Produção, transmissão e reequadramento do conhecimento por via da história das
mulheres: o caso da 1.ª républica
A história social e política da 1.ª República é, de certa forma, exemplar
quanto ao contributo da História das Mulheres e dos Estudos Sobre as Mulheres
na renovação das suas abordagens historiográficas.
A 1.ª República foi vivida no quotidiano por mais de três milhões de
portuguesas (mais de metade da população coeva) e, perfilhassem ou não aqueles
ideais, os seus percursos marcaram, mesmo, as trajetórias do país durante
aquele período (Pinto, 2010).
Atualmente, é adquirido o envolvimento político de alguns milhares na
preparação, triunfo, defesa e construção do novo regime, mediante continuada
intervenção individual e coletiva a partir de 1908, ano a que se assistiu à
tentativa consciente de republicanização das mulheres e à sua visibilidade
associativa e política (Esteves, 2008), assim como, do lado oposto, coexistiram
monárquicas (Stone, 2010, 2011) e católicas (Moura, 2010, 2011) não menos
empenhadas e ativas. Estas vivências revelaram-se antagónicas nos anos que
antecederam a República, não se cruzaram durante os dezasseis anos que ela
durou, nem mesmo durante o período da Guerra quando todas procuraram envolver o
país no apoio aos militares mobilizados para África e Europa e suas famílias,
procurando auxiliá-los, material e moralmente, e continuaram independentes na
vigência das Ditaduras Militar e do Estado Novo.
Celebrações da 1.ª República: silenciamentos e visibilidades
No entanto, recuando até 1960, aquando do quinquagésimo aniversário da
República, pouquíssimas mulheres mereceram citação, fotografia ou enquadramento
na historiografia daquele período, centrada na valorização unilateral dos
intervenientes masculinos, dando continuidade à omissão das incursões femininas
no espaço público na transição do século XIX para o XX.
Na década seguinte, Helena Neves (1972) introduziu na Seara Nova a problemática
«A mulher portuguesa no advento da República», com destaque de capa, e traçou,
na extinta revista Mulheres, em mais de duas dezenas de artigos de divulgação
junto do público feminino, a evolução dos movimentos de mulheres em Portugal,
caracterizando a imprensa, organizações, ideologias, reivindicações e lutas
durante a Monarquia, República e Estado Novo (Neves, 1979-1981). Por sua vez,
Maria José Madail Rosa (1979) realizou, na Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa, uma tese de licenciatura sobre a Liga Republicana das Mulheres
Portuguesas e, quase uma década depois, João Esteves (1988) concluiu, na
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, a
dissertação de mestrado em História dos Séculos XIX e XX sobre aquela
organização política e feminista.
A septuagésima quinta celebração (1985) passou, deliberadamente, quase
despercebida, no octogésimo aniversário destacou-se o texto de Fátima Ribeiro
de Medeiros (1991) sobre Ana de Castro Osório e na última década e meia, «As
Mulheres da República», enquanto objeto de estudo, adquiriram inusitada
relevância, beneficiando, em parte, do Centenário da República Portuguesa, com
as comemorações realizadas a nível nacional e local, fossem elas de carácter
oficial, académico, escolar ou associativo, estendendo-se ainda à edição, à
blogosfera e à comunicação social, a incluí-las enquanto intervenientes ativas.
Aliás, este incontestado interesse pelo papel das mulheres de há cem anos terá
constituído a sua caraterística mais inovadora e proeminente, extravasando o
espaço universitário e atraindo o interesse do público, de coletividades e da
imprensa.
Depois de arredadas dos manuais dos sucessivos ciclos de escolaridade (Alvarez,
2007), excluídas ou menorizadas em dicionários, enciclopédias, cronologias,
memórias, Histórias de Portugal e teses, situação exposta em repertórios
(Coelho et al.,1995), nas inventariações de Irene Vaquinhas (1996, 2000, 2002,
2003) e de Anne Cova (1999, 2003) e nas bibliografias detalhadas de Ana Nunes
de Almeida (1987), de Luís Esteves de Melo Campos (1989) e de Maria Regina
Tavares da Silva (1999), ausentes de conferências, colóquios e congressos
(Esteves, 2003), as atenções recaíram em catadupa sobre as protagonistas '
feministas, pacifistas, maçónicas, republicanas, sufragistas, monárquicas,
católicas, conservadoras ' no advento da revolução de Outubro de 1910,
resgatando-as e transformando- as, repentinamente, em «heroínas». Do lado
republicano e do lado monárquico e católico, em abordagens historiográficas
nunca antes tão claramente concretizadas.
O busto feminino da República foi revisitado enquanto símbolo do regime
triunfante, entretanto caído em desuso; as doutoras Adelaide Cabete e Carolina
Beatriz Ângelo emergiram como bordadeiras clandestinas de uma vintena de
bandeiras verdes e rubras usadas durante o 5 de Outubro; a mesma Carolina
converteu-se em referência sufragista ao contornar a lei eleitoral e votar em
1911, tornando-se a primeira mulher a fazê-lo em toda a Europa do Sul e uma das
primeiras a exercer esse direito em todo o mundo; despontaram aquelas que, pela
proximidade à monarquia e/ou religiosidade, intervieram na defesa de princípios
e valores agora ameaçados; desenterraram-se nomes locais; evidenciaram- se
episódios há muito olvidados; vislumbrou-se um associativismo pujante e
diversificado.
Passou-se da inexistência ou silenciamento das incursões femininas no espaço
público para a sua valorização e a temática «As Mulheres e a República» tornou-
se incontornável e até politicamente correta.
Momentos de mudança
O que é que de tão extraordinário sucedeu entre os anos 1980 e a primeira
década do século XXI para que se verificasse esta súbita transformação na
produção historiográfica, a par da crescente visibilidade junto da opinião
pública e em encontros científicos da área das Ciências Sociais e Humanas?
Por um lado, o papel desempenhado desde finais dos anos 1970 pela então
Comissão da Condição Feminina (CCF)/Comissão para a Igualdade e Direitos das
Mulheres (CIDM)/Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG) (Silva,
2013) e o trabalho precursor de valorização e divulgação de ativistas e
intelectuais das primeiras décadas do século XX. Por outro, durante a primeira
metade da década de 1980, a relevância que o enfoque nos papéis históricos das
mulheres ganhou nos meios académicos, explícita no colóquio A Formação de
Portugal Contemporâneo: 1900 ' 1980, organizado em dezembro de 1981 pelo então
Gabinete de Investigações Sociais e que contou com comunicações de Maria Regina
Tavares da Silva, Judite de Almeida Rodrigues e José Machado Pais na secção
«Cultura e Vida Quotidiana» (Análise Social, vol. XIX (77-78-79), 1983-3º-4º-
5º) e, depois, nos seminários e simpósios centrados na «Mulher» promovidos, em
1983, pela Comissão da Condição Feminina (Seminário de Estudos sobre a Mulher)
e, em 1985, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (Colóquio
Interdisciplinar sobre a Mulher em Portugal) e Instituto de História Económica
e Social da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (A Mulher na
Sociedade Portuguesa, envolvendo uma plêiade de historiadores e atraindo
numerosa assistência.
Na década seguinte, intensificou-se a edição de dissertações de Mestrado
publicadas no âmbito do Prémio Mulher Investigação Carolina Michaëlis de
Vasconcelos, patrocinado pelas Organizações Não Governamentais do Conselho
Consultivo da CIDM, nomeadamente Quotidianos Femininos (1900-1933) de Paulo
Guinote (1997), As mulheres no mercado de trabalho em Portugal: representações
e quotidianos (1890-1940), de Virgínia do Rosário Baptista (1999), e «Onde há
galo não canta galinha» ' Discursos femininos, feministas e transgressivos nos
anos vinte em Portugal, de Anne Martina Emonts (2001); implementaram-se os
Estudos Sobre as Mulheres (Cova, 1998), englobando núcleos localizados em meios
universitários (Souza, 2003); concretizou-se a criação de Mestrados, de que se
destaca o da Universidade Aberta, criado em 1994 e a funcionar desde 1995;
surgiram associações de investigadores ' APEM, em 1991 e APIHM, em 1997 ' com
resultados na promoção de colóquios temáticos e a publicação de duas revistas
nessa área ' ex-aequo e Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher ', ambas datadas
de 1999 e que se continuam a editar; a par da organização regular de encontros
multidisciplinares de caráter científico, académico e generalista.
No mesmo espaço temporal, Cecília Barreira publicou História das nossas avós
(Retrato da burguesa em Lisboa, 1890-1930) e António Candeias (1994), António
Nóvoa (1987, 1992), Helena Costa Araújo (2000) e Joaquim Ferreira Gomes (1987,
1991), entre outros investigadores da área das Ciências da Educação, produziram
estudos com enfoque na educação e instrução femininas e o papel das professoras
na transição do século XIX para o XX e primeiras décadas deste.
Individualmente, ou em simultâneo, tais iniciativas, algumas à margem das
cátedras universitárias, determinaram novos caminhos da investigação e
proporcionaram o aparecimento de uma bibliografia recente envolvendo a
transição da Monarquia para a República, a 1.ª República e a sua substituição
pelas Ditaduras, Militar e do Estado Novo, e que tem servido de referência a
outros olhares sobre esses períodos, redescobrindo os papéis femininos até há
pouco ignorados, secundarizados ou menosprezados.
Teses, estudos, exposições, catálogos, biografias, agendas, roteiros e
dicionários
Num curto espaço de tempo constituiu-se um alargado conjunto de estudos
abarcando catálogos de exposições, biografias, agendas e roteiros, dicionários,
livros didáticos, histórias e outras obras de referência.
Primeiro, os estudos centraram-se no associativismo feminino, envolvendo a Liga
Republicana das Mulheres Portuguesas (1908-1919), a Associação de Propaganda
Feminista (1911-1918), a Associação Feminina de Propaganda Democrática (1915-
1916) (Esteves, 1992, 1998a, 1998b) e o Conselho Nacional das Mulheres
Portuguesas (1914-1947) (Gorjão, 1994, Lamas, 1995, Esteves, 2006a, Costa
2007), e nas protagonistas republicanas (Armada, 2010, 2011), sendo ainda de
referir, para o período entre 1910 e 1926, a síntese Mulheres e Republicanismo
(1908-1928) (Esteves, 2008) e As Mulheres e a I República (Mariano, 2011).
Mas a análise mais abrangente desse período, por não se confinar ao
associativismo e olhar para a plenitude de mulheres que se cruzaram naquele
tempo, encontra-se no Catálogo Percursos, conquistas e derrotas das mulheres na
1.ª República (Pinto, 2010), referente à Exposição de 28 painéis com o mesmo
nome, organizada na Biblioteca Museu República e Resistência no âmbito das
Comemorações Municipais do Centenário da República, inserindo textos de Ilda
Abreu, Isabel Lousada, João Esteves, Maria do Céu Borrêcho, Maria Emília Stone,
Maria Lúcia de Brito Moura, Natividade Monteiro, Paulo Guinote, Teresa Pinto e
Zília Osório de Castro. Uma década antes, em 2001, organizara-se a Exposição
Quotidiano Feminino (1900-1940) (2001) por proposta de Paulo Guinote, cujo
Catálogo reuniu textos e 120 fotografias que procuraram retratar o universo
mental, social e político das mulheres naquelas décadas, combinando a esfera
pública (educação, trabalho, lazer e diversão, moda, cultura, política,
cidadania, marginalidade, prostituição) com aquela mais privada (do nascimento
à adolescência, namoro, casamento, maternidade, divórcio, adultério,
homossexualidade, corpo).
A obra coletiva Mulheres na I República: percursos, conquistas e derrotas
(Castro et al., 2011), prefaciada por Fernando Catroga e colaboração de Isabel
Baltazar, João Esteves, Maria do Céu Borrêcho, Maria Emília Stone, Maria Lúcia
Brito de Moura, Natividade Monteiro, Paulo Guinote, Sandra Leandro e Zília
Osório de Castro, deu continuidade à mesma perspetiva ao destacar as vivências
das mulheres, suas conquistas e derrotas, e abarcar a vertente política, fosse
ela republicana, monárquica ou católica, o associativismo, a intelectualidade,
o ensino, a educação, o trabalho, o teatro, as artes e as «marginalidades»,
representadas pela criminosa, a prostituta, a adúltera e a homossexual.
As biografias, uma das grandes deficiências da historiografia portuguesa
(Oliveira Marques, 2004), evoluíram e prosperaram na última década e meia,
enquanto género recuperado pela academia e junto do público generalista, sob a
influência, evidente, da História das Mulheres e dos Estudos Sobre as Mulheres.
Depois dos textos de Regina Tavares da Silva e, pontualmente, de Ana Vicente no
Boletim da Condição Feminina em finais da década de 1970, as biografias e
histórias de vida tiveram impulso significativo e impuseram-se. Sobre a
feminista e republicana Ana de Castro Osório escreveram-se: «A Coleção Castro
Osório ' Ana de Castro Osório (1872-1935)» (Esteves, 1997); Ana de Castro
Osório et le mouvement féministe portugais (Karine Coelho, 2000), Mémoire pour
l'obtention du DEA d'Etudes Portugaises Brésiliennes et de l'Afrique Lusophone,
sob a direção de Anne-Marie Quint; Ana de Castro Osório e as origens do
feminismo em Portugal (Moacho, 2003), dissertação de mestrado apresentada no
ISCTE sob orientação de Fátima Sá Melo Ferreira; e, recentemente, Ana de Castro
Osório e a Mulher Republicana Portuguesa: Veículo de Regeneração da Nação e de
Preservação da Identidade Nacional (Cordeiro, 2012), dissertação de mestrado
apresentada na Universidade de Minnesota e editada com prefácio de Fátima
Sequeira Dias.
Sob a orientação de Anne Cova, concluíram-se, na Universidade Aberta,
dissertações de mestrado versando Maria Lamas (Fiadeiro, 2003), Adelaide Cabete
(Eduardo, 2004), Domitila de Carvalho (Carvalho, 2004) e Maria Veleda
(Monteiro, 2004a, 2012). Não por acaso, tendo em atenção as respetivas
responsáveis, a CIDM, atual CIG, iniciou, em 2004, a publicação da Coleção Fio
de Ariana, dedicada a mulheres que lutaram pelos seus direitos cívicos e
políticos, de que se editaram Maria Veleda (1871-1955) (Monteiro, 2004b),
Carolina Beatriz Ângelo (1877-1911) (Silva, 2005) e Adelaide Cabete (1867-1935)
(Lousada, 2010), estando prevista a saída, em 2014, de Ana de Castro Osório
(1872-1935). Por sua vez, coincidindo com o centenário, a editora Fonte da
Palavra inseriu na coleção Livros República opúsculos dedicados a Adelaide
Cabete (Lousada, 2011) e Carolina Beatriz Ângelo (Garcia, 2011).
A mesma Comissão realizou, em outubro de 2004, a Exposição Fotobiográfica de
Elina Guimarães (1904-2004), comemorativa do centenário do nascimento da
jurista, feminista e defensora dos direitos das mulheres, e colaborou, em 2005,
com a Biblioteca Museu República e Resistência na Exposição dedicada a Maria
Veleda ' Uma Professora Feminista, Republicana e Livre-Pensadora, na sequência
das investigações feitas por Natividade Monteiro, ambas com edições de consulta
preciosa. O carácter biográfico estendeu-se a As Primeiras Damas da República
Portuguesa (1910-2005) (2006), nome da Exposição organizada pelo Museu da
Presidência da República em Outubro de 2005 que incluiu um núcleo centrado na I
República onde se valorizou, entre outros aspetos, a intervenção associativa de
Elzira Dantas Machado. A mesma temática mereceu, no âmbito da Coleção dedicada
às Fotobiografias dos Presidentes da República, a edição As Primeiras-Damas,
dividida cronologicamente em três períodos ' Primeira República (Esteves,
2006b), Ditadura Militar / Estado Novo, Democracia. Na sequência do centenário
da República, o Museu da Guarda dedicou uma exposição a Carolina Beatriz Ângelo
' Intersecções dos sentidos / palavras, actos e imagens ', cujo catálogo, sob
coordenação de Dulce Helena Pires Borges, registou a colaboração de escritos da
autoria de António Lopes, Dulce Helena Pires Borges, Isabel Lousada, João
Esteves, Madalena Braz Teixeira, Manuela Tavares, Maria Antonieta Garcia, Maria
do Sameiro Barroso, Maria Helena Carvalho dos Santos e Teresa Pizarro Beleza
(Borges, 2010).
Dentro do âmbito biográfico, por reconhecida influência da História das
Mulheres, é ainda de referir a tese de Mestrado em Comunicação e Jornalismo da
Universidade de Coimbra Virgínia Quaresma (1882-1973). A primeira jornalista
portuguesa (Seixas, 2004), sob orientação de Isabel Vargues; e as obras
Operárias e Burguesas. As mulheres no tempo da República (Samara, 2007) e
Carolina Beatriz Ângelo ' Guarda(dora) da Liberdade (1878-1911) (Garcia, 2009).
Um género que denota o crescente interesse pelas mulheres da República é o das
Agendas (As Mulheres e a República ' Agenda Feminista 2010, e Agenda 2009 para
a Igualdade) e dos Roteiros (2010), direcionados para o grande público, tendo
como pressupostos a releitura das fontes, a redescoberta daquelas enquanto
sujeitos e agentes da história e a sua divulgação.
O impacto da História das Mulheres estendeu-se, inegavelmente, aos dicionários,
com repercussões no Dicionário de Educadores Portugueses (Nóvoa, 2003),
contendo muitas dezenas de entradas de educadoras, professoras e pedagogas, e
Dicionário de História da I República e do republicanismo (2013, 2014).
Assumidamente, passou a haver consciência da valorização da pesquisa de nomes
femininos e da sua presença em obras de consulta. Por sua vez, o Dicionário no
Feminino (séculos XIX-XX) (Castro e Esteves, 2005) e Feminae. Dicionário
Contemporâneo (Castro e Esteves, 2014), projetos coletivos de dezenas de
estudiosos que, entre outros objetivos, procurou dar visibilidade a mulheres
que, dalgum modo, lutaram pelos seus direitos e/ou intervieram publicamente,
compreendendo, ainda, entradas sobre periódicos, instituições, congregações
religiosas, organizações, contêm relevantes dados para a época em análise. A
lista de autores/autoras e a comparação com dicionários anteriores, onde são
notórias as lacunas e ausências de nomes femininos, por mais relevantes que
fossem, evidenciam o quanto já se retificou nos enfoques a ter quando se estuda
a 1.ª República.
Também os livros didáticos, que condicionam, direta e indiretamente, a formação
anual de milhares e milhares de alunos e, simultaneamente, refletem a
historiografia dominante em cada época, têm sido reatualizados, apesar de se
notar que «a sub-representação e a estereotipia são os traços que caracterizam
as imagens de mulheres nos manuais escolares de História do ensino secundário,
nos conteúdos relativos à época contemporânea» (Alvarez, 2014: 364). Continua-
se a não valorizar a sua relevância «para o conjunto da sociedade de mulheres e
de homens, num dado momento histórico» (Alvarez, 2014: 366), embora se constate
a introdução pontual de mulheres ' Ana de Castro Osório, Carolina Beatriz
Ângelo, Carolina Michaëlis de Vasconcelos ', dando seguimento ao conteúdo
sexista há muito predominante, quer quanto a imagens, quer quanto a conteúdos.
Embora de forma muito incompleta, referia-se a multiplicidade de artigos
surgidos nos últimos quinze anos em periódicos espalhados pelo país e em
revistas de especialidade, uns mais de natureza teórico-metodológica, como os
publicados em ex-aequo, outros mais centrados em histórias de vida, como os
inseridos em Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher, e outros mais analíticos,
nomeadamente os incluídos na Análise Social, Ler História e Penélope, e que
revelam, indiscutivelmente, mudança e/ou ruturas de paradigma na abordagem aos
dezasseis anos da 1.ª República.
Um último reduto, quase inexpugnável, tem sido o das Histórias de Portugal,
onde as mulheres continuam a não ter destaque na narrativa enquanto sujeitos e
agentes históricos, ressalvando-se o texto, significativamente remetido para
Apêndice, «História no feminino: os movimentos feministas em Portugal» (Silva,
s./d.) na obra dirigida por João Medina. Combatida a exclusão e a ausência,
predomina a sua secundarização ou guetização nos capítulos referentes à
contemporaneidade, exatamente o período mais fértil na afirmação feminina nos
vários domínios do espaço público político, económico, cultural e social.
Rompendo fronteiras
O impacto destes estudos ultrapassou, nos últimos anos, as fronteiras
nacionais, ainda que de forma desigual. Depois de um prolongado desconhecimento
internacional do caso português, verificou-se na última década e meia
intercâmbio profícuo com as principais referências internacionais da área dos
Estudos sobre as Mulheres ' Ann Taylor Allen, Anne Cova, Bonnie S. Anderson,
Christine Bard, Efi Avdela, Françoise Thébaud, Gisela Bock, Karen Offen, Mary
Nash, Michela De Giorgio, Michelle Perrot, Michelle Zancarini-Fournel, Mônica
Raisa Schpun ', com a participação destas em encontros científicos no país.
Simultaneamente, avançou-se para a edição de alguns desses colóquios com
incidência nas perspetivas teóricas e metodológicas: Falar de Mulheres: Da
Igualdade à Paridade (Castro et al., 2003); Écrire l'Histoire des Femmes en
Europe du Sud: XIXe-XXe Siècles (Cova et al., 2003); Novos Olhares: Passado e
Presente nos Estudos Sobre as Mulheres em Portugal (Teresa Joaquim et al.,
2003); Desafios da Comparação: Família, Mulheres e Género em Portugal e no
Brasil (Cova et al., 2004); História Comparada das Mulheres: Novas Abordagens
(Cova et al., 2008); Falar de Mulheres: História e Historiografia (Castro et
al., 2008).
Se as obras de referência internacionais, sejam de matriz anglo-saxónica,
francófona ou castelhana, não incorporam a singularidade portuguesa ou abordam-
na sumariamente, pouco relevo lhe atribuindo nos estudos comparativos, seja sob
o ponto de vista fatual, interpretativo ou transnacional, há crescente
interesse na vizinha Espanha: Rosa M. Ballesteros García (2001) sintetizou o
movimento feminista português desde o despertar republicano à exclusão
salazarista (1909-1947), socorrendo-se de estudos parcelares já editados por
autores portugueses e da pesquisa de fontes nacionais, também trabalhadas e
dissecadas por aqueles, enveredando também por estudos de figuras femininas das
primeiras décadas. Mais recentemente, Ángeles Ezama Gil tem confrontado os
casos português e espanhol.
Autores a autoras
Se se atentar nos autores e autoras mencionados, constata-se que muitos e
muitas frequentaram Mestrados em Estudos Sobre as Mulheres, nomeadamente o da
Universidade Aberta, ou integraram associações e grupos de investigação por si
influenciados, podendo-se dizer que aqueles proporcionaram, mediante releitura
e revisão dos documentos e fontes primárias, a redescoberta das mulheres na
estruturação do passado, contrariando uma visão assexuada dos acontecimentos,
deram-lhes visibilidade ao centrar os olhares nelas e na história das relações
entre os sexos em múltiplos domínios, produziram novos estudos, influenciaram
muitos outros e facilitaram a sua divulgação quer entre a comunidade académica,
quer entre o público generalista. E não menos relevante, conseguiu- se
transformar em objeto de estudo todas as mulheres, e não apenas as experiências
singulares, e fazer chegar a um público alargado e heterogéneo o papel das
mulheres enquanto fazedoras da história.
Da «moda» de As mulheres e a República à reescrita da História
O caso da 1.ª República é, pois, particularmente significativo quanto à
absorção de influências via História das Mulheres, porque houve a preocupação
de desconstruir os silêncios que há muito as subjugavam e de integrar a
intervenção e vivências femininas nos diferentes domínios da sociedade e do
quotidiano, não as limitando nem à família, ao lar e à esfera privada, nem à
história política e associativa das vencedoras ' aquelas que enfileiraram no
republicanismo militante ', e das temporariamente vencidas ' monárquicas,
católicas e conservadoras, irmanadas até então no mesmo mutismo
historiográfico. Espaços, nomes, vozes, testemunhos de figurantes ou
protagonistas, episódios, vivências, percursos, factos, costumes,
domesticidade, trabalhos, empregos, profissões, educação, instrução, ensino,
assistência, crenças, beneficências, associativismo, imprensa ' feminina,
feminista, republicana, monárquica, literária, instrução e educação ', artes,
quotidianos e marginalidades (Guinote, 1997), até então subvalorizados,
mereceram ser olhados, estudados, divulgados e reenquadrados em abordagem
interpretativas plurais e multifacetadas.
O espaço público deixava de ser pertença exclusivamente masculina e a perceção
dessa contaminação adveio também, ou sobretudo, da História das Mulheres.
Talvez o exemplo mais paradigmático dessa simbiose esteja patente na mostra
intitulada Percursos, conquistas e derrotas das mulheres na 1.ª República, em
que «catálogo e a respetiva exposição conferiram centralidade às mulheres no
processo da Primeira República», não se confinando a «conferir identidades às
mulheres, ou a grupos de mulheres, através da sua inscrição no tempo, mas [ ]
contribuir para ressignificar o conhecimento histórico sobre o período
republicano » (Pinto, 2010: 13).
Porque as mulheres conquistaram visibilidade e a temática «As Mulheres e a
República» e o rótulo «no feminino» viraram «moda», é imperativo acautelar
riscos ' evidenciados pelo frenesim comemorativo e por imediatismos,
facilitismos e oportunismos ', como descontextualizações, anacronismos, visões
unilaterais, valorização de microcosmos, propagação dos mesmos enfoques,
baseados em fontes repetidas e restritas, ausência do seu escrutínio,
incorreções factuais, generalizações, mitificação de nomes e de acontecimentos,
textos laudatórios e inexistência de uma visão global. E como a investigação
também se deve rever na sua própria história, importa resgatar trabalhos
pioneiros da autoria de Fernando Catroga (1988), de Ivone Leal (1992, 1994) e
de Maria Regina Tavares da Silva.
Perante o recente volume de obras, estudos e artigos, importa: ler e reler as
fontes primárias; reescrever a História com homens e mulheres a formarem um
todo; integrar e enquadrar a republicanização feminina na própria dinâmica da
1.ª República, retirando-a de uma espécie de gueto histórico; revisitar
documentação; proporcionar outros olhares; integrar a dinâmica destas mulheres,
nem sempre coincidentes, e respetivos movimentos sociais no contexto histórico
mais vasto, não as confinando a painéis específicos de análise e de
interpretação. O seu acantonamento não é uma solução historiográfica.
Em síntese, a História das Mulheres e os Estudos Sobre as Mulheres
proporcionaram intercâmbios entre áreas do saber e integraram estudiosos de
formações e profissões diversas, com reflexos explícitos na produção
historiográfica recente. Influenciaram, mesmo se de forma indireta, a Academia,
percetível no número crescente de dissertações de mestrado e de doutoramento
envolvendo a temática das mulheres no âmbito da 1.ª República ou integrando-as
na análise desta (há quase trinta anos, em 1985, quando me propus fazer uma
dissertação sobre Ana de Castro Osório, esta foi considerada irrelevante e,
como tal, não merecedora de reflexão, quanto mais de uma tese). Não só
alargaram o universo documental, como impuseram outras abordagens, quer quanto
a conteúdos, quer quanto a metodologias, com as fontes a quebrarem silêncios, a
«falarem» das mulheres e a tornarem-se passíveis de outras reinterpretações e,
como tal, mais próximas da construção de uma História total e global, porque
inclusiva. Falta reescrevê-la e reconstrui-la, provavelmente de raiz, sabendo o
quão difícil e moroso é contornar o conservadorismo académico e institucional
que dificulta o reconhecimento dos contributos da História das Mulheres.
Por via da História das Mulheres houve, pois, produção. Transmissão e
publicitação, também. Reenquadramento? Reescrita? É o que urge aprontar. Uma
coisa é complementar e reformular a visão mais tradicionalista da República,
outra é reescrever a sua História, sendo este o salto decisivo que falta dar, e
o mais difícil, por implicar posturas historiográficas e de mentalidade (quase)
diametralmente opostas.
O caso da 1.ª República parece constituir uma (feliz) exceção, tendo vindo a
contaminar os períodos temporais contíguos.