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EuPTHUHu1645-37942012000200006

EuPTHUHu1645-37942012000200006

National varietyEu
Country of publicationPT
SchoolHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN1645-3794
Year2012
Issue0002
Article number00006

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O Associativismo Feminino São-tomense em Lisboa: Uma questão de género? O Associativismo Feminino São-tomense em Lisboa: Uma questão de género?[1] The Santomean women's association in Lisbon: A matter of gender? Embora se possa afigurar um juízo pouco acautelado, dir-se-ia que à primeira vista o associativismo de mulheres são-tomenses patenteia uma vitalidade maior do que a ACOSP (Associação da Comunidade de São Tomé e Príncipe), tida como a mais representativa associação são-tomense em Portugal. Neste texto, propomo- nos uma abordagem exploratória da construção do associativismo feminino são- tomense em Lisboa, do seu papel face aos problemas com que se deparam mulheres e homens são-tomenses em Portugal e, a par disso, das eventuais implicações deste processo na modelação das relações de género implicando são-tomenses.

Recente, este associativismo feminino destaca-se das restantes associações da comunidade são-tomense[2] e quer dar passos no sentido de melhorar as vidas ou, pelo menos, tentar mitigar as dificuldades das são-tomenses. Replicando  num contexto assaz diverso do arquipélago natal um dos papéis das mulheres na reprodução social, o associativismo de mulheres são-tomenses desenha-se por referência à origem comum e às histórias de dificuldades vividas na região de Lisboa. À primeira vista devotado a tarefas de recorte assistencialista, este movimento associativo confere algum sentido à ideia de comunidade enquanto um conjunto de pessoas relacionadas entre si por laços de pertença a uma terra distante e, por força da microinsularidade, também de parentesco e de vizinhança, laços como que imperativos do ponto de vista da solidariedade. Mas esta ideia de comunidade, que parece demandar a entreajuda, poderá acabar por ser utilizada como meio de interpelação dos comportamentos e, especificamente, das relações de género. Neste sentido, a dimensão solidária da prática associativa poderá ter consequências, ainda que mínimas, na modelação dos papéis sociais e das trajectórias individuais. Aparentemente, é este o desígnio da Mén Non, a associação das mulheres são-tomenses em Portugal.

Parte dos percursos dos imigrantes tece-se de constantes adaptações às dificuldades e aos condicionalismos apostos à sua integração social, para não dizer à sua difícil sobrevivência. Mas também se constrói da ponderação das possibilidades de retorno à terra natal, para o que importa a comparação das condições de vida nas terras de origem e de chegada. Ora, na maioria dos casos, essa comparação não se cinge a critérios económicos. Para algumas migrantes, a idealização da terra natal colide com a consciência, nem sempre claramente verbalizada, das desvantagens do regresso de acordo com um crivo que, pela alteração do curso da vida, adquiriu importância, a saber, o das relações de género, cujo núcleo principal de aplicação é a família. A percepção do menor desequilíbrio nas relações de género, decorrente das contingências da vida em Portugal, pesa na decisão das são-tomenses de não retornar ao arquipélago e de prosseguir a vida neste país. Aqui, ocorrem episódios de discriminação e as condições de vida são assaz difíceis. Mas, em contrapartida, parece menos incerta a longevidade dos projectos de vida familiar, que as mulheres avaliam estar menos ameaçados pelos maiores entraves à poligamia. Tal equivale a dizer que os projectos de vida familiar ' para algumas mulheres, a plataforma de maior realização pessoal, mais difícil de lograr nos domínios profissional e económico ' pesam no brain drain e no não regresso de mulheres que, noutras condições, desejariam poder trabalhar na sua terra natal. Como veremos, independentemente da consideração da variedade de casos individuais, não será arriscado o alvitre de que parte das mulheres oporá resistência ao regresso à terra.

Afora a pobreza de franjas significativas da população de Portugal, desvelada pelos efeitos da recente crise económica mundial, o clima político em Portugal ' país de emigração que passou a país de acolhimento[3] ' não se apresenta avesso aos imigrantes. Salvaguardada a volatilidade dos climas políticos, alguma da tolerância dos portugueses relativamente aos imigrantes é tributária de várias circunstâncias, não necessariamente relacionáveis entre si mas laborando num mesmo sentido. Tem curso uma percepção difusa relativa à imigração enquanto consequência mais ou menos inexorável do passado colonial e prevalece a noção de que a afirmação do país passa por uma política de acolhimento, mormente dos africanos lusófonos. Labora o reconhecimento do contributo dos imigrantes na renovação dos costumes e no desempenho de tarefas desqualificadas que os portugueses, cidadãos de um país equivocadamente imaginado rico, não se dispõem a executar. Ademais, a recente emigração de portugueses justamente para os países africanos lusófonos veio mostrar as vantagens de uma política de integra-ção, ao menos no plano retórico e institucional. Apesar de várias vicissitudes, tal política contribui para a criação de um ambiente não crispado relativamente aos imigrantes. No domínio económico, os fluxos de capitais e os balanços comerciais parecem favoráveis a Portugal. Finalmente, opera a consciência da pequenez do país e da valia das pontes também estabelecidas através da migração. Traduzido, por exemplo, em sucessivos processos de legalização de imigrantes ou na contratação de mediadores culturais nos Serviços de Estrangeiros e Fronteiras, o acolhimento de africanos pode vir a ser um activo. Conquanto vaga, a percepção destes dados é bastante para a habituação aos imigrantes, também por este caminho se alterando o isolamento e o imobilismo em que viviam os portugueses.

A relativa hospitalidade do clima social e político português face aos imigrantes parece corroborada pela ideia de que, entre os são-tomenses, não grassa propriamente o receio da condição de ilegal ou de irregular, o termo com que se realça a circunstância de trabalhadores pagantes de suas contribuições não poderem ser considerados ilegais.

Indubitavelmente, no quotidiano afloram laivos de discriminação e a exploração é patente, mas o ambiente, árduo e difícil, não se compõe apenas de discriminação e, menos ainda, de opressão. Cumpre ter presente a ocorrência de casos de racismo e, lucidamente, supor atitudes racistas[4] ou preconceituosas onde o racismo se faz presente ' assinalando, naturalmente, aos imigrantes lugares e ocupações na base da pirâmide social ', mesmo quando as orientações políticas e institucionais se norteiam pela censura e penalização de atitudes racistas. Quem conheça a história dos afloramentos de racismo ou tão-somente tenha memória das tensões sobrevindas no pós-descolonização, concluirá que hoje o ambiente social e político não é necessariamente agreste para os imigrantes (tendo de se admitir que as experiências dos migrantes lhes incutam uma percepção em tudo antagónica a esta ideia).

Se frequentemente as disposições legislativas traduziram, a coberto de justificações de outra ordem, disposições racistas, acentuando as diferenças e marginalizando grupos, cumpre dizer que, globalmente consideradas, as disposições legislativas em Portugal não reflectem posições racistas. Como noutras circunstâncias históricas, tal ganho civilizacional pode estar em dissonância com sentimentos prevalecentes em segmentos da população e, evidentemente, pode ser revertido. A situação presente não é perene e imune, por exemplo, à corrosão do empobrecimento do país, em especial pelos efeitos do desemprego. Com efeito, não as perspectivas de desemprego podem afectar profundamente os imigrantes, como, sobretudo, as políticas de acolhimento, de inserção social e de auscultação das demandas dos imigrantes deverão conhecer uma retracção.

É perante esta conjuntura que os são-tomenses decerto avaliarão os ganhos económicos da opção migratória. Ora, repita-se que as motivações, conquanto não verbalizadas ou sequer consciencializadas, não se reduzem a um balanço de ganhos económicos[5]. No que às são-tomenses diz respeito, qual alavanca de mobilidade social, a vivência migratória constitui-se como uma oportunidade para a reformulação das relações de género. Restará saber se essa reformulação atinge as convicções ou se apenas conforma as convicções de homens e de mulheres com o contexto, sendo passível de reversão em caso de regresso à terra natal. Tal dependerá de múltiplas circunstâncias, concretamente do percurso migratório. Seja como for, muitas mulheres não vêem motivos para regressar ao arquipélago e ter de se bater num espaço social e culturalmente adverso pelas suas ideias relativas às relações de género e, afinal, à vida.

Assente em testemunhos, este texto preliminar procura mapear as possibilidades que as mulheres encontram no associativismo para a ajuda recíproca e para a (sempre incompleta) modelação das relações de género entre os são-tomenses, certamente mais fácil em Lisboa do que em São Tomé e Príncipe.

Os são-tomenses em Portugal No tempo colonial, emigrar não era um dado do imaginário são-tomense. Fosse pela relativa abundância de meios de subsistência, fosse pela posição intermédia dos são-tomenses no ordenamento colonial na sua terra, a sua emigração é recente. Em termos significativos, data do pós-independência. A diáspora é uma construção crescente e, adiantemo-lo , um espaço de uma certa institucionalização do discurso crítico sobre a terra[6].

Na fase final do colonialismo, Lisboa tornou-se um destino para jovens são- tomenses. Alguns trocaram o tirocínio académico pela partida para o exílio e para a militância pela independência. Em 1975, vários são-tomenses retornaram de Portugal ao seu país. Todavia, outros fizeram o caminho inverso, radicando- se em Portugal. Com efeito, a independência, o subsequente enquistamento do regime monopartidário e os constrangimentos políticos, policiais e administrativos ' ameaçando a privacidade dos indivíduos, talvez até de forma mais acentuada do que em certos períodos do colonialismo ' levaram são-tomenses com uma visão do mundo oposta à dos políticos a emigrar, em especial, para Portugal. Outros demandaram Angola e o Gabão na procura de modo de vida que não obtinham no arquipélago. Quando a emigração se colocou como uma condição de realização pessoal ou tão-só de sobrevivência, a escolha ou a contingência de emigrar colocou-se para homens e para mulheres. Em resultado destes movimentos, as maiores comunidades de são-tomenses encontram-se em Portugal, Angola e Gabão, a que, anos, acresciam pequenos grupos em Espanha, Inglaterra, Costa do Marfim e Nigéria.

Desde a década de 1980, o número de são-tomenses emigrados cresceu notoriamente. Em 2004, calculavam-se em aproximadamente 15.000 os são-tomenses em Angola, 7.000 a 10.000 em Libreville e 20.000 a 25.000 em Portugal (Nascimento, 2008, p. 58).

Ultimamente, parece esboçar-se a tendência para a diminuição da taxa de migração, o que poderá dizer menos dos números absolutos de migrantes, do que reflectir o crescimento demográfico que diminuiria a incidência da migração. Em todo o caso, os entraves nos destinos podem estar a conter a migração, para a qual, para das dinâmicas inerentes à globalização modeladoras dos anseios de realização pessoal, as condições económicas continuam a impelir os são- tomenses.

Sem profundidade histórica, a migração são-tomense não desempenha um papel económico, social e cultural similar, por exemplo, ao da plurissecular migração cabo-verdiana. Não obstante tratar-se de uma situação reversível, especialmente em caso de futura prosperidade económica do arquipélago, até anos os emigrantes são-tomenses tendiam a cortar laços com a terra. Fruto da pobreza do país, assim como das dificuldades de integração nos países de destino, a emigração são-tomense tem permanecido marginal em vários países de acolhimento e esquecida na terra natal. No arquipélago, insta-se ao empenho do Estado no enquadramento da emigração para lograr melhores condições para os migrantes.

Reivindica-se, pois, uma política de tutela e de advocacia oficial dos interesses dos migrantes. Enquanto isso, e não obstante o seu número diminuto se comparado com o de outras emigrações, a emigração, relativamente jovem e diferenciada culturalmente, pretende constituir-se como uma diáspora. Muito em voga, denotador de criatividade política, até pela ligação aos ideais do pan- africanismo, tal termo pode mitigar o desconforto subsistente entre os são- tomenses dentro e fora do arquipélago, relacionável com o acesso a oportunidades e ao poder.

Em Portugal, parte dos imigrantes resulta do percurso académico ou da decisão de não regressar, por exemplo, após uma viagem de serviço ou em virtude de uma doença. A cifra dos são-tomenses em Portugal, incluindo os de segunda geração, aumentou notoriamente nas últimas décadas. Computam-se em cerca de 25.000 a 26.000 os são-tomenses a viver em Portugal nas mais diversas circunstâncias. É possível que nos próximos anos se observe a desaceleração do ingresso de são- tomenses, o que não obsta a que o seu número continue a aumentar por via da regularização da permanência ou do crescimento natural dos seus nacionais. Em todo o caso, quem aponte a tendência de abandono de Portugal rumo a outros países europeus, mormente entre os mais jovens após a aquisição da nacionalidade portuguesa[7]. Aos imigrantes importará somar aqueles que, mantendo o vínculo à terra e à comunidade, são oficialmente portugueses.

Podemos dizer que o transnacionalismo não é a tónica dominante na migração são- tomense. Até agora, os são-tomenses tendem a ser cidadãos de dupla nacionalidade, embora tal possa mudar a breve trecho.

São-tomenses em Portugal[8] 1986                           1563 1987                           1625 1988                           1730 1989                           1873 1990                           2034 1991                           2007 (...)                                1996                           4092 (...)                                1998                           4338 (...)                                2001                           8009 (...)                                2004                           10483 (...)                                2007                           10627[9] 2010                           15000 a 18000[10]

Em Portugal, proporciona-se espaço para o associativismo imigrante. As consequências desta política vão para da mais fácil gestão das pessoas por parte das instituições. Ao longo dos anos foram surgindo várias associações geograficamente dispersas e, nalguns casos, definidas por uma dada condição, por exemplo, a estudantil. Dentre as associações são-tomenses, reconhece-se imediatamente a ACOSP.

Porém, na ACOSP, o espaço para a participação feminina era escasso. Daí a motivação de algumas são-tomenses ' por certo, a actual presidente[11] e talvez mais uma ou outra das filiadas na Mén Non ' para a criação de uma associação de mulheres. A impulsionadora da Mén Non alega ter concluído que as possibilidades de acção numa associação própria seriam maiores do que na ACOSP, uma associação hegemonizada por homens. Criaram, pois, a Mén Non, em português, Nossa Mãe, designação com ressonâncias religiosas mas igualmente referidas ao apreço pela mulher africana, retoricamente valorizada, por exemplo, no âmbito dos movimentos de recuperação das culturas africanas. Evidentemente, tal passo pressupõe que se enceta uma actividade valorizada, gratificante e, desejavelmente, persistente, nesta medida diferente do relativo marasmo que pauta as associações e ONG no arquipélago, muitas delas dependentes e passivas.

Sem questionar a pulsão representativa da ACOSP[12], a Mén Non ' que procura uma sede[13] ' atravessa potencialmente todo o conjunto são-tomense em Portugal, pretendendo unir a comunidade são-tomense. Em todo o caso, muitas mulheres ficam de fora por variadas razões, quer económicas e sociais, quer relacionadas com a composição das relações de género em que estão comprometidas ou enredadas. Seja como for, e malgrado o pronunciamento avesso a qualquer clivagem ' quiçá, um atributo de microssociedades saídas de um processo de crioulização, do qual a violência não esteve apartada ', desenha-se um recorte, não de religião ou de classe, mas de género no seio do associativismo são- tomense[14].

Em Portugal, o associativismo imigrante tem sido encarado como um interlocutor na angariação e alocação de oportunidades e de recursos ou como um mediador na identificação e na contenção de problemas sociais. Cumprindo com os anseios de pessoas ' incluindo homens ' incapazes de interagir sozinhas com instituições, a Mén Non pretende trilhar a via do apoio a pessoas em situação de carência.

Podemos encarar a Mén Non como uma rede propensa a humanizar a experiência migratória[15], concretamente a mitigar o estendal de privações. Assim, a Mén Non poderia definir-se como uma associação assistencial, na medida em que os seus objectivos parecem querer chegar à promoção social das pessoas vulnerabilizadas e carecidas de suporte. Expectavelmente, as mulheres aspiram a que a sua associação ajude a lograr a previsibilidade e a segurança possíveis no quotidiano, reforçando a coesão social, não no sentido da homogeneidade, mas no do amparo (porventura recíproco) em situações de carência. Em todo o caso, sobretudo por razões económicas, a consecução de um tal objectivo é difícil.

Em Portugal, a nível de bairro, existirão algumas redes de suporte entre mulheres, certamente mais activas e úteis por chegarem às necessidades das pessoas[16] a quem a Mén Non não acederá tão prontamente. Seja como for, focada no universo feminino, a Mén Non tem em vista o suporte a mulheres que chegam a Portugal com os filhos doentes. Outra das preocupações visa a condição pré- natal e a ajuda a jovens em risco. Este papel assistencialista como que reproduz no estrangeiro a incumbência que, na terra natal, a mulher tem no tocante ao amparo social, à vida familiar, em suma, à reprodução social, desde logo por a maioria das famílias monoparentais ter à cabeça mulheres que abnegadamente criam os filhos com o produto da labuta na economia informal[17].

Uma depoente referiu que, presentemente, as famílias são-tomenses em Portugal dependem mais do contributo das mulheres do que do dos homens[18], acrescentando que as mulheres sabem que emigrar significa arcar com as responsabilidades de sustento familiar, afinal, o reverso da costumeira predisposição dos homens para alijarem essa responsabilidade, facto de alguma forma aceite pelas mulheres.

A Mén Non e a comunidade são-tomense Num certo sentido, a condição migratória parece reforçar os laços entre os são- tomenses, que, mais do que na sua terra, se sentiriam próximos uns dos outros.

No arquipélago, esses laços esboroam-se em função da vaga de individualismo que se sobrepõe aos vínculos de solidariedade de que vai restando a memória. Nas ilhas, as circunstâncias da luta quotidiana pela vida tornada incerta fazem com que o escrutínio recíproco de uma comunidade percebida redunde num acentuar de divergências e de dissensões. em Portugal, como decerto noutras sociedades de chegada, a proveniência comum e as dificuldades de integração parecem acentuar a feição de parentela dos indivíduos.

A microinsularidade do país de origem permite que a solidariedade dita nacional tenha a força da vizinhança e da proximidade dos círculos locais, conquanto prejudicada pela maior dispersão no país de acolhimento. Sabemo-lo, a ideologia da comunidade compõe uma distorção. Ora, a comunidade são-tomense, tecida pelo conhecimento da trajectória de cada indivíduo, influirá no reforço, salvo nos casos de conflito, dos laços entre os são-tomenses? Para , apenas podemos adiantar que a presunção de um laço forçosamente solidário não condiz com a constatação da retracção da confiança e da solidariedade no seio das comunidades migrantes, retracção que, aliás, não seria exclusiva da diáspora africana (Grassi, 2009, pp. 75-76).

Logo, questionar-se-á se não estaremos a sobrestimar o associativismo feminino são-tomense e a sua capacidade de intervenção solidária. Tal valorização equivale a pressupor e a enfatizar uma actuação ao arrepio do individualismo imperante quer na sociedade portuguesa, quer na são-tomense, onde a irmandade de outrora foi substituída pela entropia vincada pela desregulação social[19] e pela procura de enriquecimento e de ascensão social meteórica por quantos orbitam na esfera política. Afora isso, é possível que também o impulso inicial da actuação da Mén Non ajude a conferir uma nota de desprendimento pessoal em benefício da intenção solidária[20]. O percurso da associação poderá trazer à superfície questões relacionadas quer com a contumácia deste seu propósito solidário, quer com o seu funcionamento, mormente com os processos decisórios e com o micropoder da sua representação.

A institucionalização da comunhão de esforços de mulheres numa associação representa, independentemente da consciência que se tenha disso, um passo não na direcção das demais são-tomenses, quanto, sobretudo, na direcção do poder do país de chegada e, ocasionalmente, do país de origem. Em todo o caso, dadas as circunstâncias da comunidade são-tomense, haverá ainda um caminho a percorrer até que a Mén Non se distinga claramente de uma rede informal de apoio, cabendo averiguar se o capital social se manterá tão relevante nesta associação como parece ser nas redes informais de apoio[21].

A procura de uma dimensão emblemática influirá na trajectória futura da Mén Non, tanto no seu funcionamento interno quanto na prossecução dos seus objectivos? É possível que a Mén Non responda a um apelo no sentido de se forjarem as soluções possíveis para atender a carências ampliadas pela perda de formas tradicionais de sociabilidade ' família, vizinhança, comunhão religiosa e outras ' em resultado da expatriação. É difícil determinar o peso deste factor de ordem emocional e de que forma será, ou não, usurado pelo tempo, assim minando o ímpeto da acção e a confiança das suas associadas.

As sócias fundadoras da Mén Non foram 22 mulheres são-tomenses. A maioria possuía formação superior e as idades variavam entre os 26 e os 59 anos.

Começaram as suas actividades em Abril de 2010. A apresentação da Mén Non ocorreu a 26 de Setembro de 2010, tendo como referência o dia da mulher são- tomense, 19 de Setembro, evocativo de uma manifestação de mulheres em São Tomé em 1974 a favor da independência do arquipélago. Do ponto de vista simbólico, a Mén Non enfileira na vaga do nacionalismo.

Celebrando a terra, a apresentação da Mén Non compôs-se de actividades culturais ' de que cumpre destacar breves prelecções sobre temas candentes como, por exemplo, a violência doméstica ou a política de igualdade de género ' e recreativas, da gastronomia à apresentação de um CD de uma cantora são- tomense. Tal evento realizou-se em instalações cedidas por uma agência estatal portuguesa, cenário costumeiro das actividades da comunidade são-tomense, por exemplo, da I Feira do Livro de S. Tomé e Príncipe em Portugal, em Julho de 2011, mote para um evento eclético com uma forte nota lúdica promovido pela Mén Non.

Em Junho de 2011, a Mén Non tinha 62 sócios, homens e mulheres, são-tomenses e amigos de São Tomé e Príncipe, residentes na área de Lisboa. Em Outubro, sensivelmente um ano depois da apresentação, a Mén Non tem 67 filiados. Dos sócios da Mén Non, cerca de 40 são mulheres. Alguns dos associados são maridos ou familiares das associadas. A líder acredita num futuro aumento do número dos sócios. Não será arriscado dizer que ela crê que todas as mulheres são potenciais sócias, ideia que equivale a fazer da Mén Non a associação representativa das são-tomenses. A credibilização da Mén Non parece passar pela aptidão para abraçar os instrumentos da modernidade[22] e por trazer para a esfera pública os intentos de obviar ou, pelo menos, mitigar as dificuldades vividas na esfera privada. Apesar da proclamação do objectivo da solidariedade, subsiste um fosso entre o reconhecimento institucional das associações e os melhoramentos na vida das pessoas e, na circunstância, das mulheres. Esta questão coloca-se ao comum das associações mas, particularmente, às que, como a Mén Non, afirmam uma vocação assistencialista.

A institucionalização da comunidade ou, pelo menos, de segmentos dela parece um passo avisado, até pelos ganhos que podem advir do registo da associação. Daí, a criação da Mén Non, encarada como uma etapa na construção e afirmação da cidadania, aqui entendida, não no sentido jurídico nem no da defesa de valores políticos comuns, mas, sobretudo, no sentido da prossecução das acções tendentes a assegurar os direitos sociais, por vezes ignorados pelos potenciais beneficiários[23].

A par disso, abordar, reconhecer e, eventualmente, transformar as relações sociais imediatamente relevantes para o quotidiano das pessoas passa pela capacidade de perceber tanto os contextos específicos, como as narrativas conjunturalmente dominantes acerca da evolução do mundo. São estas que propiciam a criação de normas e de valores sociais e que podem justificar, por exemplo, as práticas institucionais de discriminação ou, em contrapartida, as que se lhe opõem, pugnando pela cidadania.

As dificuldades da vivência migratória e as relações de género Meta comum a várias associações, a Mén Non inscreveu nos seus objectivos vencer a ilegalidade e levar os conterrâneos a aceder a serviços e a apoios sociais ' não apenas uma forma de riqueza distribuída, mas também uma plataforma de possível projecção de uma vida num futuro incerto e complexo ', tendo, certamente, maior dificuldade em projectar a solidariedade para efeitos de integração no mercado formal de trabalho. Pergunta-se, do ponto de vista da (i)legalidade da condição e da inserção económica e social, a variável género pesa? Entre os imigrantes são-tomenses não abundam os ilegais, entre outras razões devido aos sucessivos processos de regularização da permanência em Portugal ao longo da última década. Curiosamente, os processos de regularização da residência originam incomodidades indiciadoras de uma concepção de género que, aparentemente, resiste às mudanças do mundo. Um são-tomense, homem latino (usada por uma depoente, a expressão é comutável por homem são-tomense), pretende ter direito a autorização de residência por si e não por intermédio da mulher ou do filho, menosprezando a valia de laços familiares que o habilitariam a obter tal autorização.

Por vezes, a condição de ilegal tem a ver com o medo de questionar o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras acerca das possibilidades de regularização da estada em Portugal. Tal sucede mesmo quando os indivíduos preenchem os requisitos para obter a legalização da sua estada. Nalguma medida, a ilegalidade advém da falta de informação. Mas, pela sua reduzida expressão numérica, a ilegalidade não avulta como um problema, com excepção, é claro, dos que ficam reféns de falta de autonomia, condicionando as suas vidas pela situação de irregularidade em que se enredam. As privações e os condicionalismos que se antepõem à capacidade decisória sobre as vidas também advêm do afloramento de criminalidade em espaços guetizados, nalguma medida resultantes das distorções do mercado de arrendamento que as políticas de alojamento social parecem não conseguir contrabalançar.

À partida, supor-se-ia que o facto de se estar ilegal e de se trabalhar num mercado desregulado influenciaria o acesso a bens ' por exemplo, à habitação municipal e a serviços de saúde ' que compõem a cidadania social (Baganha & Marques, 2001, p. 71). Mas, por exemplo, anos, as políticas de alojamento social nalguns concelhos contemplaram os imigrantes, independentemente da legalidade, ou não, da sua permanência.

Mais preocupante do que a questão da irregularidade, será a da informalidade da relação laboral, uma das facetas da heterogeneidade do mercado de trabalho que se repercute na remuneração desvantajosa da força do trabalho (e, por via disso, na remuneração adicional do capital numa zona mais central do capitalismo e não nas suas zonas periféricas). A informalidade conjuga-se com a precariedade: em cerca de 80 por cento dos casos, as relações laborais são precárias, tanto para homens como para mulheres. Todavia, apesar da preocupação com os casos gritantes de desamparo e de privação, não parece que estes constituam a principal questão para o associativismo feminino são- tomense. Resultará tal de uma opção que, perante a inelutabilidade da situação económica, prefere focar outros horizontes de intervenção como, por exemplo, a solidariedade feminina no sentido de uma promoção da igualdade que, ainda assim, se atingirá a prazo? Retornando aos dados económicos, foi-nos asseverado não existirem mulheres inactivas, irrespectivamente da idade. Sem embargo das circunstâncias económicas difíceis para as mulheres, e contra a costumada presunção de que o emprego das populações migrantes é o primeiro a ressentir-se em situações de depressão económica, a taxa de desemprego entre as mulheres são-tomenses é baixa, talvez 1 por cento. Mesmo que estatísticas rigorosas revelem uma maior taxa de desemprego do que esta cifra adiantada por uma depoente, este não será o maior flagelo das mulheres são-tomenses.

Evidentemente, tal decorre do facto de as são-tomenses, a exemplo de outras imigrantes, se disporem a fazer qualquer trabalho em troca de uma baixa remuneração e de, predominantemente, se ocuparem em tarefas de limpeza, um nicho de mercado de trabalho que não se ressentiu tão claramente das dificuldades sobrevindas com a crise quanto a construção civil, a ocupação costumeira dos homens[24]. Segundo uma depoente, os homens são-tomenses não mostram nenhuma propensão para executarem trabalhos encarados como tarefas de mulheres, mormente na limpeza, o que lhes restringe as possibilidades de emprego. Diversamente, elas esforçam-se por contrariar os efeitos da conjuntura recessiva pela pró-actividade na procura de sustento. A maioria das mulheres, incluindo idosas, trabalha, mesmo se por pequenos períodos diários e em actividades informais como a prestação de serviços de limpeza a particulares.

É-nos dito que é mais fácil às mulheres arranjar trabalhos precários, porquanto os homens vão às obras. Decerto, tal tem impacto nas relações familiares e de género. Às mulheres, coloca-se a questão de saber como arrostar com as dificuldades familiares tendo em conta as privações do desemprego, a que acresce a dificuldade dos homens em lidar com a sua secundarização em virtude da perda de emprego. Segundo uma depoente, homens que chegam a sair de casa, simulando ir trabalhar no emprego que entrementes perderam.

No comum das situações e, em particular, em momentos de crise, as mulheres constituem um suporte indispensável na reprodução familiar e social. Esta importância contradiz a aparente subalternidade em termos de relação de género e, aventar-se-ia, não parece devidamente sopesada nas cautelas da Mén Non em não afrontar a prevalência da superioridade masculina, importada, sobretudo pelos homens, do arquipélago, onde a igualdade de género é uma quimera. Ou, temos de questionar, o objectivo do reequilíbrio das relações de género está na agenda da Mén Non mas será concebido como diferido no tempo, gradual e forçosamente decorrente da capacitação das mulheres e das mudanças no mundo? Diga-se que as exigências da própria vivência migratória (por exemplo, em Portugal, as mulheres não podem tão facilmente recorrer às familiares mais idosas para cuidar de crianças, o que coloca alguma pressão nas relações familiares) induzem alterações na distribuição das tarefas do agregado familiar, retocando neste ponto, não irrelevante, as assimetrias de género. Não se ajusta o esforço demandado quanto implicitamente se reelaboram os papéis de homens e de mulheres. Aqui a sociedade, a vivência obriga [à ajuda] eles podem ter todas as características típicas do homem são-tomense, mas a sociedade obriga [a] que eles façam mais alguma coisa, mormente no cuidado dos filhos, eles têm que fazer qualquer coisa ... a mulher não consegue fazer tudo até a mulher exige também . Estamos num espaço de indefinição. Noutro testemunho, a resposta machista de que isso é trabalho de mulher foi citada. Conquanto a depoente afirmasse chamar a atenção, anuiu a que acabava por se conformar. Nos testemunhos em que se diz que o homem até ajuda bastante, de vez em quando ele também faz, perpassa a ideia de um enredo com lemas nos quais as mulheres procuram alento para superar as dificuldades do relacionamento com os companheiros.

Aos escolhos apostos pelo meio social de acolhimento acrescem as dificuldades próprias da estruturação de uma experiência até pouco inédita no arquipélago, experiência a que se tenta conferir um sentido para além do da necessidade. A vivência migratória tem apenas alguns anos e representa uma ruptura com a mundividência de gerações[25]. A aprendizagem da lida com um mundo em mutação célere e a mobilização dos recursos sociais e grupais processam-se simultaneamente ao enfrentamento de dificuldades de monta.

Um objectivo contido: refazer as relações de género A identidade e o lugar de pertença ou de origem constituem-se como o ponto de partida para uma actuação eventualmente impulsionadora de mudanças sociais, conquanto, à partida, os fins sejam assistencialistas. Pugnando desde por outros fins, a acção da Mén Non poderia nem sequer começar.

É a terra comum e, repitamo-lo, uma comunidade, não imaginada mas intensamente escrutinada, que, enquanto uma espécie de vínculo moral, permite às mulheres romper as paredes da casa ' território de ascendência masculina, mesmo se o homem não permanece nela ' e construir um núcleo de sociabilidade que pode ser uma ajuda mínima e, ainda assim, crucial para uma reequação das relações de género, para o que as mutações inerentes ao processo migratório constituem o primeiro requisito. Num certo sentido, é como se as contingências da vida no contexto migratório, obrigando à redistribuição de poder, experiência, saber, papéis e recursos nas famílias, induzissem um reequilíbrio de poder nas relações de género, de certo modo refeitas ao arrepio dos padrões dominantes no meio de origem.

Em todo o caso, a inércia dos padrões culturais de origem não pode ser ignorada. Concretamente, a da ascendência masculina e da consequente assimetria das relações de género interiorizada por parte significativa das são-tomenses.

Por si , a distância não eliminará esse lastro, mas, juntamente com a mutação das condições de existência, ajuda à lassidão dos constrangimentos. Logo, não espanta que, provavelmente com maior à-vontade do que sucederia no arquipélago ' o que constitui uma diferença ', ouçamos dizer que o problema da mulher são-tomense é o homem são-tomense. Se essa asserção se traduz numa apreciação diversa do mundo e numa atitude diferente, é outra questão.

Com efeito, enunciam-se desígnios cautelosos. A liderança da Mén Non não se diz feminista nem contra os homens, tendo feito um trabalho de desconstrução dessa ideia para remover a resistência dos homens à participação das respectivas mulheres na associação. É dito que querem ser mulheres em igualdade de circunstâncias com os homens. A propósito, num tom conservador, cita-se o caso da OMSTEP[26] e dos efeitos corrosivos que, nos tempos ditos revolucionários do pós-independência, aquela organização de mulheres teve nos laços familiares [27]. Acrescenta-se a menção de que alguns dos homens comparecem nas reuniões da Mén Non com o propósito de controlar o que é falado e dito, podemo-lo pressupor, com o propósito de se assegurar que essa actividade não tem implicações dentro de casa. Diga-se, as relações familiares constituem um domínio no qual a Mén Non dificilmente actuará sem arrostar com conflitos e dificuldades.

Porém, a prática associativa feminina tenderá sempre a laborar no sentido da reformulação das relações de género no seio dos são-tomenses. De resto, tal objectivo de uma política rumo à igualdade de género foi explicitado no respectivo espaço cibernético e convenientemente anunciado em eventos comemorativos[28]. Contrapor-se-á que o crivo de género procurado como factor agregador pelas mulheres são-tomenses não faria senão replicar tais clivagens e, por conseguinte, a assimetria do micropoder nas relações de género. Seja como for, a reafirmação do papel das mulheres na sobrevivência e na luta quotidiana contra as dificuldades ' enfatizado pela sua própria organização ' deverá reforçar a sua posição no agregado familiar. Por outras palavras, o associativismo feminino tenderá a construir-se tanto quanto possível contra as várias formas de preponderância masculina.

Este é o início de um tirocínio pejado de dilemas e de escolhos numa conjuntura difícil. Por exemplo, os efeitos da crise económica e do desemprego, mormente na construção civil, reflectem-se num crescendo de violência doméstica que se abate sobre as mulheres, ocorrendo, portas adentro, um agravamento exponencial de comportamentos violentos em tudo antagónico à concepção prevalecente da comunidade são-tomense formada por pessoas ordeiras e pacíficas. Conquanto se tenda a explicar o crescendo de violência doméstica em função das agruras do desemprego e do desconforto dos homens derivado da corrosão de papéis e da inversão da dependência homem-mulher, tal violência deverá relacionar-se com o padrão observável em São Tomé e Príncipe, expectavelmente transportado pelas pessoas ao longo da vida[29].

Justamente, as dificuldades não são materiais. Brotam das próprias pessoas, enredadas nas suas incertezas, nas suas visões da vida imbricadas com a predisposição para aguentar. Ainda assim, parte da imigração são-tomense não resultou de estratégias familiares decantadas ao longo de anos[30] e que poderiam constituir, como ocorre noutras situações, como que imperativos para as opções das mulheres. Parte dessa imigração foi claramente o resultado de uma escolha individual de jovens, chegadas sós, que entrementes se qualificaram academicamente. Pergunta-se, a par da mutação por força do tirocínio de anos em Portugal, essa origem libertou-as das peias do lastro cultural? Ou em resultado da escolha de companheiros são-tomenses permanecem reféns de reminiscentes liames culturais subliminarmente operantes na abertura ou fechamento de horizontes para a realização pessoal? Cumpre relembrar que corremos o risco de estar a atribuir significados a acções que mais não visam do que a sobrevivência e que têm como horizonte o dia-a-dia.

Em todo o caso, pela sua existência, a Mén Non indicia a predisposição para questionar vidas guiadas pelo peso da inércia dos relacionamentos familiares no arquipélago. Então, para quê invocar a identidade e a condição são-tomense? Tal parece-nos uma interrogação útil, tanto mais que muitas destas mulheres são-tomenses, sentindo-se algo estrangeiras em Portugal, antevêem que se sentiriam igualmente estrangeiras na terra de origem, caso regressassem e tivessem de se deparar com a mentalidade prevalecente sobre a (des)igualdade de género. Num plano mais geral, uma depoente aludiu ao facto de nas ilhas os são- tomenses tratarem de forma diferente os que ali chegam, mesmo se também são- tomenses.

A que serve a evocação da origem comum e da identidade cultural? Entre os imigrados são-tomenses, onde se localiza o fulcro das relações de género, onde se detectam os problemas passíveis de explicação pela desigualdade de género? Como é que eles se resolvem? Pela acção colectiva que, hipoteticamente falando, pode conferir visibilidade a casos emblemáticos de assimetria de género, eventualmente suscitando uma valoração implícita de casos que, em última análise, ecoariam na comunidade? Pela indução e apoio à negociação individual, informal e tácita, de objectos parcelares dessa relação assimétrica no seio de homens e mulheres são-tomenses? A alavanca para a mudança de vida nutre-se do manancial de recursos decorrentes das experiências migratórias e transnacionais, à luz dos quais se refazem as percepções de género referidas à vida e ao mundo. A consequência do encadeamento de mudanças é a reformulação dos projectos de vida, que passam a estar em aberto, constatação subjacente à expressão sou pretoguesa (ou, se a discussão semiológica valesse a pena, deveria escrever-se pretuguesa?) adiantada por uma são-tomense acerca da sua identidade. Assim, se a origem parece ser um factor de afinidade propulsor de solidariedade baseada num vínculo étnico ou nacional, o certo é que o quotidiano corrido vai apartando as mulheres dos padrões de vida na terra natal, mormente no tocante às relações de género. E a algumas, sobretudo as jovens, de permanência mais antiga e socializadas fora das zonas de concentração habitacional dos migrantes, o curso da vida afasta-as até do convívio com os jovens concidadãos, julgados reféns de indesejados atavismos da terra. Independentemente de outras possíveis motivações, aquelas jovens rejeitam comportamentos tributários das relações de género na terra de origem, julgados inadequados nos tempos presentes.

O objectivo do regresso à terra não fará parte das aspirações da maioria das imigrantes, sem embargo de um número relevante poder reiterar o contrário, porventura por isso corresponder a uma imagética de fidelidade à condição de são-tomense ou por ser um desejo de que não se quer abrir mão, qual diapasão para subjectivamente aferir do sucesso da opção migratória. A somar aos distúrbios nos relacionamentos familiares (idealizados a partir da vivência migratória e não do que é normal na terra), as possibilidades de retorno não são iguais para homens e para mulheres. O mercado de trabalho formal não existe ou, pelo menos, é pequeno e distorcido. As oportunidades de empreendedorismo situam-se em sectores para que os emigrados perderam apetência, caso da agricultura. O recrutamento de emigrantes pela política depende de laços que tendem a privilegiar os homens e reduz-se a um número restrito de casos. Portanto, sem embargo das menções saudosas à terra, nas quais transparece conformismo, as pequenas decisões quotidianas vão desmentindo o desiderato do retorno à terra. Aliás, mais do que no regresso, os são- tomenses parecem apostados na mobilidade, em ir e voltar. A mobilidade é que distingue económica e socialmente, é o que comprova o êxito da opção migratória.

É neste horizonte que tem de ser formulada a questão da modelação das relações de género: em que medida a reiterada intenção de voltar um dia e, sobretudo, as opções que na prática a infirmam são relevantes para a compreensão da auto- percepção e, de caminho, da (tentada) modelação das relações de género num percurso de vida que progressivamente vai deixando de ser de imigrante? Qual o peso de atitudes que, por via das relações sociais institucionalizadas ou informais referidas à origem comum, implicitamente se propõem como um exemplo para os restantes são-tomenses? Importará averiguar o impacto da experiência migratória e, em particular, associativa (relativamente à qual alguns homens nutrirão desconfiança) sobre as auto-percepções das dicotomias classificatórias, a saber, dominante e subalterna, homem e mulher (para além, evidentemente, da própria reflexão sobre o lugar na sociedade de chegada), menos por via da verbalização do que pela acção da associação, a qual, também em resultado do contexto económico, poderá ajudar a novos equilíbrios nas relações de género.

As sociedades de chegada são locais propícios a mudanças identitárias e culturais (Grassi, 2007, p. 52). Mas a evocação da origem comum ou de uma identidade cultural (que o conteúdo desta identidade seja vago e passível de caracterização ad hoc é irrelevante, pois o importante é o ganho de autoridade moral decorrente da evocação de uma fidelidade à condição de são-tomense, que não se circunscreve apenas aos atavismos da terra) parece ser um factor de validação das condutas, de propostas de acção e, acima de tudo, de posições cívicas[31]. É desta perspectiva que tem de ser encarado este movimento de vectores aparentemente antagónicos, a saber, a solidariedade para com os membros (sobretudo, femininos) da comunidade recortada pelo vínculo à terra natal, por um lado, e a distância relativamente aos padrões das relações de género nessa terra, por outro[32]. À primeira vista divergentes, estes dois vectores não são excludentes, antes parecem o suporte do associativismo feminino, que visa, justamente, arredar as réplicas no contexto de acolhimento das assimetrias de género do país de origem. Daí que, por razões explícitas e subentendidas, as mulheres sejam o primeiro alvo da solidariedade da Mén Non.

E, todavia, a relação com a terra é tudo menos unívoca. No geral, as relações da diáspora com a terra revelaram-se difíceis[33], razão pela qual, mais do que empenhar-se na transformação da vida no lugar de origem, os são-tomenses tendiam a deixar a terra para trás. Ademais, as dificuldades da vida em Portugal balizam as opções dos homens e das mulheres são-tomenses. Logo, os laços políticos, económicos, culturais e outros com a terra tenderam a ser ralos.

Presentemente, a apartação face à terra ' um complexo cultural, político e social inspirador de atitudes ' tende a ser matizada. Hoje, trajectos de vida migratória tornados definitivos vão trocando o regresso pelas visitas, independentemente das expressões de saudade e, mesmo, de ponderações sobre algumas vantagens num hipotético regresso. Mais hipotético ainda quando falamos de mulheres que têm de sustentar a casa com remunerações assaz parcas. Apesar de experimentarem enormes dificuldades em Portugal, parecem, confessadamente ou não, pouco inclinadas ao regresso, especialmente quando ainda relativamente jovens ou em início de vida[34].

À medida que se aprofunda e complexifica a experiência migratória das são- tomenses, o argumento aduzido para a escolha de uma vida por fora distancia-se de motivações meramente económicas. Citemos o que diz directamente respeito às relações de género e à valia dos sentimentos e das emoções: a expectativa de uma concorrência feminina por um homem formado e capaz, ou nem por isso, de angariar meios de sustento para manter vários lares surge como um desincentivo ao regresso. Esta escolha é verbalizada por mulheres diferenciadas, modernas, independentes, com iniciativa e dispostas a modelar, tanto quanto possível, as relações de género no contexto migratório.

Almeja-se transformar as relações de género sem causar rupturas na comunidade são-tomense. Funcionando como um vínculo facilitador do associativismo, a condição são-tomense também constrange as mulheres a muitas cautelas. A diversidade de trajectórias e a pluralidade de pertenças deverão ajudar a diluir tais constrangimentos e contribuir para um reequilíbrio das relações de género, em todo o caso, sempre mais fácil de advogar do que materializar. E, ao menos em teoria, mais fácil de lograr no universo migratório e transnacional do que na terra, mesmo se esta, como todo o mundo, muda.

A mobilização associativa das mulheres são-tomenses não terá a ver com as dificuldades de inserção na sociedade de acolhimento. Tem a ver com a percepção do ambiente favorável à participação e à intentada criação de uma instância de (ténue) pressão sobre comportamentos dentro de portas. Porventura, talvez maior do que o interesse no envolvimento na política são-tomense seja o da afirmação das mulheres através da militância em objectivos respeitantes aos nacionais de uma terra a que, poderá suceder, não se voltará mais ou não se pretende voltar, conquanto se queira continuar fiel à condição de são-tomense.

Todos, homens e mulheres, participam de uma certa matriz cultural da terra que não se desfaz por efeito da translação de vidas. Recuperando os estereótipos de que também se tecem as relações de género no arquipélago, mais ou menos replicadas em contexto migratório, para as mulheres são-tomenses deve ser clara, ao menos intuitivamente, a indissociação, para todos os efeitos, de destinos e de condição de mulheres e de homens são-tomenses enquanto elementos de uma pertença de que, por ora, poucos parecem querer alijar.

Até pela compensação emocional que, derivada da proximidade e da similitude de trajectos com familiares e vizinhos, se atribui à pertença são-tomense, o passado não é facilmente alienável.


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