(Entre) olhares sobre delinquência no feminino
(Entre) olhares sobre delinquência no feminino
Looks on female delinquency
Regarde(s) sur la délinquance chez les filles
RÉSUMÉ
Cet article vise à établir un dialogue entre deux recherches qualitatives
menées auprès de filles impliquées dans la délinquance. Nous essayons de
réfléchir à la construction de l'(in)visibilité de la figure féminine au cadre
de la relation théoriquement cohérente entre la délinquance et le genre,
couvrant différents âges et des expressions de ce phénomène. Féminités
différentes sont vécues dans la délinquance, où le risque et l'expérimentation
apparaissent comme axes structurants de la plupart des actions. Non moins
importante est la féminisation identifiée dans l'apprentissage sociale de la
délinquance, fondamentalement concrétisé dans un cercle de parents ou de leurs
pairs.
Mots-clefs: enfants, jeunes, la délinquance féminine, genre.
Introdução
Os fenómenos desviantes, nas suas mais variadas formas, e onde se inclui a
delinquência de crianças e jovens, são componente estrutural nas dinâmicas
sociais de qualquer comunidade. Dificilmente podem ser abordados com base em
modelos de causalidade assentes em relações lineares potencialmente passíveis
de generalização como se de causas únicas e globais se pudesse falar,
ignorando-se a complexidade da vida social. A delinquência não é um fenómeno
exclusivo das sociedades contemporâneas; existiu desde sempre e em todos os
grupos sociais, variando apenas a forma como se carateriza e se torna visível
ao longo dos tempos. De igual modo, também a preocupação social sobre esta
problemática não é nova. No entanto, a atual dramatização e politização das
violências e do crime tendem a fazer crer que se está perante um cenário social
único, desvalorizando-se que não se trata de fenómenos novos; novos podem ser
alguns dos seus traços e das suas atuais dinâmicas, assim como dos contextos
onde se produzem.
Neste âmbito, assume especial relevância a emergência de um discurso público,
nacional e internacional, centrado no aparente aumento da prática de
delinquência por raparigas (Chesney-Lind, 1997; Burman, Batchelor e Brown,
2001; Steffensmeier, Schwartz, Zhong e Ackerman, 2005; Luke, 2008). Aparente,
pois a discussão sobre se estas tendências refletem um aumento real da
delinquência feminina ou mudanças nas respostas societais em função do género
permanece (Zahn et al., 2008).
Os cenários sociais postos em discussão pública tendem a reforçar o alarme
social3, promovendo a ideia que os jovens estão mais violentos; e se antes eram
os rapazes, agora são as raparigas. A discussão parece transvestir-se de
representações de género, que põem em causa padrões históricos e hegemónicos,
que associam o masculino à agressão física e ao exercício de autoridade e o
feminino à figura da vítima, passiva, desprovida de agencialidade4. Se é
verdade que as raparigas estão um pouco menos invisíveis no sistema de justiça
juvenil, a sua visibilidade na delinquência não tem sido acompanhada por uma
real atenção ao fenómeno, que continua a ser explicado essencialmente nos
parâmetros da etiologia da delinquência masculina.
Importa saber se as diferenças entre jovens do sexo masculino e do sexo
feminino registadas nas estatísticas oficiais da delinquência refletem padrões
de comportamento em função do género ou se não será antes esta dimensão a
condicionar o olhar diferenciado dos mecanismos formais de controlo social.
Como resultado, as raparigas podem ser alvo de intervenção em fase mais tardia
do que os rapazes, quando à visibilidade dos seus atos já se encontra associada
uma maior gravidade ou violência (Carvalho, 2003).
Aceitando o repto de estudos recentes (Chesney-Lind, 1997; Burman, Batchelor e
Brown, 2001; Luke, 2008; Matos, 2008; Duarte, 2012), que apontam a necessidade
de investigações exploratórias que tragam as vidas e as vozes das raparigas
para o centro do debate teórico-metodológico sobre delinquência, este é um
artigo escrito a duas mãos. Resulta do entrecruzamento de reflexões e das
conclusões obtidas nas investigações de doutoramento desenvolvidas pelas
autoras, entre olhares sobre a delinquência no feminino na infância e na
juventude. Após uma breve discussão sobre a pertinência teórica da variável
género no estudo da delinquência, coloca-se em discussão alguns dos principais
resultados obtidos nestas investigações, salientando diferentes expressões e
significados que este fenómeno assume junto de raparigas de diferentes idades.
Delinquência e género
Enquanto conceito socialmente construído por referência a normas, valores,
quadros socioculturais e jurídicos de uma sociedade, neste texto, a
delinquência é entendida como uma categoria do desvio reportada aos atos
desenvolvidos por crianças e jovens que, à luz das leis penais, configurariam a
prática de crime pela quebra ou violação do estabelecido nos normativos
jurídicos mas que, pela idade, se encontram numa situação de inimputabilidade
criminal, beneficiando de legislação específica em detrimento da aplicação de
um código penal (Carvalho, 2003).
A literatura científica evidencia que o género é uma das dimensões de
diferenciação mais consistentes na delinquência. Investigadores e
investigadoras de diferentes áreas científicas e países5, reconhecem que a
pesquisa realizada sobre esta matéria é insuficiente e têm mantido uma
perspetiva de género "por defeito"; ou seja, estabelece-se a figura
masculina como norma e invisibiliza-se a presença feminina. Desta forma, os
conteúdos de género têm sido virtualmente ignorados no estudo desta
problemática (Messerschmidt, 1997).
Durante décadas foi construída uma história única sobre a presença e a
participação da figura feminina na delinquência. Uma história de invisibilidade
social, reiterada na comunicação social, nos discursos públicos e políticos,
nas estatísticas e nos estudos científicos, assente na convicção de que os
desvios juvenis femininos são poucos, pouco importantes e não constituem
problema social. Estereótipos e preconceitos que perpetuam imagens e
representações eivadas de interpretações que sugerem a biologização, a
sexualização, a patologização e a masculinização dos comportamentos femininos.
Ao revisitar-se as teorias sociológicas sobre a delinquência de crianças e
jovens, conclui-se que o fenómeno é explicado a partir do enfoque na
delinquência masculina, secundarizando a figura feminina e o interesse que as
questões de género têm nesta temática. Duas situações têm prevalecido nas
teorias tradicionais: a figura feminina "submergida " nas
explicações da delinquência masculina e a delinquência feminina reduzida a
problemas de costumes e de moral sexual. As histórias, necessidades e
experiências da ofensora/agressora feminina têm sido (re)formuladas como
problemáticas, sob a imposição das premissas masculinas e dos estereótipos de
género sobre feminilidade e ofensa (Hannah-Moffat e O'Malley, 2007). Imagens
que criam mitos, mitos que se tornam práticas.
O interesse pela investigação empírica sobre a delinquência feminina faz-se
sentir desde a década 70 do século XX (Adler, 1970). Neste âmbito, a
polarização entre vitimação e agencialidade tem estado no centro da discussão
no sentido em que as raparigas não são apenas vítimas, mas também sujeitos
ativos na construção das suas próprias vidas. A emergência de uma literatura
mais sensível ao género e o incremento das investigações com raparigas em
conflito com a lei6 têm revelado importantes diferenças entre rapazes e
raparigas na prática de delinquência. Identificam-se especificidades atribuídas
aos modos de vida das raparigas que não devem ser desvalorizados e que
resultarão de uma construção identitária de género. Isto não significa que não
existam muitos traços sociais comuns quando se esboça o perfil de rapazes e de
raparigas recenseadas nos sistemas oficiais por motivo de delinquência; o que
mais parece diferir são as lógicas de ação, a natureza da atuação e de
envolvimento nos atos e a sensibilidade de exposição aos fatores de risco (Zahn
et al., 2010). Os preditores de risco associados à ação masculina não são os
mesmos quando aplicados às trajetórias femininas. De igual modo, nem a forma
como rapazes e raparigas dão sentido às coisas é semelhante, por serem
diferentes as representações e reproduções quotidianas do género (Chesney-Lind,
1997). Como defendem Nicole Piquero, et al. (2005), os processos delinquentes
são aparentemente semelhantes, mas variam qualitativamente nos modos e formas
como são vivenciados em função do género.
As investigações
Este é um texto que nasce da convergência dos projetos de investigação de
doutoramento das autoras. Um diálogo desafiante que pretende aprofundar a
discussão sobre diferentes dimensões e expressões das formas de viver a
delinquência no feminino7.
Vera Duarte (2012) desenvolveu uma pesquisa qualitativa, realizada em 2008 e
2009, que visou estudar as experiências e significados da transgressão nos
percursos de vida de raparigas em conflito com a lei. Assumindo como referente
empírico as jovens internadas em Centro Educativo e a executar medidas
tutelares educativas não institucionais, sob acompanhamento das Equipas
Tutelares Educativas da Direção-Geral de Reinserção Social8, da área da Grande
Lisboa, analisaram-se 27 processos individuais e realizaram-se 19 entrevistas.
Do cruzamento destas duas técnicas construíram-se retratos sociológicos e das
análises de conteúdo e de discurso acedeu-se às densidades biográficas que
permitiram explorar os discursos dominantes em relação à transgressão e traçar
perfis de percursos transgressivos. A leitura e a discussão dos dados foram
feitas nas interfaces do interacionismo simbólico, das teorias da ação
estruturada e das perspetivas feministas que, ao situar o debate na perspetiva
do sujeito (feminino), não perdessem de vista que as subjetividades são
permeadas pelas (im)possibilidades do espelho social que molda performances (de
transgressão e de género).
Maria João Leote de Carvalho (2010) desenvolveu uma investigação fundada nos
campos do interacionismo simbólico, da ecologia social e da sociologia da
infância, que teve por objetivo analisar os processos de socialização na
infância em seis bairros de realojamento na Área Metropolitana de Lisboa, dando
especial atenção aos contornos do envolvimento das crianças residentes, de
ambos os sexos, entre os seis e os doze anos, em atos de violência e
delinquência. A delinquência é vista como expressão de um problema social que,
não sendo novo, está associado a um amplo espetro de fatores e circunstâncias
de natureza diversa. Estes fatores e circunstâncias colocam-se em jogo num
determinado território cujo ambiente físico influi e simultaneamente sofre as
influências da ação e do controlo social exercido pelos indivíduos que nele se
situam, ou o atravessam, e em relação aos quais as crianças, na qualidade de
atores sociais, atribuem um sentido particular que apropriam, integram,
reconstituem e (re)produzem.
Em função da observação de uma realidade social complexa a nível de conteúdo e
da acessibilidade aos atores sociais nela envolvidos, entre 2005 e 2009
realizou um estudo de caso, de base etnográfica, que contemplou outras técnicas
qualitativas numa perspetiva de complementaridade ' observação participante,
conversas informais, entrevistas semiestruturadas a crianças (72 das quais 18 a
raparigas entre os 7 e os 11 anos) e a pais/familiares (62), técnicas visuais
(312 desenhos sobre os bairros e fotografias dos bairros tiradas por 34
crianças de duas turmas de escola do 1º Ciclo do Ensino Básico) e análise
documental. O tratamento da informação recolhida foi sustentado numa lógica
analítica compreensiva que teve como ponto de partida a voz' das crianças
expressa nas suas diferentes produções.
Este texto resulta da conjugação de informação obtida nas duas investigações e
tem como eixo estruturante uma técnica comum a ambas, as entrevistas
realizadas, numa a jovens, noutra a crianças. Nos dois trabalhos, as raparigas
entrevistadas são oriundas de meios socioeconómicos desfavorecidos,
essencialmente de meio urbano, com trajetórias de vida maioritariamente
marcadas pela desagregação do núcleo familiar de origem. Diferentes idades,
diferentes origens étnicas, mas uma base comum em torno da origem social e das
práticas delinquentes que assumem. Efetuadas em diferentes contextos ' sistema
de justiça juvenil e território urbano de bairros de realojamento ', as
análises de conteúdo desenvolvidas permitiram trazer para uma breve discussão
exploratória diferentes expressões e significados da delinquência no feminino,
salientando-se as semelhanças identificadas nas duas pesquisas.
Expressão e expressões da delinquência no feminino
A fraca expressão da delinquência feminina nas estatísticas oficiais nacionais
e internacionais tem sido objeto de crescente interesse na literatura
científica. Se é claro que as raparigas tendem a estar menos representadas do
que os rapazes nos indicadores dos sistemas de justiça juvenil9, a participação
feminina parece estar a ganhar diferente expressão e expressões. Expressão
porque as estatísticas oficiais nacionais e internacionais apontam para a sua
maior visibilidade, não apenas em números, mas também na natureza dos atos
recenseados (e.g. eventual maior gravidade nos ilícitos cometidos e em
coautoria). A aparente maior violência nos ilícitos cometidos por raparigas
continua a ser bastante questionada (Duarte, 2012). Possivelmente, e como
aponta Susan Batchelor (2007: 209), o comportamento das jovens pelos vários
percursos de violência é motivado por uma interação complexa envolvendo uma
gestão e uma procura ativa do risco. O divertimento, a adrenalina e a
desocupação, ampliadas pela posição de subalternidade de quem vive e é olhada/
o como excluída/o, constituirão as suas principais motivações.
No estudo de Maria Carvalho (2010), na análise dos registos das entidades
oficiais sobre a delinquência de crianças menores de 13 anos de idade nos
bairros selecionados, entre 2001 e 2008, as diferenças observadas entre rapazes
e raparigas não são tão acentuadas quanto as que são apresentadas pelas
estatísticas oficiais a nível nacional, nomeadamente no sistema tutelar
educativo (12-16 anos). Embora os rapazes estejam maioritariamente
representados, a participação das raparigas está presente em 35,3% (n=80) do
total das ocorrências policiais em análise. A presença feminina segue uma linha
de representatividade que não é demasiado afastada da masculina e, em nenhum
dos anos em causa, a sua presença foi meramente residual, sendo notório o seu
contínuo aumento, com especial incidência para 2008 (40,3%).
A categoria de delinquência onde as raparigas são mais expressivas, designada
"de consumo"10, restringe-se a atos "contra o
património", essencialmente furtos realizados em estabelecimentos
comerciais, hipermercados ou na via pública. É uma delinquência aquisitiva que
visa a obtenção de produtos de consumo, maioritariamente associados a estilos e
modos de vida amplamente difundidos entre as crianças, nela se evidenciando uma
diferenciação por sexo/género em função da natureza dos bens furtados.
Esta tendência para a especialização por sexo/género nos furtos, já
identificada noutros estudos (Carvalho, 2003), está patente na ação feminina,
frequentemente em duplas e grupos de raparigas de idades próximas, que furtam
mais roupas, acessórios (brincos, fios, pulseiras, adornos diversos, malas) ou
materiais escolares.
' Não, eu não escolhi, eu só escolhi uma coisa. ( ) Escolho o casaco,
ela [raparigaF27, 11 anos, Bairro Rosa] me deu umas t-shirts e
calças, fomos vestir às cabines ' rapariga F36, 11 anos.
' Depois lá eu trouxe uma camisola, só uma camisola. Vesti duas
camisolas e uma calça. A [F27] disse para nós calçarmos uns sapatos
se não batia, eu não vou calçar não ' raparigaF37, 8 anos.
' Eu também não, foi um casaco vermelho de marca assim curto. E ela
[F27] escolheu um fato de treino da Nike ' raparigaF35, 9 anos.
' E a tua irmã [8 anos] também trouxe alguma coisa?
' Sim, meias ela não tinha no pé, pôs no bolso e tinha duas calças,
uma da [marca] e uma dela, três camisolas, um top, uma camisola e a
camisola dela. ' rapariga F36.
' E como é que foram apanhadas?
' Disseram que ela [F27] tirou uma coisa das calças para apitar e que
pôs no lixo. Os polícias deixaram ir a casa de banho para tirar.
Depois eu vi a [F27] e a [F35] com uma polícia. Depois a polícia
disse para tirarmos as roupas. Nós tirámos e a polícia disse que
tínhamos de ir para coisa para a esquadra. ' rapariga F36
[entrevista]
(Carvalho, 2010: 394)
À semelhança dos rapazes, é normalmente em grupo que as raparigas cometem mais
ilícitos e com mais frequência, havendo uma tendência para que raparigas sigam
outras raparigas (Carvalho, 2010; Duarte, 2012), como já demonstrara Peggy
Giordano, Stephen Cernkovich e Jennifer Rudolph (2002). É com outras raparigas
que procuram companhia para ir a festas, passear na comunidade, sair com
rapazes e experimentar o risco.
Se esta experimentação tem um caráter de normalidade nas faixas etárias em
questão, as populações estudadas associam uma acumulação de outros riscos
relacionados com os contextos com os quais têm ligações negativas, que parecem
colocá-las em maior risco de iniciar comportamentos desviantes (i.e. consumos
de substâncias, comportamentos sexuais de risco, fugas de casa, prática de
ilícitos, entre outros) ou de vivenciar as consequências negativas para a
saúde, quando a prática desses comportamentos já é visível (Duarte, 2012).
Mas o género assume também uma outra expressão, especialmente visível no caso
de furtos a particulares. Quando se analisa o perfil das vítimas de práticas
delinquentes cometidas por crianças nos bairros selecionados, não só é comum as
vítimas encontrarem-se sozinhas, mas também uma grande parte ser do sexo
feminino, sinal de uma perceção de maior isolamento e fragilidade que é
explorada na atuação concretizada pelos mais novos (Carvalho, 2010). A este
respeito, e segundo Duarte (2012), se a passagem ao ato pode ter uma certa dose
de imprevisibilidade ("foi a cena do momento, deu-nos na cabeça e
dissemos: vamos lá assaltar aquelas miúdas" [Elisabete, 14 anos. MTI]11),
a escolha das vítimas (pessoas) e a abordagem parecem ser mais seletivas. Na
linha de Sybille Artz (1998), as raparigas tendem a perpetrar "violência
horizontal", contra o mesmo sexo ("São mais as raparigas que são
assaltadas. Porque são alvo mais fraco" [Cristina, 14 anos, MTI].
"Normalmente sempre foi mais aos da nossa idade, da nossa altura e
raparigas, ou então miúdos pequeninhos". [Célia, 17 anos, MTIO]12).
Além da expressão, a delinquência feminina tem vindo a ganhar expressões. A
participação feminina nos grupos delinquentes e na criminalidade não é uma
novidade. O que parece ser novo é o modo como participam, como constroem as
relações de género e como orquestram várias formas de feminilidade.
Quando as jovens entrevistadas (Duarte, 2012) falavam sobre as suas práticas
delinquentes mostravam que não estavam passivas e que procuravam conquistar o
espaço que se abriu para elas, legitimando feminilidades e não propriamente
construindo masculinidades, como defendia Miller (2001), mesmo quando desafiam
as noções que têm do que é considerado apropriado para as raparigas. Estas
práticas são vistas como "coisas de raparigas" (Carvalho, 2010).
Falam é de outras feminilidades: "feminilidades maria-rapaz", por
desejarem práticas de reconhecimento próximas das dos rapazes a quem invejam a
liberdade (Fonseca, 2009: 267), "feminilidades rebeldes", que se
expressam por identidades mais reativas, que se envolvem em atividades e
culturas de experimentação e provocação. Estes estilos de feminilidade não
deixam, contudo, de combinar práticas convencionais e atípicas de género. Neste
self empowerment, que poderia significar transformações nos papéis
tradicionais, não é imperativo que se transgridam ou rejeitem todos os papéis
femininos tradicionais (Abramovay, 2010).
A violência dos seus comportamentos e a liberdade, autonomia e independência
que reclamam para si, pelas fugas de casa, pelas experimentações de álcool e
drogas, pela prática de ilícitos, não deixa de esbarrar na manutenção de
discursos e conceções tradicionais de masculinidade e feminilidade. Estas
conceções são utilizadas para falar sobre as responsabilidades familiares e os
papéis domésticos ("rapariga é estar em casa, trabalhar, ser mãe "
[Vera, 16 anos, MTI]), justificar o maior controlo que os pais tendem a exercer
em suas vidas ("cá fora pode engravidar e por isso reservam mais as
filhas dentro de casa" [Elisabete, 14 anos, MTI]), para falar sobre as
vivências da maternidade e como esta tem um efeito de "mudança"
("ver o mundo com outros olhos" [Marta, 18 anos, MTAE13]), para se
referirem aos projetos de futuro, também estes trespassados pelas marcas de
género ("ter marido, filhos dois porque é o que toda gente gosta, acho
eu!" [Fátima, 16 anos, MTIO] e para se exprimirem sobre o papel da
rapariga na transgressão ("é rapaz, é normal, eles começam a andar em
grupos, nessa vida mas rapariga é muito feio" [Vera, 16 anos, MTI])
(Duarte, 2012).
Significados e representações da prática delinquente
As teorias centradas na aprendizagem social da delinquência apontam que as
raparigas que mais contactam, interagem e passam mais tempo com outras pessoas
envolvidas na delinquência, especialmente do sexo masculino, mais facilmente
passam à realização de atos delinquentes (Carvalho, 2010).
A este respeito, destacam-se duas questões. A primeira, apontada por Duarte
(2012), é que, apesar de a literatura apontar que o envolvimento criminal de
familiares e de namorados/companheiros tem uma influência significativa nos
percursos e nas escolhas das raparigas (Steffensmeiers e Allan, 1996; Assis e
Constantino, 2001) ' e no estudo de Duarte (2012) um número considerável das
jovens entrevistadas (44%) ter familiares e namorados/ex-namorados
identificados com contactos com a justiça ', os seus discursos não permitem
concluir que estes influenciem mais do que os/as amigos/as. E se em algumas
situações podem ser o motor dos comportamentos desviantes, o que parece
sobressair é o contacto e a aprendizagem com os/as amigos/as e a procura e
gestão de comportamentos de risco.
A segunda questão prende-se com os processos de aprendizagem da delinquência
feminina que ocorrem num quadro de matriarquização, sob influência direta de
familiares do mesmo sexo ' mães, tias, primas, avós e irmãs (Carvalho, 2010) ',
e não, obrigatoriamente, junto do sexo masculino (Giordano, 1978).
Fomos falar com a mãe de [raparigaF35, 9 anos] e ela explicou tudo.
Ela pôs a roupa, pegou a roupa dela, vestiu a roupa da [loja] e então
aí ela disse se queríamos fazer igual a ela. Ela disse para se tirar
aquela coisa aquela o alarme. A mãe dela ensinou, vais e tiras com
os dentes assim ( ) Nós conseguíamos tirar, uma tirava e nós
vestíamos. ( ) A mãe dela disse e foi ela que a mandou ir porque tem
roupa roubada em casa e também tem comprada, mas a maioria roubada e
depois ficou com um caso em Tribunal uma vez ' raparigaF27, 11 anos,
entrevista. (Carvalho, 2010: 394)
É de questionar se a persistência de representações tradicionais sobre os
papéis de género não continuam a proporcionar a construção de definições
sustentadas na ideia de a violência ser um traço de caraterização eminentemente
masculino, dominante como símbolo de poder e virilidade, que não encaixa na
construção da condição feminina (Piquero, Gover, MacDonald e Piquero, 2005). A
discussão da delinquência feminina tem de ser feita a partir da consideração da
transformação de papéis e posição atribuída à mulher na sociedade, não se
desvalorizando as desigualdades sociais que ainda hoje marcam a sua condição no
território nacional.
A questão da participação das raparigas na delinquência, e a emergência da
imagem de que muitas delas não são apenas colaboradoras e acessórios dos seus
parceiros masculinos, reaviva a discussão em torno das diferentes noções de
"rapariga-objeto" vs. "rapariga-sujeito" (Lucchini,
1997)14. Esta discussão não deve ser polarizada, pois corre-se o risco de não
compreender que os percursos de vida são construídos pelas escolhas e pelas
ações adotadas, num campo limitado de possibilidades e circunstâncias sociais,
familiares, escolares e culturais. As histórias das crianças e das jovens
recolhidas em ambas as investigações contam itinerâncias realizadas sobre um
conjunto de constrangimentos estruturais que pautam as suas vidas, dão conta
das transições possíveis e das (im)probabilidades de seguir trajetos
padronizados, e são marcadas por consecutivas escolhas aparentes, que refletem
não só os constrangimentos à sua ação autónoma, como também à sua posição,
enquanto sujeitos que fazem escolhas. Uma leitura deste fenómeno feita de modo
polarizado não permite perceber como é que as raparigas se posicionam perante a
procura e/ou gestão dos comportamentos de risco (Batchelor, 2007) e quais as
fronteiras da influência/pressão dos pares, dos namorados e da família.
A heterogeneidade dos percursos das jovens na delinquência (Duarte, 2012)
possibilita constatar que nem todas rompem com a divisão sexual do trabalho
dentro do grupo, mas são várias as que rompem com a divisão sexual do prazer:
não são passivas, conquistam quando querem, escolhem os parceiros (Abramovay,
2010). Além disso, os motivos para a realização de práticas delinquentes são
diversificados e tanto as crianças como as jovens (re)posicionam-se
relativamente a eles (Carvalho, 2010; Duarte, 2012).
Há raparigas que usam na delinquência a força e competências tradicionalmente
vistas como exclusivas do repertório masculino. A sua perceção não é
diferenciada em função do sexo, mas antes considerada um recurso perante a
normalização' da violência a que se encontram sujeitas nos contextos de
origem, acabando por constituir um elemento na sua própria defesa e integração
no território onde vivem ("Ya, anda tudo sempre à luta, tudo sempre
contra mim, aí é pumba! Dou um soco com força também" [rapariga F06, 8
anos], Carvalho, 2010: 396).
Outras mostram como a transgressão surge da gestão de sentimentos negativos,
angústias e lutos mal resolvidos, originados pelas histórias de maus-tratos,
abandonos e institucionalizações15.
Eu tenho de explodir, tenho de explodir ( ). O que me dava adrenalina
era ver as pessoas no chão a chorar por mais louco que isso pareça.
O que me vinha à cabeça era: fizeram-me a mim, tenho de fazer aos
outros, porque se não fizer ninguém vai sentir aquilo que eu senti.
Mas hoje compreendo que nunca ninguém vai sentir o que eu senti,
porque não eram os pais que estavam a bater [Elisabete, 14 anos,
MTI]
(Duarte, 2012: 195).
Para outras foi a procura do risco-aventura da experimentação e da adrenalina o
motor para a prática transgressiva.
O meu objetivo é curtir a vida, viver cada dia que passa como se
fosse o último. ( ) Tudo nesta vida tem risco ver onde chegas, qual
é o teu limite! Eu sou assim, gosto de saber qual é o meu limite.
Nesta vida ou morres, ou vai preso ou foges! ( ) a vida sem risco não
é nada ( ) não tem sentido [Inês, 17 anos, MTAE]
(Duarte, 2012: 196).
Para outras ainda foi a influência (das drogas, do namorado/ companheiro ou da
passagem pela instituição ).
Tudo o que fiz, fiz porque estava completamente drogada [Verónica, 16
anos, MTI]
(Duarte, 2012: 197)
Comecei a fazer porcarias, ( ) a tratar mal os meus pais, tudo por
causa dele (namorado) ( ) comecei a fugir de casa p'ra poder estar
com ele. [Sónia, 18 anos, MTIO]
(Duarte, 2012: 198)
Mas há, também, narrativas em torno do caráter de exceção que é conferido ao
comportamento transgressivo. Exceção pelo facto de não apresentarem prática de
outros ilícitos anteriores. Exceção porque o ilícito é descrito como uma
situação ocasional e acidental. Exceção pois a vida das jovens não se organiza
em torno da prática delinquente.
Conclusão
A delinquência no feminino é um fenómeno plural, diverso, que encerra muitas
expressões poucas vezes trazidas para discussão. Nas suas práticas
delinquentes, as crianças e as jovens retratadas nestas páginas não abdicam da
sua condição de género, numa conjugação em que emergiram atos associados aos
tradicionais papéis femininos e outros mais atípicos, mas que não podem ser
dissociados das mudanças sociais e da evolução do espaço cometido ao sexo
feminino nas últimas décadas em Portugal. Um dos pontos mais importantes nestas
pesquisas destaca a linha de aprendizagem social da delinquência feita numa
linha de feminização, de transmissão de valores delinquentes fundamentalmente
concretizada em círculo de familiares ou de pares do sexo feminino, o que
constitui uma rutura com resultados de outras pesquisas sobre esta matéria.
Digno de registo, como independentemente da idade, as participantes nestes
estudos aproximaram-se em muitas das suas perspetivas sobre as vivências na
delinquência, podendo levantar-se a questão de saber até que ponto não se está
perante mudanças sociais que atingem, já no presente, os escalões etários das
mais novas. Neste sentido, seria importante perceber quantas das raparigas
entrevistadas no estudo de Carvalho (2010) não acabarão(am) por desenvolver
percursos e trajetórias institucionais similares às das jovens entrevistadas
por Duarte (2012) e como se posicionarão perante a delinquência na juventude.
Regista-se a ideia de que rapazes e raparigas estão cada vez mais presentes nos
mesmos espaços e sujeitos às mesmas tensões, continuando a identificação por
sexo/género a ser fator agregador da influência entre pares. Neste caso, novos
olhares se abrem sobre as práticas delinquentes apresentadas neste texto na
medida em que rompem, em larga medida, com a tradicional noção de que as
raparigas que cometem ilícitos o fazem por e sob influência direta do sexo
masculino. Diferentes feminilidades são vividas e assumidas pelas raparigas
participantes nestes dois estudos, emergindo o risco e a experimentação como
eixos estruturantes de muitas das ações delinquentes relatadas. No campo
concetual, é crucial repensar as categorias de violência e delinquência
femininas, para que deixem de ser conceitos vazios, que colonizam definições em
função da delinquência masculina. Ganha importância o questionamento em torno
dos modos de vida femininos na infância e na juventude e das novas
feminilidades. Mais do que se pretender traçar um perfil da delinquência no
feminino, deseja-se chamar a atenção para as suas múltiplas expressões e
dimensões envolvidas.
Muito fica por dizer nesta discussão. Se é verdade que este aparente novo
protagonismo das raparigas chama a atenção para a sua agencialidade na
delinquência, não menos verdade é que os seus discursos deixam transparecer
como as desigualdades sociais em função do género, ainda hoje, marcam a
condição feminina na sociedade portuguesa. Dar espaço aos contextos em que
raparigas emergem como agressoras dá visibilidade às dinâmicas sociais em que
muitas delas continuam a ser vítimas.