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EuPTHUHu1645-00862012000100010

EuPTHUHu1645-00862012000100010

National varietyEu
Country of publicationPT
SchoolHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN1645-0086
Year2012
Issue0001
Article number00010

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Impacto da exposição a incidentes críticos na saúde e bem-estar psicológicos dos tripulantes de ambulância Impacto da exposição a incidentes críticos na saúde e bem-estar psicológicos dos tripulantes de ambulância Impact of expousure to critical incidents in health and psychological well- being of emergency ambulance personnel Actualmente, tem-se assistido a uma multiplicidade de situações que ameaçam as populações, como as guerras, os atentados, e as catástrofes naturais, nomeadamente sismos e tsunamis. Perante estas situações é imprescindível que as equipas de socorro estejam prontas para intervir imediata e eficazmente, o que pode constituir um desafio para a sua saúde física e mental. Neste sentido, parte das investigações com equipas de emergência têm-se concentrado sobre a avaliação da sintomatologia e respostas de stress a grandes incidentes (Fullerton, Ursano, & Wang, 2004), no entanto estas equipas estão mais expostas a eventos de menor escala, tais como acidentes de viação, paragens cárdio-respiratórias e doenças súbitas (Clohessy, & Ehlers, 1999). Como a intensidade do impacto é independente da dimensão do evento (Marmar, Weiss, Metzler, & Delucchi, 1996), na última década surgiu um crescente reconhecimento da importância de avaliar as equipas de socorro na sua prática diária.

Um número de estudos recentes mostra que os operacionais de emergência relatam uma grande variedade de stressores, incluindo a constante exposição a incidentes de carácter traumático (Jonsson, Segesten, & Mattsson, 2003).

Esta exposição externa refere-se a factores físicos e psicossociais do ambiente de trabalho que causam uma exposição interna do corpo (Aasa, Barnekow- Bergkvist, Angquist, & Brulin, 2005). Exemplo disso é os operacionais serem confrontados com situações que envolvem a dor, o sofrimento humano, a morte e crianças (Regehr, Goldberg, & Hughes, 2002; Jonsson, Segesten, & Mattsson, 2003; Van der Ploeg, & Kleber, 2003; Jonsson, & Segesten, 2004). Durante a exposição a estes eventos, o operacional pode perder a noção do tempo, entrar em "piloto automático", "ficar em branco", ter a impressão de que está a ter um sonho ou a ver um filme, ter a sensação de que está a flutuar, sentir-se desligado do próprio corpo ou ter a sensação de distorção corporal, embotamento emocional e amnésia de algumas partes do acontecimento (Marmar, Weiss, Metzler, & Delucchi, 1996). A esta experiência chamamos dissociação peritraumática. Estudos na área do trauma consideram que estes sintomas dissociativos, a exposição e interpretação do acontecimento, a percepção e avaliação da ameaça são predictores do desenvolvimento de perturbação psicológica posterior (Fullerton, Ursano, & Wang, 2004; Bennett, Williams, Page, Hood, Woollard, & Vetter, 2005). A perturbação pós-stress traumático (PPST) é um desses diagnósticos, que se refere ao desenvolvimento de sintomas específicos após a exposição a um stressor traumático, implicando uma experiência pessoal directa, observação ou conhecimento (Corneil, Beaton, Murphy, Johnson, & Pike, 1999; Alexander, & Klein, 2001). No contexto da emergência pré-hospitalar a prevalência de sintomas de PPST é superior a 20% (Wagner, Heinrichs, & Ehlert, 1998; Clohessy, & Ehlers, 1999; Haslam & Mallon, 2003; Jonsson, & Segesten, 2004; Sterud, Ekeberg, & Hem, 2006). Contudo, alguns estudos indicam que na maioria dos casos os sujeitos apresentam vários sintomas, embora não os suficientes para diagnosticar a PPST. Em Portugal, os poucos estudos existentes nesta área referem que os socorristas e os bombeiros apresentam sintomas significativos da PPST (Fernandes, & Pinheiro, 2004; Marcelino, & Figueiras, 2007), enquanto os enfermeiros e os médicos apresentam uma baixa prevalência de PPST (Maia, & Ribeiro, 2010). A exposição diária aos incidentes críticos, a dissociação perante estas situações, o suporte social pobre e os longos anos de experiência têm sido considerados importantes predictores da PPST (Marmar, Weiss, Metzler, Ronfeldt, & Forman, 1996). É ainda de salientar a importância das diferenças individuais como o sexo, a idade, a escolaridade, a personalidade e a experiência prévia perante uma situação traumática, como chave determinante da intensidade e duração dos sintomas (Regehr, Hill, & Glancy, 2000; Alexander, & Klein, 2001; Smith, & Roberts, 2003).

Mas a PPST não é a única consequência da experiência ao trauma. A exposição ao trauma está também associada a diversas modificações biopsicosociais que podem afectar a saúde de uma forma diversa. A ansiedade, a depressão, a dependência de substâncias, tais como tabaco, álcool e cafeína, a fadiga, o burnout, dificuldades de relacionamento interpessoal, a dor física ou queixas de saúde persistentes, são também diagnósticos frequentes neste contexto (Wagner, Heinrichs, & Ehlert, 1998; Van der Ploeg, & Kleber, 2003; Bennett, Williams, Page, Hood, & Woollard, 2004, Aasa, Brulin, Angquist, & Barnekow-Bergkvist, 2005; Van der Velden, Kleber, & Koenen, 2008). Um dos efeitos que tem sido estudado em vítimas de trauma é a relação com a saúde "pobre", nomeadamente com as queixas de saúde sem explicação médica. Alguns estudos referem que a exposição ao trauma e a PPST são predictores das queixas de saúde, nomeadamente sugerem que os efeitos da exposição ao trauma na saúde são mediados pela presença da PPST (Orcutt, Erickson, & Wolfe, 2002). Este dado revela que a experiência de trauma vai provocando efeitos psicológicos negativos que eliminam a resiliência e os recursos adaptativos, tornando as diversas dimensões da saúde mais vulneráveis (Bennett, Williams, Page, Hood, Woollard, & Vetter, 2005; Sterud, Ekeberg, & Hem, 2006).

A literatura reforça a ideia de que o grau e o tipo de exposição diária a que os operacionais de emergência pré-hospital estão sujeitos, o contexto e condições de trabalho e as exigências psicossociais estão associadas ao desenvolvimento de sintomatologia diversa, o que constitui factores de risco para a saúde mental e bem-estar psicológico. Neste sentido, este estudo tem como principal objectivo avaliar o impacto da exposição a incidentes críticos na saúde e bem-estar psicológico dos tripulantes de ambulância Portugueses.

Especificamente: (1) caracterizar a exposição e a sintomatologia associada aos incidentes críticos; (2) investigar se existem diferenças na sintomatologia em função do sexo, exposição ao trauma e regiões geográficas de trabalho; (3) investigar a relação entre a exposição ao trauma, sintomatologia, e variáveis sócio-demográficas; e (4) identificar que se a PPST é mediadora da relação entre a exposição ao trauma e o impacto nas queixas de saúde e o bem-estar psicológico.

Método Participantes A amostra foi constituída por 250 tripulantes de ambulância de Corpos de Bombeiros das cinco regiões do país, 152 pertencem ao sexo masculino (61%) e 98 ao sexo feminino (39%), com idades compreendidas entre os 18 e os 54 anos (M=32, d.p.=8.3), em que a média de idades do sexo masculino (M=33.93, d.p.=7.99) é estatisticamente superior à do sexo feminino (M=28.17, d.p.=7.57; t=-5.66, p=.000). Aproximadamente metade dos participantes é solteira (45%) e tem o ensino básico (49%). Relativamente à actividade profissional, os tripulantes têm em média 11 anos de serviço (d.p.=7.80) e a maioria acumula a actividade em regime de assalariado e voluntariado (64%).

Material As variáveis sócio-demográficas recolhidas foram a idade, sexo, habilitações literárias e estado civil. Foram ainda recolhidos dados relacionados com a região geográfica de trabalho, número de anos de serviço, satisfação profissional ("De que maneira está satisfeito com o seu trabalho?", opções de resposta de 1 a 5: nada satisfeito, pouco satisfeito, mais ou menos satisfeito, satisfeito, muito satisfeito), relação com os colegas ("Como considera as suas relações com os colegas de trabalho?", opções de resposta de 1 a 5: muito más, más, razoáveis, boas, muito boas), consumo de substâncias ("Habitualmente consome alguma(s) das seguintes substâncias?", resposta de sim/não para café, álcool, tabaco, drogas leves) e auto-avaliação da saúde ("Como avalia a sua saúde neste momento?", resposta dada numa escala de Likert de 7 pontos: de (1) terrível a (7) excelente).

Questionário de Experiências Dissociativas Peritraumáticas (QEDP) ' Para avaliar as respostas dissociativas durante um acontecimento foi utilizado a versão traduzida e adaptada do Peritraumatic Dissociative Experiences Questionnaire (Maia, Moreira, & Fernandes, 2009). Este instrumento é constituído por 10 itens, com uma escala de resposta do tipo Likert de 5 pontos: nada verdadeiro (1) a muitíssimo verdadeiro (5). Assume-se a presença de sintomas peritraumáticos significativos quando os valores são superiores a 1.5. Os autores da versão portuguesa encontraram um alpha de Cronbach total de 0.87, e neste estudo o alpha foi de 0.93.

Perturbação Pós-Stress Traumático (PPST) - Recorreu-se à PTSD Checklist-versão civis (PCL-C, Weathers, Litz, Herman, Huska, & Keane, 1993; versão experimental portuguesa traduzida pelos autores, em preparação para publicação), para avaliar a sintomatologia da PPST com base nos critérios de diagnóstico do DSM-IV. Esta medida tem duas partes: uma parte inicial que pretende avaliar se os indivíduos vivenciaram algum acontecimento traumático ao longo da sua vida e durante a actividade profissional (critério A); A segunda parte avalia os 17 sintomas descritos nos critérios B (reexperienciar), C (evitamento) e D (hiper-activação) do DSM-IV-TR. As respostas são dadas numa escala de Likert de 5 pontos, em que 1 é "Nada" e 5 é "Extremamente". O alpha de Cronbach total da escala encontrado neste estudo foi de 0.94 (reexperienciar a=0.88; evitamento a=0.88; hiper-activação a=0.90), valor bastante superior ao encontrado pelos autores da escala original (a=0.81).

Saúde Mental (MHI) - Foi utilizada a versão traduzida e adaptada do Mental Health Inventory (Ribeiro, 2001) para avaliar o distress e o bem-estar psicológico. Este instrumento é constituído por 38 itens que se distribuem por cinco sub-escalas (ansiedade, depressão, perda de controlo emocional e comportamental, afecto positivo e laços emocionais), que por sua vez se agrupam em duas escalas (distress psicológico e bem-estar psicológico). As respostas são dadas numa escala ordinal de 6 pontos, em que valores mais elevados correspondem a uma melhor saúde mental. O autor da versão portuguesa da escala encontrou um alpha de Cronbach total de 0.96 (distress psicológico a=0.95; bem- estar psicológico a=0.91), e neste estudo o alpha total foi de 0.97 (distress psicológico a=0.96; bem-estar psicológico a=0.93).

Queixas Subjectivas de Saúde (QSS) - Utilizou-se a versão traduzida e adaptada da Subjective Health Complaint Scale (Alves, & Figueiras, 2008) para avaliar com que frequência sentiram 23 sintomas físicos no mês anterior. Esta escala é constituída por cinco dimensões: problemas gastrointestinais, gripe, dores músculo-esqueléticas, alergia e pseudoneurologia. A escala de resposta é de quatro pontos, variando entre nenhuma vez (0) a muitas vezes (3). Na versão portuguesa da escala o alpha de Cronbach total foi de 0.88, e neste estudo o alpha total foi de 0.89 (problemas gastrointestinais a=0.81; gripe a=0.60; dores músculo-esqueléticas a=0.88; alergia a=0.66; pseudoneurologia a=0.79).

Procedimento Após a autorização da Autoridade Nacional de Protecção Civil (ANPC) e dos Comandantes dos Corpos de Bombeiros, foram enviados os respectivos questionários através da ANPC para os Bombeiros, juntamente com um conjunto de informações sobre os objectivos do estudo e os procedimentos a adoptar, salientando a protecção dos dados pessoais e a participação voluntária. Os Comandantes fizeram a distribuição e recolha dos questionários anónimos, e posteriormente enviaram os exemplares preenchidos em envelope fechado.

Análise Estatística Foi utilizado o software estatístico IBM SPSS Statistics 19 para cálculo das medidas de tendência central e de frequências, comparações de médias através do Mann-Whitney U Test e doKruskal Wallis Test, e correlações de Spearman's rho. O modelo de mediação foi analisado com o software AMOS 19.

RESULTADOS Exposição ao trauma e sintomatologia A maioria dos tripulantes de ambulância (71%) refere ter vivenciado pelo menos um acontecimento considerado traumático no decorrer do seu trabalho. No entanto, mencionam que não é possível fazer uma contabilização do número de vezes que passaram por essas situações. Os acontecimentos são auto-avaliados como bastante traumáticos (M=4.97, d.p.=1.67), salientando-se os acidentes de viação (35%) e as paragens cárdio-respiratórias (13%) como os mais marcantes.

No seguimento destes acontecimentos apenas 3% dos tripulantes tomou medicamentos e 2% esteve de baixa médica ou recebeu apoio psicológico. A média dos sintomas dissociativos é de 1.60 (d.p.=0.70), verificando-se a presença de sintomas peritraumáticos significativos durante o acontecimento em 100 tripulantes (40%) (Quadro 1). O número médio de sintomas da PPST é de 1.67 (d.p.=0.72), e apenas 25 tripulantes (10%) apresentam sintomas compatíveis com o diagnóstico da PPST. Os índices de saúde mental, nomeadamente de distress psicológico e de bem-estar psicológico são 4.70 (d.p.=0.79) e 4.27 (d.p.=1.00), respectivamente (Quadro 1).

Quadro 1 - Caracterização da sintomatologia associada aos incidentes críticos vivenciados (n=250).

Consumo de substâncias, queixas e auto-avaliação da saúde Relativamente ao uso regular de substâncias, 84% (n=209) ingere café e 22% álcool (n=55), 38% (n=95) consome tabaco e 2% (n=4) drogas leves. Durante as 4 semanas anteriores ao questionário, 87% dos participantes manifestaram pelo menos uma queixa subjectiva de saúde, destacando-se com maior incidência as dores músculo-esqueléticas (M=1.20, d.p.=0.97) e pseudoneurológicas (M=1.03, d.p.=0.76) (Quadro I). Os tripulantes fazem uma auto-avaliação geral da saúde como boa (M=5.26, d.p.=1.03).

Satisfação profissional e relação com os colegas A maioria dos participantes estão satisfeitos com o trabalho (59%, n=147) e 16% estão muitos satisfeitos. As relações com os colegas são boas (54%) ou muito boas (17%).

Diferenças de sexo, exposição ao trauma e região de trabalho Não se verificou diferenças de sexo nos sintomas de PPST e de dissociação, no entanto os homens estão mais expostos a situações traumáticas, têm mais antiguidade na profissão e consomem mais café e álcool, enquanto as mulheres apresentam mais distress psicológico e mais queixas subjectivas de saúde (Quadro 2). Os tripulantes que estiveram expostos ao trauma apresentam mais sintomas de PPST e de dissociação peritraumática, mais queixas de saúde, consomem mais cafeína e consequentemente fazem uma pior avaliação da sua saúde e apresentam menor bem-estar psicológico (Quadro 2). Relativamente às regiões geográficas de trabalho, a análise indica que os tripulantes de ambulância da região do Algarve apresentam menor exposição ao trauma (X2KW(4)=44.242; p=.000), menos sintomas de PPST (X2KW(4)=13.450; p=.009), menos dissociação peritraumática (X2KW(4)=14.207; p=.007), e menos queixas de saúde (X2KW (4)=13.440; p=.009) (Figura 1).

Quadro 2 - Diferenças (Mann-Whitney U Test) de sexo e da exposição ao trauma nas variáveis em estudo (n=250).

Figura 1 Diferenças (Kruskal Wallis Test) nos sintomas entre as regiões geográficas (n=250).

Diferenças (Kruskal Wallis Test) nos sintomas entre as regiões geográficas (n=250).

Associação entre as variáveis Foram utilizadas correlações de Spearman's rho para analisar possíveis relações entre o de anos de serviço, satisfação profissional, relações com os colegas, consumo de substâncias, auto-avaliação da saúde, exposição ao trauma, dissociação, PPST, distress, queixas de saúde e bem-estar psicológico (Quadro 3). Os resultados indicam uma associação positiva entre a exposição ao trauma e os sintomas (dissociação, sintomas de PPST, distress, e queixas de saúde) e uma associação negativa destes com a auto-avaliação da saúde e o bem- estar psicológico. A PPST está positivamente correlacionada com o de anos de serviço. O consumo de substâncias não apresenta correlações significativas. A satisfação profissional e as relações com os colegas estão associadas a menos distress, ao bem-estar e a uma melhor auto-avaliação da saúde.

Quadro 3 - Diferenças (Kruskal Wallis Test) nos sintomas entre as regiões geográficas (n=250).

Modelo de mediação da PPST sobre as queixas de saúde e bem-estar psicológicoNa análise do modelo de mediação da PPST sobre a presença de queixas de saúde e o impacto no bem-estar psicológico, não foi incluído o consumo de substâncias por não apresentar correlações significativas com as variáveis em estudo. As variáveis número de anos de serviço, satisfação profissional e relação com os colegas entraram no modelo inicial mas na respecificação do modelo foram retiradas por não serem predictores significativos. O modelo final é apresentado na figura 2, onde as trajectórias não significativas foram eliminadas, tendo sido analisada a qualidade do ajustamento do modelo com o teste da diferença de χ2, verificando-se diferenças significativas entre os dois modelos (χ2(9)=81.192; p=0.000). O sexo (β=0.15; p=0.005), a auto- avaliação da saúde (β=-0.23; p<0.001), o distress (β=-.29; p<0.001) e a PPST (β=0.32; p<0.001) têm um efeito directo sobre as queixas de saúde. O distress (β=.69; p<0.001) e a PPST (β=-0.11; p=0.020) apresentam um efeito directo sobre o bem-estar psicológico. A exposição ao trauma (β=0.20; p<0.001) e a dissociação (β=0.50; p<0.001) se manifestam de forma indirecta nas queixas de saúde e no bem-estar psicológico, mediadas pela PPST. Este modelo explica 38% da variabilidade total das queixas de saúde e 52% da variabilidade total sobre o bem-estar psicológico.

Figura 2 Modelo de mediação da PPST sobre as queixas de saúde e o bem-estar psicológico.

DISCUSSÃO A literatura e os resultados do presente estudo são convergentes ao revelar que a saúde e o bem-estar físico e psicológico dos tripulantes de ambulância podem ser comprometidos pelo trabalho em emergência pré-hospitalar. É incontestável que as tarefas e exigências inerentes às profissões de socorro afectam a saúde destes operacionais, uma vez que estes estão susceptíveis a efeitos traumáticos posteriores, como resultado do seu envolvimento secundário em situações traumáticas. Como em Portugal existem poucos dados sobre esta temática, consideramos este estudo pertinente para clarificar alguns dos efeitos e consequências psicológicas da exposição cumulativa a situações traumáticas na saúde e bem-estar dos tripulantes de ambulância.

Durante a sua actividade diária, os tripulantes de ambulância estão expostos a incidentes que envolvem a dor humana, como são os acidentes de viação, paragens cárdio-respiratórias e incidentes que envolvem crianças. Estes operacionais caracterizam-nos como bastante traumáticos e com influência nas suas vidas, no entanto não recorrem a nenhum profissional de saúde, nem a qualquer tipo de tratamento. Este resultado é consistente com a literatura que refere que os operacionais são relutantes em procurar ajuda de um especialista, nomeadamente não suportam a hipótese de que possam necessitar da ajuda de um especialista em saúde mental (Regehr, Goldberg, Glancy, & Knott, 2002; Jonsson, Segesten, & Mattsson, 2003; Sterud, Hem, Ekeberg, & Lau, 2008). Acresce o facto de na maioria das vezes a sua preparação e treino ser apenas direccionada para cuidar dos outros, sendo negada a existência de impacto sobre si próprio, e os operacionais podem não ter estratégias adequadas para lidar com as suas próprias reacções e/ou ter apoio para elas, dando origem a sensações de falta de controlo e estratégias de negação da situação (Lowery, & Stokes, 2005).

Neste sentido, será também importante averiguar o papel das estratégias de coping neste contexto.

A presença de sintomatologia associada à exposição a este tipo de acontecimentos tem sido uma constante na literatura (Sterud, Ekeberg, & Hem, 2006). Esta investigação corrobora esses estudos, na medida em que os tripulantes de ambulância apresentam sintomas dissociativos peritraumáticos e sintomas da PPST, no entanto o diagnóstico da PPST foi identificado apenas em 10% dos operacionais. Este resultado pode ser explicado pelo facto de que a grande maioria das populações expostas ao trauma apresentam vários sintomas de PPST, embora não os suficientes para fazer o diagnóstico da perturbação, e/ou pelo facto de esta exposição se poder traduzir no aumento de outros diagnósticos (Alexander, & Klein, 2001; Jonsson, Segesten, & Mattsson, 2003). Exemplo disso, é a presença nos operacionais de sintomas de distress (ansiedade e depressão), consumo de substâncias como a cafeína e nicotina, e queixas subjectivas de saúde com maior prevalência das dores músculo- esqueléticas e pseudoneurológicas. Outro aspecto importante e que ajuda a explicar estes resultados são as diferenças encontradas na sintomatologia face à exposição ao trauma. Os operacionais expostos ao trauma apresentam mais sintomas dissociativos e de PPST, mas também mais queixas de saúde e maior consumo de café, o que tem impacto nos níveis de bem-estar psicológico e na avaliação que fazem da sua saúde. Assim, a exposição ao trauma e o desgaste contínuo acarreta dificuldades em superar as experiências traumáticas, levando ao aparecimento de sintomatologia diversa e não de stress pós-traumático (Bennett, Williams, Page, Hood, Woollard, & Vetter, 2005; Sterud, Ekeberg, & Hem, 2006).

O estudo das relações entre as variáveis revelou que a PPST está associada à exposição ao trauma, ao número de anos de serviço, ao aumento dos sintomas de dissociação e de distress, aumento de queixas de saúde e à diminuição do bem- estar e da negativa auto-avaliação da saúde destes operacionais. Este resultado sugere que a antiguidade na profissão e a exposição a situações traumáticas aumenta consideravelmente os efeitos na saúde. Contrariamente a outros estudos que indicam que o consumo de substâncias está associado aos sintomas dissociativos e predizem a PPST (Van der Velden, Kleber, & Koenen, 2008), neste estudo esta relação não foi identificada. Neste sentido, poderia ter sido relevante avaliar o papel da expressão e regulação das emoções, que estes factores psicológicos poderiam explicar o facto do aumento de comportamentos de risco para a saúde não estar positivamente associado à história de trauma e aos sintomas físicos e psicológicos (Wastell, 2002). A satisfação com o trabalho e as relações entre os colegas também não estão directamente associados com o impacto da exposição a situações adversas, no entanto estão relacionados com a diminuição dos níveis de distress e aumento do bem-estar. Esta análise carece de aprofundamento, por um lado porque alguns autores referem que o suporte social pobre é um bom predictor dos sintomas de PPST (Corneil, Beaton, Murphy, Johnson, & Pike, 1999; Regehr, Hemsworth,& Hill, 2001; Haslam, & Mallon, 2003), por outro porque as relações com os colegas podem não ser entendidas como suporte social dos pares, logo poderemos não estar a medir o mesmo constructo.

A presença de sintomatologia difere de acordo com as regiões geográficas do País. Os operacionais do Algarve apresentam menos exposição ao trauma e consequentemente menos sintomas de PPST e de dissociação peritraumática, e menos queixas de saúde. Na literatura não encontramos nenhum estudo comparativo entre operacionais de emergência das áreas urbanas e rurais. No entanto, podemos levantar a questão se estas diferenças se prendem com factores organizacionais ou com o facto de o Algarve ser uma região sazonal, pelo que existe uma probabilidade de ocorrências inferior, o que pode justificar uma menor exposição ao trauma, tendo menos consequências para a saúde destes operacionais.

A forma como os homens e as mulheres vivem as experiências traumáticas tem sido alvo de discussão nos últimos anos. Alguns estudos portugueses mostraram que não existem diferenças de sexo na prevalência de sintomas da PPST nos operacionais de emergência (Marcelino, & Figueiras, 2007; Maia, & Ribeiro, 2010). O presente estudo também não encontrou diferenças de sexo nos sintomas dissociativos e de PPST, no entanto os homens estão mais expostos ao trauma porque têm mais anos de serviço, mas as mulheres apresentam mais distress e queixas de saúde. Este resultado é coincidente com estudos anteriores que referem que o sexo feminino tem uma maior predisposição para manifestar mais queixas somáticas, ansiedade e depressão (Aasa, Brulin, Angquist, & Barnekow-Bergkvist, 2005; Sterud, Hem, Ekeberg, & Lau, 2008).

Os nossos resultados replicam os estudos que referem que a exposição ao trauma e os sintomas dissociativos predizem a PPST (Maia, & Ribeiro, 2010), e que esta perturbação, o distress, a auto-avaliação da saúde e o sexo são predictores das queixas de saúde (Wagner, Heinrichs, & Ehlert, 1998). Os resultados são ainda consistentes com a hipótese da PPST ser uma variável mediadora do impacto da exposição ao trauma e da dissociação nas queixas de saúde e no bem-estar psicológico (Orcutt, Erickson, & Wolfe, 2002). A ideia de que a exposição continuada a situações muito ameaçadoras aumenta consideravelmente a probabilidade de se desenvolver sintomatologia e que está associada a potenciais consequências na saúde destes operacionais, é reforçada por estes resultados (Jonsson, Segesten, & Mattsson, 2003; Fullerton, Ursano, & Wang, 2004; Bennett, Williams, Page, Hood, Woollard, & Vetter, 2005). O distress foi identificado como o único predictor directo do bem-estar psicológico. Apesar de consistente com a literatura, este resultado necessita de confirmação com outro instrumento de avaliação do bem-estar, uma vez que neste estudo o distress e o bem-estar foram medidos pelo mesmo inventário de saúde mental e estão fortemente correlacionados, o que poderá ter influenciado este resultado.

Importa salientar que o conjunto dos resultados discutidos neste estudo devem ser enquadrados tendo em conta o facto não tendo sido monitorizado o estado físico e psicológico destes operacionais ao longo do tempo, pelo que investigações com desenhos longitudinais deverão constituir um desafio para futuros trabalhos, proporcionando uma interpretação mais sólida dos dados.

Outro aspecto que deverá ser explorado em futuras investigações é o papel dos factores organizacionais, nomeadamente das preocupações e condições de trabalho no contexto da emergência, na medida em que alguns autores referem que as exigências psicológicas são um importante factor de risco para a presença de sintomas e de queixas de saúde (Aasa, Brulin, Angquist, & Barnekow- Bergkvist, 2005).

Apesar de alguns autores referirem que a presença de sintomatologia associada ao trauma, as respostas dissociativas, as reacções emocionais por vezes desadaptadas e a necessidade de somatizar, poderão ser considerados comportamentos naturais em operacionais de emergência como reacção ao seu trabalho (Wastell, 2002; Jonsson, & Segesten, 2004; Lowery, & Stokes, 2005), é fundamental que as organizações tenham profissionais preparados a identificar e apoiar aqueles que em determinado momento têm mais dificuldade em lidar com as situações, favorecendo a oportunidade de aprender com as experiências e a construir novos significados que possam promover um crescimento individual e colectivo. Segundo a evidência científica, o apoio dos colegas de trabalho, a expressão emocional e comunicação moderam o impacto do trauma e consequentemente o desenvolvimento de sintomas de saúde (Alexander, & Klein, 2001; Van der Ploeg, & Kleber, 2003). Neste sentido, a informação sobre os efeitos que os incidentes críticos podem ter nos operacionais e a formação de pares (apoio dos colegas) é fundamental para dar suporte, corrigir comportamentos, mitigar o impacto dos eventos e manter os operacionais no seu nível óptimo de funcionamento e desempenho através de estratégias eficazes (Lowery & Stokes, 2005; Dowdall-Thomae, Culliney & Piechura, 2009). O apoio dos pares é ainda fundamental para aumentar a coesão grupal e a identificação com a equipa, o que constitui um factor protector na redução do stress. No entanto, as próprias organizações por vezes têm atitudes negativas em relação a expressão de emoções, induzindo os operacionais a sentir preocupações sobre a rejeição social levando a uma falta de vontade para utilizar o colega de apoio, e consequentemente a não falar dos incidentes críticos que os perturbam (Lowery & Stokes, 2005). Por conseguinte, é também importante que os supervisores recebam treino sobre técnicas para desbloquear esse efeito e assim aumentar o recurso ao apoio dos colegas, promovendo uma inter-ajuda saudável e uma detecção precoce de sintomatologia grave.

O presente estudo contribui assim para a compreensão das consequências psicológicas da exposição cumulativa dos tripulantes de ambulância a incidentes de carácter traumático, e apresentam implicações pertinentes para a prática nos contextos de emergência, que ao nível da avaliação da história de trauma quer a nível da necessidade de intervenções preventivas de gestão do stress perante incidentes traumáticos e a promoção da saúde destes profissionais.


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