O olhar político feminista na performance artística autobiográfica
Introdução
Os percursos históricos da performance artística e dos movimentos feministas
têm estado profundamente interligados, com particular evidência nos Estado
Unidos, a partir da década de 1970. Esta forte ligação tem proporcionado
importantes contributos mútuos para o enriquecimento e sofisticação de novas
perspetivas em ambos os campos, numa relação simbiótica, por vezes controversa,
mas que nem sempre recebe adequada atenção e sistematização (cf. Heddon, 2006).
Contudo, a rápida expansão da teoria feminista fez com que esta cedo chegasse
ao teatro e à performance artística, saindo também muito reforçada desta
profícua relação (Carlson, 1997). São disso prova os ainda influentes trabalhos
de Sue-Ellen Case (1988), Jill Dolan, (1991), Peggy Phelan (1993), Elin Diamond
(1997) e, de forma mais indireta mas com inúmeras implicações epistemológicas e
práticas, a proposta queer de Judith Butler (1990).
Uma das primeiras evidências da vantagem e necessidade de pôr em diálogo
artistas da performance e académicas feministas foi o lançamento, em 1983, da
revista Women & Performance: a journal of feminist theory. No editorial
inaugural, Jill Dolan explica que a reformulação feita pelas performers e
académicas das "maneiras estabelecidas de estudo e apresentação do
trabalho criativo" tem permitido "desafiar continuamente a maneira
pela qual fomos ensinadas a olhar para nós próprias e para os outros"1
(Dolan, 1983: 3). Por conseguinte, este jornal constitui "uma
ferramenta" que pretende perpetuar o diálogo entre performers e teóricas,
retirando-as do "isolamento" e do esquecimento por parte dos media,
conferindo-lhes uma voz "mais alta, mais articulada ( ) na cultura"
e testemunhando o "legado da criatividade feminina", enquanto
"moldadoras de performance, inventoras de significado, criadoras de
cultura" (Idem: 3). Esta tendência rapidamente contagiará o Women and
Theatre Program da American Theatre Association, que passa a manifestar
preocupações mais teóricas e feministas, desenvolvendo uma profícua relação com
a Women & Performance (Blair, 1989).
Mais recentemente, contudo, tem surgido uma curiosidade pela constância desta
relação e um renovado interesse no poder transformador da performance (cf.
Dolan, 2005,2007; Fischer-Lichte, 2008), bem como um fascínio pelo alcance
político e o simbolismo de resistência associado às primeiras performances
artísticas feministas das décadas de 1960 e 1970 (Rosenberg, 2007, 2009). Os
recentes projetos Once More with Feeling2 e RE.ACT.FEMINISM: a performing
archive3 ilustram bem a tendência de retorno a esta performance artística
feminista inicial (cf. Fox, 2010; reactfeminism.org , 2012).
Sendo plausível que este renovado interesse feminista pela performance
artística enquanto mecanismo político possa inserir-se numa estratégia possível
da designada 3ª Vaga do Feminismo (Kaplan, 1992)4, marcadamente construcionista
e focada na produção de conhecimento (cf. Starr, 2000), importa explorar melhor
como tem sido atualmente articulada esta relação e perscrutar o seu reflexo nas
performances artísticas criadas por mulheres. Neste sentido, analisaremos ao
longo deste artigo, a título de exemplo, algumas obras da performer portuguesa
Carlota Lagido.
Propostas teóricas sobre a interseção da performance feminista autobiográfica e
os movimentos feministas
Marvin Carlson (1996/2004) refere uma viragem social na performance artística
durante a década de 1970, com uma maior preocupação e envolvimento em temas de
cariz social e um consequente afastamento das questões mais estético-formais.
Estes novos tipos de performance artística são agrupados, grosso modo, sob a
designação de performance de identidade e performance cultural.
No primeiro tipo, Carlson salienta que a temática da identidade foi desde
sempre tão central na prática e teoria da performance, que é considerada por
muitos como o tema emblemático da arte da performance em geral. Associada com a
construção e/ou exploração da identidade pessoal, focava-se, inicialmente, nas
preocupações, desejos e até visibilidade dos/das que eram normalmente
excluídos/as, dos contextos artísticos instituídos ou dominantes, como o teatro
tradicional e a performance moderna-formalista, devido ao género, classe social
ou etnia (Carlson, 1996). Neste contexto destacam-se, quer pelo pioneirismo,
quer pelo grau de elaboração, as performances artísticas realizadas por
mulheres que, mais tarde, justificarão a emergência da designada performance
feminista (Carlson, 2004).
A performance cultural trata-se, afinal, de uma expansão da performance da
identidade, sempre empenhada em dar voz aos "indivíduos e grupos
previamente silenciados", mas agora dirigida menos para "a
exploração de expressão da identidade do indivíduo" e mais para o
"contexto social e cultural no qual esse individual deve operar"
(Idem, 2004: 179). A performance, que começa a ser entendida como um modo de
ação cultural e sítio de "renegociação de experiências e significados
" (Zarilli, 2007: 109), promove na performance artística o interesse em
explorar os modos de subjetivação e em assumir-se como performance de
resistência, questionando criticamente e resistindo aos modelos culturais
dominantes de comportamento e de constituição dos sujeitos. Uma vez mais, as
performances desenvolvidas por mulheres e/ou performances feministas assumem
aqui um importante protagonismo (Carlson, 1997; 2004).
A diversidade de posturas feministas, que carateriza a 2ª Vaga do Feminismo
(Nogueira, 2001), traz uma nova direção às reivindicações das mulheres, na
medida em que, ao criticar a sua posição na família, na sociedade e na esfera
pública e privada, os discursos feministas adquirem poderosos argumentos
políticos que lhes conferem significativa capacidade interventiva na ordem
social. Neste contexto, a máxima avançada por Carol Hanisch (1970), O Pessoal é
Político, condensa um forte argumento reivindicativo destes movimentos de
libertação das mulheres, rapidamente popularizado. Com o intuito de intervir em
todas as áreas onde as mulheres estavam excluídas, exigindo igualdade na
educação e no trabalho, o debate contestatário abarca também as relações dentro
da esfera privada, defendendo-se o acesso a uma sexualidade autodeterminada e a
divisão do trabalho doméstico (Oliveira, 2009).
Joan B. Landes (1998) salienta que, de entre os movimentos contestatários
modernos, o feminismo é aquele que mais contribuiu para o entendimento
aprofundado dos efeitos históricos, simbólicos e práticos da organização da
vida pública e privada, por ter desafiado ousadamente os mitos que dão suporte
às convenções de família e de vida pessoal. Ao contrário da ideia então
veiculada de que a vida privada constituía para as mulheres uma plataforma de
realização e satisfação pessoal, as feministas denunciam a esfera privada como
sítio de desigualdade sexual, trabalho não remunerado e fonte de grande
descontentamento para as mulheres. Por isso, empenham-se em dar voz pública ao
desespero privado das mulheres e a indicar uma saída para o seu isolamento
privado, através do ativismo público e denúncia dos problemas que emanam nos e
dos múltiplos papéis da mulher enquanto esposa, mãe, companheira sexual,
trabalhadora e sujeito político. Por conseguinte, a teoria que acompanha esta
nova fase do ativismo feminista elege o problema da subordinação sexual como
estando fortemente ligado com a divisão da vida pública e privada.
Após o intenso questionamento em torno das caraterísticas da vida privada nos
finais da década de 1960 e durante a de 1970, reaparecem frequentes referências
ao privado no discurso público a partir dos anos 90. Desta feita, encontramos
críticos e defensores do corpo, da família e das questões do género a
reclamarem espaço público, enquanto vários setores do espectro político
manifestam preocupação com os temas da privacidade, havendo ainda vozes que, ao
mesmo tempo que defendem o individual, advogam também o uso do poder de estado
para regular o corpo do indivíduo e para restringir a liberdade pessoal
(Landes, 1998). Neste contexto, muitas feministas continuam empenhadas em
demonstrar o quanto a linha entre o público e o privado tem sido, e continuará
a ser, constantemente renegociada (Benhabib, 1998).
Contudo, o lema O Pessoal é Político tem sofrido várias interpretações e usos,
produzindo, desde cedo, "ambiguidades e contradições" (Zimmerman,
1975: 254). Sheila Rowbotham, Lynne Segal e Hilary Wainwright (1980) advertem
para os perigos contidos na generalização desta afirmação, por reforçar uma
interpretação ameaçadora do lema, já que seja o que for que façamos, essas
ações têm significação política. Perante esta possível interpretação de
constante policiamento, em que o pessoal é policiado, o lema tem merecido novas
leituras e discussões a partir da chamada 3ª Vaga de Feminismo. No geral, tem-
se redefinido o pessoal como político, na medida em o pessoal é um direito
político, no sentido em que as liberdades individuais e os desejos individuais
requerem um empowerment político, pelo que "podes ser político sendo quem
tu és!" (Wong, 2003: 296). Contudo, os posicionamentos a este respeito
continuam múltiplos, havendo contantes alertas para o facto das escolhas
pessoais não quererem implicar, obrigatoriamente, uma ação política. No caso
específico da performance autobiográfica, há críticas no sentido de que o
pensamento e testemunho pessoais não são suficientes para ter um argumento
político (cf. Baumgardner e Richards, 2000), já que "a revelação pública
da experiência pessoal não é em si mesma, necessariamente e sempre, um ato
político" (Heddon, 2006: 132). Por outro lado, as novas conceções
políticas do que é pessoal têm motivado importantes reflexões sobre a
emergência das ideologias pós-feministas, como as de Angela McRobbie (2009). As
políticas neoliberais, ao veicularem conceitos ilusórios de responsabilidade
pessoal, empowerment e escolha pessoal, promovem afinal uma individualização da
mulher, reinstalando "hierarquias de género" e "novas formas
de poder patriarcal" (Idem, 2009: 47).
Não obstante toda a complexidade do tema, é inegável que esta reflexão sobre a
dimensão política do que é pessoal e a distinção público/privado se tem
revelado uma lente fundamental a partir da qual todo pensamento contemporâneo é
perspetivado, nomeadamente a discussão alargada sobre os modos contemporâneos
de subjetivação (cf. Blackman et al., 2008).
A este respeito, a performance artística de vertente autobiográfica,
autorreferencial ou centrada nas experiências pessoais d@s artistas revela-se
como fonte preferencial de reflexão, prática e teorização para os movimentos
feministas. A base deste interesse está nas dimensões sociais e políticas que o
material autobiográfico pode assumir (Forte, 1988). Para Catherine Elwes é
precisamente a insistência no pessoal e no específico que une muita da
performance artística feminista, e também o que lhe permite a reivindicação
principal de eficácia social e política, já que "combina autoria ativa e
um meio ilusório para afirmar a sua presença irrefutável (um ato de feminismo)
num ambiente hostil (patriarcal)" (Elwes, 1985: 162). Interessa, por
isso, determo-nos um pouco na evolução histórica deste tipo particular da
performance feminista.
A origem autobiográfica e política da performance artística feminista
As mulheres estão muito envolvidas na criação de um tipo específico de
performance artística a partir da década de 1960, tendo contribuído de forma
decisiva para o estabelecimento da arte da performance enquanto atividade
artística autónoma na década de 1970 (Carlson, 2004). As fundações mais
imediatas desta nova forma de expressão artística encontram-se em abordagens
inovadoras nas artes visuais e no movimento da nova dança, onde as mulheres
tiveram grande protagonismo, destacando-se artistas como Yvonne Rainer, Carolle
Schneemann, Trisha Brown, várias performers associadas com a Judson Dance e
outras associadas ao Fluxus, tais como Alison Knowles ou Yoko Ono (Goldberg,
2007).
No entanto, pouca desta performance se dirigia diretamente aos temas sociais ou
de género, com exceção de um pequeno grupo de artistas (e.g., Yvonne Rainer,
Carolee Schneemann, Yoko Ono), cujos trabalhos iam claramente nesta direção,
ainda que enfrentassem considerável resistência por parte dos seus pares. Obras
como Cut Piece, de 1964, na qual Yoko Ono se sentava passivamente enquanto
pessoas da audiência lhe cortavam as roupas, perspetivavam a violação pessoal e
a violência de uma maneira distintamente mais feminista do que aquela revelada
pelos artistas da body art homens, com grande destaque na altura. Mas é o
movimento feminista no início da década de 1970 que vem forneceu o clima
favorável para o florescimento do trabalho performativo feminista,
particularmente preocupado com a experiência privada e pública das mulheres5
(Carlson, 2004).
As primeiras performances deste tipo caraterizam-se por comentários pessoais e
psicológicos acompanhados por ações físicas específicas e repetitivas
associadas com a experiência das mulheres, salientando o peso das atividades
não satisfatórias impostas às mulheres. Outras, por sua vez, inspiravam num
crescente corpo de pesquisa sobre aspetos místicos e míticos do feminino,
relacionando esse material com a experiência (Idem, 2004).
Na Europa, aparecem os primeiros trabalhos de Gina Payne e Marina Abramovic que
usam os seus próprios corpos como material artístico em rituais que envolviam
dor física, de forma a sensibilizar "uma sociedade anestesiada" ou
a denunciarem a "agressão passiva entre os indivíduos" (Goldberg,
2007: 209).
Em The Amazing Decade, Moira Roth (1983) distinguiu 3 principais orientações na
performance artística feita por mulheres na década de 1970: 1) performance
relacionada com a experiência pessoal das mulheres; 2) a relacionada com o
passado coletivo das mulheres; 3) a relacionada com a exploração de estratégias
de ativismo feminista específico. Enquanto as duas primeiras situações se
relacionam com o ímpeto do movimento das mulheres em usar a arte da performance
para compreender melhor a situação das mulheres, em geral, na sociedade e na
história, a terceira manifesta claramente a sua necessidade de ação e
intervenção política.
Quando a performance ritualizada e ligada aos mitos começou a ser abandonada no
início da década de 1980, a autobiografia e as experiências pessoais
mantiveram- se muito presentes na performance artística feita por mulheres,
sendo considerada a orientação mais típica da performance feminista (Forte,
1988).
Para além da performance entendida claramente como autobiográfica, há que
considerar outros tipos de performance auto exploratória, como o caso da
performance artística de personagem ou persona, muito utilizada no âmbito da
performance feminista. Aqui não interessa diretamente a autobiografia ou
experiências de vida-real, mas a exploração, através da performance, de selves
alternativos, imaginários ou míticos6 (Carlson, 2004). O trabalho de Eleanor
Antin é ilustrativo deste tipo de criações7. Interessada na realidade da
natureza humana, nas fronteiras e capacidade transformacional do self, usou
principalmente o seu próprio corpo e experiência enquanto matéria-prima
(Brunham, 1989).
O self, autoimagem e self social eram preocupações igualmente centrais para o
movimento de mulheres emergente neste período e a performance artística
constituía um importante laboratório para a desconstrução da sua identidade e
sua consciencialização política, servindo, simultaneamente, como espaço de
expressão, ativismo e intervenção (Rosenberg, 2009; Forte, 1988; Martha Roth,
1983). Muit@s são @s crític@s e performers que reconheceram o imenso potencial
destas manifestações autobiográficas enquanto atos de protesto, resistência,
reinvenção, transformação ou sobrevivência (Heddon, 2006). Para Sidonie Smith
(1993), por exemplo, as práticas autobiográficas são oportunidades para colocar
a resistência em cena, enquanto bell hooks considera a autobiografia um ato
inerentemente político, uma vez que as "pessoas oprimidas resistem
identificando-se elas próprias como sujeitos, ao definirem a sua realidade,
moldarem a sua nova identidade, nomearem a sua história, contarem a sua
estória" (1989: 43).
Jeanie K. Forte (1988) defende efusivamente que toda a performance artística se
carateriza por uma intenção desconstrutiva, que a acompanha desde os anos
iniciais. É nesta lógica que a sua compreensão se tornou difícil, pois
pretende-se frustrar a análise crítica e impossibilitar a definição absoluta.
Trata-se afinal de uma rebelião contra a comodificação da arte, contra a
estrutura e instituições do modernismo e contra a cultura patriarcal dominante.
A partir desta ideia, Forte (1988) argumenta que foi a natureza abertamente
política que acompanha toda a performance artística realizada por mulheres, que
permitiu distinguir a performance feminista como subgénero reconhecível. Na
perspetiva da teoria feminista pós-moderna, a performance artística feita por
mulheres apresenta-se como inerentemente política (quer o seja abertamente ou
não), pois todas estas performances derivam da relação das mulheres com o
sistema dominante de repressão, o que as situa dentro de uma crítica feminista.
Por conseguinte, é inevitável o seu potencial disruptivo, já que estas mulheres
posicionam-se aqui como sujeitos do discurso, subvertendo a conceptualização
tradicional de um sujeito homem, único e unificado.
Expansão e sofisticação da estratégia de resistência na performance feminista
autobiográfica: posicionamentos materialistas, críticos e queer
As performances da resistência, teorizadas por Carlson (2004), estão em
articulação tanto com performances de identidade, como com as performances
culturais. Contudo, as de resistência inspiraram-se em movimentos artísticos e
sociais contestatários da década de 1960, mais radicais e politizados, e em
abordagens feministas diferentes das que estiveram mais associadas com as
performances de identidade. Uma importante influência foram as estratégias
performativas da guerrilha radical e do teatro de rua, havendo mulheres
performers a introduzirem estas mesmas estratégias e temáticas nas suas
performances artísticas. O teatro de guerrilha feminista aparece em várias
demonstrações públicas, mais ou menos organizadas, que mereceram grande
publicidade na altura8. Estas, como outras performances de ativismo social
emergentes correspondem a essa evolução dentro do movimento feminista em termos
do desenvolvimento teórico e discurso político (Rosenberg, 2009).
Sob influência do pensamento materialista que procura expor as operações de
poder e opressão existentes na sociedade, as pensadoras e performers feministas
interessam-se em questionar, expor e desmantelar os pressupostos e construções
sociais, culturais e estéticas que governam os papéis tradicionais de género,
encenações do corpo e performances de género, quer no contexto artístico, quer
nos contextos do quotidiano, despertando novas discussões em torno da
problemática público/privado (Carlson, 2004).
A teoria da subjetividade de Jacques Lacan torna-se igualmente relevante neste
período, ao colocar o Homem na posição de Sujeito no sistema de representação
ocidental tradicional. A arte visual e as artes do espetáculo tradicionais
estão baseadas neste sistema patriarcal que assume o Homem como espetador e a
Mulher como o Outro, ou seja, o objeto de contemplação desejosa do Homem
(Carlson, 1997). A este propósito, Sue-Ellen Case (1988) salienta que as
mulheres não têm os mecanismos culturais de significado que as permitam
constituírem-se como sujeitos e não o objeto da performance. Por conseguinte, o
palco, sítio objetivado para a realização do Desejo, torna a Mulher que aí se
reapresenta numa "espécie de cortesã cultural" (Case, 1988: 120).
Consequentemente, nas duas últimas décadas do século XX, a performance
artística feita por mulheres desafia e confronta este sistema de representação,
estabelecendo a mulher performer como um sujeito falante, fenómeno que o
sistema nega (Forte, 1988; Zimmer, 1995). Neste contexto, a performance física
é vista como possibilidade de escapar àquilo que Kristeva (1980) chama de
lógica simbólica e linguagem discursiva do pai, em contraponto com a poética
semiótica e linguagem física da mãe, logo a utilização do corpo na performance
fornece não só uma maneira alternativa de conhecimento, mas uma subversão
necessária à ordem simbólica dominante da linguagem (Roth, 1983).
Entretanto, na década de 1990, assistimos a um renovado interesse pela body art
na performance artística, tal como tinha acontecido nos anos 70, refletindo,
contudo, preocupações e temáticas diferentes, em que se explora a relação entre
o corpo em sofrimento e a construção da identidade (Carlson, 2004). De entre
estas performances destaca-se a performer ORLAN, cujos projetos envolvendo
cirurgias plásticas continuadas, não sendo expressões de dor, pretendem antes
constituírem- se como comentários sobre a formação social dos corpos das
mulheres, das suas imagens sociais e culturais, especialmente as prostitutas e
as santas (Clarke, 1999).
Apesar destas obras se terem revelado particularmente úteis para as reflexões
feministas contemporâneas, algumas das primeiras reações feministas marxistas à
body art foram muito negativas, acusando estes trabalhos de um essencialismo
naïve e reacionário, por participarem da dinâmica falocêntrica do fetichismo
associado ao corpo da mulher (cf. Amelia Jones, 1998). Paralelamente, coloca-se
o problema de saber como utilizar a representação e a performance artística
nesta perspetiva feminista, uma vez que ambas estão profundamente envolvidas
nos pressupostos culturais que se querem desafiar. O corpo da mulher,
profundamente inscrito como objeto no sistema representacional, e o espaço da
performance, impregnado pelas políticas de género, faz com que as mulheres
respondam sempre "perante os padrões de exibição aceitável definidos pelo
homem", reinscrevendo sempre as suas performances nesse sistema (Jill
Dolan, 1989: 28).
Emergindo da Nova Dança Portuguesa9, Carlota Lagido propõe uma interessante
reflexão a propósito da posição da Mulher neste sistema representacional, num
dos seus primeiros trabalhos de performance artística a solo:
notforgetnotforgive (1999). Nesta obra, estreada na casa de banho dos homens no
Teatro Carlos Alberto (Porto), a performer canta Boys in the backroom,
originalmente interpretada por Marlene Dietrich, enquanto um papagaio
artificial que tem na mão a interrompe, repetindo e distorcendo a mesma canção.
Guarda-roupa e penteado são consonantes com a intenção de recrear uma memória
cinemática de uma mulher situada num determinado período histórico (algures
entre 1930 e 1960). A letra da canção, a persona criada e o contexto espacial
da performance conferem um posicionamento político contra um mundo
crescentemente amnésico e a figura moralista do perdão, manifestando a recusa
em esquecer e perdoar, e concentrando esta questão na Mulher, sua imagem e
representação nas artes e na sociedade. As referências autobiográficas são
subtis, mas encontram-se, em parte, no seu longo percurso pela dança. Como
mostra João Manuel Oliveira (2011a), a fantasmagoria a que Lagido recorre
corresponde a uma estratégia de invocação da ideia da femme fatale, aqui
repetida distorcidamente, mantendo a performer uma relação de aliança com essa
figura, mas não de identidade, por via da performatividade.
Este dilema relativo à representação da Mulher tem desencadeado uma variedade
de respostas performativas e teóricas: a performance, particularmente a pós-
moderna, concebida como representação sem reprodução, procura romper a
tentativa totalizante do olhar e as convenções da perceção, permitindo um
panorama representacional mais diversificado e inclusivo (Dolan, 1989); o
feminismo pós-estruturalista recorre à descentração pós-moderna do sujeito para
encorajar as performers e espectadores a pensarem criticamente sobre o aparato
tradicional da representação, incluindo a relação particular sujeito/objeto
(Idem, 1989; Phelan, 1993).
Neste contexto, o trabalho de Judith Butler (1988; 1990; 1993) tornou-se
particularmente influenciador, ao perspetivar o género não como um atributo
social ou cultural, mas como categoria construída de forma performativa. Esta
caraterística de performatividade que o género apresenta remete para um fazer,
que não consiste em atos ou acontecimentos singulares, mas numa produção
ritualizada, reiterada e controlada por um conjunto de constrangimentos sociais
(e.g., proibição, tabu, ostracismo ou até morte). Apesar de parecer não haver
aqui lugar para desafiar ou alterar as categorias de género fornecidas pela
sociedade, uma vez que não dependem da iniciativa ou escolha do sujeito prévia
à performance da identidade, há uma possibilidade, e até uma tendência, de
alteração e modificação neste processo de repetição (i.e., reiteração, citação)
das performances de género (Oliveira, 2011b). Para isso, Butler recorre ao
conceito de citação de Derrida (2001/1978) e à ideia de deslize na repetição,
pois nenhuma citação consegue ser repetida com total precisão a partir do
original ausente, encontrando-se aí, portanto, um espaço para inovação (cf.
Rayner, 2008).
Butler inspira as estratégias e operações da performance de resistência, já que
a chave para resistir passa a ser entendida como tomar as ferramentas que a
cultura oferece e empregá-las numa outra direção, confiando na instabilidade da
repetição. Não evitando as representações tradicionais, altamente codificadas,
estas performances procuraram precisamente este tipo de material e sujeitam-no
a vários tipos de citação irónica, numa espécie de dupla-codificação política
(Carlson, 2004).
Contudo, as performances de mascarada10, que recorrem ao mimicry11 ou à citação
e subversão irónicas, correm sempre o perigo enunciado por Derrida (2001) a
propósito das operações desconstrutivas, que é o de simplesmente reinscrever,
reforçar ou reificar estas mesmas estruturas que pretende desconstruir. Trata-
se de um problema comum em muitas das performances políticas pós-modernas e
contemporâneas (Auslander, 1994; Jon Erickson, 1990).
Uma outra forma de resistir à receção convencional da performance surge na
estratégia mais radical de colocar a mulher na posição de sujeito de desejo da
performance em contraste com o papel passivo tradicionalmente atribuído às
mulheres como objeto do desejo dos homens" (Elwes, 1985). A este
respeito, a performance lésbica tem sido um dos campos mais férteis de
experimentação desta estratégica. Case (1989) sugere o sujeito feminino
heterossexual permanece aprisionado, na medida em que ainda é percebido na
perspetiva do homem. Por isso, a performance da mulher butch dentro e fora do
palco, apresenta-se como uma realização camp da teoria da mascarada contra a
essencialização dos papéis e narrativas sociais e teatrais12. Teresa de
Lauretis (1988), contudo, enfatiza outros problemas na ligação da teoria
lésbica e com a performance: 1) a dificuldade de definir uma forma autónoma de
sexualidade da mulher e um desejo livre da tradição Platónica; 2) a tendência
para identificar um espetador unificado; 3) a tentativa de alterar o
enquadramento de visibilidade, daquilo que podemos ver.
Cada uma destas áreas recebeu uma atenção crescente na performance e na teoria
feminista durante a década de 1990. O processo de alterar o que pode ser visto,
dar visibilidade e voz a fenómenos até agora excluídos (i.e., o desejo da
mulher; a subjetividade da mulher) tem sido uma preocupação central de muita da
performance feminista e teoria da performance, bem como da teoria e performance
lésbica e queer. As performances feministas contemporâneas têm-se aliado às
políticas de visibilidade na exploração de estratégias para lidar com estas
questões, como o jogo desestabilizador dos papéis sexuais (e.g., Butch/femme)
ou a exposição do espetador homem passivo e o retorno do seu olhar. Adotam
também um posicionamento crítico e uma consciência pós-moderna pautada pela
paródia, subversão e ironia, na revisitação de temas já antes tratados (e.g.,
corpo, nudez, representações das mulheres, papéis de género, sexualidades) à
luz das preocupações, tensões e pressupostos atuais (Carlson, 2004; Rosenberg,
2009).
Em Self (2004), Carlota Lagido consegue um sofisticado cruzamento de muitas
destas temáticas e preocupações estético-formais, simultaneamente feministas e
artísticas. Envolvendo múltiplos formatos expressivos (e.g., vídeo, canto,
dança), esta obra volta a receber influências do cinema, da body art e da
performance de persona. Tal como Eleanor Antin ou Cindy Sherman, centradas nos
limites e potencial transformacional do self, também Carlota Lagido recorre a
várias personae para explorar uma multiplicidade de selves espetrais, no que se
subentende ser uma espécie de retrato interno da artista. Aqui, o arco de
possibilidades existenciais vai desde figuras estereotipadas a outras de grande
singularidade e hibridismo, coabitando personagens de um universo cinemático
(e.g., Norma de Sunset Boulevard; the blonde killer) com múltiplos outros
personagens ou selves desta mulher. A alternância de imagens videogravadas e
presenciais dos corpos com identidades ambíguas faz emergir um complexo jogo
entre personae e intérpretes, real e ilusório, ausência e presença, Eu e o
Outro, apelando, simultaneamente, à desconstrução dos modos de ver e das
políticas de visibilidade. Trata-se ainda de uma reflexão aprofundada do
narcisismo como ponto de partida para a exploração pessoal e o entendimento da
dinâmica intersubjetiva, caraterística que Amelia Jones enfatiza a propósito da
body art feminista (cf. Jones, 1998).
O facto de, nesta obra, as personae serem interpretadas por dois homens (i.e.,
Miguel Bonneville e Francisco Camacho), remete também para um entendimento
butleriano e uma queerização do género, ao evidenciar o seu carácter de
performatividade e construção. Nesta recusa do binarismo de género/sexo e
subversão dos códigos instituídos de género, a criadora recorre ao cross-
dressing para trabalhar o hibridismo e a confusão de fronteiras. Noutros
trabalhos, contudo, Carlota Lagido pratica também drag king e outras maneiras
subtis de transgenderismo. Self aborda, afinal, uma série de temas recorrentes
no seu trabalho e tão pertinentes para os feminismos pós-estruturalistas e
queer, como a dissociação/dissipação do eu, do género e do sexo, a decadência,
falência ou destruição de referenciais e ícones.
Contexto atual da performance feminista autobiográfica
A prática da performance artística baseada no material pessoal e nas
experiências vividas pel@s criador@s continua a ser comum, particularmente na
performance feita por mulheres. Dee Heddon alega que, desde os finais da década
de 1980, muitos destes trabalhos têm sido "mais autorreflexivos na sua
re-presentação do Eu", salientando a "performatividade da
subjetividade e a construção do self ou múltiplos selves através e dentro da
autobiografia" (2006: 135). Recorrem, para isso, a estratégias que
permitam usar e criticar simultaneamente conceitos de identidade e experiência,
dificultando distinções entre verdade-ficção, personagemperformer ou self-
outro, e evitando posicionamentos absolutos, reconhecíveis ou essencialistas,
numa linha ténue entre a reificação da experiência real e a sua dissipação
(Idem).
Tal como em Self, estas mesmas estratégias e temas evidenciam-se noutra obra
mais recente de Lagido, The importance of nothing (2011), que aborda o tema do
corpo que permanece e se relaciona com a morte, em permanente esforço, dor e
desequilíbrio. Neste caso, o ambiente fantasmático e espectral da
multiplicidade de selves continua a estar presente, destacando-se o efeito
espiral e hipnótico da obra, recriado por técnicas estroboscópicas de luz e
som. A partir da visualização vídeo da destruição de uma árvore e sua
reconstrução no palco, vários fantasmas, obsessões e neuroses pessoais são
trabalhados numa espécie de duplo movimento de contrários, que perpassa toda a
peça e nos arrasta numa onda centrípeta para dentro do universo psíquico da
artista. A sua presença física cria, alternadamente, imagens penetrantes de
força e vigor, desenhadas por poses em staccato, com imagens inquietantes de
fragilidade e abandono, conseguidas através de suas aparições em contraluz,
sugerindo a volatilidade dos espectros. Os temas da ausência/presença,
desequilíbrio, abismo, ideia de dissipação, queda e fuga constantes aqui
tratados, alicerçam-se nas suas experiências de vida, particularmente marcada
pelo ambiente misógino da dança e pelo trabalho físico torturante, através do
qual procurou, em vão, dominar um corpo ansioso e intenso de mulher.
Contudo, estas "estratégias desestabilizadoras" e a
"instabilidade destes selves que nos habitam" não apagam o impacto
real das condições materiais que nos rodeiam, pelo que se justifica o interesse
político continuado no material autobiográfico, pois torna visível e aumenta a
consciencialização desta materialidade da vida (Heddon, 2006: 135). Exemplo
deste interesse persistente é a reapropriação da credibilidade política das
performances autobiográficas feministas iniciais, a que se tem assistido nos
últimos anos (Rosenberg, 2009; Heddon, 2006). Numa análise ao panorama atual da
performance artística feita por mulheres na Suécia, Tiina Rosenberg (2007)
salienta que há uma ligação entre estas performances e a tradição feminista
precedente, devido ao forte elemento autobiográfico e à centralidade temática
do corpo. Esta ligação13 manifesta um tipo de solidariedade intergeracional
feminista que permite preservar uma memória e legado dialogantes com o
presente14, de forma a lidar com questões e conflitos políticos e intelectuais
ainda em aberto.
Não obstante algumas vozes no meio artístico afirmarem um acentuado decréscimo
deste tipo de criações nos últimos anos, na sua pesquisa de reconhecimento da
performance autobiográfica nova-iorquina contemporânea Heddon concluiu que: 1)
os espetáculos publicitados a que teve acesso integravam "muitas
performances ao vivo baseadas em material autobiográfico"; 2) estas
performances eram normalmente apresentadas como sendo "honestas,
humorísticas e divertidas"; 3) agora circulam em espaços reservados para
produções pouco financiadas, em vez dos espaços reservados para performances
experimentais das décadas anteriores (2006: 137). Para esta autora é
inevitável, contudo, contextualizar estas performances baseadas em material
pessoal numa cultura ocidental mais vasta, "saturada de oportunidades
confessionais" fornecidas pelos reality shows televisivos, onde se
"incita à revelação pessoal" como "estratégia para assegurar
ratings de sucesso" (Idem: 141). Esta comodificação do pessoal pode, de
facto, desvirtuar o significado do lema ' O Pessoal é Político ' tornando a
performance autobiográfica pouco eficaz enquanto instrumento político. Contudo,
Heddon (Idem) recorda a performance artística foi formalmente desafiante desde
o seu início, integrando o experimentalismo formal nos objetivos políticos do
trabalho, pelo que esta poderá continuar a ser a maneira mais eficaz da
performance artística autobiográfica se diferenciar desta exploração comercial
do pessoal. Por outro lado, a agenda política radicalmente conservadora que se
tem instalado em muitos países ocidentais tem justificado o retorno ao pessoal
como forma de aumentar a consciencialização e o ativismo. No entanto, perante o
panorama atual é difícil detetar e analisar o carácter político de qualquer uso
do pessoal na performance, já que essa análise dependerá sempre do conteúdo
como da forma, bem como de quem o usa, quem o testemunha, onde e quando (Idem).
De acordo com Tiina Rosenberg (2009) podemos contextualizar o renovado
interesse pelo carácter político das performances feministas autobiográficas na
revitalização da arte política e nas estratégias estéticas de contracultura
mais próximas do quotidiano, emergentes nos finais da década de 1990 e que têm
persistido no século XXI. Perante a agressividade das políticas económicas
neoliberais de direita, a pretensa guerra contra o terrorismo, as mudanças
climatéricas e o aumento globalizado da injustiça, iniquidade e pobreza, a
teoria marxista tem sido de novo evocada e reintegrada na teoria crítica,
políticas feministas e na performance artística (Idem). Junte-se a esta equação
os efeitos diretos da globalização nas condições sociais e políticas das
mulheres, que agravam situações de opressão, mas que, paradoxalmente, denunciam
e alertam para uma multiplicidade de realidades problemáticas vividas por
mulheres nas mais diferentes etnias e culturas (cf. Aston & Case, 2007).
Por sua vez, estas alterações têm justificado uma viragem mais solidária na
teoria feminista, ou seja, tornou-se mais afetiva e social, com repercussões
semelhantes nas performances feministas que, não obstante as continuidades,
recorrem a novas abordagens e meios estéticos de expressão (Rosenberg, 2009).
Encontrando suporte teórico nos trabalhos de Sara Ahmed (2004) e Ann Cvetkovich
(2003), Rosenberg (2009; 2007) defende que a performance artística feminista
contemporânea surge, deste modo, como um meio de politizar e demonstrar a raiva
e frustração sentidas por muitas feministas. A ideia de que o especto emocional
dos feminismos varia, sobretudo, entre a raiva e dor, sendo a raiva uma reação
ao carácter injusto e errado desta dor, vem da teoria de Ahmed (2004), que
considera ser esta raiva que alimenta o ativismo feminista e queer. Contudo,
este ativismo impede que estes movimentos fiquem pelos sentimentos negativos,
na medida em que permite transformá-los num novo poder feminista e queer.
Cvetkovich (2003), por seu lado, defende que esta diluição de fronteiras entre
sentimentos positivos e negativos leva a novas formações culturais, incluindo
novas perspetivas feministas e queer, sem que os participantes destas culturas
se sintam vítimas, uma vez que a raiva e o poder são politizadas e
transformadas em ação decisiva.
Perante a constatação desta estética feminista ativista entre as jovens
performers suecas, Rosenberg (2009) inspira-se nas artistas ativistas
feministas, na noção de solidariedade praticada e descolonizada de Mohanty
(2003) e no conceito de intelectual orgânico de Antonio Gramsci (1971) para
defender a importância de interligar os movimentos sociais, a academia e as
artes, nesta forma de ativismo político que mistura autobiografia, body art e
questões do quotidiano vivido pelas mulheres.
Conclusão
A constância e o carácter simbiótico da relação entre os feminismos e a
performance artística evidenciam-se e têm justificado uma análise atenta e
continuada das suas implicações artísticas, teóricas e políticas, como nos
revelam estudos retrospetivos, como os de Rosenberg (2007; 2009). A performance
artística autobiográfica, auto exploratória ou de caraterísticas
autorreferenciais desenvolvida por mulheres destaca-se como a mais relevante
neste produtivo intercâmbio de reflexões em torno dos modos existentes de
subjetivação das mulheres e de contributos para a construção de modos
alternativos. Neste contexto, a ferramenta metodológica mais útil da
performance artística autobiográfica é a inevitável negociação entre o privado
e o público ou o pessoal e o político, exercitando e praticando,
sistematicamente, o poderoso lema feminista, O Pessoal é Político. Tami Spry
(2003), por exemplo, refere-se à performance autobiográfica como "o lugar
de autoridade narrativa" que lhe confere o poder de reclamar e renomear a
sua voz e o seu corpo em privado, durante os ensaios, e depois publicamente,
nas performances. Isto permite-lhe "dizer o pessoalmente político em
público, o que tem sido libertador e torturante, mas sempre de alguma maneira
capacitante" (Idem: 169).
As especificidades estético-formais e temáticas da performance artística
autobiográfica feita por mulheres e a natureza política da sua relação com os
vários feminismos têm entusiasmado algumas teóricas e práticas deste tipo de
performance a avançarem com a proposta de um subgénero distinto de performance
artística, a performance feminista (i.e., Jeanie, 1988) ou, mais recentemente,
com o conceito de estética feminista ativista (i.e., Rosenberg, 2009).
Contudo, o alcance político desta associação parece ser maior ainda do que o
seu impacto estético, já que as recentes abordagens pós-estruturalistas e queer
têm permitido alargar este debate em torno da subjetivação das mulheres para
fora das ou transcendendo as restrições categoriais de género, sexo, cultura e
classe, enfatizando a multitude, performatividade e dimensão política dos
processos de subjetivação. Por outro lado, se é verdade que a comodificação do
pessoal nos media poderá prejudicar ou neutralizar a eficácia política mais
profunda da performance artística autobiográfica, é também verdade, como nos
lembra Heddon (2006), que a performance artística sempre se caraterizou pela
sua intencionalidade em desafiar os e resistir aos sistemas dominantes.
Portanto, a natureza e direção política no uso de material pessoal ou
autobiográfico nas performances, dependerá sempre desta intencionalidade, bem
como de uma série de outras variáveis, como as estratégias estético-formais
usadas.
Por todas estas razões, parece-nos fácil de concluir a favor da pertinência de
um estudo continuado e aprofundado sobre esta articulação entre abordagens
feministas e a prática da performance artística autobiográfica, que tem sido
reavivada ultimamente. Igualmente pertinente é aprofundar este mesmo estudo em
relação ao nosso país. O presente artigo pretende contribuir nesse sentido e
desafiar outr@s autor@s a explorarem e enriquecerem estas reflexões.