. O estudo amplo analisou formas de
regulação do gênero e da sexualidade em sua articulação com os discursos
normativos acionados na produção discursiva do envelhecimento. Com este estudo
maior objetivou-se compreender os enunciados sobre a sexualidade dos idosos, na
perspectiva de como esta é fabricada e descrita como verdade, produzindo
materialidade (discursiva) e suposta evidência. Este estudo buscou
problematizar os jogos de verdade (conforme Michel Foucault (2001 [1984a]) que
cercam as experimentações de homens idosos em práticas homo/eróticas, junto a
espaços de sociabilidade como bares, videolocadoras pornô (complexos de
pequenas salas de cinema pornô/erótica) e saunas gays.
Através de uma cartografia da "vida social do corpo", nos termos de
Judith Butler (2004 [1997]: 238), a pesquisa elaborou dois esquemas de análise
que nos permitiram compreender como é produzida a objetificação da produção
discursiva sobre homens idosos em práticas homo/eróticas, ao mesmo instante em
que as resistências são/eram agenciadas. O primeiro esquema de contestação
analisado refere-se às experimentações da sexualidade de homens idosos em uma
sauna e vídeo-locadora pornô. O segundo plano de análise, por outro lado,
abordou as sociabilidades produzidas em torno de homens idosos e garotos de
programa (homens jovens profissionais do sexo) em um bar de prostituição
masculina. Estes dois contrapontos ou esquemas de problematização permitiram
uma abordagem sobre as disputas presentes nas tramas discursivas da hetero e da
homonormatividade, de acordo com Lisa Duggan (2003) e Guacira Lopes Louro
(2009), como importantes dispositivos na produção e/ou manutenção da velhice'
como materialidade discursiva de abjeção (Butler, 2004).
O corpo do idoso que protagonizou esta pesquisa foi compreendido como
contestando seu destino, através de performances desempenhadas com (algum)
prazer, com (alguma) invenção, com (algum) tesão, com (alguma) graça e com
(algum) desafio de si. E com alguma intenção, produzindo uma sorte de movimento
de ascese para uma vida criativa (Foucault, 2001 [1984b]).
Neste percurso investigativo foram realizados alguns alinhavos analíticos a
partir de narrativas ditas inusitadas, situacionais e efêmeras de um corpo
interpelado como menor'. Seguindo as pistas que desenhavam uma imagem
aproximada para um idoso, a partir de um terreno clandestino e estigmatizado, o
que pude acompanhar foi uma imagem provisória deste homem velho', ocupando um
lugar possível na cidade e em seus movimentos de erotismo, deformando' as
representações normais' para o dito corpo desejável'.
O que significa afirmar que esta pesquisa foi constituída como uma cartografia
de uma (homo)erotiCidade e cenas dissidentes. Ela acompanha o desenho de uma
cena de erotismo que vai se definindo no instante mesmo da sua própria
experimentação e do seu traçado político-epistemológico. Não se tratando de um
mapa, nada neste estudo esteve definido a priori, tampouco são passíveis de
representatividade. As paisagens existenciais e eróticas foram e continuam se
(re)desenhando e se modificiando. O que se acompanha aqui é apenas um instante
de algo produzindo um esboço da experiência política da corporal/idade.
Não seria exagero prosseguir em conjecturas, mas uma economia e uma direção
(linguísticas, até) são necessárias nesse momento de apresentação da
problemática desta pesquisa: como a idade se insere nos jogos de prescrição e
de regulação das experimentações da (homo)sexualidade? Como o corpo idoso'
encarna ou desencarna (resiste) n/o jogo das disputas de pertencimento e
reconhecimento social que são acionados nos processos de inteligibilidade a
partir do gênero e da sexualidade? Inteligibilidade que é "decidida antes
de toda a decisão individual", segundo Butler (2004[1997]: 203).
Derivas epistemológicas e rastros metodológicos da pesquisa
O trabalho de campo da pesquisa desenvolveu-se através de minha permanência
silenciosa e, por vezes, mais falante, mas sempre bastante participativa, em
uma sauna e videolocadora pornô, em dias variados e uma vez por semana, durante
as tardes dos anos de 2007 e 2010 na cidade de Porto Alegre.
Entre as linhas do texto de memórias de campo, há ainda aquelas que permanecem
quietas, aquelas que não se prestam ou não se emprestaram para o trabalho nesse
instante. Mas, há outras que estão aqui mais fortes e intensas para arriscar
dizer algo de uma experimentação (homo)erótica que considero vertiginosa em
suas possibilidades de encontros entre homens que estariam fora do mercado do
sexo': velhos', gordos', deficientes' e outros ditos feios em geral'.
No rastro das linhas do pensamento de Michel Foucault e de Judith Butler (entre
outras teóricas feministas lésbicas e/ou queer) procurei compreender como as
normas instituem um regime de gênero e da homonormatividade, a partir da idade
e das representações sobre o envelhecimento. E, embora não traga qualquer
novidade dizer que as normas governam os discursos, cabe recapitular que elas
produzem e regulam o sujeito do discurso, fazendo a vida (corporal) dos
indivíduos (Butler, 2004), habitando os corpos (no caso do protagonista desta
pesquisa, a materialidade discursiva o corpo idoso'/o corpo velho').
Meu interesse deitou-se com estas ideias e procurou, desde um trabalho de campo
na perspectiva de uma participação-observante, conforme proposto por Rommel
Mendes-Leite (1992, 2003) e Mendes-Leite e colegas (2000), e em ponto de vista
discursivo-desconstrucionista, produzir alguma intimidade com movimentos
eróticos que pudessem indicar formas de contestação ou resistência à norma.
Minha provisória certeza guia é/foi de que as experimentações das sexualidades
ditas minoritárias' (Louro, 2004), indóceis, dissidentes ou desobedientes,
podem evidenciar algo dos jogos discursivos que encarnam o corpo, entre as
continuidades e descontinuidades habilitantes do gênero e da sexualidade,
demonstrando o seu caráter ficcional/fabricado histórica e culturalmente.
A partir deste arranjo, pondero que as práticas sexuais e eróticas podem de
alguma forma perturbar o gênero (Louro, 2004), desde o interior mesmo de sua
produção discursiva, desestabilizando os instituídos que evidenciam as
identidades gênero-sexualizadas.
De alguma forma, as práticas sexuais produzem desarranjos nas representações.
Mas acredito que elas dizem pouco ou quase nada sobre os sujeitos em si mesmo.
Eu considero que os sujeitos presentes nesta pesquisa são interlocutores de uma
cena e um instante que rasga a moral que cerca o corpo generificado e os
prazeres sexuais na velhice.
Muito embora eu não tenha encontrado elementos contundentes na desestabilização
do gênero, mesmo diante das desobedientes formas de experimentação da
sexualidade que tive a oportunidade de acompanhar durante o período em trabalho
de campo, as imagens das performances dos sujeitos (a perform/ação' de um
discurso) me ofereceram possibilidades de abrir a reflexão sobre o teatro da
heterossexualidade compulsória e os pocket shows cotidianos das heteronormas e
homonormas.
As muitas densidades de um corpo: a velhice como performativo
Nesta pesquisa um processo singular de envelhecimento ocupou status de
centralidade: o envelhecimento de homens que se autoreferenciam como
homossexuais e/ou homens que experimentam uma sociabilidade homoerótica e
desempenham práticas sexuais com outros homens. Portanto, mesmo que eu
reconheça todas as possíveis dificuldades encontradas por idosos que se
entendem como homossexuais, diante das violências a estes impetradas em nossas
sociedades heterossexistas e velhicistas' (ageism, âgisme, idadismo), minha
estratégia seguiu em outra perspectiva e a partir de outras alianças táticas.
Operei em esforços que se dirigiam a compreender a velhice como efeito de
performatividades nas tramas discursivas da "heterossexualidade
obrigatória" ou a "naturalização da heterossexualidade", em
consonância com Adrienne Rich (2001[1985]) e Monique Wittig (2001[1992]), bem
como da hetero e da homonormatividades.
Este foi um dos desafios conceituais e políticos importantes deste trabalho:
compreender como as pessoas negociam e arranjam suas vidas diante dos discursos
que as fazem ser/dizer o que pensam ser?
Sabemos que a idade que levamos é a forma também de dar inteligibilidade ao que
pode ser considerado como uma vida possível socialmente, desde engajamentos
políticos institucionais e arranjos culturais. Desta maneira, estamos diante de
um agenciamento discursivo que não faz outra coisa que tentar situar o sujeito
de forma reconhecível e como um sujeito que possa ser citado ' que produz
experimentações de si desde/como atos performativos ' como sujeito possível ou
pensável.
Assim, ao me aproximar da ideia de movimentos de citação e de recitação
performativas, que tornam inteligível um corpo/sujeito, não pude deixar de
pensar nos sentidos para a vida que um corpo é capaz de encarnar; e, por isso,
me interessei em compreender como o corpo se oferece a (e/ou como ele
desestabiliza) estes processos, como o envelhecimento. Rose-Marie Lagrave
(2009: 113) propõe que "questionar uma ordem das idades é uma maneira de
reencantamento, no sentido em que interrogamos sob novos riscos as evidências
tributadas à velhice, realocando os recursos cognitivos e políticos inusitados
cruzando os efeitos recíprocos entre a ordem dos gêneros e das idades".
Desse modo, compreendo a idade como uma categoria política, histórica e
contingente, assim como o são o gênero, a classe social, a sexualidade ou a
raça. Mas não de forma isolada, pois o marcador etário e geracional
dificilmente pode ser pensado sem essas intersecções.
Isto significa dizer que a idade organiza a vida ao conferir status de
humanidade' em diferentes formas e condições político-culturais, no mesmo
instante em que gênero e sexualidade se tornam visíveis e possíveis nesta trama
discursiva, estabelecendo possibilidades e limites para cada uma das idades da
vida.
Júlio Simões (2004) nos oferece uma forma de entendimento sobre o envelhecer e
a homossexualidade, remetendo-nos às tensões políticas presentes no interior de
uma cena/experiência de fronteira, especialmente ao pontuar as margens que
estabelecem no interior das ditas experiências/modos de vida marginais' em uma
sociedade heterossexista. Afirma o autor: "se por um lado as identidades
gestadas dentro da cultura gay' podem ser vistas como aprendizado e
desenvolvimento de estilos de vida corporais, ( ) por outro elas também só
fazem reforçar os contrastes entre a juventude resplandecente e a velhice
sombria " (Simões, 2004: 419).
A constatação de Simões é fundamental para que possamos compreender os
movimentos de contestação no interior desta disputa por um lugar nos planos de
circulação e sociabilidades marcadas pelo exercício da sexualidade e pelo
reconhecimento social desde as sociabilidades homoeróticas (sobretudo as
comerciais).
De outra parte, nesta disputa, percebemos as representações de niilismo e
recolhimento impetradas a muitos idosos gays, como derivadas muito
provavelmente de tramas discursivas signatárias da política da exaltação do
corpo jovem (algo que parece se arrastar no jogo das políticas de identidade,
inclusive com grande expressão em muitas políticas da visibilidade gay nas
campanhas no enfrentamento à AIDS ou de direitos da população LGBT). Essa
profusão de representações evidencia e informa uma imagem de si para muitos
gays que se recusam a envelhecer ' ou que negam qualquer possibilidade de
erotismo e direito de cidade para o corpo idoso ', revelando um traço
homonormativo no interior de uma margem de exclusão social.
Um argumento que corrobora esta perspectiva das ciladas da cultura gay matizada
no corpo belo, bom e a ser zelado e protegido (como se os outros não fossem
merecedores), vem ao encontro da crítica de Didier Eribon (2003: 22):
O culto da juventude parece ser um dos traços mais constantes da
cultura gay (sem dúvida isso é menos verdadeiro na cultura lésbica).
[ ] De fato, em relação aos discursos e às imagens hostis descrevendo
a homossexualidade como um agente de decadência e de destruição da
sociedade são historicamente opostos aos contradiscursos e às
contraimagens que buscaram legitimar o amor entre homens em momento
da beleza dos jovens. O que seguidamente nos dá a impressão ao ler
revistas gays que somente os jovens belos podem ser homossexuais.
Juntamente a estas reflexões pode-se afirmar que as idades da vida criam
condições de inteligibilidade para o que definimos em nossas sociedades
ocidentais (pós) modernas como humano, também em termos de gênero, sexualidade
e raça/etnia. No rastro do projeto (bio)político da modernidade, a experiência
geracional e algumas das interseccionalidades que acabei de citar nos permitem
algumas interrogações: o que deve o sujeito contemporâneo à sua idade e quais
são as hierarquias produzidas em nosso tempo para a objetificação de discursos
de inteligibilidade social? O que pode uma vida com a sua idade? O que pesa e o
que conta a idade que levamos? Pode um sujeito existir ' oferecer
inteligibilidade social ' sem a sua idade? E uma idade pode ser a mesma de uma
geração a outra? O que o corpo deve aos regimes políticos na gestão da vida
(generificada)?
Em relação à juventude e à velhice, eu tomo estas duas experiências discursivas
como materialidades em negociações culturais e desde regimes de verdade que não
podem ser pensados sem a organização e a produção de expectativas para as
idades/fases da vida:
El otro campo de intervención de la biopolitica va a ser todo un
conjunto de fenómenos, de los cuales algunos son universales y otros
accidentales pero que, por una parte, nunca pueden comprimirse por
entero, aunque sean accidentales, y que también entrañan
consecuencias análogas de incapacidad, marginación de los individuos,
neutralización, etc. Se tratará del problema de la vejez, muy
importante desde principios desde siglo XIX (en el momento de la
industrialización), del individuo que, por consiguiente, queda fuera
del campo de capacidad, de actividad. Y, por otra parte, los
accidentes, la invalidez, las diversas anomalías. En relación con
estos fenómenos, la biopolitica va a introducir no sólo instituciones
asistenciales (que existían desde mucho tiempo atrás) sino mecanismos
mucho más sutiles, económicamente mucho más racionales que la
asistencia a granel, a la vez masiva y con lacunas, que estaba
esencialmente asociada a la Iglesia. Vamos a ver mecanismos más
racionales, de seguros, de ahorro individual y colectivo, de
seguridad, etcétera (Foucault, 2006 [1976]: 221).
Para isso, aliado às ideias de Pierre Bourdieu (2005[1978]), podemos dizer que
estamos diante de uma disputa sobre o domínio dos sujeitos ao limitar a
experiência geracional a divisões arbitrárias ' erigidas evidentemente a partir
de conceitos e práticas regulatórias. Segundo Bourdieu (op. cit.), estas
classificações por idade (mas também por gênero, orientação' sexual e também
por classe) remetem-nos sempre à imposição de limites e de produção de uma
ordem pela qual cada um deve se fixar, na qual cada um deve se colocar em seu
lugar. O que pressupõe certamente medidas e expectativas sobre a vida.
Dissidências homo/eróticas
Muitas são as disputas que envolvem as significações do envelhecer, mas arrisco
aqui pensar que a sexualidade talvez funcione como este dispositivo dinâmico da
biopolítica (Foucault, 1997 [1976]), que opera de forma particular com o peso'
cultural da idade, prendendo durante mais tempo este corpo às moralidades
médicas, religiosas, educacionais e jurídicas. De alguma forma, poder-se-ia
levar em consideração a ideia de que as pessoas idosas teriam dificuldades para
incorporar certas flexibilizações em relação às condutas de gênero e
sexualidade. Mas isso, creio, oferece-se mais como um fantasma normativo.
Evidentemente, como demonstra Michel Bozon "( ) as gerações idosas de
hoje praticam um repertório mais largo do que aquelas de ontem, na medida em
que elas passaram sua vida adulta em um contexto de ampliação das
possibilidades e de diversificação dos percursos afetivos" (2009: 125).
Podemos pensar que uma norma, suas representações e as performances, que se
produzem desde seus engendramentos discursivos, ficcionam formas que procuram
conservar perenes os atributos de gênero e sexualidade para uma idade ' para
cada idade da vida. No entanto, essa regulação e medida deixam escapar na
agonística das tensões geracionais formas de contestação e de resignificação.
É desde essa problematização que tentei costurar uma reflexão, a partir de
algumas linhas de uma experiência de trabalho de campo envolvendo espaços de
sociabilidade (homo)erótica. Problematizar significa, aqui, nos termos de
Michel Foucault, realizar um movimento de análise que possibilita compreender
como um conjunto de práticas discursivas ou não discursivas faz algo' entrar
no jogo do verdadeiro e do falso e, ao mesmo, tempo constitui este algo como
objeto para o pensamento (Foucault, 2001 [1984a]).
O interesse nesse estudo foi também problematizar como o corpo performativizado
como improdutivo', precário', bizarro', monstruoso' e desqualificado' ' ou
alguns dos nomes que se podem dar aqui ao abjeto ' é contestado
(ressignificado) ou mantido no seio das ditas subculturas' Lésbica, Gay,
Travesti, Transexual, Transgênero ou Bissexual (ou aparentemente referendadas
como tais).
Ensaiei uma aproximação entre algumas das linhas que se articulam na malha
moderna da gestão da vida e do governo dos vivos (Foucault, 2006 [1976]).
Organizei, portanto, uma reflexão sobre o campo de possibilidades aberto em uma
das margens do grande continente cinza (Le Breton, 2008 [1990]) como é
representada a sexualidade na velhice. Um continente traçado no projeto moderno
onde: "a velhice desliza lentamente para fora do campo simbólico, ela se
afasta dos valores da modernidade: a juventude, a sedução, a vitalidade, o
trabalho, a performance de desempenho, a rapidez" (Le Breton, 2008
[1990]: 210).
No curso da análise que aqui é parcialmente retomada tratei de re/compor cenas
que permitiriam-me pensar a ideia de performatividade. As performatividades que
invadem esta pesquisa tensionam, certo modo, os jogos discursivos na produção
da identidade e da diferença, como nos aporta Tomaz Tadeu da Silva (2007).
Afinal, dizer-se gay, veado, bicha, entendido ou "sou homem e
ponto", "velho", "coroa" (e outras formas de
significação de suas identidades ou práticas sexuais) pode ser tanto um ensaio
de resistência/ressignificação, quanto pode refletir o assujeitamento a uma
nova ordem do gênero nos regime discursivo da homossexualidade e da idade. Isto
é: "quando uma pessoa se declara homossexual é a declaração que é
performativa, não a homossexualidade" (Butler, 2004 [1997]: 51).
Os sujeitos que participam desta pesquisa tinham à época da sua realização a
idade de 60 anos ou mais (o mais idoso setenta anos). E não se pode deixar de
considerar que são pessoas que negociam em seus cotidianos com categorias
políticas e discursos que se produziram desde os movimentos de liberação/
contestação sexual; e que são tensionados nas políticas culturais e sociais
contemporâneas envolvendo o gênero e a sexualidade, sobretudo no contexto
brasileiro marcado por décadas de ditadura militar.
No entanto, não foi meu interesse buscar marcas do passado, evocando as feridas
da vergonha, da humilhação, da negligência e da violência para aqueles sujeitos
que se reconheciam afirmativamente como gays ou entendidos ou homossexuais (e
que viveram tempos mais difíceis, em termos de proteção social e garantia de
direitos). E menor ainda foi a minha intenção de restituir ou buscar no passado
um tempo glamourizado ' seja por acreditar na habilidade de cada um para
driblar os controles de uma época, seja por querer evitar uma espécie de
nostalgia do corpo e da vida jovem ' cuidado que mantive, particularmente, nas
interlocuções realizadas através dos momentos de entrevista.
Considero que a ideia de remeter o idoso sempre ao passado pode, por sua parte,
significar uma maneira de sequestrá-lo do presente, furtando-o do futuro e
reafirmando que seu tempo não é hoje, tampouco será o de amanhã. Por isso,
associo-me novamente a Lagrave (2009), quando esta autora propõe que trabalhar
sobre a vergonha de si é também refletir sobre o status e o lugar do desejo na
economia política da velhice; mas certo desvio intencional se fez necessário na
pesquisa: o silêncio sobre a vergonha de si.
De fato, não se trata de um silêncio, mas do avesso de um silenciamento '
ocupo-me do agora com estes velhos' na possibilidade de uma historicização do
presente. Operei, portanto, com a estratégia de evitar que se instalasse o
ressentimento ' que bem poderia ser ilustrativo de uma parte do cotidiano das
vidas dos sujeitos envolvidos neste estudo ' mas que poderia tomar a forma da
lamentação, abafando os gemidos e os sussurros do que me pareceu ser mais
subversivo desta pesquisa: o conjunto das cenas onde o corpo se joga na
intensidade do erotismo. Mesmo que ele não esteja livre de coleiras normativas.
Nas narrativas que se produziram nas conversas com os interlocutores, o
murmúrio do sofrimento para a explicação da experiência da sexualidade não
ocupou espaço. Esse foi um direcionamento construído na aproximação com o campo
da pesquisa, o que permitiu um modo de ver a experiência do envelhecimento de
outra forma. Isto é, não como lamento ou vitimização, mas tendo todo o respeito
e os respaldos éticos necessários.
Foi possível, deste modo, pensar estes sujeitos no presente e no agora e,
evidentemente, com suas marcas singulares. De certa forma, cabe dizer, certo
lamento se interpôs. Mas de uma forma um pouco diversa da que acima mencionei.
Esse lamento referiu-se àquela sorte de queixa sobre as pendências do
"amor romântico " (Serge Chaumier, 1999; Jurandir Freire-Costa,
1998), que não surge senão como "tráfico de significados" (Beatriz
Preciado, 2010) e desde performances muito particulares, no plano das relações
de sociabilidades explicitamente tarifadas.
Não temos aqui um encontro de queixas ou de ressentimento, reafirmo. Mas um
(re)encontro que pretendeu buscar possibilidades de contestação que importam
para pensar o que estamos fazendo de nós mesmos; um encontro com o que deixa
escapar e fruir, com o desfrute, com a presença de certa forma desinteressada
que brinca com os fantasmas da homossexualidade e da velhice. A questão aqui
não foi a de saber o que o sujeito é, o que alguém é, mas de acompanhar o devir
' no que podemos ter a sorte de nos tornar. Esta proposição foucaultiana é
apontada por Judith Butler (2005: 31).
Ao escrever sobre momentos, situações e arranjos estéticos que não procuram a
coerência do discurso politicamente correto, tentei destacar os movimentos que
buscaram a deriva, os devaneios, as invenções, as artimanhas, a pluralidade dos
nós vividos por alguns sujeitos diante das disputas inusitadas que uma norma
pode produzir para definir um corpo e gerir uma vida.
Do ponto de vista do exercício pleno da sexualidade a velhice homossexual'
parece residir mais distante da ideia de uma experimentação possível. Ditos
perversos, libidinalmente devassos, promíscuos, sujeitos cuja sexualidade
perdura como uma sequência natural de uma vida atormentada', a marca do
estigma da perversão se arrasta e acumula episódios e práticas abomináveis' e
condenáveis' com o correr do tempo. Não se economizam representações
largamente aceitas para a figura do homossexual velho' como monstruoso abjeto
sexual, particularmente sobre aqueles que ousam desacatar uma (homo)norma.
Assim sendo, teriam os idosos de se contentar com a representação questionada
por Júlio Simões (2004: 419), de que "aos mais velhos, só restaria pagar
para desfrutar de companhia fugaz e arriscada"? Que problemas,
acrescento, traria a ideia de pensar que um idoso pode experimentar práticas
fugazes e arriscadas? Este é outro ponto que encontrou ancoragem em meu
trabalho de campo, ao discutir as sociabilidades que são marcadas de forma
evidente pela impessoalidade do contato erótico e sexual, pelo risco real que
integra em certa medida o imaginário do homoerotismo.
Como indica Horácio Sívori (2005), não são somente formas de dominação e de
resistência, mas também a criatividade de sujeitos, colocados em uma particular
situação de subalternidade instituída no interior da norma (homo) sexual que
passaria a ser estranhada, ao considerarmos algumas cenas dentro da própria
margem do vasto território das práticas de uma minoria sexual'.
Diante de uma agonística do envelhecimento encontramos o idoso que surpreende.
O idoso que, sacudido pelos discursos que definem o envelhecimento como
categoria de pertencimento a abjeção, se agita e ousa dizer seu nome (e talvez
sua idade), em uma situação dita pouco aconselhável' ' vivendo a sexualidade
na zona dos prazeres desviados'. Embalado por esse encontro, perguntei- -me
constantemente: não poderíamos pensar as práticas em torno do sexo entre homens
e do homo/erotismo como uma forma de contestar todo esse desinvestimento em
relação ao idoso?
Estas interrogações acompanham a pesquisa que produzi ' uma problematização
sobre as tramas discursivas que se articulam no rastro e nas ruínas do projeto
da modernidade. A articulação de regimes discursivos que se organizam através
da gestão da vida, controle, deciframento', incitação do corpo, organização
espacial e institucional, toma particularmente a sexualidade como dispositivo
eficaz nos jogos de prescrição e de controle, evidenciando pedagogias ou modos
de aprender e viver a ideia de ser/parecer humano', considerando-se as idades
da vida como intersecções importantes.
Notas para concluir: derivas de um corpo em tese
Neste estudo procurei trazer à cena o escárnio de uma de suas medidas: a idade
(da juventude) como atributo de aparência, de felicidade' e de prazer. Mostrei
com interlocutores homossexuais idosos a idade que geme e sussurra nos jogos de
público e privado das tramas do prazer.
A idade é um regime discursivo e a velhice uma de suas performatividades '
corpo velho e homossexual como representação abjeta; que pode ser contestada,
mas também reedificada e apaziguada. Sua única continuidade, acredito, é a
disputa ' o desatino de um corpo que é tecido de poder/saber.
Assim, se as diversas cenas que compuseram o estudo amplo desta pesquisa são
representativas de resistência ou não, efêmeras, fugazes ou atitudes
politizadas, isso importa apenas como tela de vida ' isto é, significa que seus
protagonistas fazem rasgar a sua própria cena exibida na tela da pesquisa ' um
instante da vida social projetada no texto acadêmico. Nos seus cotidianos, pode
ser que reiterem uma norma, pode ser que a subvertam.
Meu problema é/foi a medida. E meu empenho é/foi pensar a norma. Os sujeitos da
pesquisa de campo não representam em seus movimentos a tradução de articulações
pós-identitárias ou grandes rupturas nos regimes de verdade sobre o gênero, mas
nos mostram a ficção e o esgotamento das formas de representação normativas e
desqualificantes.
A profusão de significados que cercam as cenas de sociabilidade que encontrei
tonteiam algumas linhas discursivas da norma e o corpo idoso passa a ser tocado
não pelas mãos da ciência, mas disputado entre o mercado gay e os desejos
eróticos pelo corpo ou a figura de um homem de mais idade.
O corpo do velho como monstruosidade e abjeção é contestado no instante mesmo
em que os enunciados desqualificantes mudam de lugar, produzindo para si outras
possibilidades de representação ' vestindo outros figurinos e jeitos de viver
esta cena. Noutros momentos, cabe ressaltar, estas figuras podem deslizar em
uma nova norma, no interior da própria cena de contestação ' no interior da
decoração deste novo cenário de si.
Este trabalho de pesquisa se constitui como um estudo de exceção, um ensaio
sobre os estiramentos/rasgos nas normas diante da normal-idade e nas
prescrições morais que cercam a experiência da subjetivação através da
sexualidade e gênero em interseccionalidades.
Pudemos encontrar algumas pistas sobre os modos como se engendram e como se
materializam os regimes discursivos em torno da coerência corpo- -gênero-
sexualidade, uma dentre as linhas de inteligibilidade que segue, no rastro do
projeto arruinado da modernidade. Estas são inquietações para revisitar
concepções de envelhecimento e sobre o status de humanidade que é definido a
partir de certas regulações e normas.
O corpo pleno, veloz, dinâmico é o corpo da utopia biopolítica do projeto
moderno, um corpo que não chega a ser alcançado. É um corpo planejado,
desenhado, calculado, medido, mas não é mais do que ficção. O corpo pode ser
entendido como uma ficção política, forjada e tecida em dispositivos de gênero,
sexualidade, idade, tamanho, forma, peso, raça Afinal, quais são as marcas
obrigatórias que devemos portar para acedermos ao status de humanos, o que é
necessário aparentar, ser, dizer, para que alguém ou alguma relação seja
considerada como socialmente reconhecida?
Um dos interlocutores da pesquisa, freqüentador da prostituição nos auxilia
nessa problematização. Dionísio nos oferece uma perspectiva diante das dobras
subjetivas que um homem cliente idoso tem de fazer:
Eu tenho que viver a vida com a cabeça de homem de 100 anos e com
comportamento de 25. Que é o que eles querem. Eu não vou dizer para
ele: ai, eu estou com dor nos meus rins ai, eu não posso caminhar,
eu to com tosse Isso é coisa de velho. De velho que já entregou os
pontos. Eu cuido dos meus olhos, dos meus dentes, da minha aparência,
da roupa que eu uso. Eu cuido da vida dele, do comportamento dele, da
educação dele. Então, eu sou um pai, um amigo, um amante e um irmão
ao mesmo tempo. E o que ele é pra mim? Ele é o meu amor. Ele os meus
filhos já estão casados, tenho uma filha que estuda na França, ele é
meu filhão, é meu amor, é meu bebezão, é o meu tesão. Ele é tudo pra
mim, até o dia em que acabar (Dionísio, 69 anos).
A destreza de viver nas fronteiras pode bem ser o que nos aplaca diante da cena
dita suja' e devassa' que experimentam certos idosos. Mas com os idosos que
encontrei nos espaços de sociabilidade ditos orgásticos temos a aprender da
possibilidade de uma brecha no bloqueio da ficção política do corpo. Se estas
cenas aterrorizam' ou escandalizam', não seria por estarmos encarnados do
amor romântico branco burguês' e idadista?
Candido e André, outros interlocutores da pesquisa na zona de prostituição,
argumentam:
Porque hoje funciona diferente comigo a relação, a transa. Ela é
diferente. Por que hoje, quando eu estou com um menino, um menino de
programa, numa cama Como ontem eu tive experiência: quando cheguei
eu peguei e disse isso pra ele: eu não quero nada rápido. Eu quero
sentir, eu quero presença, eu quero Já que é tão agradável conversar
contigo aqui, que seja agradável lá também na privacidade. (Cândido,
63 anos)
( ) não ter o reconhecimento, isso é muito triste. É doloroso. Cada
vez que eu faço um show para o povo hétero, eles me aplaudem de pé,
eu venho às lágrimas. Cada vez que eu me lembro de que eu, não
somente eu, mas todos os artistas gays da minha época estão chaveados
no armário, eu tenho vontade de morrer (Dionísio, 69 anos).
De costas para uma norma, a cena dos idosos em saunas e clubes pornôs é apenas
uma abertura espaço-temporal onde as pessoas encontram algum prazer, negociando
e/ou contestando as mentiras brancas' que muitos são obrigados a recitar para
a suposta inteligibilidade das idades da vida. Segundo Cândido, interlocutor já
citado:
Sem hipocrisia. Muitas vezes eu vou ali e não vou fazer programa com
ninguém, nem tenho intenção de fazer programa com ninguém Eu vou
mais para estar com um grupo, de pessoas da minha idade, que também
estão sem parceiro e saem na noite para conversar, para passar
algumas horas. Ao menos, eu penso: não estou saindo pra fazer sexo. E
tem noites que saio, realmente, com um objetivo, porque existe também
todo esse fator biológico, não sei se é biológico, psicológico, seja
lá o que for, mas (risos) (Cândido, 63 anos).
No rastro de uma cena orgiástica no centro da Cidade de Porto Alegre sussurram
corpos ardentes e prazeres dissidentes, sujando' os lençóis brancos da
invenção moderna de humanidade.
A experiência de Cândido, para quem dedico este trabalho in memoriam, parece
trazer um pouco desta re/invenção, fechando-abrindo as apostas e hipóteses
deste estudo como uma fotografia de um espaço-tempo de prazeres, dores,
alegrias e amizade:
Eu saí outro dia com um jovem e ele disse: deixa eu te olhar, eu
gosto de te olhar. Eu gosto de estar na cama com pessoas mais velhas
(Cândido, 63 anos).