Adaptação e estudo da escala de valor da saúde
A tentativa de compreensão de como e porquê determinadas populações manifestam
comportamentos prejudiciais para a sua saúde tem vindo a ser há muito uma das
questões centrais de investigação na área da Psicologia da Saúde (Rodin, &
Salovey, 1989).
A teoria da aprendizagem social de Bandura (1977, 2001) preconiza que o
indivíduo irá desempenhar um determinado comportamento (numa determinada
situação) em função da expectativa de que aquele comportamento conduzirá a um
resultado desejado e do valor que a pessoa atribui a esse mesmo resultado. Esta
teoria é evidenciada como um modelo importante no âmbito da modificação do
comportamento, considerando que uma dinâmica psicossocial subjaz a todos os
comportamentos relacionados com a saúde e com doença (Ribeiro, 1998).
A percepção da saúde, presente e futura, tem sido evidenciada como um
importante factor relacionado com o aumento da probabilidade de uma cessação
tabágica bem sucedida e fumadores motivados para a manutenção/melhoramento da
sua saúde (motivação interna) têm melhores probabilidades de conseguir parar de
fumar do que fumadores que manifestem uma motivação externa (por ex.,
influência social) (Clarke, & Aish, 2002). A literatura destaca ainda que
uma valorização significativa da saúde, assim como um locus de controlo interno
para a saúde, constituem variáveis importantes na predição de sucesso num
programa de cessação tabágica (Lau, Hartman, & Ware, 1986). A corroborar o
anterior, Chassin, Presson, Rose e Sherman (2001) e Grube, McGree e Morgan
(1986), concluem que, em comparação com não-fumadores, os fumadores valorizam
menos a sua saúde.
Assim, no contexto da investigação sobre a mudança de comportamentos com
impacto na saúde, torna-se pertinente averiguar a variável de valor da saúde na
medida em que esta poderá ser uma das variáveis a potenciar a mudança e porque,
tal como é evidenciado num estudo de Hanna, Faden e Dufour (1994) na área do
consumo de álcool, tabaco e outras substâncias nocivas para a saúde, não se
pode assumir que diferentes pessoas valorizem a sua saúde da mesma forma.
O conceito de saúde pode abranger aspectos físicos, psicológicos e sociais. A
literatura evidencia que é possível ordenar estes aspectos; assim, o valor da
saúde remete, em primeira instância, para a saúde física (Lau et al. 1986). É
referido pelos mesmos autores que o estado de saúde não se correlaciona com o
valor que a pessoa atribui à sua saúde.
Tal como decorre da teoria da aprendizagem social, a percepção do resultado ao
qual determinado comportamento pode conduzir, bem como o valor desse mesmo
resultado, influenciam a adopção de determinados comportamentos por parte das
pessoas (Chassin et al., 2001; Ribeiro, 1998). Chassin et al. (2001) referem
ainda que, durante os anos do ensino secundário, os adolescentes fumadores
percepcionam, por um lado, o consumo de tabaco como perigoso para a saúde e,
por outro lado, valorizam pouco a saúde. À luz destas evidências compreende-se
que os adolescentes continuem a adoptar o comportamento de fumar que, apesar
das consequências nocivas percepcionadas, conduzirá a resultados altamente
valorizados, tais como a identificação com os pares ou a aceitação social. Os
autores enfatizam igualmente que é apenas a partir dos vinte anos que se
verifica um aumento da valorização da saúde.
A literatura também explana que crenças de controlo sobre a saúde, aliadas a
uma valorização desta, encontram-se fortemente correlacionadas com a
manifestação de comportamentos de saúde preventivos (Lau et al., 1986). No
mesmo sentido, Kristiansen (1985) defende que o valor da saúde por si só prediz
a manifestação de comportamentos de cariz protector para a saúde. Assim, se uma
pessoa acredita que controla a sua saúde e tem acções para manter uma boa
saúde, então é esperado que valorize a sua saúde (Lau et al., 1986).
Lau et al. (1986) são da opinião de que a saúde como valor deveria ser
integrada de forma sistemática na investigação desenvolvida no âmbito dos
comportamentos relacionados com a saúde. Desta forma, os autores conceberam a
Escala de Valor da Saúdepara averiguar o valor que a pessoa atribui à sua
saúde.
MÉTODO
Material
Lau et al. (1986) desenvolveram uma escala com quatro itens que avalia o valor
conferido pela pessoa à sua saúde. A escala encontrava-se já traduzida, tendo
sido aplicada num estudo anterior; todavia, por se discordar da tradução de
alguns itens e por se desconhecer a condução de tradução e retro-tradução
independentes, procedeu-se a uma nova tradução (e subsequente retro-tradução
independente) do instrumento original em língua Inglesa.
Os quatro itens da escala são avaliados numa escala de Likert de 7 pontos
(correspondendo 1 a “discordo completamente” e 7 a “concordo completamente”).
Os itens 2 e 3, por estarem formulados na negativa, são cotados de forma
invertida.
Quanto mais elevado for o total obtido – dado pela soma das pontuações dos
quatro itens -maior será o valor atribuído pelo indivíduo à sua saúde.
Expõe-se de seguida a tradução portuguesa do instrumento (quadro 1).
Quadro 1
Escala de valor da saúde
Participantes
A amostra deste estudo transversal é de conveniência e constituída por
estudantes universitários fumadores (regulares e ocasionais) e ex-fumadores. No
total, preencheram os questionários de forma válida 380 participantes, isto é,
278 fumadores regulares, 63 ex-fumadores e 39 fumadores ocasionais.
No que concerne à idade dos participantes, verifica-se que a média da amostra é
igual a 23 anos (DP=4,375; Min.=17; Max.=47).
Em relação ao sexo, 82% da amostra é feminina: participaram neste estudo 68
homens e 312 mulheres.
RESULTADOS
Valor da saúde: fumadores regulares vs. ex-fumadores vs. fumadores ocasionais
No que concerne ao valor atribuído à saúde, e com uma probabilidade de erro de
5%, conclui-se que não se verificaram diferenças estatisticamente
significativas entre fumadores regulares, ex-fumadores e fumadores ocasionais,
no que concerne à distribuição desta variável.
Quadro 2
ANOVA one-way relativamente à distribuição da
variável valor da saúde
O valor elevado da média total (M=5,5500; D.P.=0,94128) da variável apoia a
conclusão de que os participantes (fumadores e ex-fumadores) valorizam a sua
saúde.
Sensibilidade dos itens e fiabilidade da escala
No que concerne à sensibilidade dos itens da escala, verifica-se que todas as
alternativas de resposta que os quatro itens oferecem foram usadas. No que
respeita aos valores de curtose (|k|< 7) e de enviezamento (|sk|< 3), conclui-
se que ambos são adequados.
Salienta-se que a escala obteve no seu estudo original um coeficiente de α de
0,67 e um coeficiente de teste – re-teste com o valor de 0,78, para um período
de seis semanas.
Na presente investigação a escala obteve um alpha de Cronbach igual a 0,62
(isto é, α< 0,70, valor a partir do qual o alpha de Cronbach é considerado
aceitável) o que é considerado um valor baixo de consistência interna. Dado que
o estudo foi transversal não se efectuou o re-teste.
Validade factorial do instrumento
No que respeita à análise factorial confirmatória da escala, observa-se que o
ajustamento do modelo não é perfeito [χ2(2)=11,599; χ2/gl=5,8; CFI=0,957;
RMSEA=0,113; P(rmsea≤0,05)=0,003].
A tabela seguinte explana os valores do peso factorial e da variância explicada
dos quatro itens.
Quadro 3
Análise Factorial Confirmatória
Apesar da literatura revista evidenciar que as pessoas que alteram o seu
comportamento no sentido de obter uma boa saúde valorizam de forma
significativa a saúde, na presente investigação não se verificam diferenças no
que concerne ao valor atribuído à saúde entre fumadores e ex-fumadores, ou
seja, fumadores regulares, fumadores ocasionais e ex-fumadores não valorizam a
saúde de forma diferente.
Pode-se encontrar várias hipóteses explicativas. Em primeiro lugar os ex-
fumadores podem ter deixado de fumar não (ou não apenas) por valorizarem a sua
saúde, mas motivados por outros factores.
Refere-se que os fumadores, apesar de manifestarem um comportamento (mais ou
menos consistente, no caso dos fumadores regulares) nocivo para a saúde, não
têm necessariamente de valorizar de forma diminuída a sua saúde para manterem
este comportamento. A manutenção do consumo pode persistir pelo facto de
atribuírem ao comportamento de fumar um valor também elevado (ou até mesmo mais
elevado do que o valor atribuído à saúde) e que permita manter um comportamento
prejudicial (mas mais valorizado) para a saúde.
Um campo que tem vindo a receber atenção neste âmbito são as percepções de
risco.
A maior parte das pessoas concorda que o consumo de tabaco é perigoso para a
saúde (Chapman, Wong, & Smith, 1993; Hermand, Mullet, & Coutelle,
2001). Contudo, existe uma diferença significativa entre a percepção do risco
geral e do risco pessoal; assim, a investigação documenta que, no que concerne
à percepção do consumo de tabaco como um factor de risco para a saúde do
próprio, fumadores, em comparação com ex-fumadores e não-fumadores, subestimam
as consequências nefastas que fumar tem na sua saúde (Chapman et al., 1993;
Chassin et al., 2001; Moran, Glazier, & Armstrong, 2003; Oakes, Chapman,
Borland, Balmford, & Trotter, 2004; Willaing, Jǿrgensen, & Iversen,
2003).
O presente estudo documenta que (apesar de não existirem diferenças
significativas entre fumadores regulares, ex-fumadores e fumadores ocasionais)
os participantes valorizam a sua saúde (numa escala de 1 a 7, as médias obtidas
são elevadas: MédiaF.Reg.= 5,5; MédiaEx-f.= 5,6; MédiaF.Oc= 5,8).
O facto de as pessoas valorizarem a saúde e fumarem de forma significativa pode
ficar a dever-se, como já foi referido anteriormente, ao facto de não
considerarem este comportamento como comportando um risco significativo para a
sua saúde.
Este fenómeno é explicado pela teoria da dissonância cognitiva de Festinger
(1957) que preconiza a necessidade de existir uma consonância entre
comportamento e atitudes e que, na presença de inconsistência (que é
psicologicamente desconfortável), o indivíduo tentará reduzir o estado de
dissonância (Oakes et al., 2004).
No que concerne ao consumo tabágico, o fumador poderá 1) alterar o
comportamento (ou seja, deixar de fumar) ou então 2) modificar as suas crenças
em relação aos malefícios do consumo de tabaco (tal pode ser efectuado, por
exemplo, através da distorção da informação veiculada pelos media ou
instituições relacionadas com a saúde).
A literatura evidencia que o último parece ser mais fácil de obter do que a
modificação do comportamento de risco. Willaing et al. (2003) salientam que já
em 1966 existiam evidências de que os fumadores da população geral tendiam a
distorcer a informação, no que concerne à associação entre consumo de tabaco e
cancro do pulmão. A investir no sentido de diminuir esta dissonância cognitiva
encontra-se, por exemplo, o segmento de mercado dos cigarros com filtro que,
indo ao encontro do desejo do consumidor de acreditar que reduz de forma
efectiva o risco de doença, contribui para o desenvolvimento de comportamento
de lealdade para com o produto (Cummings, Giovino, Hastrup, Bauer, &
Bansal, 2003).
A investigação mais recente continua a apontar na mesma direcção: de acordo com
Oakes et al. (2004), o acto de fumar não é “sentido” como perigoso pelos
fumadores e por isso conseguem percepcionar este comportamento como algo que
não comporta um risco real para a sua saúde.
Porém, pode ainda colocar-se a hipótese de o facto de os fumadores não
percepcionarem o acto de fumar como perigoso para a saúde se dever não à já
referida distorção da informação (adquirida) -com vista a redução de
dissonância cognitiva – mas antes a um desconhecimento real (falta de
informação) das consequências danosas do tabaco. Isto porque, de acordo com
vários estudos citados por Sejr e Osler (2002), os estudantes universitários
(nomeadamente do primeiro ano do curso de enfermagem) têm um conhecimento pobre
sobre as consequências de fumar (manifestando igualmente atitudes negativas
para com a prevenção deste comportamento de risco).
Outros estudos sublinham que fumadores com uma idade mais avançada manifestam
menos conhecimento em relação aos riscos objectivos que fumar comporta para a
saúde, quando comparados com pessoas mais novas (Oakes et al., 2004).
Na medida em que não existe um consenso quanto à acuidade da informação que as
pessoas têm (no que concerne aos riscos reais de fumar) seria pertinente a
averiguação desta questão num estudo futuro.
Pode ainda explicar-se o acto continuado de consumir tabaco através da teoria
do comprometimento da tomada de decisão. Dado que o acto de fumar reflecte
necessidades imediatas, tais como a redução de tensão e o aumento da
concentração, a manutenção deste comportamento implicaria “a incapacidade de
integrar experiências antecedentes e disponíveis e conhecimento sobre situações
semelhantes e diferentes opiniões/resultados de pares” (Bechara, Damásio, &
Damásio, 2000, cit. por Harmsen, Bischof, Brooks, Hohagen, & Rumpf, 2006,
pp. 2).
Assim, as pessoas com a capacidade de tomada de decisão comprometida, mesmo
tendo consciência das perdas que determinada opção poderá acarretar, optam
geralmente pela alternativa que conduz a benefícios imediatos, mesmo que ela
conduza também a perdas significativas a longo prazo.
Não obstante o anteriormente salientado – e na linha da percepção distorcida
que os fumadores poderão ter em relação ao risco associado ao consumo de tabaco
– Cummings et al. (2003) referem que os fumadores tendem a ser exageradamente
optimistas na avaliação que fazem do risco ao qual estão sujeitos
(nomeadamente, no que concerne ao desenvolvimento de doenças) por fumarem.
Neste âmbito, sublinha-se que indivíduos que são na realidade mais susceptíveis
que as demais pessoas de desenvolver determinada(s) patologia(s), tendem a
manifestar um enviusamento optimista que se traduz na percepção de que o
próprio é menos vulnerável (ou tão vulnerável como) do que os outros indivíduos
que não incorrem nesse risco específico de contracção de determinada(s) doença
(s) (Cummings et al., 2003). Prokhorov et al. (2003) chegam a esta mesma
conclusão no seu estudo, comparando estudantes universitários fumadores e não
fumadores.
No caso de indivíduos fumadores isto tem sido evidenciado e esta percepção
irrealista pode dever-se à crença de que o indivíduo será capaz de deixar de
fumar antes de começar a ter problemas de saúde (Cummings et al., 2003).
Destaca-se ainda que o consumo de tabaco está associado à obtenção imediata de
algo positivo (reforço positivo), seja a sensação de prazer ou o apaziguamento
de ansiedade; as consequências nocivas mais significativas manifestam-se apenas
a médio/longo prazo, o que também permite manter o comportamento prejudicial
para a saúde ao mesmo tempo que se atribui um valor elevado à mesma.
Isto está patente nas abordagens cognitivas no campo dos comportamentos de
risco para a saúde: a pessoa que manifesta um comportamento de risco deve 1)
subestimar o risco que essa acção comporta ou 2) percepcionar benefícios
compensadores aliados ao comportamento (Goldberg & Fischhoff, 2000). Assim,
se uma percentagem significativa de fumadores menospreza o risco, é pouco
provável que percepcionem este comportamento como sendo prejudicial para a
manutenção da saúde que, tal como a presente investigação evidencia, é
valorizada (MédiaF.Reg.= 5,5; MédiaEx-f.= 5,6; MédiaF.Oc= 5,8).
A literatura evidencia que os fumadores que percepcionam a sua saúde como
estando em risco terão maior probabilidade em deixar de fumar (Clarke &
Aish, 2002). Daqui decorre a pertinência de, em estudos futuros, controlar esta
variável (percepção de risco) para uma compreensão mais completa do fenómeno e
atribuir-lhe destaque na estruturação de programas de cessação tabágica.
No que concerne ao instrumento estudado, sobressai que a escala de valor da
saúde apresenta uma sensibilidade adequada; todavia, a consistência interna é
baixa e o modelo unifactorial apresenta um ajustamento inadequado dado que
apenas os itens1 e 4 apresentam uma relação forte com a escala.
No que concerne à escala de valor da saúde, e apesar da variável de valor da
saúde ser largamente pesquisada, a análise das características psicométricas
deste instrumento comprova que, numa amostra de 380 alunos do ensino superior,
esta escala não é adequada para medir a variável em questão.