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EuPTHUHu1645-37942011000200007

EuPTHUHu1645-37942011000200007

National varietyEu
Country of publicationPT
SchoolHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN1645-3794
Year2011
Issue0002
Article number00007

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Construção e Desconstrução da Relação entre Migrações Forçadas e Desafios de Segurança em África Construção e Desconstrução da Relação entre Migrações Forçadas e Desafios de Segurança em África Raquel Freitas* *CIES - Centro de Investigação e Estudos de Sociologia Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL) raquel.freitas@eui.eu

Abstract The debate on transnational challenges to security is framed within the context of the blurring of the traditional concept of state, centred on a territory delimited by borders and with a monopoly of legitimate physical violence. In the African context the debate is guided by two important dimensions: political will and the capacity of the state to protect its citizens. This article suggests that at least the political will dimension is largely constrained by the interpretation of the state on issues of citizenship, in a context where ethnicity is a structuring element of relations and belongings much more powerful than that of citizenship and encompasses the transnational dimension of such relations. Therefore, it is argued that forced migrations should be framed within a societal context, focusing on the role of local populations and local contexts of violence and peace as well as the regional dynamics of integration or rejection of those who flee. In this process it is important to understand the way in which forced migrations are framed as a cause or consequence of insecurity.

Keywords: forced migration, security, citizenship, Central Africa, Great Lakes

O objecto do presente artigo é desenvolver uma reflexão em torno da ligação que cada vez mais frequentemente é feita entre fenómenos de natureza transnacional que, sendo independentes, têm fortes implicações mútuas. O principal ponto comum entre o fenómeno das migrações forçadas e as questões transnacionais de segurança prende-se com a capacidade ou vontade do Estado de exercer funções que são da sua competência. Esta variável do exercício de funções por parte do Estado tem implicações sobre e é por sua vez influenciada pelas dinâmicas transnacionais de segurança e pelas migrações forçadas.

As dinâmicas transnacionais cada vez mais complexas ao nível político, económico, social, tecnológico, bem como movimentações ilegais como tráfico de armas, drogas e redes de subversão da ordem, introduzem um conjunto de factores limitadores dessa capacidade do Estado, designadamente devido à propensão para o contágio de alguns tipos de conflitualidade.

É legitimo questionar até que ponto no contexto africano alguns dos desafios transnacionais percepcionados como emergentes são realmente novos ou mesmo derivados da globalização, uma vez que desde sempre houve grande interacção entre os vários territórios, muitos deles com uma homogeneidade étnica e linguística que foi separada artificialmente com o processo colonial. Ou seja, o próprio Estado talvez nunca se tenha consolidado verdadeiramente no seu sentido clássico em muitos Estados africanos, que não chegaram a deter o monopólio da violência legítima dentro das suas fronteiras nem a plena capacidade de protegerem os seus cidadãos (Jackson, 1990).

No entanto, contraditoriamente, estes Estados viram-se ao longo das últimas décadas do século XX obrigados a um alargamento da sua responsabilidade pela protecção não dos seus cidadãos mas também dos milhares de refugiados que passam as suas fronteiras. Isto confere uma ambivalência sobretudo quando o Estado não consegue assegurar a protecção dos seus próprios cidadãos. Nestes casos, a etnicidade surge como elemento alternativo à cidadania e como forma de estruturação de pertenças e de relações sociais de acolhimento ou de rejeição que têm impacto na própria forma de recepção e integração dos refugiados e outras populações deslocadas, quer a nível dos Estados, quer a nível das comunidades locais. A presença de refugiados ou outras populações deslocadas provoca alterações nas dinâmicas locais e perturbação da ordem/desordem estabelecida. Isto afecta as dinâmicas de segurança locais mas também afecta a própria segurança dos refugiados. Os movimentos populacionais são um dos elementos mais ilustrativos das dinâmicas transnacionais no continente africano e do grau de interpenetração de identidades que permite o acolhimento de populações nos países vizinhos, nos múltiplos casos existentes de conflitos internos e inter-fronteiriços (Newman & Van Selm, 2003). No entanto, os fenómenos de rejeição podem levar ao agravamento de tensões.

Em si as migrações forçadas não constituem um desafio de segurança. Na verdade, ao conceptualizar a ideia de desafio de segurança, importa identificar qual o objecto da segurança a que nos referimos. O argumento aqui desenvolvido é o de que os refugiados são sobretudo vítimas de desafios quer internos quer transnacionais de segurança, que têm impactos violentos sobre as suas vidas, quer antes da movimentação, quer durante e mesmo depois de uma solução encontrada, mas são também eles próprios actores nos processos que conduzem a maior ou menor segurança. São populações com perspectivas próprias e não apenas vítimas, mas nessa medida devem ser também consideradas elementos importantes da solução, por exemplo no caso de processos de paz. Para além disso, dada a natureza muitas vezes difusa da "cidadania" em vários dos Estados africanos, é indispensável uma perspectiva regional na estabilização de zonas de tensão, que não devem ser delimitadas apenas pelas fronteiras formais do Estado, mas pela natureza das dinâmicas de insegurança a nível sub-regional e transnacional.

Este artigo explora algumas questões conceptuais ligadas aos desafios transnacionais de segurança, procurando identificar aspectos comuns que emergem destas duas dinâmicas distintas entre segurança e migrações forçadas. Para tal debruça-se sobre dois exemplos de casos de fluxos de refugiados e deslocados internos embrenhados em dinâmicas transnacionais de segurança e conflito: a situação na zona norte da África Central e a problemática nos Grandes Lagos durante e após o genocídio no Ruanda. As descrições de ambos os casos constituem selecções da informação disponível, destinadas a ilustrar a argumentação a ter em conta ao conceptualizar a ligação entre migrações forçadas e desafios transnacionais de segurança1.

Conceptualização: migrações forçadas, transnacionalismo e segurança Tem havido variadas formas de articulação conceptual (e empírica) entre migrações forçadas e segurança, quer explícita quer implicitamente (Teitelbaum & Weiner, 1995; Goodwin-Gill, 1999). Uma das dimensões mais importantes na literatura que aborda ambas as questões prende-se com a conceptualização de soberania e a capacidade de o Estado exercer as suas funções de protecção dos direitos dos seus cidadãos face à necessidade de envolvimento externo em situações em que essas funções não sejam desempenhadas por falta de vontade política ou capacidade do Estado (Ignatieff, 2001). Este debate deriva das tensões no seio da Escola Britânica de Relações Internacionais relativamente aos fundamentos da intervenção externa nas fronteiras de um Estado soberano, designadamente a clivagem entre autores como John Vincent que defendem uma concepção solidarista de sociedade internacional com deveres de intervenção para proteger os indivíduos enquanto detentores de direitos universais, e autores como Hedley Bull que defendem que são os Estados os detentores de direitos e deveres e que as normas de soberania e não intervenção são dos poucos princípios em que a sociedade de Estados concorda, sendo a perspectiva pluralista contrária ao intervencionismo (Wheeler, 1992; Wheeler, 2000)2.

Também as implicações que a natureza transnacional do fenómeno das migrações forçadas tem do ponto de vista da segurança têm sido abordadas extensivamente (Weiner, 1992).

Esta secção procura trazer uma breve análise sobre as várias dimensões que essa ligação tem assumido, mostrando de que forma é que as implicações transnacionais das migrações forçadas têm impacto sobre a conceptualização da segurança do Estado e das populações em África.

O conceito de segurança: do clássico à segurança humana O conceito clássico de segurança centra-se na protecção das fronteiras de um Estado contra ameaças externas, sobretudo originárias de outros Estados. Os desafios que se colocam à segurança na era das relações internacionais do pós- 11 de Setembro assumem um carácter transnacional, ultrapassando fronteiras e sendo dinamizados por actores governamentais e por actores não estatais. A diluição do papel do Estado enquanto garante da segurança dos seus cidadãos levou à emergência do conceito de segurança humana, o qual comporta uma dimensão transnacional de segurança. O conceito de segurança humana permite equacionar estas ligações não em termos da ameaça que os fluxos descontrolados de populações constituem para um Estado, mas em termos dos seus impactos junto das populações locais, e também muito importante, dos impactos que as dinâmicas de segurança e insegurança transnacionais têm nos próprios refugiados. Ou seja, o conceito de segurança humana permite-nos ultrapassar muito do estado-centrismo habitual nas análises, tornando as relações entre Estados apenas uma das parcelas de um todo maior.

Com o final da Guerra Fria o tradicional conceito de segurança sofreu uma adaptação ao novo contexto internacional. De uma estruturação das relações internacionais assente na dinâmica bipolar passou-se a um sistema unipolar dominado pelos EUA que foi acompanhado por uma outra dinâmica, de crescente interdependência entre os Estados, culminando no que actualmente se entende por globalização lato sensu, nas suas dimensões económica, financeira, industrial, comercial, tecnológica, mas também cultural, política, ambiental.

Com as dinâmicas transnacionais da globalização surgiram também as novas dinâmicas de segurança, não restrita à querela bipolar, centrada em Estados ou blocos de Estados, mas agora alargada a um conjunto de bens públicos globalizados que podem ser postos em causa por forças não dependentes de um Estado nem controláveis na esfera exclusiva do Estado. Por seu turno, a crescente interacção entre Estados assegurou o desenvolvimento de um sistema internacional regulador de muitas das áreas em causa, mas a natureza das dinâmicas transnacionais fez com que muito escapasse ao controlo dos Estados.

Assim, ao passo que a protecção das fronteiras do Estado deixou de ser o alvo principal de preocupação, surgiram novas ameaças de natureza mais difusa como são as da segurança económica, societal, ambiental, etc.

O conceito de segurança humana surge precisamente no início dos anos 1990, no ocaso da luta bipolar e rapidamente escala na agenda internacional como um conceito apelativo de uma nova ordem mais preocupada com o indivíduo e não tão centrada nas dinâmicas entre Estados. O conceito foi consagrado em 1992 no relatório do Secretário-Geral das Nações Unidas (Boutros-Ghali, 1992) que propunha uma abordagem integrativa para a segurança humana e consolidado no ano seguinte, no Relatório sobre o Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (UNDP, 1993), que apresenta o mote "freedom from fear, freedom from want", ou seja liberdade em relação ao medo e liberdade em relação a necessidades essenciais. Tratou-se também de uma tentativa de responder aos problemas que se começavam a tornar incontornáveis na agenda internacional, como guerras civis com fortes impactos para as populações civis, em Estados incapazes de garantir seja a segurança física ou protecção das populações, seja a assistência básica de sobrevivência.

No entanto este conceito, pela sua natureza mais volátil, acaba por ser manipulável e aplicável de forma difusa (Freitas, 2002). Assim, existem objecções à sua utilização precisamente pela indefinição do objecto: num contexto em que uma transnacionalização das ameaças, falamos da segurança humana de quem? O indivíduo não passou a ser o detentor central de direitos, nem o Estado deixou de ser o principal veículo que informa a formulação de políticas. O mundo continua a ser constituído por entidades autónomas reguladoras e definidoras dos interesses daqueles que as integram ' os cidadãos ' e em certas circunstâncias esses interesses são incompatíveis com direitos universais. Movimentos massivos de populações constituem uma ameaça ao statu quo de outras, e vemos o exemplo das reacções que a fuga de refugiados do conflito na Líbia produziram na Europa. Assim, é mais do que nunca legítimo perguntarmo-nos qual é o objecto referente da segurança quando falamos de segurança humana.

Um desenvolvimento ulterior desta tendência para transnacionalizar a ideia de segurança, colocando-a na esfera da responsabilidade internacional, é a chamada R2P (Responsibility to Protect). Este conceito foi consagrado em 2005 pelos Estados membros das Nações Unidas (UN General Assembly, 2005). O conceito implica a responsabilidade de a comunidade internacional intervir em situações de genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica, e crimes contra a humanidade.

Isto acontece essencialmente se o Estado não quiser proteger os seus cidadãos ou for ele próprio agente destas actividades, caso em que se considera legítimo ultrapassar a barreira da soberania nacional. A questão coloca-se sobre qual o grau de envolvimento externo que é considerado adequado e quais os métodos a utilizar para assegurar as questões operacionais e coerência de mandatos (Bellamy & Williams, 2011). Por outro lado esta agenda tem sido criticada por facilmente ser passível de manipulação segundo os interesses da comunidade internacional, levando a intervenções selectivas e por vezes parciais: a intervenção na Costa do Marfim aconteceu em grande parte porque a intervenção na Líbia foi justificada com base no argumento da responsabilidade de proteger, o que originou acusações de selectividade (Weiss, 2011).

A questão que se coloca em termos da conceptualização do Estado africano moderno é até que ponto se está a transportar a ideia mal consolidada de cidadania da esfera nacional para a esfera internacional sem garantir em nenhuma delas um compromisso permanente e estruturante em relação às vítimas de conflitos. Por outro lado, as estruturas identitárias difusas do continente africano contribuem para uma reformulação das formas de acolhimento e integração de populações que são forçadas a fugir para além das fronteiras do seu país, que por vezes acabam por assentar mais em identidades étnicas transfronteiriças do que no conceito de cidadania tal como o entendemos no seu sentido clássico. Assim, o país de origem dos refugiados pode considerar-se menos responsável pela sua protecção do que o país de acolhimento, simplesmente porque a base étnica corresponde mais à configuração de um do que do outro.

Esta lógica aplica-se também às possibilidades de acolhimento e integração local, por vezes mais abertas a receber populações de países vizinhos do que deslocados internos do próprio país. A questão que predomina é onde está a responsabilidade pela segurança destas populações, e de que tipo de segurança estamos a falar? Refugiados como dinâmica transnacional A ideia de fronteiras é central neste debate e torna-se importante revisitar o seu papel no contexto do Estado pós-Westefália, ou do Estado nunca verdadeiramente consolidado. Dependendo da vontade política ou da capacidade do Estado, em determinadas zonas remotas e estrategicamente pouco importantes, o próprio papel das fronteiras esbate-se e acabam por funcionar também elas de forma selectiva.

Os movimentos de refugiados são por natureza uma dinâmica transnacional: eles atravessam as fronteiras de um Estado e são acolhidos, ou repelidos, noutros Estados. Por vezes, os refugiados integram-se localmente, outras são reassentados em países terceiros e na sua maioria acabam por regressar ao país de origem. Em princípio o acolhimento de refugiados deverá ser um facto temporário até ao restabelecimento das condições para o retorno ao seu país ou zona de origem. No entanto, muitas vezes esse restabelecimento não acontece rapidamente e geram-se contextos em que os refugiados se encontram em situações consideradas temporárias, durante décadas. Durante esse tempo estabelecem-se relações comerciais, sociais, culturais, locais e que também atravessam fronteiras, designadamente quando estas são muito porosas, com as comunidades locais e mesmo com as do país de origem.

Para os que permanecem de forma prolongada no exílio o acolhimento pode assumir várias formas: ou são integrados localmente, constituindo esta uma solução permanente, que normalmente é adoptada apenas em situações especiais; ou são acolhidos em campos de refugiados; ou se integram de forma espontânea nas comunidades locais, incluídos noutras categorias de migrantes, sem portanto beneficiarem de qualquer apoio. Cada vez mais a natureza complexa dos fluxos origina movimentos secundários e não enquadrados nos tradicionais padrões de soluções estabelecidos pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) (Crisp, 2011). Por outro lado, existem movimentos forçados que são impelidos não pela situação de violência e perseguição mas também pela insegurança económica, social e ambiental. Alguns desses casos não são contemplados pela comunidade internacional e caem nos fluxos irregulares. A existência de grupos étnicos transnacionais está fortemente associada a estas dinâmicas, ao criarem uma sobreposição entre pertença a um grupo e cidadania e dado que a etnicidade ao transcender fronteiras políticas e nacionais cria formas de identidade a nível regional por vezes mais fortes do que a nível nacional (Sany & Desai, 2008).

Uma especificidade dos movimentos de refugiados é a sua natureza não estruturada e dificilmente previsível: embora acompanhem as flutuações de violência, tais movimentos não são orientados por uma estratégia, embora as respostas da comunidade internacional possam conter elementos de direccionamento ao condicionarem as movimentações e o próprio tipo de solução encontrada. Por exemplo, ao estabelecerem-se as chamadas zonas seguras dentro de um país fornece-se um ponto de convergência da fuga e limita-se a possibilidade de as pessoas fugirem para além das fronteiras do país nalguns casos por os países vizinhos as encerrarem sob o pretexto de existir uma alternativa interna de fuga.

Desde cedo que o continente africano possui um enquadramento jurídico próprio para lidar com os problemas de refugiados. Trata-se da Convenção da Organização da Unidade Africana (OUA) de 1969 que rege os aspectos específicos dos problemas dos refugiados em África. Este instrumento pauta-se por um conceito mais alargado de refugiado que ultrapassa o da Convenção de Genebra sobre o Estatuto de Refugiado de 1951, pois contempla para além do elemento de perseguição individual, a fuga de conflitos armados e de violações de direitos humanos. O seu preâmbulo ilustra bem até que ponto os fluxos de refugiados podem constituir uma forma de fricção entre os Estados e salienta a preocupação em distinguir entre um refugiado que procura fazer uma vida normal e pacífica e uma pessoa que foge do seu país com o único fim de fomentar a subversão a partir do exterior. No entanto, nas últimas duas décadas aquilo que foi uma tradição africana de acolhimento para com os refugiados dos outros países, na sua maioria vítimas dos processos de descolonização, começou-se a esbater, sobretudo com os fluxos massivos a partir dos anos 80 nalguns países (Crisp, 2011).

No local de acolhimento os refugiados encontram muitas vezes não as populações locais, elas próprias muitas vezes afectadas por outras dinâmicas de conflito na zona, mas também deslocados internos de outras zonas do país de acolhimento. Esta realidade gera a confluência de diferentes estatutos de grupos de migrantes forçados e populações locais, tendo a União Africana aprovado em 2009 uma Convenção para a Protecção e Assistência dos Deslocados Internos em África.

Refugiados como consequência de insegurança A existência de fluxos de refugiados é um importante indicador da existência de insegurança num Estado. A insegurança deriva da incapacidade de protecção face a actores não governamentais nacionais ou transfronteiriços infiltrados; ou do próprio Estado de origem, como nos casos de genocídio ou violência étnica promovidos pelas forças de segurança nacionais. No entanto, estes são apenas os aspectos mais aparentes. É importante ter em atenção quais as causas profundas da insegurança, que impelem à fuga, e que muitas vezes têm a sua raiz em dinâmicas políticas complexas que vêm do exterior, como por exemplo, grupos rebeldes que contestam o poder no seu país de origem ou de acolhimento; actividades repressivas das autoridades para contenção de movimentos de oposição ao poder; ligação ou oposição de tais movimentos com os do país de origem; influências de potências externas de nível regional ou internacional.

No contexto africano a insegurança tem frequentemente uma ligação à distribuição das afinidades étnicas, o que implica que populações da mesma etnia em Estados vizinhos tenderão a acolher os refugiados do mesmo grupo étnico. São vítimas da insegurança, mas não deixam de ter as suas posições e afiliação a determinados grupos. Importa pois introduzir uma distinção que pela dificuldade que apresenta raramente é articulada de forma explícita, quer na literatura, quer nas próprias respostas políticas que são formuladas. Essa distinção situa-se ao nível do relacionamento dos refugiados com o conflito: apenas enquanto vítimas de perseguição, ou com algum tipo de apoio político ou com algum tipo de envolvimento directo.

Estas duas condições agravam-se quando a situação no país de acolhimento é igualmente vulnerável. Embora os níveis de violência e insegurança não sejam fáceis de medir, parece haver um consenso crescente de que os campos de refugiados em África se estão a tornar lugares cada vez mais perigosos (Weiss, 2011). São apontadas duas formas essenciais de vulnerabilidade no asilo: zonas de refugiados podem ser alvo de ataques militares directos por via aérea ou terrestre (como veremos que foi o caso no Chade); ameaças de segurança de natureza não militar, diferentes formas de violência, coerção, intimidação e actividade criminal, designadamente violência sexual e doméstica, violação, roubo armado, conscrição para forças milicianas, raptos para casamentos forçados, prisão arbitrária e castigos levados a cabo por líderes comunitários dos refugiados e das forças de segurança locais, lutas entre diferentes subclãs e grupos étnicos dentro da comunidade de refugiados; confrontos armados entre refugiados de diferentes nacionalidades (Weiss, 2011). A ausência do Estado de direito nestas zonas, designadamente porque muitas vezes são zonas remotas, de acesso muito difícil e não prioritárias, para governos centrais de Estados eles próprios frágeis e emergentes de situações de instabilidade ou mesmo conflito.

Quer no caso da fronteira na África Central do norte, quer nos Grandes Lagos, os refugiados sofreram o impacto desta situação geo-estratégica.

Refugiados como desafio à segurança Como vimos, nos anos 60 havia uma forte preocupação dos países africanos com as fricções entre Estados que podem surgir com os fluxos de refugiados. A gestão dos fluxos e sobretudo a problemática do repatriamento geram interesses opostos entre país de origem e país de acolhimento, e isso gera dificuldades no próprio relacionamento diplomático.

A natureza dos conflitos contemporâneos implica que as fronteiras passaram a ter pouca importância e mesmo os conflitos "locais" deixaram de ser puramente internos (Sany & Desai, 2008). Assim os fluxos de refugiados vêm por vezes desestabilizar ainda mais zonas com alguma instabilidade. Por outro lado, os refugiados são eles próprios cada vez mais percepcionados como desafios à segurança, sobretudo quando tal imagem interessa aos países de acolhimento, como forma de acelerar e forçar repatriamentos. Alguns dos argumentos invocados são: A politização dos refugiados enquanto no exílio e o seu envolvimento nas dinâmicas locais e poder dos grupos étnicos junto das estruturas políticas; a presença de spoilers, ou seja, elementos efectivamente politizados que utilizam campos ou zonas de refugiados para prosseguirem actividades subversivas. Os impactos dos movimentos de refugiados na segurança e estabilidade das zonas vizinhas que os acolhem dependem do grau de ligação e de envolvimento com o conflito no país vizinho dos que estão. Os impactos de natureza económica e ambiental são também factores de preocupação, sendo que muitas vezes as populações locais vivem confrontadas com fortes limitações e pobreza, que são agravadas pela presença de por vezes milhares de refugiados. Nalgumas situações geram-se mesmo animosidades entre as populações locais e os refugiados porque estes muitas vezes beneficiam de apoios da comunidade internacional dos quais os locais, por vezes igualmente destituídos, não beneficiam.

Tudo isto gera tendências para o governo do país de acolhimento procurar promover o repatriamento dos refugiados, muitas vezes sem acautelar que as condições de segurança e estabilidade no país de origem tenham de facto regressado à normalidade, e gerando movimentos subsequentes de fuga. A questão da identidade étnica pode ser um factor de atenuação ou de agravamento destas tendências. Neste sentido, é importante ter em conta a abordagem regional do problema.

As respostas aos desafios de segurança com impacto nos refugiados Em termos de respostas aos desafios identificados anteriormente, importa distinguir os elementos condicionantes das respostas dos diferentes elementos envolvidos. Em princípio o país de acolhimento tem o papel principal na protecção dos refugiados que acolhe. No entanto, como vimos, esta responsabilidade pode ser limitada ou pela falta de vontade política ou pela incapacidade efectiva de a assumir dada a complexidade das dinâmicas e tensões nas zonas de acolhimento.

Verifica-se então que, frequentemente, as próprias comunidades locais têm um papel importante no tipo de acolhimento que é dado aos refugiados e aos deslocados internos, e que depende não das condições de vida dessas populações mas também das relações societais, ligações étnicas e afinidades políticas entre os migrantes forçados e as populações locais.

Dadas as ligações transnacionais societais e o seu papel fulcral no acolhimento e no exacerbar ou não de tensões, é importante ter uma perspectiva regional dos contextos. Milner (2009) explora a ligação entre as situações de refugiados prolongadas no tempo e insegurança regional. O autor argumenta que as respostas de peacebuilding adoptaram um entendimento restrito de conflito: a forma como são solucionadas as questões de refugiados a nível regional tem impactos fortes sobre a dinâmica regional de segurança e o potencial de estabilidade ou instabilidade. Como vimos, os próprios refugiados são elementos do processo; apesar de na sua maioria serem vítimas do conflito, eles são parte interessada na sua solução e, muitas vezes, possuem informação fulcral sobre as dinâmicas no terreno, sobretudo em zonas mais remotas em que, por vezes, subsistem bolsas de confronto que não dependem da ligação com o governo ou os principais envolvidos no processo.

Os refugiados têm também constituído justificação para a intervenção internacional em numerosos casos, assim como mais recentemente para os deslocados internos. A abordagem preventiva visa evitar algumas situações de vulnerabilidade que podem escalar e originar graves fluxos de refugiados (Loescher, 2003). Para além da abordagem preventiva, a comunidade internacional tem intervindo sobretudo por via da acção humanitária, embora mais recentemente se comece a utilizar a força militar para proteger não a entrega da ajuda humanitária mas também com mandatos de protecção das vítimas. Este tipo de resposta tem sido criticado em parte pela selectividade com que tem sido utilizado e em parte pelo efeito perverso que tem ao colocar o sector humanitário sob a esfera de entidades militares, mesmo que das Nações Unidas, que sempre são percepcionadas, por alguma das partes em confronto, como estando associadas ao conflito e sendo parte dele.

As respostas da comunidade internacional também têm sido até recentemente muito centradas na diferenciação do estatuto das vítimas, o que em zonas de mistura de conflito interno com conflito em Estados vizinhos se torna difícil de implementar uma vez que confluem para uma zona pessoas com as mesmas necessidades, se bem que por motivos diferentes (por vezes nem tão diferentes como isso dada a interpenetração das motivações políticas, económicas, estratégicas e tecnológicas que confluem na instabilidade de nível regional).

África Central do Norte: Sudão, Chade, República Centro-Africana (RCA) Os países que compõem esta sub-região encontram-se ligados por uma zona de fronteira comum onde se têm desenvolvido dinâmicas regionais extremamente complexas, que têm sido designadas "triângulo atormentado" (Giroux, Lanz et al., 2009). Nesta região existe uma confluência de grupos distintos de migrantes forçados que resultam de circunstâncias diferentes mas são levados a coexistir no mesmo território e com as mesmas dificuldades.

Contexto e raízes do conflito na sua dinâmica transnacional Os países que integram a África Central do Norte apresentam um contexto de instabilidade ligada a variados factores, alguns deles de natureza interna e específicos de cada país, outros relacionados com as dinâmicas transnacionais que se estabelecem ao nível regional. O inter-relacionamento dos conflitos nos três países produz uma dinâmica particular na fronteira que liga o Darfur, o leste do Chade e a zona nordeste da fronteira da RCA, o chamado "triângulo atormentado". Os conflitos de cada um acabam por se reforçar mutuamente, estando intrinsecamente ligados (Berg, 2008) não pelas relações entre os seus líderes e alianças políticas mas também por interesses regionais e internacionais e ainda pelo fluxo de deslocados e refugiados nas zonas fronteiriças.

O epicentro desta dinâmica situa-se entre o Sudão e o Chade, sendo que a RCA tem albergado os mais diversos grupos rebeldes quer do Sudão, quer do Chade. No Sudão existiu um conflito entre o governo e forças rebeldes que lutavam pela independência do Sul, recentemente reconhecida internacionalmente, e persiste um outro conflito na zona do Darfur. A zona do Sul é dominada pela etnia Zaghawa, organizada no movimento rebelde denominado Movimento da Justiça e Equidade (Justice and Equality Movement - JEM). Muitos refugiados deste conflito encontram-se na zona norte da República Centro-Africana e sobretudo na zona leste do Chade onde a mesma etnia também está presente a nível local, apesar de minoritária, e detém uma forte influência no poder político do país.

O presidente Idriss Déby do Chade é oriundo do grupo étnico Zaghawa e tinha inicialmente a sua base de apoio, a qual se começou a desvanecer por Déby não se opor à política do Sudão contra aquele grupo étnico (Giroux, Lanz et al., 2009)3. Este grupo étnico é pois central ao conflito quer no Sudão, quer no Chade, apesar de ser um grupo minoritário.

Um outro factor importante nesta interligação de conflitualidade e insegurança é a natureza porosa e indefinida das fronteiras nesta região. Desde séculos que a região do Darfur tem sido um ponto de encontro de povos nómadas e, presentemente, é composta por uma mistura de grupos étnicos que mantêm relações económicas e culturais com os parentes que habitam para além das fronteiras. O conceito local de fronteiras é pois fluído, até pela configuração do território, atravessando zonas de deserto que são difíceis de demarcar e de controlar entre os três países. O estado generalizado de instabilidade nestes países, sobretudo nas zonas fronteiriças, torna permeável o tráfico de armas ligeiras, daí que haja um fluxo intenso de armas que atravessam as fronteiras ilegalmente e que a zona esteja também dominada por grupos de bandidos que actuam independentemente das forças em conflito, apenas com o objectivo de exercer actividades criminosas. Acresce que a situação descontrolada na zona fronteiriça dificulta em muito a acção das autoridades na protecção das populações locais, permitindo a existência de crime e banditismo, que são factores significativos de desestabilização.

Por outro lado, a fronteira existe e as autoridades de cada país têm que exercer alguma forma de controlo, o que leva a que a fronteira do país vizinho constitua uma protecção para os dissidentes e rebeldes da perseguição de que são alvo no seu país. A zona transfronteiriça transformou-se pois num refúgio para grupos rebeldes que por sua vez têm impactos sobre as populações locais e nos migrantes forçados. É também uma oportunidade de constituírem ligações políticas de aliança, ou de oposição, com outros grupos do país de acolhimento.

Assim, por exemplo, à medida que o conflito no Sudão escalou, a política interna no Chade, que sofria os efeitos de tensão entre grupos étnicos, agravou-se e originou um jogo de alianças políticas alternadas entre os governos do Chade e do Sudão (Tubiana, 2008). Neste jogo político de alianças e traições a ligação étnica dos líderes políticos funcionou como factor determinante nas mudanças de apoios.

Grawert (2008) sublinha as dinâmicas sub-regionais de conflito que não são explicáveis apenas pelos efeitos de spill-over dos fluxos de refugiados, ou pelo tráfico de armas ou guerrilheiros que atravessam fronteiras nacionais.

Existe um conjunto de interesses regionais e internacionais que dificulta ainda mais o entendimento e a pacificação na região, designadamente a influência política das potências regionais (Líbia e Egipto) e coloniais (França), a cobiça dos recursos naturais (diamantes, petróleo) e ainda a luta contra o terrorismo (usada pelos EUA).

As migrações forçadas e a situação de insegurança no "triângulo atormentado" Em consequência da conflitualidade na zona da África Central do Norte existiam em 2008 nas zonas fronteiriças cerca de 200.000 refugiados do Darfur no Chade e 150.000 deslocados internos do Chade, acolhidos em 10 campos a 60 quilómetros da fronteira leste, mais 200.000 deslocados na RCA que procuram protecção em relação a bandidos e insurgentes contra o poder do Presidente Bozizé da RCA (Arteaga, 2008).

Muitos destes civis não procuraram refugio junto de organizações de assistência humanitária mas simplesmente encontram-se espalhados por áreas vizinhas das aldeias que habitavam, muitas das quais são incendiadas, ora pelas forças rebeldes, ora pelas autoridades. Na RCA o ataque a civis por parte das forças militares tornou-se uma forma de evitar o confronto directo com os rebeldes, numa política de terra queimada (Arteaga, 2008). Esta política consiste em ataques contra aldeias, incendiando-as e matando civis indiscriminadamente.

O quadro 1 ilustra os números de refugiados e deslocados dos vários países que integram esta zona de conflitualidade. Curiosamente as estatísticas do ACNUR não incluem os três países no mesmo conjunto sub-regional, integrando a RCA na zona da África Central e Grandes Lagos, enquanto que o Sudão e o Chade são integrados na África Oriental e Corno de África. Esta gestão espartilhada dos dados sobre os fluxos não facilita uma visão integrada da dinâmica sub-regional específica desta zona.

Quadro 1: Migrações forçadas na África Central do Norte em 2011

Alguns autores apontam os fluxos de refugiados sudaneses para o Chade e a RCA como mais um factor que contribuiu para o processo de regionalização do conflito (Giroux, Lanz et al., 2009), juntamente com as alianças entre grupos étnicos e elites governamentais, as quais se encontram permanentemente em fluxo. Os fluxos transfronteiriços de refugiados contribuíram para agravar as prementes dificuldades sentidas pelas populações locais, muitas delas também em dada altura deslocadas, ou acolhendo deslocados dos seus países, ao mesmo tempo que afectadas pelos impactos dos conflitos e da falta de lei e ordem (Giroux, Lanz et al., 2009).

A RCA acolhe refugiados zaghawa oriundos do Chade e do Sudão, grupo étnico esse que apoia as forças rebeldes no Sudão. É importante distinguir os refugiados dos grupos rebeldes e essa distinção nem sempre é fácil em situações complexas uma vez que os membros dos grupos rebeldes por vezes pertencem ao mesmo grupo étnico que os refugiados, como foi o caso no Chade e no Sudão, em que os respectivos presidentes apoiavam os grupos rebeldes do outro e lhes davam protecção com bases de suporte no seu território (Tubiana, 2008). Por outro lado, este caso mostra como membros de milícias étnicas usufruem, por vezes, do estatuto de refugiado e residem no país vizinho, quando duas etnias sudanesas (Dajo e Masalit) se mobilizaram para responder aos ataques Janjaweed no Chade (Tubiana, 2008).

Temos assim um contexto complexo onde confluem populações locais fortemente afectadas pelo conflito, com grupos de deslocados quer do Chade, quer da RCA, que coexistem com refugiados de cada um dos países nos respectivos territórios.

Embora seja importante distinguir os três conflitos e suas motivações bem como o tipo de estatuto das populações que confluem nesta zona, é importante não perder de vista que todas elas têm necessidades comuns e que em contextos tão voláteis, privilegiar uma delas é atear um rastilho perigoso. Sobretudo em conflitos regionais é importante haver um tratamento equitativo. No entanto, a separação dos civis em relação aos grupos armados e aos criminosos é fulcral (Arteaga, 2008), embora extremamente difícil dada a penetração de grupos rebeldes que desenvolvem acções de guerrilha no território alheio.

Respostas nacionais e internacionais Face ao vazio de poder e à incapacidade de as forças dos respectivos países controlarem as fronteiras e protegerem as populações, foram tomadas medidas no âmbito das Nações Unidas, através da UN Mission for the Central African Republic and Chad (MINURCAT) e da União Europeia, através da European Union Force (EUFOR), que procuram dar uma resposta com alguma dimensão regional e mandatos destinados a proteger refugiados, deslocados internos e civis em perigo no leste do Chade e no norte da RCA. No entanto ambas iniciativas têm sido alvo de críticas por não haver uma distinção clara de papéis e responsabilidades no terreno, pela percepção de politização da EUFOR com objectivos franceses, mas sobretudo por não haver esforços de natureza política e diplomática que abarquem questões mais profundas da instabilidade, como a organização de negociações de paz verdadeiramente inclusivas, a gestão dos conflitos entre proprietários de terras e populações recém-chegadas, e em última análise questões como o desenvolvimento e a democratização (Tubiana, 2008).

As operações de paz que se estabeleceram na região tiveram uma dimensão transnacional. A EUFOR Chad/CAR foi em parte constituída para assegurar a protecção das operações internacionais de polícia e humanitárias. A MINURCAT tinha como mandato contribuir para a protecção de refugiados, deslocados internos e civis em perigo, facilitando a provisão de ajuda humanitária no leste do Chade e RCA central e do norte, e criando as condições para a transição e reconstrução nessa zona. No entanto, pode dizer-se que este tipo de missões exerce mais funções de protecção do pessoal humanitário e da sua logística do que de protecção física das populações quando atacadas. Também exercem uma protecção mais direccionada para os refugiados do Darfur, apesar de no mandato a protecção se destinar a todos os civis sem distinção (Tubiana, 2008).

Para além disso o envolvimento político das potências europeias, designadamente a Opération Epervier, constituída por forças francesas e os Estados Unidos da América, cria a ideia de que estas forças estão na verdade a proteger um dos lados com a justificação de que estão a proteger os refugiados. Tal interpretação resulta de um comunicado dos grupos rebeldes do Chade em reacção à EUFOR alegando que se destinava a proteger o presidente Déby, colocando quer o staff humanitário, quer os próprios refugiados em grande risco (Tubiana, 2008). O objectivo da intervenção internacional nestas circunstâncias seria obter o controle dessas zonas habitadas por refugiados e deslocados, o que era difícil sobretudo se os respectivos governos julgassem que a zona constituía um santuário para os rebeldes insurgentes. Assim tornou-se difícil o acesso e sobretudo a protecção das populações afectadas.

Os acordos de paz que não incluem refugiados ou os grupos que na sua grande parte estão na diáspora criam uma instabilidade de partida na percepção dos equilíbrios políticos. No caso do Sudão o acordo de paz com a zona sul do país gerou a percepção junto da elite local do Darfur e da diáspora do Darfur de que haveria uma concentração de benefícios nessa zona, e continuação da marginalização económica e política das outras regiões (Grawert, 2008).

Grandes Lagos: Ruanda, Burundi, RDC, Uganda A zona dos Grandes Lagos tem sido bastante estudada por ser uma fonte de instabilidade ligada a dinâmicas complexas na região. Entre elas tem sido invocada a ligação do fluxo de refugiados à raiz do genocídio do Ruanda e também ao que aconteceu a seguir ao genocídio, ou seja, a queda do poder do Presidente Mobutu do Zaire e aquilo que é designado como a primeira guerra continental de África (Prunier, 2011).

Contexto e raízes do conflito na sua dinâmica transnacional Embora haja algumas questões sobre exactamente que zonas geográficas ou territórios devem ser considerados no âmbito do conflito nos Grandes Lagos, é consensual incluir-se pelo menos os seguintes Estados/zonas como sendo o epicentro do conflito dos Grandes Lagos: Ruanda, Burundi, zona leste do Congo, sudoeste do Uganda (Lemarchand, 2009).

O Ruanda é composto por dois grupos étnicos importantes: os Hutu e os Tutsi. Os equilíbrios de poder entre estes grupos foram afectados pelas potências coloniais, que colocaram o poder político na minoria tutsi. A maioria hutu revoltou-se ainda antes da independência em 1962, expulsando milhares de tutsi para o Uganda. os Tutsi formaram a Frente Patriótica do Ruanda (FPR) com o objectivo de derrubar o governo do Ruanda de etnia hutu e recrutando militantes de entre os refugiados tutsi no Uganda. Para além disso aliaram-se a forças rebeldes neste país, que mais tarde chegaram ao poder.

A guerra civil no Ruanda estalou de novo em 1990 e um acordo de cessar-fogo foi assinado em 1993, mas a elite ruandesa não estava de acordo e o avião em que seguiam os presidentes do Ruanda e do Burundi foi abatido, abrindo-se de novo as hostilidades. Nesta altura os militares do Ruanda implementaram um plano deliberado de genocídio à minoria tutsi e aos Hutu moderados, o qual se vinha a desenhar algum tempo com sinais visíveis até para a comunidade internacional. Isto resultou em entre 500.000 e 1 milhão de mortos e 2 milhões de refugiados nos países vizinhos. A par deste genocídio, a FPR conseguiu impor-se militarmente e reverteu a situação, forçando a fuga da população hutu, que receava as consequências da ocupação por parte dos Tutsi. Esta fuga incluiu cerca de 50.000 militares do exército ruandês para campos de refugiados que permaneceram no então Zaire.

Em 1996 no Zaire, um grupo tutsi de oposição ao governo de Mobutu, Alliance of Democratic Forces for the Liberation of Congo-Zaire (ADFL), apoiado pelo governo do Ruanda e liderado por Laurent Kabila, que inicialmente apenas tinha o objectivo de expulsar os refugiados hutu do leste do Zaire, tomou o poder em Kinshasa, depondo o presidente Mobutu (Mills & Norton, 2002). No entanto logo após a tomada de poder, Kabila abandonou o seu anterior apoio à população tutsi no Zaire e fez pouco para controlar os militantes que ali permaneciam. Em Agosto de 1998, mais de quatro anos após o genocídio no Ruanda e dos primeiros fluxos de refugiados para o leste do Zaire, desencadeou-se uma nova guerra civil no leste do Zaire, com diferentes grupos rebeldes apoiados pelo Ruanda e Uganda, que continuaram a ser sujeitos a ataques da então designada República Democrática do Congo (RDC). Eventualmente a maioria dos outros países da região, incluindo o Burundi, Tanzânia, Sudão, Angola, Namíbia, Zimbabwe e Zâmbia, foram empurrados para o conflito de uma forma ou de outra. Os motivos para a intervenção incluem o apoio a rebeldes e esforços para expulsar os militantes que apoiavam Kabila, e conseguir acesso aos vastos depósitos de diamantes na RDC.

Migrações forçadas e as dinâmicas de insegurança nos Grandes Lagos O conflito no Ruanda e na sub-região estão intimamente ligados à existência de fluxos de refugiados nos países vizinhos na sequência do genocídio, alternadamente das etnias tutsi e hutu, designadamente no que na altura se designava Zaire, actual RDC. Após o genocídio em 1994, e com a consagração do poder da FPR, havia mais de 2 milhões de refugiados hutu na região; mais de metade ficaram na zona leste do Zaire e os outros espalhados pela Tanzânia e o Burundi, que também tinha o seu conflito próprio entre Tutsi e Hutu, gerando por sua vez refugiados na região.

Os militares imiscuídos nos campos de refugiados hutu no Zaire conseguiram impedir o regresso dos refugiados ao Ruanda através da intimidação física, da propaganda sobre a situação no Ruanda, e da influência política sobre as populações. Esta permanência originou uma crise de segurança, consolidando os campos como bases para raides de ataques ao Ruanda. Por outro lado o repatriamento era difícil porque não havia certezas sobre a situação de direitos humanos no Ruanda. No entanto os refugiados também se encontravam cada vez mais inseguros nos próprios campos, tendo os antigos combatentes tomado conta da distribuição de recursos dentro do campo. Dadas as dificuldades e o custo material de levar a cabo a separação destes antigos combatentes do resto da população, o Zaire, que era o país de acolhimento dos refugiados, e o Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) não investiram na solução e deixaram a segurança dos refugiados a cargo do ACNUR, que acabou por contratar tropas do Zaire para exercer a protecção nos campos. A solução acabou por ser um repatriamento forçado implementado pelas tropas do Zaire. Os refugiados no Burundi encontravam-se na mesma situação.

Em 1996 a situação no Zaire acabou por se alastrar à população local devido à infiltração dos militantes hutu e aos crescentes confrontos entre a população local e os refugiados, gerando mais pressão para o seu retorno. Isto culminou numa guerra civil na zona leste do Zaire devido a tentativas do governo de expulsar 400.000 tutsi locais, hostis às forças de Mobutu, apoiadas pelo Ruanda e Uganda, que queriam acabar com as infiltrações nos campos. Estas forças atacaram os campos de refugiados, que viam como sendo as bases do inimigo na zona de Goma, forçando o retorno ao Ruanda de 600.00 refugiados e a fuga de 200.000 para outras zonas no leste do Zaire. Estes repatriamentos forçados parecem ter dado origem a repatriamentos forçados da Tanzânia também, em parte devido ao efeito que os refugiados ruandeses tiveram nos recursos nas zonas para onde fugiram (apropriando-se de madeira, colheitas, etc.), gerando alguma instabilidade junto das populações locais. Parte desta instabilidade derivava do facto de os refugiados estarem a receber ajuda, ao contrário das populações locais que estavam igualmente carenciadas e sofriam os impactos do acolhimento.

O receio de criar mais obrigações para o governo da Tanzânia e gastos com categorização de refugiados e separação dos militares e civis levou sistematicamente a que nada fosse feito para essa distinção, mantendo e agravando a situação de insegurança.

Como notam Rubin, Armstrong e outros (2001), os refugiados e migrantes do Ruanda no Uganda apoiavam e treinavam com o Movimento de Resistência Nacional (MRN) de Museveni, sendo o activismo político e militar de esperar quando os refugiados não são bem-vindos no país de acolhimento nem no de origem.

Alguns autores consideram que fluxos massivos de refugiados, como foi o caso do Ruanda, podem constituir uma ameaça de segurança, não à segurança individual dos refugiados mas também à dos residentes das zonas para onde fogem, à segurança comunitária e até à segurança nacional e internacional. Mills e Norton (2002) defendem que este tipo de fluxos massivos implica uma reconceptualização da ideia de segurança. No entanto, trata-se de uma abordagem algo simplista e pouco rigorosa no sentido de que os autores confundem fluxos massivos de refugiados com a presença de elementos armados imiscuídos nas populações refugiadas. Neste caso uma responsabilidade da comunidade internacional em impedir tal presença, facto que não aconteceu nos campos de refugiados ruandeses no então Zaire, onde os militares assumiram formas de controlo político e militar.

Respostas nacionais e internacionais O interesse comum dos países da região no repatriamento dos refugiados do Ruanda antes do genocídio implicou um envolvimento muito directo dos presidentes dos países vizinhos, designadamente Zaire, Uganda e Burundi nos Acordos de Arusha (1991-1993), o que segundo Rubin, Armstrong et al. (2001) muito contribuiu para influenciar o destino da guerra civil do Ruanda, do genocídio e da transformação do Ruanda sob a égide da FPR.

Mills e Norton (2002) criticam a resposta da comunidade internacional naquilo que caracteriza como uma crise de segurança e uma crise humanitária, respondendo apenas à crise humanitária para criar a impressão de uma resposta à crise de segurança. A United Nations Assistance Mission to Rwanda (UNAMIR) apresentava limitações no mandato e na capacidade de implementar a sua missão embora tivesse a capacidade para estabelecer safe-haven de pequena dimensão (14.000 ruandeses). Apesar do sucesso em assegurar o controlo do espaço aéreo no início das hostilidades, precisava de mais material e de um reforço das regras de empenhamento, que lhe foram recusadas pelo CSNU apesar dos apelos dos países da região e do Secretário-Geral das Nações Unidas (SGNU), sobretudo pelos EUA, cuja posição estava influenciada pela experiência da derrota da Somália. Durante este processo recusou-se classificar o que se estava a passar como genocídio e isso levou a alguma passividade da comunidade internacional perante as atrocidades. Acabou por ser a França a intervir, naquilo que se designou Opération Turquoise, mas que foi contestada pela própria FPR por ser percepcionada como a França tomando o partido do exército ruandês, uma vez que havia muitos políticos pró-Hutu em França. Esta questão ilustra como é complicada a intervenção para a protecção de civis mesmo em situações extremas, devido à politização de qualquer esforço, independentemente das reais razões subjacentes. No safe-haven constituído pela França foram acolhidos cerca de um milhão de ruandeses, na sua maioria hutu.

Conclusões Da análise dos dois exemplos emergem quatro ideias significativas a ter em conta na concepção da ligação entre migrações forçadas e segurança em contextos transnacionais: por um lado a importância da existência de estruturas locais institucionais do Estado, que condiciona as dinâmicas de segurança e protecção das populações locais; a estruturação de identidades e da noção de cidadania entre o Estado e as populações que se encontram no seu território; a existência de interesses políticos e alianças entre elites que atravessam as fronteiras de um Estado; o papel da comunidade internacional nas respostas dadas aos desafios e as implicações da intervenção externa.

As migrações forçadas representam uma dinâmica transnacional que pode implicar um desafio ou uma consequência da insegurança. Abordar esta questão deve passar por uma atenção cuidada à ideia de cidadania em África e à territorialidade do Estado. Ambas estão ligadas à vontade e capacidade do Estado de assegurar a protecção dos seus cidadãos, mas também à forma como as identidades sub- estatais se substituem ao papel do Estado nessa função, ultrapassando fronteiras.

Quer no caso da África Central do Norte, quer nos Grandes Lagos assistimos a um problema de falta de vontade política do Estado de assumir a protecção dos seus cidadãos e de controlar a insegurança generalizada de que sofrem estes e os restantes migrantes forçados. No primeiro caso, as diversas alianças em luta pelo poder e a confluência de populações diversas levou a um abandono da zona em termos de controlo. No Ruanda, o próprio Estado através das forças militares perpetrou o genocídio, e as dinâmicas de conflito existentes nos países de acolhimento, em particular no então Zaire, promoveram ainda mais a insegurança dos refugiados.

A par da falta de vontade política, quer nacional, quer internacional, para promover a separação dos combatentes e dos civis ruandeses refugiados no Zaire, também o problema da falta de capacidade do Estado para efectivamente controlar as zonas fronteiriças, quer pela dificuldade em impor lei e ordem em zonas tomadas por dinâmicas de conflitualidade, quer pela dificuldade de acesso a zonas fronteiriças remotas, como é claramente o caso no "triângulo atormentado" da África Central do Norte.

Em termos gerais, para assegurar uma efectiva protecção dos refugiados é importante evitar que sejam vistos como fonte de fricções e de insegurança.

Para isso é fundamental que sejam observados os princípios do direito internacional de asilo de forma consistente e previsível. O papel da comunidade internacional é aqui fundamental. Dada a complexidade dos estatutos das várias populações que podem confluir sobre um mesmo território numa mesma altura, é imperioso assegurar a sua distinção em termos do tipo de situação em que se encontram, sem no entanto introduzir formas de discriminação positiva entre grupos civis que desequilibrem ainda mais as precárias situações relativas.

É fundamental distinguir claramente combatentes dos não combatentes. No entanto nem sempre é fácil diferenciar as populações, em parte por erros da resposta internacional, em parte pela natureza subtil das dinâmicas políticas em contextos de fortes identidades étnicas transnacionais ou em contextos de fluxos massivos de refugiados.

Também a distinção entre a dimensão de segurança e a dimensão da resposta humanitária deve ser acautelada, sobretudo no que diz respeito às respostas internacionais, que se centra nos esforços de protecção da ajuda humanitária mais do que em resolver os problemas de segurança que afectam as populações locais e as deslocadas.

Muitos processos de conflitualidade assumem dinâmicas transnacionais e os refugiados são afectados e são também parte nessas dinâmicas. Raramente as dinâmicas transnacionais de segurança são abordadas numa perspectiva regional e raramente os refugiados são tidos em conta nas soluções. Este artigo sugere a pertinência de se assumir claramente essa perspectiva transnacional e regional.


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