O Difícil Processo de Definição de Fronteiras e Pertenças Político-identitárias
no Debate de Cabinda
Os Acordos de Alvor, de Janeiro de 1975, que formalizaram o direito de a então
colónia portuguesa de Angola ascender à independência, incluíram no espaço
territorial angolano o enclave de Cabinda, tornando este numa manifesta
província angolana. Há, todavia, quem defenda que o enclave de Cabinda
constitui uma nação subordinada a um poder colonial de Angola e, como tal, não
goza, ainda, do inalienável direito de ascender à independência. Um direito
negado, segundo esses autores, que defendem a secessão do enclave, por uns
iníquos acordos celebrados entre Portugal, que, como defendem, é a ainda
oficial potência colonizadora, e os então movimentos de libertação de Angola:
os Acordos de Alvor[1].
Evocam, como fonte primária para alicerçar a sua pretensão, a existência de um
celebrado Tratado entre Portugal e dignitários de Cabinda, reconhecido por
Tratado de Simulambuco, assinado entre um oficial da marinha portuguesa, o
capitão-tenente Guilherme Augusto de Brito Capello, comandante da fragata
Rainha de Portugal, que assumia ir a mando e autorizado pelo rei português Luís
I, Sua Majestade Fidelíssima El-Rei de Portugal, quando na realidade, e como
mais adiante se verá, foi a mando do Governador-geral de Angola, e dos
príncipes, régulos e governantes e cavalheiros locais representando o Reino de
N'Goyo (da tribo Woyo, antiga suserada do reino do Congo), em 22 de Janeiro de
1885.
O então Tratado foi rubricado porque Portugal temia perder alguns dos seus
territórios africanos devido à partilha de África, ocorrida com a Conferência
de Berlim de 1884/85 que, entre outros itens, exigia a liberdade de comércio
na bacia do Congo e seus afluentes, neutralidade dos territórios da bacia do
Congo, e livre navegação no Congo e Níger (Almeida, 2004, p. 47).
A assinatura em Simulambuco foi uma resposta portuguesa a todo um postulado da
conferência e a toda uma avalanche de violações à soberania dos povos
autóctones por parte do conde Sarvognan de Brazza[2], um italiano nacionalizado
francês, sob protecção de canhoeiras francesas.
Quando foi celebrado o dito Tratado, ficou consagrado que todos os territórios
dos reinos Loango, Cacongo e N'Goyo[3] – ou de Cabinda, compreendidos entre o
Rio Congo (Zaire) e uma parte do sul do então Congo francês, ou seja até ao
paralelo 5º Sul (ligeiramente a sul do rio Loémé, perto de Ponta Negra,
República do Congo) – ficariam sob a protecção do reino lusitano, conforme
determinavam os onze articulados do documento, que aqui não serão tratados
exaustivamente; todavia, ressalvam-se dois artigos que são importantes sendo
que, por causa deles, há a actual polémica.
No art.º 3º Portugal comprometia-se a manter a integridade dos territórios
colocados sob seu protectorado.
No art.º 9º o Estado português comprometia-se a respeitar e fazer respeitar os
usos e costumes do povo de Cabinda.
Como adiante veremos, isto acabou por não corresponder à verdade.
Enquadramento geral
O enclave de Cabinda foi, nos primórdios, um antigo protectorado de Portugal,
estando hoje incorporado na República de Angola como província, de acordo com a
actual Constituição angolana, de 5 de Fevereiro de 2010.
Apesar de ser, em termos africanos, um território de pequena dimensão, já que
tem cerca de 7.000 quilómetros quadrados, é quase do tamanho da Gâmbia. Situada
a 50 quilómetros a norte da foz do rio Zaire, a província está encravada
geograficamente entre os dois Congos: o que foi colónia belga, actualmente
denominado República Democrática do Congo, e o outro onde dominaram os
franceses, a República do Congo. Não tem, por isso, qualquer fronteira física
com a República angolana. Apesar do seu limitado espaço territorial, Cabinda
tem uma costa expressiva, maior que a do Congo Democrático e similar à da
República do Congo, realidade que se revelou, para o bem e para o mal, mais um
empecilho nas jogadas estratégicas das potências coloniais. À época da
exploração colonial, tal como ainda hoje, as potencialidades da sua floresta do
Maiombe também emergiram como um motivo de avidez.
E se, até 1961, a realidade em matéria de potencialidades económicas do pequeno
território estava na floresta e na pesca, por volta de 1964 (três anos após o
início da guerra independentista em Angola), quando se deu início à exploração
da enorme capacidade petrolífera de Cabinda, o cenário alterou-se, colocando o
território na primeira linha dos interesses estratégicos regionais e mundiais.
Enquanto protectorado de Portugal, situação vigente de jure e já não tanto de
facto até por altura da descolonização em 1975, Cabinda teria pouco mais de 70
mil habitantes. Tratava-se, no entanto, de um número flutuante porque – como é
típico em África, onde a colonização e a repartição física do continente foi
feita à régua e esquadro por via da Conferência de Berlim e dos interesses
evangelistas de algumas potências – as populações dos dois Congos e de
Cabinda não tinham fronteiras e circulavam por um espaço físico histórica e
sociologicamente comum[4]. Graças à sua situação geográfica, sobretudo por
estar relativamente perto do rio Zaire, Cabinda foi à época da Revolução
Industrial um ponto de referência interessante para as grandes potências
coloniais europeias.
No Século XIX, Portugal assumia o seu papel de potência colonizadora efectiva
de todo este território e jogou os seus trunfos políticos contra as tentativas
constantes da França e da Inglaterra que, fazendo uso de todos os meios,
procuravam desalojar os portugueses ou, no mínimo, submetê-los aos seus
interesses hegemónicos no continente africano.
Só que enquanto Portugal assumia o papel de potência protectora da região, a
França, através de Sarvognan de Brazza, procurava assenhorar-se dos territórios
compreendidos entre a margem esquerda do Zaire – na margem direita já flamejava
o pavilhão erguido por Henry Stanley[5], em nome do rei Leopoldo –, a foz do
rio Ogowé e a costa ocidental a norte de Landana (Silva, 1888).
Os interesses franceses foram mais fortes e em Março de 1883 uma canhoeira
francesa, Sagittaire, mostrou-se nas costas de Ponta Negra e Loango e aportou a
Saint Espirit de Landana, onde o comandante, em conferência com o superior da
missão de Saint Espirit, decidiu ocupar os territórios costeiros entre Loango
(reconhecido também como o território do Rei do Lombe, Ma-Luângu, do que
derivou Maoimbe e Molembo (também reconhecido por reino de Kakongo/Cacongo).
Note-se que o prelado, colocado em Landana por beneplácito dos portugueses e
que ofereceram um estabelecimento comercial, era um feroz inimigo da presença e
dos interesses portugueses na zona.
Por outro lado, quando os franceses decidiram ocupar a região era para fazê-lo
sob a supervisão de Brazza, que acompanhava a Sagittaire numa outra canhoeira,
a Auriflamme, que acabou por atrasar a chegada. Face aos desenvolvimentos
locais e às investidas do prelado francês, o comandante da Sagittaire, Cordier,
acabou por declarar toda a região como território francês. Para isso também
contribuiu o facto de alguns reinos não serem propriamente amigáveis para com
Portugal, situação essa que se reproduziu, nos idos de 1913-14, quando povos da
região do antigo Reino do Congo se revoltaram por estarem a ser recrutados
para Cabinda, porta de entrada para a região interior, como trabalhadores
forçados (Wheeler & Pélissier, 2009).
Foi em 1876 que, entrando também na disputa ocupacional que já envolvia a
França e a Inglaterra, o Rei Leopoldo II da Bélgica compôs a Associação
Internacional do Congo, mais tarde, Estado Livre do Congo, que, à margem de
Portugal, procurou o domínio da região através de métodos já à época
considerados inaceitáveis. A exploração e recolha da borracha foi um dos
motivos que levaram a críticas acentuadas da comunidade internacional pela
extensiva exploração que o monarca belga fazia daquilo a que chamava de Estado
Livre mas que, na prática, mais não era que uma coutada pessoal.
Vários morticínios levados a efeito por militares belgas foram perpetrados no
Congo, ao ponto de o cônsul britânico Roger Casament ter elaborado um
relatório, o Relatório Casament, de 1904, onde acusava os oficiais de Leopoldo
II de serem responsáveis por diversas matanças durante expedições para recolha
de borracha ocorridas no ano anterior.
Perante a visível e assumida resistência dos povos da região, nomeadamente de
Cabinda, às incursões e violências das potências coloniais de então, Portugal
resolveu tornear, politicamente, a matéria vigente através do reconhecimento
público de algumas figuras locais, a quem outorgou títulos políticos e/ou
militares. Exemplos são a atribuição do posto de coronel a Ranque Franque, ou o
de barão a Manuel Puna.
Do Tratado de Chinfuma ao Tratado de Simulambuco
Num contexto colonial em que Portugal aparecia como mal menor, entre todos os
que queriam ser detentores do espaço territorial que forma a actual província
de Cabinda, os seus habitantes optaram por negociar com os portugueses,
acreditando que a sua segurança e autonomia estariam salvaguardadas, apesar de
a presença de Portugal na região andar a ser questionada quer pelos franceses,
quer pelos britânicos ou, mais tarde, pelos belgas. Os britânicos, os velhos
aliados de Portugal, questionavam a presença lusa na região, tendo levantado
duas questões político-geográficas que ficaram conhecidas como Questão do
Ambriz, a primeira, e como Questão do Zaire, a segunda.
Portugal já tinha apresentado perante a concorrência mundial da altura,
nomeadamente aos britânicos que negociavam (impunham) com Portugal a
delimitação dos seus territórios entre o já citado paralelo 5º e o 8º Sul, ou
seja, até um pouco a sul de Ambriz e, note-se (registe-se) os territórios de
Angola. Tudo por causa do mercado de escravos que os britânicos tinham abolido
em todo o seu império, oficialmente em 1834, mas que permitiam e protegiam que
os seus negreiros persistissem nos territórios de terceiros ou não
efectivamente ocupados, como seria no caso dos territórios portugueses.
Recordemos que Cabinda não era um território português, mas sob protecção do
soberano português, pelo que não poderia ser considerado como um território com
efectiva ocupação perante a feroz rivalidade política e geográfica que se
verificava na zona e que se viria a desenvolver ainda mais com a presença na
região de Brazza, que desenvolvia movimentações políticas e sociais na região a
favor da França e colocava em causa quer a presença portuguesa, quer o comércio
negreiro britânico.
Se esta preocupante movimentação francesa permitiu a Portugal manter os
territórios a sul do paralelo 5º 12' até 8º Sul, o território cabindense ficou
espartilhado entre a soberania franco-belga e a protecção portuguesa. Ou seja,
Portugal, por via das movimentações territoriais francesas, conseguia resolver
as suas duas questões com os britânicos: a do Ambriz, primeiro, e, mais tarde,
a do Zaire, que definiu em definitivo a fronteira internacional na embocadura
da foz do rio Zaire. Esta matéria acabou por ser importante para a delimitação
futura das actuais fronteiras de Angola (Oliveira, 2010).
De acordo com Oliveira, a Inglaterra contestava a soberania portuguesa nos
territórios ocidentais de África entre os paralelos 5º 12' e 8º latitude Sul,
ou seja, entre a margem direita do rio Zaire e o sul de Ambriz. Estas objeções
colidiam com o Tratado assinado entre estas duas partes em Julho de 1817 que
defendia como territórios efectivamente possuídos todos os que estavam
compreendidos entre o paralelo 18º e 8º latitude Sul. Nestes estavam incluídos
os de Molembo e de Cabinda, que iam do paralelo 5º 12' e 8º latitude Sul. Só
que este Tratado colocava os ditos territórios de Molembo e Cabinda na Costa
Oriental de África, facto que provocou claros dissabores à diplomacia
portuguesa. Este verbal mistake, como ficou depois consagrado nas relações
luso-britânicas, só foi regularizado pela convenção adicional de Abril de 1819
(Oliveira, 2010).
Todavia, deve-se recordar que os territórios portugueses, pela convenção de
Madrid de 1786, tinham início no paralelo 0º 36', ou seja desde o Cabo Lopo
Gonçalves – Lopez Cap, nas cartas inglesas – e não nos paralelos indicados
pelos britânicos e que foram, habilmente, aproveitados pela França quando
reconheceu como direitos soberanos de Portugal todos os territórios até
Chiloango, ou seja, até ao citado paralelo 5º 12'.
Esta situação só ficou regularizada num acordo, denominado Questão do Zaire,
assinado entre Portugal e Inglaterra em Fevereiro de 1884, onde ficou
consagrado que esta reconhecia os direitos históricos de Portugal e o
exercício, em benefício da Inglaterra e de Portugal, de um poder exclusivo de
polícia e fiscalização no curso superior do Zaire e todos os territórios
adjacentes. Este acordo seria fortemente contestado por franceses, germânicos,
holandeses, espanhóis e norte-americanos.
Ao mesmo tempo que Portugal dirimia as suas posições geográficas na região com
os britânicos, franceses e, mais tarde, com os belgas, os representantes
portugueses na região procuravam celebrar acordos com os régulos e príncipes
locais, nomeadamente com Tali-e-Tali, Regente do Reino de Kakongo (Cacongo),
Mancoche de Muba, Rei do Encoche Luango, António Tiaba da Costa, Regente do
Reino de Chinchôcho e representante da Rainha Samano, príncipe Mansange, do
Massabe, Mangoge-Bembo da Costa, de Tenda, príncipe Mamimbache, do Kakongo e
Mangoal, Regente do Mambuco, e seus sucessores, bem como os mais chefes dos
territórios que do rio Massabe se estendem até Malembo, na costa ocidental de
África. Destes singulares acordos resultou o Tratado de Chinfuma[6], celebrado
e assinado a 29 de Setembro de 1883, no morro do mesmo nome, a norte do rio
Chiloango. O local foi escolhido porque só por si corroborava o alcance do
acordo. Assim, ficaram estabelecidos o protectorado e a soberania de Portugal
sobre todos os territórios que se estendem do rio Massabi até ao Malembo, ou
seja, os territórios de Lândana, Chinchôcho e Massabe.
Foram celebrantes, com assinatura e sinalização, do documento, além dos já
citados, Brito Cappelo, os oficiais portugueses Cristiano Frederico Krusse
Gomes, 1º tenente da armada, e Aquiles de Almeida Navarro, facultativo naval de
1ª classe, e mais cerca de 45 dignitários regionais (entre príncipes,
cavalheiros, chefes e governadores) autenticados e certificados presencialmente
por João José Rodrigues Leitão Sobrinho, negociante em Lândana, e testemunhado
pelo comandante Robert F. Hammick, da canhoneira inglesa Flirt, e R. E. Demet,
gerente da casa Hatton & Cookson.
Portugal, de acordo com o articulado do documento, comprometia-se a garantir a
continuidade e integridade das áreas bem especificadas no âmbito do
protectorado (Artigo 3º do Tratado de Chinfuma), situação corroborada também
pelo auto de posse que foi autenticado pelo rei do Cacongo.
Pouco mais de um ano depois, a 26 de Dezembro de 1884, outros responsáveis da
hierarquia social e política dos povos de Caio Chimisi, Suangili Mando,
Buamongo, Guamongo, Chicambo Naeba e N'cula, consideraram favorável o Tratado
de Chifuma, até então encarado como já tendo dado frutos no sentido da defesa
dos interesses dos povos da região cabinda das margens da lagoa do Caio, e
decidiram apostar na mesma estratégia, assinando, então, o Tratado de Chicambo
[7], uma cópia fiel do de Chinfuma.
Mau grado estes Tratados e todas as garantias dadas pelas autoridades
portuguesas em matéria de segurança, os cabindas continuavam a sentir-se sem
segurança e sujeitos aos mesmos perigos protagonizados pelas outras potências
coloniais. Confrontado com esta realidade que, inclusive, poderia levar a uma
espécie de rebelião que anulasse os acordos anteriores, Portugal resolveu, com
a anuência de um maior número de líderes de Cabinda, avançar para um outro
Tratado mais amplo e abrangente que englobasse os anteriores e lhes desse
outras mais-valias. Foi assim que, em 1 de Fevereiro de 1885[8], nasceu o
Tratado de Simulambuco[9], assinado por Brito Capello, representando o reino
português, e por príncipes, régulos e governadores locais representando o Reino
de N'Goyo.
Na óptica de Lisboa, sob o reinado de D. Luís, este Tratado deveria ser
importantíssimo, sobretudo no âmbito da Conferência territorial que se fazia em
Berlim, sob os auspícios do chanceler germânico Bismark, depois de Leopoldo II
da Bélgica ter ventilado a hipótese de realização de uma Associação
Internacional Africana e subsequente conferência internacional que se deveria
realizar em 1876.
Contudo, Portugal estava muito longe das questões cabindenses e continuava a
assumir que as suas posses estavam garantidas. Os problemas que os franceses
criavam na região só muito tardiamente chegavam a Lisboa. Por essa razão, e
porque os comerciantes e oficiais portugueses que estacionavam na região de
Cacongo-Massabi solicitaram apoio ao Governador-geral de Angola, capitão-
tenente Ferreira do Amaral, que, vendo não vir uma resposta atempada de Lisboa,
optou por enviar a corveta Rainha de Portugal, sob comando de Brito Cappelo, e
celebrar acordos de protecção com os príncipes e régulos locais (Silva, 1888).
Só mais tarde Lisboa tomou conhecimento destes factos e aproveitou-os para
fazer valer os seus direitos na Conferência de Berlim.
A Conferência de Berlim, realizada entre 19 de Novembro de 1884 e 26 de
Fevereiro de 1885, teve como objectivo organizar a ocupação de África pelas
potências coloniais e resultou numa divisão que não respeitou nem a história,
nem as relações étnicas e, muito menos, as ancestrais relações familiares dos
povos do continente africano.
A Conferência validou o Tratado de Simulambuco e reconheceu, como era desejado
e condição sine qua non de Portugal, todos os direitos portugueses na região,
com especial relevo para os já citados itens a liberdade de comércio na bacia
do Congo e seus afluentes, neutralidade dos territórios da bacia do Congo, e
livre navegação no Congo e Níger. A assinatura em Simulambuco – hoje
integrado na cidade de Cabinda – foi a resposta portuguesa a todo o postulado
abordado na conferência (Almeida, 2004).
Portugal adoptava então, quer perante os cabindas, quer perante o mundo, a
obrigação de ser guardião, por todos os meios ao seu dispor, do novo
Protectorado de Cabinda, que englobava não só os citados reinos de Loango,
Kakongo e Ngoio e outros referidos, como os lugares conhecidos por Chinchocho,
Luvula, Chilunga, Ombuco, Tenda, Muba, Bukameala, Mayumba, Pango, e Ganga-
Muculo, todos a norte da foz do rio Zaire.
Dizem os compêndios de Ciência Política que Tratados são actos internacionais,
através de acordos formais e escritos celebrados entre Estados e/ou
organizações internacionais, que buscam produzir efeitos numa ordem jurídica de
direito internacional. Sendo acordos, pressupõem manifestação de vontade
bilateral ou multilateral. Mas a Ciência Política também refere que os actos
internacionais além de Tratados podem conferir também Acordos, Convenções ou
simples Actos internacionais diversos entre pessoas ou contratantes com cariz
jurídico-institucional semelhante a Estados.
E, segundo as normas internacionais, só aos sujeitos de direito internacional
se reconhece o direito a celebrar e assinar Acordos e Tratados conforme o
direito convencional ou treaty-making power. Ou seja, apenas os Estados
nacionais, as organizações internacionais (reconhecidas como tal), a Santa Sé –
apesar de não ser um Estado, como é comummente aceite para estes casos, é assim
reconhecido – e os beligerantes e insurgentes podem celebrá-los.
Recorde-se que não há conhecimento da existência formal de qualquer documento
legal assinado pelo rei de Portugal a autorizar o comandante do Rainha de
Portugal a celebrar qualquer tipo de contrato em seu nome com qualquer entidade
– registe-se que, então, apesar de os navios representarem o Estado sob quem
arvoravam o pavilhão, só depois de ratificado pelo Chefe de Estado e/ou
ratificado nas Cortes/Parlamento um documento revertia em Tratado – nem, tão-
pouco, os príncipes e régulos estavam mandatados pela rainha de N'Goyo, nem há
conhecimento de que esta, bem como o kibanda do Reino, tenham ratificado o
documento assinado em Simulambuco. Todos os actos deviam ser sancionados por
estas duas entidades, o que ainda hoje persiste, ressalvando que a rainha é
sempre uma descendente directa do Rei do Congo:
De acordo com as transmissões orais de alguns mais velhos, a história da
entronização dos líderes e governantes não autóctones em Cabinda terá começado
com a presença da princesa Mampuenha, filha do rei do Kongo, expulsa da região
de Mbanza Kongo, há séculos atrás, por engravidar sem ter passado pelo rito da
puberdade. Recolhida na região do N'Goio, que pagava vassalagem ao rei do Kongo
juntamente com outras duas regiões (Kakongo e Luango) que formavam o antigo
território de Cabinda antes da Conferência do Berlim, acabou de dar à luz
trigémeos (uma menina, a mais velha, e dois rapazes). O rei do Kongo, ao
receber a notícia através de emissários mandados pelo rei de N'Goio (Ntinu
Ngoio), concedeu às três regiões uma espécie de independência, retirando-lhes a
condição de vassalos do Manicongo, e indicando os seus netos para as
governarem. A mais velha ficaria com o reino de N'Goio, a menor região; o
segundo ficaria com o reino de Kakongo, a região considerada mais importante do
ponto de vista político; e o terceiro ficaria com o reino de Luango, a região
mais vasta. No dia da exaltação, a rapariga ficou impedida de ser entronizada
por causa da menstruação que lhe surgiu, porque tinha de se retirar para a
mata, segundo rezava o costume da época. Por isso foram entronizados os outros
irmãos, pelo que ela ficou apenas como representante religiosa para dar o poder
de governar aos irmãos, em cerimónia específica que ocorria na região do Morro
de Chizo, nos arredores da cidade de Cabinda. A estória repetir-se-ia até ao
desaparecimento dos tais reinados. Todavia, aquando da entronização do actual
rei de Luango, em 2002, em Diossó (região de Ponta Negra), a delegação
angolana que lá se deslocou pôde constatar in loco que o novo rei entronizado
manifestou o desejo de se deslocar a Cabinda, para receber a referida
soberania religiosa no Morro de Chizo. Também alguns dos últimos governadores
provinciais nomeados por Luanda se deslocavam ao Morro de Chizo para serem
oficialmente simbolizados (Domingos K. Nzau[10], comunicação pessoal, Janeiro
de 2012).
Só um documento escrito por um habitante de Cacongo, José Emílio de Santos e
Silva, nos relata os acontecimentos da época e nos mostra que foi a visão
política de alguns comerciantes locais e do governador Amaral, aliada à
discrição dos ingleses, que testemunharam os actos, bem como a necessidade dos
príncipes locais travarem as investidas francófonas, que permitiram a
assinatura do Tratado. Acresce que, segundo algumas fontes não autenticadas,
quando foi assinado o documento os representantes cabindenses estariam sob
efeitos de álcool gentilmente fornecido na véspera, e em barda, pelos oficiais
do navio português. Como não há documentos fidedignos que comprovem esta acção
lusa, mas tão-somente alguns escritos nesse sentido, não se pode afirmar que
tal aconteceu.
Por outro lado, um Tratado só diz respeito às partes contratantes e deve ser
ratificado e promulgado de acordo com as normas internacionais, no caso,
vigentes à época. Actualmente os Tratados devem ser registados nas Nações
Unidas para terem suporte jurídico desta organização supranacional, em casos de
litígio.
Sobre os Acordos há quem considere que são actos internacionais com a mesma
relevância de um Tratado, embora de menor impacto político. Outros há, no
entanto, que admitem que os acordos podem ser assinados por países,
organizações e outros, que não entidades soberanas, quando estão em causa
interesses absolutos.
Mas, voltando ao documento, nele estava, e está, escrito:
Nós, abaixo assinados príncipes e governadores de Cabinda, sabendo
que na Europa se trata de resolver, em conferência de embaixadores de
diferentes potências, questões que directamente dizem respeito aos
territórios da Costa Ocidental de África, e, por conseguinte, ao
destino dos seus povos, aproveitamos a estada neste porto da corveta
portuguesa Rainha de Portugal, a fim de, em nosso nome e no dos
povos que governamos, pedirmos ao seu comandante, como delegado do
Governo de Sua Majestade Fidelíssima, para fazermos e concordarmos
num tratado pelo qual fiquemos sob o protectorado de Portugal,
tornando-nos, de facto, súbditos da coroa portuguesa, como já o
éramos por hábitos e relações de amizade. E, portanto, sendo de nossa
inteira, livre e plena vontade que de futuro entremos nos domínios da
coroa portuguesa para aceder aos nossos desejos e dos povos que
governamos, determinado o dia, onde, em sessão solene, se há-de
assinar o tratado que nos coloque sob protecção da bandeira de
Portugal.
Também os portugueses escreveram e subscreveram,
Guilherme Augusto de Brito Capello, capitão tenente da Armada,
comandante da corveta Rainha de Portugal, comendador d'Aviz e
cavaleiro de várias Ordens, autorizado pelo Governo de Sua Majestade
Fidelíssima, El-Rei de Portugal, satisfazendo aos desejos
manifestados pelos príncipes de Cabinda, em petição devidamente por
eles assinada em grande Fundação, concluiu com os referidos
Príncipes, Governadores e Chefes abaixo assinados, seus sucessores e
herdeiros (o que ficou consignado como o Tratado).
Perdurava, assim, reconhecido que todo o território do reino N'Goyo – ficava
compreendido entre o Rio Congo e uma parte do sul da actual República do Congo
(então Congo francês), ou seja até ao paralelo 5º Sul (ligeiramente a sul do
rio Loémé, perto de Ponta Negra, República do Congo) – estaria sob a protecção
do reino lusitano, conforme determinavam os referidos onze articulados do
documento.
Para formalizar e autenticar este acordo foi decidido nomear um representante
português para a região. Assim, após a assinatura foi criada a povoação de
Cabinda e aqui instalaram-se as autoridades portuguesas, tendo sido nomeado
como primeiro governador João António de Brissac das Neves Ferreira, que ali
aportou a 14 de Julho de 1887.
Portugal e Cabinda de 1885 a 1974 e a definição de fronteiras
Se é verdade que Portugal cumpriu e honrou o articulado do documento entre 1885
e 1974, também é verdade que há dois artigos que devem ser ressalvados dado
que, por causa deles, há a actual polémica. Ou seja, se Cabinda é território
autonomizável, logo território sob administração colonial, ou uma das 18
províncias angolanas.
No art.º 3º Portugal comprometia-se a manter a integridade dos territórios
colocados sob seu protectorado e no art.º 9º o Estado português comprometia-se
a respeitar e fazer respeitar os usos e costumes do povo de Cabinda. Em ambos
os casos, tal não se veio a verificar.
Portugal, à revelia do assinado com os régulos locais, e sempre que as forças
políticas e as políticas das canhoeiras o forçavam, assinou acordos com as
potências coloniais adjacentes redefinindo as suas fronteiras coloniais. No
caso de Cabinda, a aceitação das fronteiras impostas pela França com a
assinatura de acordos com régulos locais na zona de Ponta Negra, coagidos pela
presença de canhoeiras francesas, ou do acordo com a Bélgica, a 5 de Julho de
1913[11], quando Portugal assinou, em Bruxelas, um protocolo onde Portugal
aceitava dar provimento a uma reivindicação belga de ter uma saída do Congo
para o Oceano Atlântico concedendo um corredor nos territórios ao norte da foz
do Zaire, cortando, desta forma, o reino de N'Goio ao meio. Para o território
de Cabinda ficava consumado o torrão ficar como um enclave.
Mas esta questão da definição das fronteiras do território cabindense continua
a motivar a tentativa de outras redefinições fronteiriças, desta feita entre o
Congo Democrático e Angola, na foz do Zaire, devido à exploração de
hidrocarbonetos[12].
Entretanto, já em 12 de Janeiro de 1901, Portugal e França haviam assinado em
Paris um protocolo interpretando e completando o artigo 3 da Convenção de 12 de
Maio de 1886, relativo ao traçado da linha de fronteira franco-portuguesa na
região do Congo. Estava assim consumada a divisão do Congo em três partes:
belga, francesa e portuguesa, desprezando um dos artigos do documento que dizia
que Portugal respeitaria e faria respeitar a integridade do território.
Ora, como se recorda, o território sob protectorado estava compreendido, em
toda a sua extensão, entre os rios Loémé, a Norte, e a foz do Zaire.
Por isso, a questão do porquê de Cabinda ser ou não um território autónomo,
como defendem alguns autores e alguns dirigentes cabindenses, ou uma província,
como sustenta a Constituição angolana, está hoje a ser muito debatida, ao ponto
de a própria União Africana ter nomeado um relator especial para analisar as
queixas dos independentistas de Cabinda contra o Governo de Angola[13].
O compromisso assumido com os povos da região cabinda levou Portugal, em
matéria constitucional e de acordo com o Acto Colonial de 8 de Julho de 1930, a
incluir Cabinda na nação portuguesa de forma autónoma e bem diferenciada de
outras situações coloniais.
Ao contrário das teses unilaterais de alguns dos dirigentes portugueses que
defenderam e rubricaram a descolonização após a Revolução de 1974, no artigo da
Constituição Portuguesa vigente até à de 25 de Abril de 1975, no concernente à
nação portuguesa, sempre constou que o território de Portugal era, na África
Ocidental, constituído pelos arquipélagos de Cabo Verde, de São Tomé e
Príncipe, Forte de S. João Baptista de Ajudá, Guiné, Cabinda e Angola.
Na Lei Orgânica do Ultramar de 1972 diz-se de forma clara que o território
português se compunha das províncias com a extensão e limites que constarem da
lei e dos tratados (onde se incluem, obviamente e se considerarmos como
Tratados, os de Chinfuma, Chicambo e de Simulambuco) ou convenções
internacionais aplicáveis.
Registe-se e recorde-se, que até meados do século passado, por exemplo, quem
viajasse de avião ou navio e que desembarcasse em Cabinda passava por uma
alfândega autónoma, o que só é entendível à luz de serem dois territórios
distintos como defendem os autonómicos. Isto apesar de, em 1955, para facilitar
a administração do território, o território de Cabinda ter sido considerado
como um distrito de Angola. Embora reconhecendo que de facto se tratava de um
mero expediente administrativo, Portugal reafirmava que Cabinda não era Angola,
citando a esse propósito que se mantinha o articulado que constava da
Constituição portuguesa em vigor.
Aliás, o Governador-geral de Angola ou um Secretário Provincial seu
representante, nas comemorações anuais de Simulambuco, deslocava-se a Cabinda
para presidir, junto ao monumento de Simulambuco, às cerimónias que reforçavam
e validavam o que fora assinado pelas autoridades portuguesas de então.
Segundo o general Silvino Silvério Marques, que foi Governador-geral de Angola
[14], entre 1962 e 1965, o então ministro do Ultramar, Silva Cunha, a propósito
da preparação do Estatuto Político-Administrativo da Província de Angola de
1963, por ordem do chefe de Governo, António de Oliveira Salazar, tê-lo-á
sondado no sentido de saber se concordava que Cabinda, administrada então como
distrito de Angola, passasse a ter um estatuto especial de autonomia. Ouvido o
Conselho Económico-Social de Angola, Silva Cunha recebeu uma resposta negativa,
situação que assim se manteve durante os 13 anos da guerra colonial.
Ou seja, ficava visível que a administração de Cabinda, como um distrito de
Angola, era uma situação meramente burocrático-administrativa, nunca tendo
Portugal alterado o espírito e a letra do articulado de Simulambuco, no que foi
ratificado nas Nações Unidas – quer na Assembleia Geral, quer no Conselho de
Segurança – onde os territórios ultramarinos portugueses de Angola e Cabinda
estavam a ser analisados como uma única entidade (Felgas, 1962).
Em tudo, aliás, a situação de Cabinda relativamente a Angola era na altura da
Revolução de 1974 similar, ou até coincidente, com a dos protectorados belgas
do Ruanda e do Burundi em relação ao Congo Belga. E estes acabaram
independentes, apesar de os anos seguintes terem mostrado que a sua divisão
política, sem contar com as diferenças étnicas, mostrou ter sido um erro
colonial, que nunca procuraram regularizar.
Em 1961, altura em que se inicia a luta armada pela independência de Angola, em
Cabinda e com cabindas como protagonistas, já existia apenas um movimento pró-
autonómico que, porém, excluía a luta armada como meio para atingir esse fim.
Para eles o diálogo com Portugal era a única arma existente.
O surgimento de movimentos emancipalistas cabindenses
Em 1958, destacados elementos da comunidade cabinda radicados em Leopoldville
fundaram a AREC[15] (Association des Ressortissants de l'Enclave de Cabinda –
Associação dos Originários do Enclave de Cabinda).
Os dirigentes da AREC afirmavam que, do ponto de vista político, Cabinda era um
protectorado de Portugal, negando qualquer envolvimento activo, ou apenas
simpatia, pelos movimentos angolanos que lançaram a luta armada pela
independência de Angola. E nesse sentido, a 12 de Agosto de 1960, ou seja antes
do início oficial das hostilidades armadas em Angola, a AREC escreveu ao então
Presidente do Conselho português e ao Ministro do Ultramar, solicitando a
independência de Cabinda.
Segundo um documento intitulado O que quer a AREC[16], a organização dizia
que era chegada a altura de acabar com o protectorado consignado no Tratado de
Simulambuco e assim chegar à independência de Cabinda e reafirmava, em Novembro
de 1960, que nada tinha a ver com organizações angolanas como a UPNA/UPA (União
dos Povos do Norte de Angola, depois UPA), a ALIAZO (Aliança dos Povos do
Zombo), a NGWIZACO (Ngwizni a Kongo, Entendimento do Congo), e o MPLA.
Certamente, porque Portugal se mantinha indiferente à sua existência, tal como
a maioria dos angolanos em geral, a organização liderada por Luís Ranque
Franque começou a fazer elucidativos apelos à rebelião contra os portugueses.
Um dos momentos altos desses apelos aconteceu a 20 de Dezembro de 1960, quando
a AREC faz circular em Cabinda um manifesto anti-europeu onde, pela primeira
vez, é adicionado, também, o nome do MLEC – Movimento de Libertação do Enclave
de Cabinda, que, poucos dias depois, endereça um memorando a diversas entidades
oficiais de Portugal reclamando a independência e dando, mais uma vez, como
terminado o acordo de protectorado.
Numa tentativa, precipitada e inconsequente, com vista ao seu reconhecimento
internacional, o MLEC aproveita o 1 de Fevereiro de 1961 (data das comemorações
oficiais do Tratado de Simulambuco) para lançar o boato de que a comida à venda
em Cabinda estaria envenenada, sem que com isso tivesse obtido quaisquer
ganhos.
Outra data a assinalar foi a 23 de Março de 1961, logo após os primeiros actos
armados da UPA (União dos Povos de Angola), em Angola, quando as autoridades
portuguesas prenderam em Cabinda alguns dirigentes do movimento, entre os quais
o barão Puna, tendo apreendido grandes quantidades de propaganda anti-Portugal.
A acção de Portugal foi aproveitada pelo MLEC que, a 11 de Abril de 1961, paga
a publicação de um comunicado no Courrier d'Afrique onde fala do que chama os
massacres de Cabinda. Dado o exagero e manifesta falsidade da afirmação, a
população de Cabinda teve uma reacção contrária, obrigando o MLEC a corrigir o
alvo (Castro, 2011).
A 5 de Setembro desse ano, o MLEC decide regressar, aparentemente, à via
pacifista e Henriques Tiago N'Zita assina um documento de análise às
modificações implementadas por Lisboa em Cabinda, considerando-as insuficientes
no âmbito do protectorado. Porém, a 15 de Novembro, o MLEC começa a revelar
desentendimentos internos, aparecendo versões para todos os gostos e feitios,
desde a independência ao protectorado, passando por uma consulta popular e até
pela anexação a qualquer um dos Congos. Tudo surgia nessa altura como sendo
obra do MLEC, mas não se registando nestes novos desenvolvimentos nenhuma
posição favorável à anexação, ou simples ligação, a Angola.
Outro dos desenvolvimentos ocorreu a 24 desse mesmo mês quando o MLEC remeteu
ao embaixador de Portugal no Congo ex-belga, com o pedido expresso que o
encaminhasse para o governo de Lisboa, o que chamou de Plano-Quadro do MLEC.
Desse plano ressaltava, sobretudo, uma declaração de amizade em relação a
Portugal, a defesa do pacifismo e o pedido para ser recebido e reconhecido
pelas autoridades portuguesas.
Ora, este documento não foi bem aceite por algumas partes do MLEC, que, um mês
depois, em Dezembro, expulsaria do movimento Henriques Tiago N'Zita, facto que
o leva a responder com a criação de uma outra estrutura política. Em Maio de
1962, o MLEC distanciou-se de tudo o que se passava em Angola, afirmando mesmo
que o GRAE – Governo Revolucionário de Angola no Exílio[17], liderado por
Holden Roberto, era algo que nada dizia aos cabindas.
Entrementes, N'Zita funda a Comissão de Acção da União Nacional dos Cabindas
(CAUNC) e a 13 de Janeiro de 1962 garante que a sua organização visava unir a
família cabinda e juntá-la a outra família, a do Congo, reafirmando que dado
que Cabinda nada tinha a ver com Angola, exigia o fim dos tratados assinados
com Portugal.
Perante o dédalo a que chegara a situação destes movimentos ou organizações, só
em 8 de Julho de 1963 a CAUNC, o MLEC e a Aliança Nacional do Maiombe (ALLIAMA)
chegam a um entendimento, tão precário na sua génese que ainda hoje
dificilmente se encontra alguém que o explique e o entenda, para criar a Frente
de Libertação do Enclave de Cabinda (FLEC).
A UPA, a primeira organização a abrir as hostilidades armadas em Angola contra
a soberania portuguesa[18], liderada por Holden Roberto, nunca teve bases, nem
mesmo temporárias, em Cabinda. A partir do então Congo Belga – depois Zaire e
hoje República Democrática do Congo –, então liderado pelo ex-sargento Joseph
Désiré (mais tarde marechal Mobuto Sesse Seko), fazia algumas incursões no
território, muitas delas visando mais as populações indefesas do que qualquer
dispositivo militar. E foi nesta estratégia da UPA que, em 12 de Abril de 1961,
se registaram diversos ataques contra patrulhas militares no território de
Cabinda, em particular na floresta de Maiombe, aproveitando as suas condições
naturais. Todavia, o resultado prático foi mais o sacrifício dos povos de
Cabinda do que qualquer impacto nos meios militares portugueses.
Os cabindas, temendo ser envolvidos, como foram de facto, numa guerra que não
consideravam como sendo sua, optaram, muitos deles, por tentar sobreviver nos
Congos. Para além dos cabindenses não se meterem, por regra, numa guerra entre
angolanos e portugueses, mantiveram-se sempre alheados das questões
emancipalistas que norteavam os movimentos angolanos: a UPA, que se limitava a
ataques pontuais e inconsequentes pelas razões acima indicadas, ou o MPLA[19]
que, tentando atrair os cabindas para a causa nacionalista, acabou por criar
bases no território beneficiando do apoio da então República Popular do Congo
(ex- Congo-Brazza e actual República do Congo).
Enquanto no território português de Angola a crise militar se desenvolvia, em
Cabinda registaram-se alguns desenvolvimentos nos anos subsequentes, embora os
mais relevantes se tenham verificado em Outubro de 1960 quando, na ONU, o vice-
presidente e ministro das Relações Exteriores do Congo-Brazza, Tchichele,
exigiu a independência total de Cabinda; ou quando em 4 de Agosto de 1963, sob
os auspícios do presidente congolês, padre Fulbert Youlou, se verifica a fusão
dos diferentes movimentos nacionalistas cabindenses na Frente de Libertação do
Enclave de Cabinda (FLEC); ou quando, no ano seguinte, a então Organização da
Unidade Africana (OUA) colocou Cabinda no 39° lugar entre os países a
descolonizar, distintamente de Angola, classificada no 35° e que viria a ser
ratificada no seio das Nações Unidas – Angola e Cabinda eram, diferentemente,
territórios sob dominação colonial e com direito a serem autónomos.
A FLEC na questão de Cabinda
A situação em Angola vinha a deteriorar-se progressivamente desde que em Alvor
os três únicos e reconhecidos representantes nacionalistas de Angola assinaram
o acordo que reconheceria a independência de Angola, de Cabinda ao Cunene, a 11
de Novembro de 1975. Nesta reunião, apesar de terem participado, oficiosamente,
alguns régulos e sobas angolanos, não houve qualquer representação oficial, nem
oficiosa, de personalidades cabindenses.
Os anteriores acordos elaborados e assinados pelos três movimentos
nacionalistas angolanos, nomeadamente em Nakuru e Mombaça, tinham adoptado que
Cabinda era parte integrante da futura nação angolana, apesar de Jonas Savimbi,
enquanto líder da UNITA, ter reconhecido, mais tarde, que Cabinda nunca fez
parte integrante de Angola, nem antes nem aquando nem depois da retirada do
colonizador do nosso país[20].
Esta atitude de Portugal, enquanto potência, foi mal recebida pelos dirigentes
autonómicos de Cabinda, que levaram a FLEC a autoproclamar a independência, em
1 de Agosto de 1975, e a iniciar as suas actividades armadas a 8 de Novembro
deste mesmo ano, vésperas da independência de Angola, com o apoio do exército
regular do Zaire (Brittain, 1999). A desilusão com Portugal, sobretudo a partir
de 1974, pode ser resumida na afirmação de Agostinho Chicaia, presidente da
extinta Mpalabanda, Associação Cívica de Cabinda: Não vamos mais contar com
Portugal. O Governo português tem interesses muito fortes em Cabinda,
particularmente em Angola, e vai ser difícil pronunciar-se sobre uma eventual
solução a favor do povo de Cabinda, porque o lado económico sempre fala mais
alto (Castro, 2011).
De facto, se o problema maior de Cabinda é a sua imensa riqueza petrolífera
[21], florestal e mineral (pedras semipreciosas, diamantes e pepitas de ouro),
segundo Carlos Alexandrino da Silva[22], uma correspondência a que teve acesso
refere que um português chegou a obter uma concessão para exploração de pedras
semipreciosas em Cabinda, no que terá sido assessorado por uma jurista angolana
que, mais tarde, e durante a I República, ocupou diversas e importantes pastas
ministeriais além de dar aulas de Direito da Família, na Universidade Agostinho
Neto, de Luanda; afirmava-se que apesar das concessões de jazidas, segundo os
Serviços de Geologia e Minas, serem para extracção de pedras semipreciosas, na
realidade, o que mais vinham extraindo do subsolo cabindense, mas a título
particular, eram diamantes da melhor qualidade e pepitas de ouro, às ocultas
daqueles Serviços. A sede dessa sua empresa estava situada em Luanda, na então
chamada Avenida dos Combatentes.
Politicamente, os dirigentes de Cabinda não se conseguem unir para fazer valer
a sua voz, quer junto da comunidade internacional quer, e principalmente, junto
do Governo de Angola, aquele que deveria ser o seu principal interlocutor,
desde o momento em que Portugal abdicou das suas responsabilidades históricas,
já anteriormente referidas. No caso da FLEC esta é representada por várias
facções que se digladiam entre si, tal como aconteceu, e durante muitos anos,
com os movimentos emancipalistas angolanos. Durante algum tempo coexistiram a
FLEC-Ranque Franque, liderada por Luiz Ranque Franque, a FLEC-N'Zita, de N'Zita
Henriques Tiago, e a FLEC-Lubota, dirigida por Francisco Xavier Lubota, ao
mesmo tempo que, em Novembro de 1977, emerge o Comando Militar para a
Libertação de Cabinda, e em Junho de 1979 aparecem, formalmente, em nome de um
Movimento Popular de Libertação de Cabinda (MPLC), as Forças Armadas de
Libertação de Cabinda.
Estas dispersões nacionalistas seriam claramente aproveitadas pelo então
Governo da então República Popular de Angola, liderada pelo MPLA, para diminuir
o eventual impacto das forças nacionalistas cabindenses no território. Facto
mais tarde aproveitado aquando da criação do GURN, após o acordo de paz entre o
MPLA e a UNITA e que aglutinou, também, alguns dissidentes da FLEC, agrupados
no Fórum Cabindês para o Diálogo (FCD) e liderados por Bento Bembe, que acabou
como ministro sem pasta no Governo de Angola.
Contudo a posição da FLEC – ou das diferentes FLEC – no enclave de Cabinda
teria, na década de 80, um apoio que tinha tanto de imprevisível como de
surpreendente. A UNITA, com o auxílio do então Zaire, de Mobutu, dava a sua
cooperação militar no combate ao MPLA, tentando fechar o cerco militar às então
FAPLA (Forças Armadas Populares de Libertação de Angola) e aos paramilitares
cubanos. O MPLA tinha cerca de 15 mil militares bem armados e apoiados por
forças motorizadas e aéreas em Cabinda.
É certo que Jonas Savimbi, inicialmente e como já tinha referido, aceitava que
Cabinda não era uma parte inequívoca de Angola mas, no actual contexto
internacional e porque a OUA já o tinha adoptado, como tal deveria gozar de um
estatuto especial dentro da nação angolana, situação também aceite, na mesma
altura pelo presidente José Eduardo dos Santos[23].
Entretanto, emergiam outros movimentos emancipalistas no Enclave ou que se
arrogavam ser oriundos de Cabinda, sendo alguns dissidentes da FLEC, como o
Comité Comunista de Cabinda (CCC), em 1988, liderado por Mohamed Kaya Yay; na
década de 90, uma nova facção da FLEC resulta na União Nacional para a
Libertação de Cabinda (UNLC), liderada por Luis Lumingu Gimby. Só que foram de
pouca duração ou de nenhum impacto.
E, ainda na década de 90, a FLEC é reformulada em duas facções que ainda
persistem: a FLEC-Renovada, cuja bandeira era branca com uma listra central,
dividida em três cores (verde, amarelo e preto, com um anel vermelho no centro
da bandeira); e FLEC-Forças Armadas de Cabinda (FLEC-FAC), usando o vermelho
original, amarelo e com bandeira azul, e como emblema uma estrela branca sobre
um triângulo verde circundado por um círculo preto a meio da faixa amarela. A
FLEC-FAC arroga-se, actualmente, o direito de ser a única representante dos
cabindenses e de defender a República de Kabinda.
Mas enquanto a FLEC se refunda nestas duas facções, em 1996, na Holanda,
desponta mais um novo movimento sob a sigla FLEC. Desta feita, em vez de
Enclave há Estado, ou seja, a Frente de Libertação do Estado de Cabinda,
dirigida por uma personalidade de apelido Lopes, e que adopta como divisa o
azul, amarelo e preto com o monumento Simulambuco no centro. As diferentes
facções cabindenses têm mantido algum conflito militar com as actuais Forças
Armadas de Angola (FAA) no Enclave de Cabinda, com algumas vitórias por parte
das FAA, onde se destaca a captura de um dos líderes da FLEC-Renovada, em 2002,
e que redundou em Agosto de 2006 num acordo de cessar-fogo entre esta facção e
o Governo de Luanda.
No entanto, este acordo foi contestado por outras facções cabindenses,
nomeadamente fora do Enclave, com a da FLEC-FAC a manter a sua atitude
belicista e autonómica face a Luanda, ao ponto de esta organização ter
solicitado, ainda em Outubro desse ano, uma intervenção da Comissão da União
Africana de Direitos Humanos e dos Povos que só, muito recentemente, viu a
actual União Africana (UA) nomear um relator especial para analisar as queixas
dos independentistas de Cabinda contra o Governo de Angola.
Esta recente atitude da União Africana é o corolário de vários factos que,
entretanto, foram ocorrendo no Enclave e que levou ao despertar de uma certa
consciência internacional, nomeadamente em Portugal, na República Popular da
China ou em França, sendo que nesta última, devida ao caso Angolagate, foi
aproveitada pelos secessionistas de Cabinda, ou no próprio continente africano,
durante a Taça das de Nações Africanas (CAN) de futebol, realizada em Angola em
2010.
Nos casos português e chinês sobrevieram os raptos dos seus cidadãos. Em Maio
de 2000, a FLEC-FAC raptou três funcionários estrangeiros e um angolano que
trabalhavam para um empreiteiro português, tendo sido libertados dois meses
depois; em Março de 2001 a FLEC-Renovada sequestrou cinco funcionários
portugueses de uma empresa de construção, só soltos três meses depois. Já em
Maio de 2010 vários funcionários chineses foram atacados por uma nova fação da
FLEC, entre as localidades de Liambo Liona e Weca, apesar de o acto ter sido
negado quer pelas autoridades angolanas, quer pelos dirigentes chineses, que se
limitaram a afirmar que os seus trabalhadores tinham sido objecto de um mero
acidente por distracção e pouca habilidade de um deles nas estradas
secundárias de Cabinda (Yola, 2009, ¶8). Esta FLEC denomina-se Frente de
Libertação do Enclave de Cabinda – Posição Militar (FLEC-PM), cujo secretário
geral é Rodrigues Mingas.
Mas o maior impacto aconteceu em inícios de Janeiro de 2010, quando um
autocarro transportando jogadores do Togo que iam participar na CAN de Angola,
escoltado por uma coluna militar das FAA, foi atacado, resultando na morte do
porta-voz da equipa togolesa, do assistente técnico e do motorista do
autocarro, bem como ferindo vários atletas togoleses. Este ataque foi
reivindicado por Rodrigues Mingas da FLEC-PM, através de uma televisão
francesa, a TVFrance24, e entretanto detido em França a pedido das autoridades
angolanas, por actos de terrorismo. De apontar que Mingas tem nacionalidade
francesa.
Entrementes, representantes da vida civil cabindense e alguns membros da FLEC,
reunidos no Fórum Cabindense para o Diálogo, liderados por Bento Bembe[24] – e
onde se incluíam, também, José Bamoquina Zau e André de Jesus Moda, que
posteriormente integraram o GURN, com as pastas de vice-ministro do Interior e
de vice-ministro da Agricultura e do Desenvolvimento Rural para a área dos
recursos florestais, respetivamente; Macários Romão Lembe, como vice-governador
da província de Cabinda; e o general da FLEC Maurício Amado Zulo, investido
como vice-chefe do Estado-maior General das FAA para a área social –,
assinaram, em Namibe, a 1 de Junho de 2006, um Memorando de Entendimento para
a Paz e Reconciliação da Província de Cabinda, visando a cessação das
hostilidades em Cabinda que se registavam entre a República e os autonomistas
cabindenses e, além disso, um dos subentendidos das conversações que levaram à
assinatura do Memorando passava pela criação de um estatuto especial para
Cabinda. Todavia, e apesar de o Memorando ter sido previamente debatido, em
Cabinda, num Nokoto-likanda, algo semelhante a um parlamento tradicional, este
acordo não foi, e continua a não ser, reconhecido por outros actores do
Enclave, mantendo-se a situação em Cabinda como social e politicamente
problemática, com detenções de algumas personalidades (políticas, jurídicas e
eclesiásticas) cabindenses.
Não é em vão que, no final de 2011, o Chefe de Estado-Maior das FAA, general
Geraldo Sachipengo Nunda, alertava para os problemas militares que se
verificavam no Enclave – deserções de militares angolanos, confraternizações
indevidas, captura de guerrilheiros independentistas – e anunciava que um dos
objectivos prioritários das FAA era a pacificação da província de Cabinda
[25].
Ora, se o território está social, política e militarmente estável, como nos
dizem os governantes angolanos e, muito recentemente, Bento Bembe[26], então
estas palavras do general Nunda parecem não fazer qualquer sentido. Acresce que
os dirigentes da UNITA acusam o actual governador da província, general Mawete
João Baptista, de falta de sentido de governação e de desrespeito relativamente
à especificidade do Enclave, falta de execução e implementação dos
investimentos aprovados para a província, no biénio 2010 e 2011, falta de
justificação quanto ao destino dado aos cerca de nove mil milhões de Kwanzas
orçamentados pelo Ministério das Finanças para o desenvolvimento do território
e pelo facto de o quadro sociopolítico do Enclave ser dramático[27].
Exploração económica na base das críticas autonómicas
Se uma das razões para os secessionistas evocarem a separação e não
concordância da incorporação de Cabinda na República de Angola, baseada no
Tratado de Protecção de Simulambuco, e pelo facto de se considerarem dois povos
diferentes[28], outros acrescem, também, razões económicas. De notar que
Cabinda não é só petróleo ou madeiras preciosas como habitualmente é
referenciado. A região do Maiombe, mais reconhecida pela sua rica floresta, é
igualmente rica em minerais. Por exemplo, na década de 60, o então director
provincial dos Serviços de Geologia e Minas de Angola e seu primeiro vice-
presidente, o engenheiro geólogo Carlos Alberto da Costa Neves Ferrão,
apresentava um folheto denominado Ocorrências minerais de Angola (Castro, 2011,
pp. 25-27) onde, sobre Cabinda e, em particular, de Maiombe, constava:
A região aurífera do Maiombe, no distrito de Cabinda, estende-se por
uma vasta área, interessando especialmente as aluviões da bacia
hidrográfica do rio Luali. Muito embora se trate de uma região onde
outrora incidiram numerosos trabalhos mineiros, os pesquisadores
utilizaram sempre técnicas rudimentares, limitando-se à obtenção de
ouro aluvionar. As aluviões auríferas localizam-se sobre o Complexo
de Base, representado, nesta região, por rochas gnaissosas, em certos
casos fortemente micáceas e atravessadas por grande número de filões
de quartzo, nos quais, até ao presente, não foi encontrada mineração
aurífera. As aluviões são, essencialmente, constituídas por calhaus
siliciosos, englobados numa pasta detrítico-argilosa. O ouro aparece
acompanhado de grande quantidade de magnetite e alguma ilmenite.
Mais adiante, o documento refere que as rochas fosfatadas de Mongo-Tando e
Chibuete, no distrito de Cabinda e as de baixa de Lucunga no distrito do Zaire,
denunciaram presença de radioactividade anómala, enquanto sobre as de origem
marinha diz:
estes depósitos, que constituíram objecto de estudos aturados por
parte dos Serviços de Geologia e Minas, não se encontram ainda em
exploração. Tais estudos conduziram à determinação das reservas dos
depósitos de Cabinda e da bacia do rio Lucunga, que se computam,
respectivamente, em 15.000.000 e 12.000.000 de toneladas, como
reservas certas.
Já sobre a grafite realça que são muito antigas e vagas ( ) [e o que]
realmente se conhece como índices de grafite, são xistos grafitosos.
Ainda relativamente aos depósitos minerais fosfatados, de registar que o estudo
dos Serviços de Geologia e Minas adiantava que os principais depósitos estavam
localizados em Mongo-Tando, perto da povoação de Luango, nas margens do
ribeiro Itombe; Chibuete, localizado a cerca de 2 quilómetros para Oeste da
povoação de Massabi e com uma extensão de cerca de 6 quilómetros; Cácata, a
pequena distância da povoação do mesmo nome, nas margens do riacho Nhenha
[onde] foi reconhecido um jazigo numa extensão de 2 500 metros; Cambota, um
jazigo descoberto na margem esquerda do rio Sanzo, perto da povoação de
Cambota e com uma extensão de cerca de 800 metros, e Chivovo, junto às
margens do riacho Tuma, a pouca distância do rio Lubinda, cerca de 1 quilómetro
para sul da povoação que lhe dá o nome.
Ora que se saiba, estes depósitos minerais não estão devidamente explorados ou,
se estão, não parecem reverter em benefício das populações; tal como não se
sabe por onde andam os dividendos da exploração de pedras semipreciosas
ilegitimamente prospectadas em Cabinda, como foi anteriormente referido. Todas
estas situações menos claras na exploração económica do território, aliadas aos
fracos dividendos provenientes do petróleo, reforçam as reclamações dos
secessionistas.
Relativamente ao petróleo, entre Janeiro e Outubro de 2011 Angola produziu
cerca de 501 milhões de barris[29], sendo que cerca de 430 mil barris/dia eram
provenientes de Cabinda[30]. A maior parte do petróleo extraído nas plataformas
offshore e onshore cabindesas, esta última muito menos, essencialmente em
Malongo, é feita por companhias americanas e francesas em sociedade com a
SONANGOL, empresa pública angolana, sabendo-se que nos acordos iniciais
celebrados entre as empresas estrangeiras e a angolana ficou consagrado que
cerca de um terço do bónus anual deveria ser investido em Cabinda[31]. As
reclamações de falta de benefícios para as populações de Cabinda, provenientes
da exploração do petróleo, são contínuas[32].
Ainda assim, destacam-se alguns projectos de desenvolvimento económico em
Cabinda, na sua maioria resultantes dos fundos do petróleo, como as novas redes
viárias que atravessam o território, a construção do Estádio Nacional do
Chiaze, um dos locais onde se disputaram alguns jogos da CAN 2010, o complexo
turístico da Floresta do Maiombe, no município do Belize, a modernização do
aeroporto e do hospital de Cabinda, onde foram utilizados cerca de 400 milhões
de dólares, ou o prolongamento do porto de Cabinda, apesar de ainda só estarem
verdadeiramente utilizáveis 50 dos seus actuais 125 metros de comprimento[33],
o que ainda leva muitos barcos costeiros a aportarem em Pointe-Noire, Congo, em
detrimento do porto de Cabinda.
Em estudo estão o projecto Cabinda Link, que passa pela construção de uma ponte
sobre o Rio Zaire, interligando o território de Cabinda e a cidade de Soyo
através de algumas localidades do Congo Democrático, ou o antigo projecto da
construção longitudinal de uma via férrea que ligaria Luanda às províncias do
Bengo, Uíge, Zaire e Cabinda, numa extensão de 950 km, interligando-se depois
com o Chemin de Fer du Congo Océan, na República do Congo (Kalukembe, 2011).
Ou seja, se no Enclave há certo desenvolvimento económico, devido a alguma
redistribuição dos fundos do petróleo, a grande maioria destes é canalizada
para o resto de Angola, pelo que esta situação é fortemente questionada pelos
cabindenses e pelos autonomistas.
Conclusão
De acordo com Achille Mbembe, as fronteiras obtidas a partir da balcanização do
continente conferidas pela Conferência de Berlim mais não fizeram que provocar
uma expansão e contracção das suas actuais simbólicas fronteiras (Mbembe,
2000), numa pluralidade, disseminação e volatilidade de fronteiras[34]. Segundo
esta análise, e tendo em consideração a territorialidade – ou efectiva falta
dela – do Enclave, o problema de Cabinda perspectiva-se olhando para o mesmo
quer como um lugar, quer como um território (Mbembe, 2000)
autoadministrável, apesar da intransigente defesa da intangibilidade das
fronteiras defendida pela OUA/UA; na realidade, pode-se dizer que o que
aconteceu nos últimos dois séculos com o território de Cabinda, como se
verificou ao longo do texto, foi um constante questionamento da
territorialidade do Enclave. E foi por causa da confirmação da intangibilidade
das fronteiras coloniais (Almeida, 2004a) que, tanto a OUA como as Nações
Unidas, acabaram por reconhecer como fronteiras oficiais da República angolana
as que incluíam o enclave de Cabinda.
Face aos enunciados anteriores há razões para perguntar, e provavelmente com
alguma razão, se a situação de Cabinda deve manter o actual status quo e se
nada há a fazer. As reivindicações autonómicas são evidentes e defendidas não
só por cabindenses, a maioria fora do território, como também por angolanos.
Por exemplo, Raul Danda, angolano, jornalista e deputado da UNITA, eleito pelo
círculo de Cabinda, é um dos defensores da autonomia e da subsequente alteração
constitucional.
Se constitucionalmente é defendido e sustentado que Angola é um nação una e
indivisível de Cabinda ao Cunene, também há que reconhecer que a presente
situação não poderá ser mantida, onde persiste uma contínua instabilidade e
fruo indevido e desregrado de riquezas da província, com menor refluxo para a
vida política e social desta, como é frequente serem acusados o Governo
nacional e os representantes na província, pelos independentistas cabindenses,
e, indiretamente, reconhecido por Bento Bembe em recentes declarações. Também,
historicamente, se deve ver que a sua qualidade de enclave merece um olhar mais
agudo e uma melhor qualificação na nação angolana; mas para que isso possa
acontecer, há que se fazer uma alteração na actual Constituição.
Ou seja, Cabinda terá que ser contemplada como um território de possível
autonomia com um estatuto especial dentro da República angolana, como foi
recordado quer pelo antigo líder da UNITA, Jonas Savimbi, ou pelo presidente
Eduardo dos Santos, na já citada entrevista gravada, cabendo aos líderes
angolanos e cabindenses o estudarem, analisarem e rubricarem em cooperação com
a sociedade civil dos dois lados.
Se Cabinda deve ser um Estado ou uma Região Autónoma dentro da República, com
poderes legislativos próprios, autonomia financeira – gerindo ela própria os
seus recursos – deixando a Defesa e as Relações Internacionais para o Estado
Angolano, é o que os dirigentes devem ponderar. Aos investigadores e aos
organismos oficiais como a ONU e a OUA/UA cabe-lhes, unicamente, analisar,
assessorar e sugerir alguns caminhos.