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EuPTHUHu1645-00862009000200004

EuPTHUHu1645-00862009000200004

National varietyEu
Country of publicationPT
SchoolHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN1645-0086
Year2009
Issue0002
Article number00004

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Construção e validação de um questionário de valores e crenças sobre sexualidade, maternidade e aborto

Os termos gravidez e maternidade são muitas vezes confundidos e até usados como sinónimos, ainda sejam duas realidades distintas, e consequentemente com vivências psicológicas também diferentes, e que nem sempre coexistem (Leal, 1990).

Após a descoberta de uma gravidez não desejada, a mulher toma consciência da existência de duas alternativas à resolução da situação de conflito em que se encontra prosseguir ou interromper a gravidez. Confrontada com estas opções, a mulher tende a avaliar as vantagens e as desvantagens de ambas as alternativas, em função dos seus valores e das suas crenças (em relação ao aborto induzido e à maternidade), da desejabilidade da gravidez, dos ganhos ou perdas utilitários, antecipados para si e para os outros, bem como da antecipação de aprovação ou desaprovação por parte dos outros e do self (Leal, 2001).

Apesar da interrupção voluntária da gravidez (IVG) ser uma prática comum em todos os países do mundo e em quase todas as culturas desde os primórdios da história da humanidade (Faúndes & Barzelatto, 2004), a sensibilidade e a delicadeza da matéria são evidentes. A IVG, por opção da mulher, tem sido um tema controverso nas sociedades economicamente desenvolvidas. Abrangendo múltiplas perspectivas e mobilizando aspectos subjectivos (valores humanos, éticos, sociais, psicológicos e políticos) e objectivos (aspectos técnicos, económicos e sociais). Esta temática tem sido discutida e investigada em vários domínios do saber, tais como a Medicina, a Sociologia, a Biologia ou a Psicologia (Ribeiro & Araújo, 1998).

Do ponto de vista psicológico, a IVG pode ser entendida como uma experiência com importantes significações e implicações emocionais, intimamente relacionadas com as características de personalidade e as experiências prévias de cada mulher, as suas relações interpessoais, as suas crenças religiosas, as suas contingências de vida e o ambiente social, cultural e legal circundante (Stotland, 2000).

Esta constelação de variáveis pessoais, relacionais e sociais, moldam o processo de tomada de decisão de IVG e, consoante a sua natureza, facilitam ou dificultam este processo, condicionando as respostas emocionais das mulheres, face a esta resolução reprodutiva.

Para além da imensidade de factores de natureza individual que influenciam as vivências de uma mulher que engravida e opta por terminar a gravidez, existem também os factores de ordem sociocultural.

Os valores e ideais dominantes, não em relação à interrupção voluntária da gravidez, como à imagem de mulher, à sexualidade feminina e aos papéis de género, são características do meio sociocultural em que a mulher se encontra e influenciam muito significativamente as vivências de gravidez e aborto. Os contextos morais e sociais são suficientes para culpabilizar e desencadear angústias importantes nas mulheres que resolvem interromper uma gravidez (Leal, 2001).

Num país predominantemente católico, com valores enraizados em torno do significado da vida humana, apesar da recente legislação que despenaliza a IVG até às 10 semanas, estes valores e crenças que prevaleceram durante décadas mostram-se ainda dominantes.

De facto, o que a investigação nesta área tem demonstrado é que a decisão de interromper ou não uma gravidez depende da pressão, das normas sociais, leis, crenças e valores em relação a esse acto (Leal, 2001).

Sem dúvida alguma, é um fenómeno social dos mais complexos e multi- determinados, fazendo emergir opiniões divergentes, seja no campo ético, moral, emocional, cultural, religioso, ou no campo das relações de género. Talvez por não haver ainda o completo reconhecimento social das mulheres como adultos morais competentes, muitas vezes a IVG como solução reprodutiva é apresentada como uma decisão egoísta e fria. Segundo este ponto de vista, uma mulher que o realiza é vista como uma criminosa, como alguém que cometeu um delito (Zugaib, 1990).

No entanto, por mobilizar o auto-conceito e colocar à prova o julgamento moral acerca da questão que contrapõe toda uma trajectória de vida em sociedade, que lhes aponta ser a maternidade o seu destino, acreditamos que dizer não à maternidade através da prática do aborto pode afigurar-se como uma opção extremamente difícil e conflituosa para as mulheres.

Acreditamos também que, na origem dessa dificuldade está a permanência de um processo de socialização de papel de género estereotipado durante o qual se internaliza o sistema de crenças e valores predominantes na sociedade em relação à função procriativa da mulher (Pedrosa & Garcia, 2000).

Segundo Ardaillon (1997) tendo em conta os valores sociais predominantes, a decisão de abortar é sempre a resultante de negociações entre ideologia, realidade social e desejo. Esta autora acrescenta que para conciliar as suas convicções e valores com a decisão tomada, numa tentativa de minimizar o julgamento de si próprias pela transgressão do código moral, estas mulheres manipulam e transformam o significado do comportamento de modo a que assumisse o carácter de solução única. Num estudo realizado por Vilar (2001), sobre as representações do aborto em Portugal, para todas as mulheres entrevistadas, o recurso ao aborto é uma coisa negativa, que no entanto é aceitável pela maioria em circunstâncias precisas.

Mesmo assim, avaliando o seu próprio comportamento, estas mulheres consideram- no uma coisa errada, pecado, crime, algo que não é certo e que não se pode fazer, de acordo com a educação e valores que lhes foram transmitidos desde sempre (Pedrosa & Garcia, 2000).

Isto levanta questões mais profundas em torno dos papéis e funções de cada género. Segundo Tachibana, Santos & Duarte, (2006), se na década de 50, as mulheres tinham uma função materna bem definida, a qual se sobrepunha a todos os papéis tidos como femininos, a partir da década de 90, tais referenciais e valores são reestruturados. A maternidade passa a ser encarada como uma opção que pode ser adiada e até mesmo descartada, as mulheres passam a ser autorizadas a viver autenticamente a produção dos seus desejos.

No entanto, as mudanças em relação aos papéis de homens e mulheres na sociedade são recentes. Desta forma, é compreensível que, em relação às questões de género, práticas e valores tradicionais convivam com práticas e valores novos.

A forma como as sociedades associam papéis e características ao que é ser homem ou mulher tem implicações para a socialização dos sujeitos, nomeadamente face a decisões ainda tão controversas e polémicas como a de interromper uma gravidez.

Segundo Alvarez (1995), assistimos a um significativo regresso a valores e regras ditas tradicionais, salientando-se a Maternidade como um projecto central do Ser Mulher. Uma das representações sociais mais fortemente difundida no nosso país é a da maternidade como papel social por excelência a ser desempenhado por mulheres, a maternidade é, para um amplo conjunto da população portuguesa, condição de feminilidade (Almeida & Guerreiro, 1993, cit. por Marques, 2008). Os filhos têm, assim, um lugar central na família contemporânea, representando para os pais uma fonte de gratificação pessoal (Cunha, 2007). A máxima satisfação para a mulher não poderia ser ganha de outra maneira.

Tal como reforça Kamers (2006), as modificações da sexualidade e do olhar dirigido à mulher precederam uma grande transformação das relações de aliança, em que a mulher, em vez de ser reduzida ao papel de esposa ou mãe, foi-se individualizando, a partir da contracepção, prazer e procriação.

Hoje sabe-se que o desejo de maternidade não é instintivo, não é inato, é um desejo construído, um projecto que apesar de para muitas mulheres a maternidade ser fundamental para a sua realização pessoal, o amor materno não existe em todas as mulheres, nem em todos os momentos da sua vida.

O amor maternal é infinitamente complexo e imperfeito. Longe de ser um instinto, é condicionado por tantos factores independentes da boa natureza ou da boa vontade da mãe (...). Depende não da história pessoal de cada mulher, da oportunidade da gravidez, do seu desejo da criança, da relação com o pai, mas também de muitos outros factores sociais, culturais, profissionais, etc., diz-nos Badinter (1996). A associação destas duas palavras, amor e materno, significava não a promoção do sentimento, como também a elevação do estatuto da mulher enquanto mãe (Badinter, 1986). Ter um filho nunca foi considerado fácil, mas sempre foi referenciado como importante (Colman & Colman, 1994).

Apesar desta tendência para os papéis sexuais tradicionais se esbaterem, eles continuam ainda muito presentes na sociedade contemporânea.

Quando se fala de gravidez, muitas vezes esquece-se que está intimamente ligada à sexualidade, área onde houve mais mudanças para as mulheres durante as últimas décadas. No entanto, devemos destacar duas funções evidentes da sexualidade como área de prazer, comunicação e afectos e a sexualidade como função procriativa. A maioria das gravidezes ocorrem muitas vezes por haver confusão entre estes dois planos. Na realidade trata-se de dar significado ao comportamento sexual e de estar consciente da motivação que leva a uma experiência sexual (Zapiain, 1996). O autor reforça ainda que a maioria das pessoas situa-se bem nesta dupla dimensão e o comportamento sexual dirigido à procura do outro, à comunicação e ao prazer, está ligado ao uso coerente dos métodos contraceptivos que permitem distinguir ambas as funções.

De facto, as técnicas contraceptivas permitem que os filhos possam ser desejados. É uma conquista ainda recente, pelo que para algumas mulheres, o poder separar as necessidades afectivas e sexuais de uma gravidez não desejada não é fácil. Utilizar um método contraceptivo supõe fechar voluntariamente a porta da fecundidade e abrir a porta do prazer (Zapiain, 1996). É compreensível que um determinado sector de mulheres sexualmente activas tenham dificuldade em integrar a sua própria capacidade erótica.

As mulheres com um elevado nível de conflito, relativamente à integração da dimensão erótica na sua própria identidade de mulher, tendem a resistir à utilização de contraceptivos e a escolher os menos seguros (Zapiain, 1996).

Para Soifer (1980) quando uma mulher engravida é porque os seus sentimentos ambivalentes de querer e não querer ter um filho não se encontravam na mesma proporção no momento da fecundação. Esta questão da motivação inconsciente em engravidar pode ser percebida, de acordo com a autora, nas mulheres que afirmam não desejar engravidar mas que se esquecem de tomar a pílula ou usar preservativo (Tachibana et al., 2006) analisam como sendo actos falhados representantes do discurso inconsciente.

Numa linha de análise dinâmica, existem dois conceitos diferentes: o desejo de gravidez e o desejo de um filho. O primeiro reporta-se ao sentido simbólico, geralmente inconsciente, que tem a ver com a própria identidade da mulher. O segundo, refere-se ao desejo consciente de querer ter um filho inserido num projecto de vida (Passini, 1987).

Partindo destes pressupostos, a construção do presente questionário tem como principal objectivo conhecer as representações das mulheres sobre sexualidade, maternidade e aborto.

MÉTODO Material Tendo em conta o objectivo principal acima descrito, procedeu-se à construção de um questionário, com base em instrumentos utilizados na população portuguesa que incidiram sobre as representações da sexualidade e maternidade, bem como na revisão de literatura.

O referido instrumento, que designamos Questionário de Valores e Crenças sobre Sexualidade, Maternidade e Aborto (QVC) tem 38 itens e deve ser respondido numa escala de Likert de cinco pontos: discordo totalmente; discordo; nem concordo nem discordo; concordo; concordo totalmente.

Os itens são as que constam no Quadro 1.

Quadro 1 Itens do Questionário de Valores e Crenças

Participantes A amostra, recolhida por conveniência, é composta por 312 mulheres com idades compreendidas entre os 13 e os 62 anos, sendo a média de idades de 28.96 (DP=9.548). No Quadro 2 encontra-se a análise detalhada da composição da amostra.

Quadro 2 Características sócio-demográficas das participantes para aferição QVC

ESTUDO DAS PROPRIEDADES PSICOMÉTRICAS DO QUESTIONÁRIO Validade factorial A estrutura relacional dos itens do questionário foi avaliada pela Análise Factorial Exploratória (AFE) sobre a matriz das correlações, com extracção dos factores pelo método das componentes principais seguida de uma rotação Varimax.

Os factores comuns retidos foram aqueles que apresentavam um eigenvaluesuperior a 1, em consonância com o Scree Plote a percentagem de variância retida, uma vez que de acordo com Maroco (2007) a utilização de um único critério pode levar à retenção de mais/menos factores do que aqueles relevantes para descrever a estrutura latente.

Para avaliar a validade da AFE utilizou-se o critério KMO com os critérios de classificação definidos em Maroco (2007). Tendo-se observado um KMO=0.79, pro- cedeu-se à AFE. Os scores de cada sujeito em cada um dos cinco factores retidos foram obtidos pelo método de Bartlett implementado no SPSS. Estes scores foram depois utilizados nas análises inferenciais seguintes. Todas as análises foram efectuadas com o softwareSPSS 17.

Inicialmente, procedeu-se à análise da primeira versão do questionário com 38 itens, sendo depois retirados alguns itens devido ao reduzido peso factorial apresentado (<0.5) nos factores extraídos na Análise Factorial. O questionário obtido no final é composto por 17 itens. De acordo com a regra do eigenvaluesuperior a 1 e com o ScreePlot, a estrutura relacional dos itens em estudo é explicada por cinco factores latentes. No quadro 3 resumem-se os pesos factoriais de cada item em cada um dos cinco factores, os seus eigenvalues, a comunalidade de cada item e a percentagem de variância explicada por cada factor. A negrito apresentam-se os itens com pesos factoriais superiores a 0.45 em valor absoluto.

Quadro 3 Pesos factoriais de cada item nos cinco factores retidos,eigenvalues e percentagem de variância explicada, após uma AFE com extracção de factores pelo método das componentes principais seguida de uma rotação Varimax.

O primeiro factor apresenta pesos factoriais elevados dos itens 30, 31, 32, 33 e 34 e explica 23.9% da variância total. O segundo factor, com pesos factoriais elevados dos itens 6, 18 e 26 explica 12.5% da variância total. O terceiro factor, com pesos factoriais elevados dos itens 20, 21 e 23 explica 9.3% da variância total. O quarto factor apresenta pesos factoriais elevados dos itens 22, 28 e 29 explica 7.9% da variância total. Por último, o quinto factor, com pesos factoriais elevados dos itens 12, 14 e 15 explica 7.4% da variância total (no global, os cinco factores explicam 60.8% de variância total).

Adicionalmente, todas as comunalidades são relativamente elevadas, demonstrando que os cinco factores retidos são apropriados para descrever a estrutura correlacional latente entre os itens.

Fiabilidade A fiabilidade foi analisada sob o ponto de vista da consistência interna da escala, através do cálculo do Alpha de Cronbach.Os valores de Alphaencontrados para estas escalas são considerados indicadores da consistência interna razoável do instrumento.

Os cinco factores encontrados permitiram-nos a criação de cinco Sub-escalas. Os itens do primeiro factor (30, 31, 32, 33 e 34), Sub-escala Maternidade, pretendem avaliar a percepção da maternidade como projecto central do ser mulher.

A Sub-escala Reprodução, segundo factor (Itens 6, 18 e 26), avalia em que medida a sexualidade feminina é tida essencialmente como função procriativa.

Os itens referentes à Sub-escala Afectividade, terceiro factor (20, 21 e 23), avaliam em que medida a sexualidade feminina é sentida como uma área de partilha de afectos.

A Sub-escala Aborto(quarto factor) avalia as representações negativas acerca do aborto (itens 22, 28 e 29).

Por fim, o quinto factor, Sub-escala Prazer, avalia a percepção da sexualidade feminina como área de prazer (questões 12, 14 e 15)

Cotação O referido questionário deve ser respondido numa escala de Likert de cinco pontos: discordo totalmente; discordo; nem concordo nem discordo; concordo; concordo totalmente. A chave da cotação variava entre1e5,respectivamente. Os scores de cada sub-escala obtêm-se a partir do somatório das pontuações obtidas em cada item.

Considerou-se que quanto mais alta fosse a pontuação nas dimensões consideradas, maiores seriam as crenças em torno da maternidade como projecto principal da condição feminina; da reprodução como função primordial da sexualidade feminina; da sexualidade como partilha de afectos; piores as representações sobre o aborto; e maiores as crenças em considerar o prazer como função primordial na sexualidade feminina.

DISCUSSÃO A análise factorial deste instrumento identificou cinco dimensões capazes de explicar 61% da variância total. Para representar os factores, foram mantidos 17 itens dos 38 propostos no instrumento piloto. Os itens que permaneceram mostraram-se bastante representativos dos factores aos quais pertencem (cargas factoriais elevadas). Os resultados obtidos permitiram-nos construir uma escala cujas características de validade e fiabilidade são raoáveis e indicadora da pertinência do instrumento. Pretendemos futuramente criar uma versão melhorada com o objectivo de aumentar a consistência interna da escala.

De qualquer forma, este questionário parece-nos bastante útil para medir valores e crenças sobre as diferentes funções da sexualidade feminina, a gravidez, o desejo de maternidade e o aborto. Visando uma melhor compreensão das vivências psicológicas em torno da sexualidade feminina, do fenómeno da gravidez e das motivações para prosseguir ou interromper a mesma.

Este estudo reforça também a importância de trabalhar junto de técnicos, jovens e população geral, valores e crenças ligados às questões da sexualidade, maternidade, gravidez, aborto e papéis de género, onde se encontram valores enraizados, descontextualizados da realidade actual. Trabalhar ainda no sentido da sexualidade ser aceite como parte integrante de todo o ciclo vital do sujeito sob diversas formas, e as relações sexuais, como uma parte da sexualidade, para que sejam vividas como naturais e prazerosas.


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