O poder do direito e o poder do feminismo: revisão crítica da proposta teórica
de Carol Smart
No presente artigo trava-se um diálogo crítico com as teses de Carol Smart,
problematizando as posições da autora feminista quanto às relações entre
mulher, feminismo e direito. Carol Smart é uma socióloga inglesa, que se define
como pós-estruturalista e pós-moderna e cujo trabalho inaugural (Women, Crime
and Criminology, 1976, Feminism and the Power of Law, 1989, e Law, Crime and
Sexuality, 1995) teve um enorme impacto sobre as disciplinas da criminologia e
estudos sociojurídicos feministas (Auchmuty e Van Marle, 2012). Algumas das
suas obras continuam a ser uma referência incontornável nos estudos
sociojurídicos feministas a nível internacional e nacional2, tendo sido,
inclusivamente, publicado em 2012 um número especial da revista Feminist Legal
Studies, dedicado a um dos seus livros mais conhecidos, Feminism and the Power
of Law.
A obra de Carol Smart enquadra-se na corrente pós-moderna da teoria feminista
do direito (ou das teorias feministas do direito)3 , que se caracteriza por
procurar ultrapassar as categorias e o debate de/entre igualdade e diferença,
promovidos pelo feminismo liberal4 e pelo feminismo cultural (ou da diferença)5
(Levit e Verchick, 2006). A teoria feminista pós-moderna do direito argumenta
que as abordagens comparativas do tratamento igual ("mulheres são como os
homens") e do feminismo cultural ("as mulheres não são como os
homens") assumem erroneamente que todas as mulheres são, grosso modo,
iguais, tal como os homens (Levit e Verchick, 2006). Neste sentido, defende,
por um lado, que as categorias binárias de homem e mulher são ambas um produto
e reprodução de relações de poder, estando especialmente interessada em
analisar como mulheres e homens são construídos pelo direito e como o direito
reproduz as relações de género (McCorker et al., 2000). Por outro lado, recorre
à ferramenta da desconstrução para questionar a existência de verdades
absolutas e, em especial, de um direito imparcial e objetivo (Levit e Verchick,
2006).
A abordagem de Smart é crucial para as análises sociológicas do direito,
permitindo, por um lado, observar o direito como um discurso hegemónico que não
só oprime as mulheres, como contribui para a produção e reprodução das
identidades de género e sexuais das mulheres. E, por outro lado, superar o
impasse entre o feminismo liberal e cultural, abrindo caminho a novas
abordagens feministas6, como a teoria da interseccionalidade7. Para além disso,
o seu contributo é incontornável para uma reflexão crítica acerca das
estratégias políticas dos movimentos feministas em relação ao direito.
A partir de leituras de outras/os feministas, como Maria Drakapolou, Ralph
Sandland, Shelley Gavigan, Dany Lacombe e Rosemary Hunter, entre outras/os, e,
sempre que possível, de exemplos concretos de lutas travadas no campo jurídico
e judicial pelo feminismo em Portugal, pretende-se discutir duas8 das teses de
Carol Smart desenvolvidas nas obras Feminism and the Power of Law (1995) e Law,
Crime and Sexuality (1999): (1) o poder do direito de desqualificar a
experiência das mulheres e o conhecimento feminista e de definir as mulheres
enquanto sujeitos genderizados (definidas com base no género); e (2) a proposta
de reorientação da estratégia feminista, no sentido de descentrar e
desconstruir o direito. O presente artigo procura, desta forma, contribuir para
a discussão encetada neste dossiê temático da revista ex aequo sobre
epistemologia feminista, revisitando a proposta teórica e de ação política, de
Carol Smart, em duas das obras clássicas da teoria feminista do direito.
O Poder (de desqualificar e definir) do Direito
Um dos principais argumentos de Carol Smart é que o direito é um discurso
particularmente poderoso devido à sua pretensão de verdade, o que lhe permite
silenciar e desqualificar a experiência das mulheres (que encontram a lei) e o
conhecimento das feministas (que desafiam a lei) (Smart, 1999: 71). A autora
discute os conceitos de verdade, poder e conhecimento, a partir de uma
abordagem pós-estruturalista, que se inspira ' e estende ' nas teorias do poder
e do conhecimento de Michel Foucault, sendo o principal princípio desta posição
um ceticismo sustentado em relação aos conceitos de verdade, ciência e
objetividade (Sandland, 1995).
Foucault (1980) observa como todo o saber/conhecimento é uma combinação de
relações de poder e uma busca de informação, não sendo simplesmente
"saber" mas aquilo a que chama "poder/saber". Este
autor defende ainda que o saber não é uma procura pela verdade pura, é sim um
processo de seleção de informação que permite que algo seja rotulado/designado
como "facto"/"verdade ". Assim, Foucault argumenta que
fazer a afirmação de que algo é ciência é na verdade um exercício de poder,
porque ao reclamar a cientificidade é concedido menos estatuto e valor a outros
discursos não-científicos, como a fé ou experiência, que são classificados como
conhecimentos menores.
Smart defende que, muito embora o direito não faça afirmações expressas de
verdade, faz afirmações que são suficientemente semelhantes às da ciência ' o
direito tem o seu próprio método, linguagem e sistema de resultados ' para
percebermos que o poder do direito se desenvolve de forma semelhante ao da
ciência (1999: 76). O poder do direito resulta da sua pretensão de definir a
verdade, uma vez que o conhecimento que pode afirmar ser verdade ocupa um lugar
superior na hierarquia dos conhecimentos. O fator que investe as reivindicações
de verdade do direito com tal grau de poder é o método jurídico. Assim, poder,
conhecimento e verdade estão intimamente ligados: eles produzem-se mutuamente.
Ao colocar o direito como uma disciplina moderna, a autora distancia-se do
entendimento de direito de Foucault, enquanto um mecanismo regulatório da era
pré-moderna. De acordo com a autora, para Foucault o direito não encaixa na
discussão de ciência, conhecimento e verdade, porque ele relaciona-o com o
regime de poder que antecede o crescimento da epistéme moderna (Smart, 1995:
9). Acresce, ainda, que Foucault considera que é mais interessante estudar os
processos de poder fora das instituições jurídicas, porque o poder do discurso
jurídico está a diminuir perante outros poderes regulatórios (Smart, 1995).
Carol Smart reconhece que outras formas de regulação não-jurídicas são cada vez
mais importantes, mas defende que, por um lado, o direito pode utilizar estes
mecanismos de regulação emergentes para aumentar o seu poder e, por outro lado,
assiste-se a um processo crescente de juridificação de determinadas áreas.
Assim, o direito, o poder jurídico continua a ser um obstáculo considerável ao
feminismo (Smart, 1995: 6-8). Além disso "o direito tem o seu próprio
método, o seu próprio campo de ensaio, a sua própria linguagem especializada e
o seu sistema de resultados. Pode ser um campo de conhecimento que tem um
estatuto inferior em relação às ciências consideradas "reais", não
obstante, ele separa-se de outros discursos da mesma forma que a ciência"
(Smart, 1995: 9)9. O método que os/as profissionais da magistratura usam para
decidir casos ' identificar e categorizar os factos, identificar os princípios
legais pertinentes através da seleção de precedentes e/ou da interpretação
legal, e aplicar a lei aos factos para chegar a uma conclusão ' presume-se ser
neutro, objetivo e imparcial, e produzir sempre a decisão "correta"
(Smart, 1995). Consequentemente, no entender de Smart, o facto do direito
preceder a ciência não o exclui da análise verdade/ poder/conhecimento proposta
por Foucault (Smart, 1999: 74).
O direito afirma ter o método de estabelecer a verdade dos eventos ' o método
jurídico. A reivindicação do conhecimento jurídico como a única verdade
subalterniza o(s) conhecimento(s) não-jurídico(s) e implica que todas as
experiências tenham de ser traduzidas na forma jurídica, para obterem algum
reconhecimento. A autora observa, então, o direito como uma forma de discurso
que pode fazer afirmações de cientificidade e, portanto, de verdade, o que
posiciona o direito numa hierarquia de conhecimentos que permite desqualificar
os "conhecimentos subjugados" e aumentar o poder do direito. Porém,
no entender de Smart (1995), o direito não só desqualifica relatos alternativos
da realidade social ' outros saberes (como o feminismo) e experiências (de
mulheres e minorias) ' mas, pela força da sua pretensão de
"verdade", constrói autoritariamente o significado da realidade
social.
Neste sentido, Carol Smart defende, à semelhança de outras autoras
pósmodernas10, que o direito não se limita a oprimir as mulheres, constrói-as.
O direito é um dos muitos discursos através do qual os sujeitos são
constituídos. Embora o sujeito seja constituído em e através de múltiplos
discursos, o direito é um discurso particularmente autoritário. Contudo, o
discurso do direito não é homogéneo. O direito é um dos discursos que reproduz
constantemente as mulheres como sujeitos genderizados e que naturaliza as
diferenças entre os sexos (Smart, 1999: 82). Ou seja, as identidades de género
e também o corpo sexuado são constantemente produzidos e reproduzidos através e
no discurso jurídico. De acordo com Ben Golder (2004), isto não quer dizer que
as mulheres reais não existam, mas sim a afirmação um pouco mais subtil de que
não podem ser conhecidas a não ser através do discurso11.
Assim, Smart defende que o feminismo deve explorar as formas pelas quais
diferentes discursos e práticas discursivas e, em especial, o direito, produzem
e reproduzem as mulheres enquanto sujeitos sexuais e genderizados, enquanto,
por exemplo, prostitutas, vítimas de violência sexual, mães, criminosas,
lésbicas ou trabalhadoras. Neste sentido, Smart propõe à semelhança de outras
autoras pósmodernas como Mary Joe Frug (1992), que o feminismo passe a encarar
o direito não como "sexista" ou "masculino", mas como
uma "estratégia" de género.
Os epítetos o "direito é sexista", o "direito é
masculino" e o "direito tem género" correspondem, de acordo
com Smart, a três estágios da reflexão da teoria feminista sobre o direito e
consequentemente a três grandes correntes dos estudos feministas do direito:
feminismo liberal ' "direito é sexista"; feminismo radical '
"direito é masculino"; e feminismo pós-moderno ' "direito tem
género" (law is gendered) 12 (Smart, 1999). Carol Smart, acompanhando as
críticas do feminismo pós-moderno13, "acusa" as duas primeiras
correntes, as teorias feministas liberais e as teorias feministas radicais, de
essencialismo, devido quer a falsas generalizações ou universalismos (falar
sobre mulheres e sobre interesses das mulheres pressupõe muitas vezes um tipo
específico e privilegiado de mulheres, ignorando as diferenças de raça, classe,
etc.), como a erros "naturalistas" (utilização da categoria mulher
como uma categoria natural e auto-explicativa), ou ao designado imperialismo de
género (primazia das discriminações com base no sexo sobre outras). Para além
disso, o foco instrumentalista das suas análises perpetua a ideia do direito
unitário, ora como libertador ora como opressor das mulheres (passivas), em vez
de problematizar o direito e lidar com as suas contradições internas. Na
sequência destas críticas às teorias feministas liberais e radicais, Carol
Smart propõe a passagem para a ideia de que o "direito tem género".
Carol Smart observa o direito como uma estratégia de produção de género. Isto
permite-nos analisar o direito como um processo de produção de identidades de
género em vez de, simplesmente, observar a aplicação do direito a sujeitos com
um género a priori. O direito constrói e reconstrói o significado de masculino
e feminino, masculinidade e feminilidade, e contribui para a perceção de
sensocomum da diferença, em que assentam as práticas sexuais e sociais que o
feminismo procura desafiar (Smart, 1999: 79), ou seja, as relações patriarcais.
Por outras palavras, o direito não cria relações patriarcais, mas de uma
maneira complexa e frequentemente contraditória, reproduz as condições
materiais e ideológicas nas quais estas relações podem sobreviver (Smart,
1999).
Tanto Lacombe (1998) como Gavigan (2000) consideram que esta abordagem tem
também tendências essencialistas, à semelhança das abordagens criticadas por
Smart. Lacombe (1998) sugeriu que Smart vai demasiado longe no seu argumento de
que a lei é uma ferramenta que reforça eternamente as paredes da prisão do
patriarcado. Lacombe identifica o problema desta posição da seguinte forma:
"reduz a complexidade das práticas sociais e das lutas a uma lógica
unitária que trabalha principalmente através do direito para reproduzir um
corpo social unificado " (1998: 158). Com efeito, o direito não pode ser
visto simplesmente como uma força determinante na definição de mulher; o
direito deve ser pensado como um local de luta sobre os significados de género.
Ou seja, o discurso jurídico deve ser entendido como um discurso complexo e
contraditório e um local de luta discursiva, que nem sempre opera da mesma
forma, nem produz os mesmos resultados, como sugerem Kapur (2006: 102) e
Dorothy Chunn e Lacombe (2000).
Da mesma forma, Gavigan defende que a mulher que emerge da análise do discurso
jurídico, desenvolvida por Carol Smart, pode ser vista como discursivamente
unidimensional: "constituída como ela é pelo discurso (jurídico), ela não
tem nem experiência nem agência: ela não tem nem fôlego nem amplitude"
(Gavigan, 2000: 105). Neste sentido, Susan Boyd (1999) argumenta também que
Smart, ao concentrar a sua análise na construção discursiva do sujeito
jurídico, em detrimento de outras práticas materiais que constituem o sujeito,
reforça a centralidade do poder do direito. A própria Carol Smart incluiu uma
pequena, mas importante, nota de advertência no "Postscript" a Law,
Crime and Sexuality: "nunca devemos esquecer que as mulheres se constroem
discursivamente Se esquecermos isso, corremos o risco de
"desempoderar" as "mulheres" e inflacionar o poder de
discursos mais organizados" (Smart, 1999: 231). Neste sentido, Smart
defende que o feminismo deve investigar a construção discursiva das mulheres
desenvolvida pelas próprias mulheres num discurso feminista. Ao explorar o
discurso patriarcal dominante em conjunto com os discursos feministas de
resistência, o feminismo será capaz de afastar o primeiro e forjar um discurso
feminista alternativo, que constituirá o feminino de uma forma mais positiva.
Feminismo e Direito: da inutilidade à cumplicidade das reformas legais
feministas
Carol Smart apresenta, assim, uma crítica sustentada do direito e, como
consequência, dos próprios compromissos feministas com o direito. A primeira
parte do seu argumento é, como se viu, que o direito representa as mulheres de
uma forma que não se limita a ignorar ou deixar as mulheres de fora, mas que
desqualifica ativamente a experiência e o conhecimento das mulheres (Smart,
1995: 2, 11, 21). Porém, Smart observa que o direito não só faz reivindicações
de verdade, mas também pretende ser uma força para o bem. Ele representa-se a
si mesmo como tendo o poder de corrigir erros e de alcançar a justiça (Smart,
1995: 11-12).
A autora argumenta, no entanto, que no que diz respeito às mulheres esta
afirmação é falsa. O direito é mais suscetível de gerar prejuízos para as
mulheres do que de gerar mudanças sociais benéficas (Smart, 1995: 81). Neste
contexto, Smart cunha o termo juridogenic "como uma forma de
conceptualizar o mal que o direito pode gerar como consequência das suas
operações" (Smart, 1995: 12). No entender da autora "não devemos
cometer o erro [de pensar] que o direito pode fornecer a solução para a
opressão que celebra e sustenta" (Smart, 1995: 49). Não obstante, os
movimentos feministas têm sido seduzidos pela reivindicação do direito de ser
uma força para o bem e um meio de proteção dos grupos mais fracos em relação
aos mais fortes, e não conseguiram perceber o potencial muito mais juridogenic
(das reformas) do direito (Smart, 1995).
O argumento de que é mais provável que o direito seja prejudicial do que útil
para as mulheres é baseado em dois tipos de provas, uma empírica e outra
teórica. Primeiro, de acordo com Smart, a história dos esforços feministas de
reforma do direito revela o fracasso do direito em legitimar as reivindicações
das mulheres. No entender de Hunter (2012), o fracasso do direito em legitimar
as reivindicações das mulheres parece confirmar-se, tendo em atenção as
tentativas de reformas discutidas por Smart no livro Feminism and the Power of
Law; veja-se, por exemplo, os esforços sucessivos de Catharine MacKinnon para
rever a lei da violação ou os decretos anti-pornografia. Porém, se
considerarmos outras áreas ou outros países, as reformas não foram
necessariamente um fracasso, como é o caso, em Portugal, da revisão do Código
Civil, concretamente do Direito da Família, entre 1976-77 (Decreto-Lei nº 496/
77, de 25 de novembro), a institucionalização da Comissão da Condição Feminina
(Decreto-Lei nº 485/77, de 17 de novembro) e da atual Comissão para a Cidadania
e Igualdade de Género, ou a Lei da igualdade no trabalho e no emprego (Decreto-
Lei nº 392/79, de 20 de setembro), no período após a revolução democrática de
1974 (Monteiro e Ferreira, 2012). E, embora a capacidade efetiva de influência
destes movimentos tenha vindo a reduzir-se em Portugal (Monteiro e Ferreira,
2012), a despenalização do aborto, pela Lei nº 16/2007, de 17 de abril, e
autonomização do tipo legal de crime intitulado violência doméstica, aprovada
pela Lei nº 59/2007, de 4 de setembro, mais recentemente, provam que os
esforços dos movimentos não foram em vão (Duarte, 2007, 2012; Santos e Alves
2009).
Importa ainda considerar que o fracasso do direito em legitimar as
reivindicações das mulheres não significa que os esforços feministas não sejam
úteis noutros campos (não-jurídicos), podendo, inclusivamente, abrir caminho a
reformas futuras do direito. Em Portugal, por exemplo, por um lado, na revisão
do Código Penal que deu lugar à Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, a
reivindicação das organizações de cariz feminista para a Lei adotar o conceito
de violência de género, em vez de violência doméstica, não teve sucesso
(Duarte, 2012). Porém, a alteração legal e as sucessivas campanhas têm
contribuído para uma maior sensibilização da opinião pública em relação à
violência de género e um aumento das denúncias. Por outro lado, a luta pela
despenalização do aborto demorou mais de três décadas e só culminou após o
referendo de 2007 (Santos e Alves, 2009: 47). Neste sentido, acompanho Sandland
(1995) que sugere a necessidade de resistir a uma leitura excessivamente
pessimista das reformas legais. Ele argumenta que não há ninguém que não
reconheça, por exemplo, que uma reforma tem valor simbólico, independentemente
do seu "sucesso" em alcançar mudança material (Sandland, 1995:
32'33).
A segunda forma de evidência que Smart invoca para as feministas
"evitarem o canto da sereia da lei" (Smart, 1995: 160) é teórica e
remete para o método jurídico. No entender de Smart, as categorias e estruturas
jurídicas limitam e distorcem a agenda feminista. As reivindicações das
mulheres não podem, segundo a autora, ser simplesmente encaixadas nas
construções jurídicas existentes: a linguagem e os métodos e procedimentos
jurídicos são fundamentalmente antifeministas, uma vez que não têm qualquer
relação com as preocupações das mulheres (Smart, 1995). Todavia, tal como
acontece com a caracterização do fracasso das reformas do direito de Smart, a
sua caracterização da linguagem, dos métodos e procedimentos jurídicos como
"fundamentalmente antifeministas" é, no entender de Hunter (2012),
sem dúvida, absolutista, uma vez que o método jurídico é consideravelmente mais
aberto e produz resultados menos determinados do que Smart sugere.
A própria Carol Smart sustenta que o desenvolvimento do direito é
desigual. [C]onceb[o] o direito como operando numa série de dimensões
ao mesmo tempo. O direito não é identificado como uma simples
ferramenta do patriarcado ou do capitalismo. Analisar o direito desta
forma permite observar o direito tanto como um meio de
"libertação" e, ao mesmo tempo, como um meio de
reprodução da ordem social opressora. O direito tanto facilita a
mudança, como é um obstáculo à mudança. (Smart, 1999: 154)
Contudo, Smart parece "ceder" ao lado opressor do direito em ambos
os livros, menosprezando o lado "libertador", emancipatório e de
mudança social do direito. Talvez seja, então, Smart, citando Hunter, quem
concede demasiado ao afirmar a inutilidade ou o perigo dos esforços feministas
de reforma da lei (2012).
Na sequência destes argumentos, as estratégias feministas que utilizem o
direito, como os projetos de jurisprudência feminista, são acusadas, por Smart,
tanto de cumplicidade, como de irrelevância. Smart defende, simultaneamente,
que uma estratégia que adote os termos jurídicos não só preserva o lugar do
direito na hierarquia dos discursos, como, ao estimular o recurso ao direito em
busca de soluções, fetichiza o direito em vez de desconstruí-lo (1995: 88).
Smart considera que essas estratégias cedem ao direito o mesmo poder que é
utilizado contra as reivindicações das mulheres. Acresce ainda que, sendo o
direito visto como uma grelha de relações de poder e não como uma estrutura
hierárquica, as lutas jurídicas tornam-se menos significativas e fundamentais
para a manutenção ou derrube das relações de género existentes (Sandland, 1995:
13).
As conceções de Smart do direito como juridogenic e do método jurídico como
fundamentalmente antifeminista podem ser "acusadas" de absolutismo;
contudo, não podemos esquecer que Smart escreveu no contexto do final da década
de 1980. Sendo a teoria feminista do direito atualmente uma área científica
estabelecida, reconhecida e respeitada, é difícil de imaginar como esta foi, no
passado, ignorada ou mesmo rejeitada, acusada de ser um conjunto de ideias
lunáticas de mulheres descontentes, que não respeitavam o princípio da
objetividade do direito (Auchmuty e Van Marle, 2012). O desenvolvimento da
teoria feminista do direito e o sucesso de algumas das reformas legais de
inspiração feminista provaram que a observação de Carol Smart estava errada
(Auchmuty e Van Marle, 2012). Porém, é de salientar, por um lado, que, de
acordo com Rosemary Auchmuty e Karin Van Marle (2012) e Helen Carr e Hunter
(2012), a própria Carol Smart reconheceu, mais recentemente, que o direito pode
por vezes ser usado de forma positiva. Por outro lado, autoras como Hunter
(2012) e Van Marle (2012) consideram que, com algumas exceções, a argumentação
de Smart deve ser levada tão a sério hoje em dia como antes, e representa um
alerta importante para os riscos que a teoria feminista do direito e o ativismo
jurídico feminista correm na atualidade.
De qualquer forma, se o direito não é (ou era) a resposta para Carol Smart,
qual deve ser a estratégia feminista no entender desta autora?
A Estratégia Feminista de Carol Smart: Descentrar e (Des)construir
Na sequência da sua crítica ao direito, Smart sugere um redirecionamento da
estratégia feminista a partir de uma conceção pós-moderna do direito,
afastando- se da visão instrumentalista "moderna" do direito. Ou
seja, em vez de considerar o direito como um conjunto de regras que podem ser
remodeladas pelas reformas jurídicas de inspiração feminista, concebe o direito
como um discurso hegemónico que pode ser desconstruído e remodelado através da
mobilização do contradiscurso feminista (Chunn e Lacombe, 2000).
No entender da autora, o objetivo do feminismo deve ser não tanto identificar
reformas que tornem o direito conforme a ideais mais verdadeiros de igualdade e
justiça, mas desafiar o direito como significante do poder masculino. Uma vez
que ao aceitar os termos do direito para desafiar o direito, o feminismo
concede sempre demasiado, Smart argumenta que a luta deve ser no sentido de
descentrar o direito, de resistir ao movimento em direção a mais direito. O
exemplo da campanha da Women on Waves, organizada no âmbito da luta pela
despenalização do aborto em Portugal por um conjunto de organizações
feministas, parece ir ao encontro do argumento de que o feminismo concede
sempre demasiado. Todas as viagens dos barcos da ONG holandesa assentam no
cumprimento da lei e numa forte componente jurídica na preparação das
campanhas, o que conduz a uma moderação nas ações complementares a serem
adotadas e a um estreitamento do repertório de protesto (Duarte, 2007).
Em suma, a estratégia feminista deve, segundo Smart, concentrar-se em desafiar
o poder do direito de definir as mulheres e desqualificar o conhecimento
feminista (Smart, 1995: 2, 164), por forma a estabelecer o feminismo como uma
fonte de poder e resistência (Smart, 1995: 74), prevendo várias formas de
realizar este desafio. Em primeiro lugar, as feministas deveriam descentrar o
direito, recusando-se a aceitar "a ideia de que o direito deve ocupar um
lugar especial na ordenação da vida quotidiana" (Smart, 1995: 5). Isto
envolve não apenas questionar a ideia do direito como uma força para o bem, mas
questionar a ideia do direito como uma força em tudo. Mas o que significa
concretamente descentrar o direito? Smart impulsionou as feministas a
considerarem estratégias não-jurídicas, como projetos de investigação, em vez
de recorrerem ao direito ou envolverem- se apenas em propostas políticas. A fim
de resistir à hegemonia da ordem jurídica, o direito "deve ser combatido
a nível concetual" (Smart, 1995: 5). A estratégia apropriada é, em suma,
desconstruir o direito, em vez de inconscientemente sermos cúmplices dele.
Contudo, o que fazer com as mulheres que, diariamente, são colocadas perante o
direito como rés ou vítimas, em processos criminais e, como testemunhas, em
casos de direito de família? Como refere Hunter (2012), em alguns casos a ação
legal constitui a única via possível de escapar de uma situação extrema (por
exemplo, o julgamento ou a expulsão) ou a única via de reparação de uma lesão
(por exemplo, a discriminação). Deve a estratégia feminista ignorá-las? E terá
o combate a nível concetual do direito efeitos pragmáticos por si só?
A fim de desafiar e resistir ao discurso jurídico, e como corolário do
descentramento do direito, Smart sublinha a importância do feminismo produzir o
seu próprio contradiscurso sobre a vida das mulheres. O papel do feminismo deve
ser "construir uma realidade alternativa à versão que se manifesta no
discurso jurídico" (Smart, 1995: 160), recusando a imagem do feminismo
como impotente. Por oposição às afirmações de verdade do direito, devemos
insistir na legitimidade do conhecimento feminista "e na capacidade do
feminismo para redefinir os problemas das mulheres, que o direito muitas vezes
vota à insignificância" (Smart, 1995: 165). Em suma, Carol Smart propõe a
desconstrução do direito para criar espaço para o feminismo, uma forma de
conhecimento que, até à altura, tinha sido continuamente desqualificada pelo
direito (Currie, 1995). Neste contexto, Smart elogia o "Direito das
Mulheres"14 de Tove Stang Dahl como uma ilustração de como as feministas
poderiam desenvolver as suas próprias categorias jurídicas, estruturas e
princípios baseados na realidade material da vida das mulheres (Smart, 1995:
23-25), em vez de conceitos jurisprudenciais desencarnados (Smart, 1995: 158).
Finalmente, tanto Drakopoulou (1997: 115) como Sandland (1995: 20) discutem a
natureza exclusiva das prescrições de Smart para a estratégia feminista ' com
os argumentos de que a resistência ao direito é o único objetivo ético para o
feminismo e que desafiar o poder do direito para definir as mulheres é a única
forma adequada e eficaz das feministas criticarem o direito. Estas prescrições
sugerem que há uma "verdade" sobre a estratégia feminista, da mesma
forma que há uma "verdade" sobre as mulheres a que as feministas
têm acesso. Hunter (2012) nota que, enquanto Smart contesta a reivindicação do
direito de falar a verdade sobre as mulheres, ela não adota a mesma abordagem
crítica em relação ao feminismo. Na verdade, Smart argumenta que o discurso
jurídico deturpa e marginaliza a experiência das mulheres, mas, pelo contrário,
o conhecimento feminista sobre as mulheres é autêntico e o feminismo tem a
capacidade e a legitimidade de identificar as injustiças que sofrem as
mulheres. Por que motivo o feminismo tem acesso à "verdade" sobre
as mulheres? Se as reivindicações de verdade do direito são apenas os efeitos
do poder, o mesmo também não se poderá aplicar às reivindicações de verdade
feministas? Ou ainda, como questiona Drakopolou (1997: 116-117), se, como
afirma Smart, o discurso jurídico (e outros discursos disciplinares) tem um
efeito constitutivo tão poderoso, que versão não-construída da realidade das
mulheres está disponível fora do direito para as feministas compararem com as
construções jurídicas? Estas questões alertam- nos para a necessidade de uma
análise crítica dos pressupostos da epistemológicos das teorias feministas,
como se pretende desenvolver no presente dossiê temático da revista ex aequo.
Sandland (1995), nomeadamente, contesta a insistência de Smart na desconstrução
do direito, em vez da reforma do direito. Por um lado, ele argumenta que não é
possível decidir a priori entre a desconstrução e a reforma do direito
(Sandland, 1995: 28, 35). Além disso, questiona: serão a desconstrução e a
reforma do direito necessariamente excludentes, ou poderá a desconstrução do
direito ser, por vezes, realizada através da reforma do mesmo? No entender
deste autor, um processo de desconstrução que não se envolve com o direito
deixa o funcionamento do direito pronto para minar os ganhos obtidos noutros
lugares, mantendo o poder do direito fundamentalmente incontestado (Sandland,
1995: 47). Como defende Madalena Duarte a propósito da violência doméstica, é
fundamental que ativistas e autoras/es feministas continuem a perspetivar a
arena jurídica como um importante espaço de debate e reflexão que desafie o
cânone mais tradicional do direito, reconhecendo-o simultaneamente como reflexo
e reprodutor de um status quo em que prevalecem as relações sociais desiguais
de género, mas sem permitir que o Direito se feche em si mesmo (2012: 71).
Reflexões conclusivas
A abordagem de Carol Smart foi e continua a ser central para as análises
sociojurídicas do direito, bem como, para o ativismo jurídico feminista. Porém,
não posso deixar de concordar com as críticas de autoras/es como Hunter (2012),
Gavigan (2000), Lacombe (1998) ou Sandland (1995), entre outras/os, que revelam
como algumas das suas posições têm um caráter essencialista.
A conceção do direito como um discurso poderoso, que desqualifica a experiência
das mulheres e o conhecimento feminista e que produz e reproduz as identidades
genderizadas e sexuais das mulheres, permitiu ultrapassar falsas generalizações
ou universalismos, bem como erros "naturalistas" ou o designado
imperialismo de género das abordagens feministas anteriores. Contudo, a
abordagem de Smart cai, igualmente, num determinismo, ao reduzir a complexidade
das práticas sociais e das lutas a uma lógica unitária que trabalha,
principalmente, através do direito para reproduzir um corpo social unificado, a
mulher do discurso jurídico (Gavigan, 2000; Lacombe, 1998). Com efeito, o
direito não pode ser visto simplesmente como uma força determinante na
definição de "mulher", mas o direito deve ser pensado como um local
de luta sobre os significados de género (Chunn e Lacombe, 2000; Kapur, 2006).
Do mesmo modo, a estratégia feminista não deve correr o risco de fetichizar o
direito, e as lutas feministas não devem ser travadas exclusivamente ou mesmo
principalmente na arena jurídica, como defende Carol Smart. Pelo contrário, o
direito é apenas um local onde a hegemonia, ou nos seus próprios termos o
"discurso phallogocentric", deve ser desafiada. Porém, quando Smart
concebe o direito como tendo um caráter juridogenic e o método jurídico como
sendo fundamentalmente antifeminista, afirmando que a estratégia feminista deve
unicamente resistir e desafiar (a)o poder do direito, ela cai, novamente, no
determinismo de que tanto se quer afastar. Por um lado, o discurso jurídico
deve ser entendido como um discurso complexo e contraditório, que nem sempre
opera da mesma forma, nem produz os mesmos resultados, como sugere Kapur (2006:
102) e a própria Smart (1999) com o conceito de desenvolvimento desigual do
direito. Por outro lado, a natureza exclusiva das prescrições de Smart para a
estratégia feminista sugerem que há uma "verdade" sobre a
estratégia feminista (Drakopoulou, 1997). Ora, se as reivindicações de verdade
do direito são apenas os efeitos do poder, o mesmo também se pode aplicar a
reivindicações de verdade feministas (Hunter, 2012).
Por fim, importa referir que os desenvolvimentos não só na academia, como no
direito (law-as-legislation e law-as-practice), provaram que Smart estava
errada ao defender que a estratégia feminista não se devia
"comprometer" com as reformas e método jurídicos (Auchmuty e Van
Marle, 2012: 68). Não obstante, as teses de Carol Smart foram e continuam a ser
essenciais para o desenvolvimento tanto da(s) teoria(s) feminista(s) do
direito, como para o ativismo jurídico feminista, que ela criticava. Como tal,
o (atual) poder do feminismo deve muito à crítica, pós-estruturalista e pós-
moderna, de Carol Smart ao poder do direito.