Dos nàgó da Bahia aos pọ́rtúgérè de Lisboa: Um olhar sobre identidade e
religião em diáspora
O que é ser yorùbá? Essa é uma pergunta importante para entendermos a
construção da identidade em diáspora. Conhecendo as especificidades, os padrões
de pensamento, em suma os atavismos culturais que conferem identidade a um
determinado povo na sua terra de origem poderemos aferir melhor as
transformações operadas em terras diaspóricas. Ademais, no caso específico,
saber o que é ser yorùbá compreende, de facto, uma densa reflexão, porquanto
implica jogar com o devir permanente típico dos imaginários culturais e
religiosos africanos, amplamente permeáveis à mudança. Para a compreensão da
identidade aqui em jogo importa pois tomar duas considerações centrais, que
servirão como fio condutor para a presente análise: a ideia de tradição
inventada (Hobsbawm & Ranger, 1992) e de alteridade (Laplantine, 2003, p.
14).
O problema que aqui se levanta é o de saber o que constitui ser yorùbá e como
essa identidade é construída nativa e diasporicamente, reconhecendo que no
presente caso a própria construção dos padrões nativos de identidade está
ligada aos processos de construção em contextos diaspóricos, i.e., a própria
identidade yorùbá emerge, no espaço autóctone, da experiência de alteridade
noutras geografias onde os elementos exógenos exercem função de transformação.
Importa, pois, começar por dizer que quando nos referimos aos yorùbás, aludimos
às populações que ocupam grande parte da Nigéria e em menor proporção o Togo e
a República do Benim (o ex-Daomé) e que estão divididos em subgrupos étnicos
como: Ẹgbá, Ẹgbádo, Ọ̀yọ́, Ijéṣà, Ìjẹ̀bú, Ifẹ̀, Ondo, Ilọrìn, Ibàdàn, Kétu,
entre outros; respeitando os matizes étnicos que estes utilizam como
referenciais identitários, mesmo tendo presente o complexo tema das identidades
étnicas expressas em Amselle e M'Bokolo (2005). Sabemos também que o termo
yorùbá traz consigo toda uma complexa história de alteridade, porquanto
traduz uma designação haúça para os povos de Ọ̀yọ́. Segundo Verger (2002),
entre 1656 e 1730 os registos dos primeiros viajantes apelidam de Ulkumy a
região que corresponderia, mais ou menos, à área de influência Ọ̀yọ́ e que se
tornaria o país Yorùbá. Seria em 1734, com a elaboração do mapa da região por
parte de Snelgrave que o termo Ulkumy daria lugar a Ayo ou Eyo,
pretendendo designar a cidade de Ọ̀yọ́. Sobre o próprio termo yorùbá, a
linguística não nos dá grandes explicações. Todavia, de acordo com um
informante natural de Iléṣà, o obscuro termo yorùbá derivaria de aoubaou
uaba, que em árabe significaria pagão. Diversos autores (Clapperton, 1829;
Law, 1997) falam em Yarriba como o termo arábico e haúça para designar os de
Ọ̀yọ́. O primado da alteridade começava a expressar-se convincentemente,
através da dialética entre os cultuadores dos òrìṣàs (abòrìṣà), pagãos, e os
africanos islamizados do norte.
A construção da identidade yorùbá nativa
As dinâmicas de transformação social e cultural compreendem um aspeto central
no conhecimento de uma dada identidade cultural que tomemos como objeto de
estudo. Nenhuma cultura é estanque, mesmo aquelas que têm para si mesmas o
referencial da manutenção de um modelo que se crê definido num passado, i.e.,
mesmo as culturas que se orientam no sentido da manutenção de uma tradição –
muitas vezes idealizada – não estão isentas de mudanças de paradigmas. O
curioso, no caso yorùbá, como veremos, é que a construção e a aprimoração, em
suma a tecelagem da identidade, não estão independentes da ideia de comunidade
imaginada (Anderson, 1991) que a ideia de yorùbánidade contém. Isto porque
esta tecelagem de identidade partilhada tem lugar precisamente quando o Império
Ọ̀yọ́-Yorùbá era já um resquício da memória histórica da região. Oficialmente
caído em 1830, o Império era, desde o último quarto do século XVIII, uma vã
imagem de si mesmo. A morte do Aláàfín Abiodun em 1789 trouxe uma querela entre
o seu sucessor, Awole, e os chefes e representantes locais, querelas que só
terminaram com a deposição deste em 1796. Por trás deste movimento esteve, à
cabeça, o governador de Ilorin, Afonja, que tinha aspirações – que não se
traduziram em sucesso – ao lugar de Aláàfín de Ọ̀yọ́. Por volta de 1823, Afonja
foi assassinado pela rebelião dos seus aliados islâmicos, e Abudusalami tomou a
chefia de Ilorin, proclamando a sua aliança com o Califado de Sókótó (Peel,
2000). Estava em marcha o fim de Ọ̀yọ́, ao mesmo tempo que Lagos se ia tornando
palco de uma nova dinâmica cultural proto-yorùbá. Ilé-Ifẹ̀, por seu turno,
preservava – como ainda hoje – o seu lugar simbólico de capital espiritual e
cultural, terra dos òrìṣàs funfun, os deuses de branco, e do rei-sacerdote, o
Ọọ̀ni ti Ilé-Ifẹ̀.
Apesar do papel de Lagos, chamada nativamente de Èkó, na constituição da
identidade yorùbá como a conhecemos, é impossível desligá-la da sua génese
histórica, essa tendo o ponto de partida em Ọ̀yọ́. Não se trata apenas das
referências históricas derivadas de ulkumy, yarriba, etc., mas antes de todo um
passado histórico feito de propagação de um modelo político-cultural-religioso
em apogeu, mesmo nos casos em que os elementos culturais de Ọ̀yọ́ são mais de
origem núpé do que da área metropolitana de Ọ̀yọ́ (como é o caso dos deuses
Ṣàngó, Yèmọ(n)já, e o cultos dos ancestrais Bàbá Eégún – ou pelo menos assim
são percecionados pelos nativos). Em África, e para o caso na África Ocidental,
a simbiose cultural, a bricolagem e aculturação ocorrem a ritmo alucinante,
motivadas pelas próprias características centrais dos sistemas religiosos
locais: comunicação, eficácia e manipulação. Voltando a Ṣàngó ou Ṣọ̀ngó,
encontramos um exemplo paradigmático da dinâmica de eficácia contida na
aculturação e bricolagem dos imaginários culturais e religiosos. Enquanto as
populações de Ọ̀yọ́ se referem a Ṣàngó como de origem núpé (a quem os yorùbás
chamam de Tapa), embora o seu culto seja claramente de Ọ̀yọ́, por seu turno, no
Daomé traça-se a origem de Ṣàngó a Ọ̀yọ́. Além do mais, as fórmulas religiosas
(na perspetiva antropológica, i.e., os ritos, os cânticos, etc.) expressam
também a realidade local e do seu período histórico. Observe-se a cantiga
entoada a Ṣàngó: Káwòóo, Káwòóo Ṣọ̀ngó Dàhọ̀mì / Káwòóo, ká biyè sí ẹ Ṣọ̀ngó
Dàhọ̀mì[1], que pede a Ṣọ̀ngó (ou Ṣàngó) proteção face às guerras do Daomé,
i.e., as guerras de libertação e expansão do Daomé; ou a seguinte, que faz
referência ao povo Tapa, como referencial de precedência do culto: Ẹ kí
Yẹmọnja àgò, Tapa Tapa/ Ẹ kí Yẹmọnja àgò, Tapa Tapa[2]. Pesem estas andanças
religiosas, o valor simbólico de Ọ̀yọ́ mantém-se, não precisando de existir
para ser respeitado.
De certa maneira, ao lidarmos com a construção da identidade yorùbá estamos a
lidar com o que viria a ser o nacionalismo nigeriano. Contudo, com uma singular
diferença: enquanto a yorùbánidade nos coloca em diálogo com o que viria a
chamado de religião tradicional, o nacionalismo nigeriano está
particularmente acantonado ao cristianismo (mais do que ao islamismo, que já
mais se diluía em africanidade e agia orientado para os califados e emirados do
norte). Ademais, as classes cristianizadas de Lagos, Abẹ́òkúta, etc.,
reconheciam valor ao império britânico, vendo-o como um instrumento para a
promoção da africanidade (Negro Race). Em todo o caso, o que para aqui
importa é a formulação de yorùbánidade. Como vimos, o surgimento do termo é
traçado até à experiência de alteridade dos haúça (ou haussa) diante dos povos
da grande região de Ọ̀yọ́, vistos como idolatras, pagãos, etc. O termo yorùbá
foi apropriado também pelos missionários e pelos diplomatas britânicos e de
outras proveniências europeias referindo-se aos negros da região imperial de
Ọ̀yọ́. Todavia, pesem os inúmeros elementos culturais partilhados entre os
povos proto-yorùbás, e a própria origem traçada (traced origins) face a Ilé-
Ifẹ̀, não há referências que indiquem que estes povos (Ẹ̀gbá, Ọ̀yọ́, Kétu,
Ìbàdàn, etc.) se vissem a si mesmos como uma unidade política e cultural. O
guarda-chuva que o termo yorùbá hoje alberga é resultado de uma construção
histórica, i.e., uma tradição inventada. Não obstante, onde quer que estes
povos estivessem em diáspora, o processo de emergência de uma identidade
própria e partilhada tomou lugar: como no Brasil (nàgó), na Serra Leoa
(sàró e aku), Cuba (lukumi), etc. O termo idealizado para chamar a estes
povos em conjunto, ou seja, a fabricação de um termo unitário, era algo que
muito preocupava os missionários evangélicos (Sigismund Koelle, 1854), em
particular a Church Missionary Society (CMS), missão evangélica para África. O
passo definitivo na emergência do termo yorùbá e com ela o lançamento das
bases da constituição da identidade que lhe estará subjacente, haveria de ser
dado por Samuel Ajayi Crowther com o seu livro Vocabulary of the Yoruba
Language de 1843, resultado da sua participação na expedição do Níger de 1841.
Ora, com Vocabulary of the Yoruba Language estavam lançados os dados
definitivos para a formatação da identidade yorùbá sob a tutela cristã, como
veremos que irá acontecer também na Bahia oitocentista. Crowther leva a cabo
também a tradução da Bíblia para yorùbá e no seio de tão grande movimento
evangélico de missão e conversão da região que o próprio Crowther outrora havia
chamado de Eyo Country (1836), toma lugar a difusão de uma identidade que os
nativos – não esquecendo as suas próprias identidades locais (que os
missionários apelidam de tribos em referência às tribos de Israel) – começam
a assimilar e a assumir para si próprios. É claro que esta nova identidade não
está independente do cristianismo. Na verdade, toda ela é uma articulação de
pendor cristão: criar uma nação cristã onde outrora imperava um aglomerado de
localismos umbiligados a Ọ̀yọ́ e Ifẹ̀. No fundo, a articulação semântica
permitia recodificar o velho império de Ọ̀yọ́ numa identidade nova, operando
uma dupla-pertença e uma dupla-referência, apesar dos iniciais constrangimentos
em particular da parte dos Ẹ̀gbá (Peel, 2000, p. 285) – afinal, a adoção da
linguística de Ọ̀yọ́ (Yorùbá Proper) significava um suprimir dos matizes
locais.
Pesem os esforços missionários de constituir uma identidade nova yorùbá que
seria o espelho de uma nação cristã, os elementos dos velhos costumes
mantinham-se como cimento da identidade renovada. Aliás, é a própria ideia de
religião tradicional (ẹ̀sìn ìbílẹ̀) que emerge no seio deste laboratório
interétnico sob o selo de yorùbánidade. Como refere Matory (2005): Ifá, Odùduà
and Ṣàngó remain central in any 20th-century discussion of collectively Yorùbá
political and cultural tradition (p. 61). O interessante de notar é que à
medida que os finais do séc. XIX viam florir todo o evangelismo africano, que
preconizava uma nação cristã, a valorização da identidade autóctone ganhava
também relevo. Nativos educados em escolas missionárias e viajantes europeus
elaboram um grande número de obras dedicadas à religião dos agora yorùbás. Ora,
todas estas obras, mesmo que do ponto de vista científico possam ser tidas por
metodologicamente naïfs – porquanto postulam o imaginário cristão na leitura
dos padrões africanos – não deixam de recolher, preservar e divulgar elementos
culturais que começam a surgir na categoria de tradicionais.
Pese o papel simbólico de Ọ̀yọ́, já referido, a costa, palco dos encontros
intra-africanos e destes com os elementos exógenos, em particular o
cristianismo dos comerciantes de escravos, missionários e viajantes, tornou-se
o locus da constituição da yorùbánidade. O declínio de Ọ̀yọ́ coincidiu com a
emergência do reino do Daomé, e com isso a emergência da captação de escravos
de reinos do interior da Yorùbáland. A colonização britânica de Lagos em 1861
pôs termo ao protetorado do reino do Benim, de que Lagos era parte integrante.
Recorrendo às expressões de Matory (2005), a presença inglesa traz consigo uma
Pax Britannica que faz de Lagos a Meca de todos os grupos do interior da região
yorùbá. Mas Lagos tornou-se também porto de chegada de outros grupos que
contribuíram decisivamente para a fundação da yorùbánidade: os retornados do
processo escravocrata. Ainda de acordo com Matory (2005) entre 1820 e 1899 –
período que coincide com o movimento abolicionista e a consequente extinção da
escravatura no Brasil (Lei Áurea de 1888) – cerca de oito mil afro-brasileiros
regressaram à África Ocidental, ficando sob o protetorado inglês. Estes afro-
brasileiros deram um contributo importante, nomeadamente na renovação
arquitetónica da Lagos colonial e outros pontos da costa, para além de terem,
eles próprios, reinventado a sua identidade, através da introdução de elementos
culturais trazidos do Brasil. Pela própria expressão da sua africanidade já
amplamente marcada pela experiência brasileira, eles surgem como uma franja da
sociedade, ocupando inclusive bairros próprios, como o Brazilian Quarter em
Lagos, sendo chamados no Daomé (atual República do Benim) de Agudás (Guran,
2000). Ao lado destes afro-brasileiros retornados (os nàgó) tiveram
importante papel na construção da yorùbánidade os sàró, retornados da Serra
Leoa, que no exílio, partilhando a sua diferença face às populações locais,
fizeram emergir uma identidade conhecida por aku e que jogou importante papel
na fabricação da ideia de yorùbánidade. Aliás, como vimos, a emergência de uma
ideia de identidade yorùbá está intimamente ligada à pregação do cristianismo,
razão pela qual os sàró, literatos e cristianizados, se embrenharam em
uniformizar os matizes linguísticos dos diferentes povos da região de modo a
que a tradução da Bíblia do inglês fosse possível ser entendida por todos.
Uniformizada a língua ficava lançada a base do pan-yorùbánismo, passo
finalizado com o já citado Samuel Ajayi Crowther, que embora nascido em Ìṣéyìn,
na região de Ọ̀yọ́, era tudo menos yorùbá, melhor se definindo como um europeu-
evangélico nascido em África.
Araketu re, fara imora[3]: a reinvenção brasileira de yorùbánidade
Como vimos, a lagosian renaissance é fabricada na interseção das tradições
regionais de Ọ̀yọ́, de onde se importa o termo yorùbá, com os retornados dos
espaços esclavagistas. Portanto, a própria identidade é um produto histórico de
uma diáspora forçada. Diante do diferente o semelhante sobressai. A experiência
de autoconhecimento resulta da experiência da alteridade. Na Lagos do séc. XIX
o renascimento yorùbá é uma operação cultural intensa de africanidade, elevando
os valores tradicionais, a língua, a religião, a dança, a música, os trajes,
etc. A anglofilia inicial dos sàró deu lugar à yorùbáfilia e à exaltação do
patriotismo africano.
Paralelamente, na margem bahiana do Atlântico, os nàgó punham em marcha a sua
ação hobsbawmiana. O comércio de escravos para o Brasil foi também um processo
de deslocamento de costumes. Desde o século XVII que há registo de práticas
religiosas africanas no Brasil que se convencionaram chamar de calundu
colonial (Silveira, 2007). Todavia, seria somente com a transferência de
escravos do Golfo da Guiné para o Brasil, em particular durante o Ciclo do
Benim, entre 1770 e 1850 (Lépine, 2001), altura de intenso tráfico negreiro
resultante do desmantelamento do Império de Ọ̀yọ́ e das guerras de libertação e
expansão do reino do Daomé (Peel, 2000), que se daria a formação de um cânone
religioso africano no Brasil, propriamente dito, com base nas tradições
religiosas dos povos proto-yorùbás, fons do Daomé e com elementos herdados dos
ameríndios, dos africanos bantus e apropriados/inculcados do catolicismo
popular ibérico.
De acordo com a tradição oral, o candomblé nasce nas imediações da Igreja da
Barroquinha, em Salvador, onde os negros terão alugado terrenos anexos à igreja
para a constituição de um salão nobre, intitulado Ilé Ìyá Omi Àṣẹ Áyrá Íntílé,
razão pela qual este período é descrito por candomblé da Barroquinha e data
entre os finais do séc. XVIII e inícios do séc. XIX, embora a fundação do
citado templo date, possivelmente, de 1807 (Ferreira Dias, 2011). Enquanto o
calundu ocorria nas senzalas e, posteriormente, em casas particulares, o
candomblé institucionaliza-se imediatamente em espaços sacralizados sob a forma
de templo, a partir da arquitetura colonial. A compreensão do processo da
emergência do candomblé não está independente dos seus promotores: o candomblé
é uma invenção yorùbá-fon, mesmo que se tenha apropriado de elementos angolano-
congoleses. Este candomblé, de matriz yorùbá-fon, é descrito no Brasil como
jeje-nagô, sendo que o primeiro termo (àjèjì, forasteiro em yorùbá) se
refere aos fons do Daomé, e o segundo (nàgó, sujo, em fon) se refere aos
yorùbás. Simultaneamente, a cidade de Kétu torna-se sinónimo de yorùbánidade no
interior da comunidade do candomblé. Cidade palco das movimentações culturais
yorùbás-fons, embora tenha permanecido até hoje como parte do território do
Daomé e mais tarde da República do Benim, a sua fundação é claramente yorùbá
como denota Emmanuel Babatunde (1990). O trânsito cultural africanista bahiano
começa o seu intenso périplo a partir de 1780, dando início a intensa
recodificação identitária.
De acordo com a tradição oral (fundamental para a consolidação de um património
cultural e de uma memória identitária própria), Ìyá Násò Òká (fundadora da Casa
Branca do Engenho Velho, templo chamado em yorùbá de Ilé Àṣẹ Ìyá Násò Òká, que
sucedeu ao templo da Ladeira do Berquó, junto à Barroquinha) teria recebido do
Aláàfinde Ọ̀yọ́, Amodó ou Awuelu, a missão de organizar o culto a Ṣàngó na
Bahia. Todavia, como este período é precisamente marcado pela dissolução do
Império de Ọ̀yọ́ (circa 1830), é possível que o objetivo do imperador em
decadência fosse preservar as estruturas identitárias de Ọ̀yọ́ na Bahia, palco
onde a dinâmica cultural e religiosa era intensa. Só isto justificaria abrir
mão de Ìyá Násò Òká, sabendo que o nome é na verdade um título: sacerdotisa-mor
do culto imperial e palaciano a Ṣàngó em Ọ̀yọ́. Ṣàngó, deus do trovão e da
justiça, foi um antigo rei de Ọ̀yọ́ deificado após a sua morte.
Vimos, anteriormente, que a formulação da identidade yorùbá em Lagos, Nigéria,
não está independente do regresso dos sàró e dos nàgó. Para a constituição
desta identidade assente num pressuposto antigo (o velho modelo cultural e
político de Ọ̀yọ́), que é na verdade uma reinvenção da tradição, muito
contribuiu, portanto, a experiência da diáspora. Dessa forma, a experiência
brasileira é particularmente importante, constituindo-se um processo de
laboratório que permitiu a consolidação de uma identidade supralocal. Aportados
à Bahia, os negros eram organizados em confrarias religiosas de natureza
católica, sendo que os negros yorùbás ou nàgós ficaram sob a tutela da Igreja
de Nossa Senhora da Barroquinha, ou simplesmente Igreja da Barroquinha,
dividida em duas irmandades: a da Nossa Senhora da Boa Morte (que veremos
adiante), destinada às mulheres, e a do Nosso Senhor dos Martírios, reservada
aos homens (Verger, 2002). Naturalmente que uma circulação entre negros àjèjìs
(jejes na terminologia afro-brasileira) e nàgós seria natural, até porque
dificilmente não haveria uma mistura derivada de uma má diferenciação étnica
por parte quer dos comerciantes de escravos quer dos missionários católicos.
Ademais, esta divisão entre nàgós e àjèjìs é muito ampla, até porque a cidade
de Salvador de 1800 fervilhava de kétus, ijéṣàs, sábés, ọ̀yọ́s, et al., que
compunham um rendilhado étnico-cultural que se haveria de organizar a partir da
experiência religiosa do candomblé. Enquanto Ìyá Násò Òká e seus coadjuvantes
estruturavam o culto em torno de Ṣàngó e Ọ̀ṣọ́ọ̀sì (embora não negligenciassem
outros òrìṣàs), Ìyá Otampè e Bàbá Aláji, seu esposo, pretendiam instaurar o
culto de Òṣùmàrè, divindade do arco-íris, da mutação e da gestação do tempo e
da vida, tendo fundado o Terreiro[4] do Alakétu (Silveira, 2003). Ademais, os
primeiros estavam ligados à tradição imperial de Ọ̀yọ́, ao passo que estes
últimos se ligavam à tradição de Kétu. Essa distinção que se notaria na
fundação do Ilé Ìyá Násò Òká pelos primeiros e do Ilé Alakétu pelos segundos,
faz-se ainda hoje sentir pela distinção (bastante ténue) entre o candomblé de
matriz kétu (na verdade kétu-ọ̀yọ́) da Casa Branca do Engenho Velho e o
candomblé de matriz alakétu, ligado à tradição de Ìyá Otampè. Curioso caso é o
da Casa de Oxumarê (Ilé Òṣùmàrè Àràká Àṣẹ Ogodò), fundada por Bàbá Tálábi,
batizado de Manoel José Ricardo, que desde finais do século XVIII funcionava no
calundu do Obitedó, na cidade de Cachoeira de São Félix, na Bahia, e que
haveria de ser transferido para o imensurável bairro da Federação, pelo famoso
Seu António das Cobras (António Maria Belchior; Bàbá Sálákó de Ṣàngó) depois
de uma passagem pelo bairro da Cruz do Cosme (atual bairro do Pau Miúdo).
Curioso, também, e particularmente para o propósito deste trabalho, é o facto
de Manoel José Ricardo, o africano Bàbá Tálábi, ter fundado a casa, em
Cachoeira, consagrando-a ao Vodu Ajunsun, um dos vários epítetos do deus da
varíola, demais doenças e do interior da terra, chamado também de Sakpta,
Ṣànpọ̀nná, Ọbalúwàiyé, Ọmọlú, etc., mas fê-lo, todavia, segundo o preceito fon-
daomeano, embora o seu nome fosse yorùbá. Isto é peculiarmente pertinente uma
vez que, como vimos, o eixo fon-yorùbá entrecruzava-se cada vez mais na
formulação de uma identidade cultural autóctone africana e muito
particularmente na formulação de uma identidade africana na diáspora
brasileira.
A fabricação do culto e as nações religiosas
Ora, com tão intenso trânsito cultural e religioso, cujo palco é todavia
nefasto (a escravatura), normal seria que os diferentes grupos étnicos yorùbás
– ou proto-yorùbás, pois sabemos que a definição de identidade yorùbá está a
tomar forma neste preciso período histórico na costa africana – se organizassem
e procurassem tecer uma identidade partilhada num contexto geográfico onde eles
não são mais rivais e diferentes, mas fortemente similares diante de uma
cultura brasileira de matriz europeia. Dessa forma, africanos de diferentes
origens do espaço conhecido por yorùbáland, organizaram-se em torno de um ideal
religioso, colocando em diálogo deuses (que já tinham dialogado ao longo da
história e que viram o seu diálogo reforçado com o sistema de Ifá), rituais,
processos iniciáticos, modos de fazer e estar na experiência religiosa,
produzindo uma concertação religiosa de amplitude diplomática. Toda esta
estruturação que se tornou o candomblé, tem a particularidade de reconstituir
um ideal palaciano, no qual todos os oficiantes religiosos estão sob a tutela
de um sacerdote ou sacerdotisa, ou como refere Olabiyi (1993) sob a tutela do
que parece um Pontifex Maximus. No entanto, esta estruturação religiosa não
apagou as identidades nativas, mesmo que as tenha aculturado, em particular no
candomblé da Barroquinha. Isto conduz-nos, necessariamente, às denominadas
nações de candomblé, que se constituem como referenciais simbólicos de
tradição e linhagem para as comunidades-terreiros, para além do facto de serem
ferramentas de autoidentificação e de alteridade. Apesar do primado da
identidade de Ọ̀yọ́ e Kétu, o candomblé, como vimos, nasce de um rendilhado
étnico. Nas andanças de constituição identitária, as nações políticas proto-
yorùbás deram lugar a nações-de-candomblé. Como vimos, a nação Kétu passa a
figurar como sinónimo de yorùbánidade, como paradigma do modelo cultural àjèjì-
nàgó, tomado como referencial para os demais padrões étnicos sob a ideia de
nação. A tradição ewe-fon, especificamente, é compreendida como a nação
Jeje no contexto afro-brasileiro do candomblé, locus da preservação das
heranças culturais daomeanas, em particular as constituídas ao tempo do rei
Tegbesu, influenciado pelas estruturas político-religiosas de Ọ̀yọ́ e por uma
nova ordenação conceptual importada dos missionários e formulada em torno das
especificidades políticas locais (Olabiyi, 1993). A nação Ijéṣà, que
representa a herança dos negros dessa grande região yorùbá, vive ainda através
do seu particular contributo para o complexo religioso da Barroquinha, com as
divindades Ọ̀ṣun e Lògúnẹdẹ. Há, contudo, uma ressalva a ser feita. A nação
Ijéṣà liga-se fortemente ao batuque do Rio Grande do Sul, de onde se expandiu
para a Argentina e Uruguai, pese a presença de alguns terreiros de tradição
ijéṣà no Brasil (Ferreira Dias, 2012).
Diante deste polvilhar étnico a meio do qual se recodificam as antigas nações
africanas proto-yorùbás em nações religiosas, conservando parte dos matizes
originais, mas que simultaneamente necessita de encontrar um equilíbrio
estético e litúrgico, emerge um conjunto de práticas rituais que se constituem
como um cânone litúrgico candomblecista. A fabricação do culto, portanto,
corresponde à definição dos modos de fazer religião, i.e., às fórmulas práticas
de fazer rito. Os processos iniciáticos utilizados em África para Òòṣàálá e
Ọ̀ṣun (traje branco e pintura branca corporal) adotaram-se nas iniciações para
todos os òrìṣàs, definiu-se o tempo de reclusão iniciática, e a própria ordem
da liturgia. No fundo, fabricou-se o candomblé a partir da herança plural
africana proto-yorùbá.
A linhagem masculina e a cidade das mulheres: a construção da identidade
nàgócêntrica do candomblé da Bahia como memória coletiva
Ruth Landes chega à Bahia em 1939. Da sua presença na velha Salvador resultou
uma obra que se tornaria um clássico da literatura afro-brasileira: A Cidade
das Mulheres (1947). Reportando-se às mulheres do partido alto, i.e., às
negras do candomblé bahiano, Ruth Landes não se limita à produção de um
trabalho antropológico de observação do candomblé, ela procura enfatizar o
papel vital da mulher nesse contexto religioso. Feminista convicta, a sua obra,
fruto da presença nos candomblés tradicionais da Bahia, irá reconfigurar a
perceção do sacerdócio e do espaço religioso afrodescendente. No seu artigo
original, Landes (1940) afirma: Tradition says baldly that only women are
suited by their sex to nurse the deities, and that service of men is
blasphemous and unsexing (pp. 387-388). Ruth Landes esqueceu-se de explicitar,
claramente, a que tradição está ela a aludir, ao mesmo tempo que faz tábua rasa
não apenas dos inúmeros sacerdotes masculinos do seu tempo como, mais
importante ainda, que o candomblé é por si só uma tradição inventada, que
acumula diferentes tradições proto-yorùbás. Enquanto em África diversos òrìṣàs
somente permitem que o seu sacerdote seja masculino (Ifá), outros somente
permitem mulheres na função (Ọ̀ṣun), ao passo que outros há que não têm tal
objeção (Òòṣàálá). Portanto, fica por explicitar a que tradição Landes alude. É
facto que as casas-mãe do candomblé somente aceitam a liderança feminina,
exceção feita à Casa de Oxumarê (Ilé Òṣùmàrè Àràká Àṣẹ Ogodò) que foi fundada
por Bàbá Tálábi, cuja liderança varia entre homens e mulheres,
indiscriminadamente (talvez por isso tenha ficado de fora do discurso da cidade
das mulheres e do nagôcentrismo). Todavia, é também facto que da fundação e
consolidação da Casa Branca do Engenho Velho participaram Bámgbóṣé Obitíkó e
Bàbá Áṣipá, e o mesmo pode ser dito para o Axé Opô Afonjá, fundado por Ìyá
Aninha (Ọbabìyìí) com a coadjuvância de Bàbá Ọbasanya, e para o Alakétu,
fundado por Ìyá Otampè e Bàbá Aláji. Ora, temos, pois, quatro autoridades
masculinas (Bámgbóṣé Obitíkó, Bàbá Áṣipá, Bàbá Obasanya e Bàbá Aláji) na
fundação de três casas de candomblé. Tal facto é contraditório ao discurso de
Landes em torno de uma suposta tradição feminina que faria da Bahia uma cidade
das mulheres. Matory (2008) dá uma resposta diferente: a liderança masculina
no Candomblé era um fenómeno antigo. Por toda parte do século XIX, havia muito
mais pais-de-santo que mães-de-santo na Bahia (p. 113).
O que parece haver é, na verdade, uma fundamentação histórico-económica, muito
mais do que uma razão de natureza religiosa. No Brasil a mulher foi alforriada
primeiro, pelo simples facto do homem representar uma força de trabalho maior e
indispensável pelo tempo necessário às práticas rituais. Há ainda outro fator a
levar em linha de conta (e que não foi abordado por nenhum autor): estas
mulheres, fundadoras das correntemente designadas como casas tradicionais do
candomblé, estavam ligadas ao culto Gẹ̀lẹ̀dẹ́ (Guélédé), um culto yorùbá de
forte expressão religiosa e teatral (Lawal, 1996), que valoriza o sagrado
feminino e que se manteve através da adaptação sincrética na Irmandade da Boa
Morte (Bernardo, 2005). Se de facto há uma longa tradição africana na Bahia que
sustenta uma ideia de cidade das mulheres, ela não é contraditória à ideia de
tradição masculina. Ìyá Násò Òká tem tanto peso na memória coletiva afro-
brasileira quanto Bámgbóṣé Obitíkó. Nesse sentido, Landes valorizando o papel
da mulher no espaço do candomblé desvalorizou a linhagem masculina amplamente
presente. Não podemos, contudo, deixar de assumir a possibilidade de a cidade
das mulheres ser, ela própria, uma criação das mulheres do candomblé, i.e.,
que Landes apenas enfatizou uma manipulação já vigente.
Em suma, com o particular impulso dado por Ruth Landes e com uma tradição
matriarcal das casas de candomblé tidas na comunidade imaginada yorùbá-nàgó,
o primado da mulher como sacerdotisa tomou papel de relevo na constituição da
identidade religiosa yorùbá em terras de Vera Cruz. A ideia de negras,
mulheres e mães, título, aliás, da obra de Teresinha Bernardo (2003), tornou-
se símbolo da identidade coletiva yorùbá na Bahia, pese o importante contributo
masculino à formação do culto. Não independente desse princípio, está a
construção da ideia de nagôcentrismo que, em nome do rigor, se constitui como
um formular de tradição. O discurso do nagôcentrismo ou da pureza nagô
(Dantas, 1988) é resultado de um percurso histórico do candomblé bahiano.
Edison Carneiro, em Candomblés da Bahia (1948) é um grande promotor da chancela
da pureza nagô (de nàgó), trajeto a que Bastide (1958) daria particular
impulso. Bem alicerçado no estruturalismo ocidental, Bastide categorizou as
culturas religiosas africanas no Brasil em tradicionais e degeneradas. Ao
primeiro grupo corresponde o candomblé de matriz jeje-nagô, ou simplesmente
nagô (nàgó), ao passo que ao segundo correspondem os candomblés bantus (Congo-
Angola) e particularmente a macumba do Rio de Janeiro. Para Bastide o candomblé
é lugar de tradicionalidade, de valores comunitários, de solidariedade, etc.,
ao passo que a macumba corresponde à degeneração urbana dos valores africanos
ideais. Todavia, quer Ramos (1934), quer Carneiro (1948), quer Bastide (1958),
quer Lima (1977), todos são, em boa medida, herdeiros de Raymundo Nina
Rodrigues (1900, 1932). Nina Rodrigues, seguindo os modelos do evolucionismo
cultural, considerava que havia uma clara distinção entre os africanos yorùbás
e os demais, sendo que os primeiros constituíam uma verdadeira elite africana.
Trabalhando com a comunidade-terreiro do Gantois e com o Bàbáláàwó Martiniano
Eliseu do Bonfim, o médico legista foi o grande pioneiro dos estudos
antropológicos no Brasil.
Independentemente dos diferentes discursos sobre o que seria depois perda de
originalidade do candomblé bahiano ou não (Lima, 2004), o mais importante é a
construção, por um lado de uma tradição segundo os termos de Hobsbawm e Ranger
(1992), e por outro de uma comunidade-imaginada (Anderson, 1991). O foco
desta construção de memória africana no Brasil, e em particular na Bahia, teve
nos yorùbás o seu principal agente e produto. Ser-se yorùbá-descendente e/ou do
candomblé jeje-nagô significou (e significa) ser-se herdeiro de uma elite
cultural africana, cujo ideal é devedor de um intenso laboratório
antropológico-científico. A vivência nos terreiros de candomblé concebidos
como ortodoxos, a sua nomenclatura em yorùbá, os cânticos evocativos na mesma
língua, etc., operam em conjunto para cristalizar um sentimento de partilha
identitária entre participantes (comunidade-imaginada) que de outra forma não
teriam quaisquer ligações entre si. Em suma, dentro das paredes do espaço
religioso, todos são arakétu, i.e., cidadãos (imaginados) de Kétu,
experimentando uma vivência étnica espiritual e simbólica, cuja construção foi
real e histórica.
Pọ́rtúgérè: os yorùbás de Lisboa
Tal como vimos anteriormente, a identidade yorùbá é consequência de um processo
de construção histórico-cultural resultante da experiência da alteridade. As
regras que determinaram a formação da identidade yorùbá autóctone operaram na
constituição da identidade yorùbá na Bahia. A invenção da tradição (Hobsbawm
& Ranger, 1992) em contexto diaspórico constitui-se como uma súmula de
diferentes culturas religiosas proto-yorùbás em contexto exógeno cuja ação de
bricolagem diplomática intra-africana originou um sentido de pertença
(comunidade-imaginada; Anderson, 1991) em torno do modelo religioso designado
por candomblé. Os nàgó da Bahia tornaram-se símbolo de resistência cultural e
religiosa africana-yorùbá, fazendo dos seus terreiros espaços de preservação
e socialização dos e nos padrões culturais yorùbás, nativos ou inventados no
novo contexto.
Cabe-nos agora observar o processo tomado pelos yorùbás em Portugal. Não
existem dados sobre o número exato quer de nigerianos quer de yorùbás em
Portugal. De acordo com os nossos informantes[5], vivem em Portugal entre 15 a
30 yorùbás, dentro de um número maior de nigerianos. Tal grupo constitui uma
pequena comunidade dentro da grande presença africana em Portugal (contra, por
exemplo, a presença angolana, com 21.563 residentes, a cabo-verdiana com 43.920
e a moçambicana com 3.028), em particular na área metropolitana de Lisboa.
Segundo dados do relatório de 2011 do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras
(SEF), em Portugal a população de origem nigeriana conta com 325 pessoas,
embora estes dados reflitam valores oficiais e não contenham a imigração
ilegal. A possibilidade de os números serem um tanto ou quanto superiores,
constatou-se nas comemorações da Independência da Nigéria (1 de Outubro de
1960) celebradas em Lisboa, em Outubro de 2009. Dessa experiência direta,
prevê-se que a comunidade nigeriana deverá rondar as quinhentas pessoas, entre
muçulmanos, cristãos-evangélicos e praticantes da Ẹ̀sin Ìbílẹ̀(religião
tradicional). Como notámos em dissertação de mestrado (Ferreira Dias, 2011), no
caso dos yorùbás a filiação religiosa é feita de fronteiras permeáveis, pois
não raras vezes a religião tradicional se mescla com o Islão e o cristianismo,
numa vivência ecuménica em torno de uma ideia de Ser-Supremo (Allah, Deus,
Olódùmarè). Adétàyò Adénúbi, nigeriano-yorùbá(circa 40 anos) a propósito desta
questão religiosa, diz-nos u know en the westerners came to us they brought to
us thier religion and told us to drop ours, but i as a person i am a christian
but i still know my root, so that is how i beleive some other yorubas think
(sic)[6]. A mescla religiosa, a dupla pertença, está assim bem patente.
Excetuando funções diplomáticas, os yorùbás emigram para Portugal como
quaisquer outros africanos: em busca de oportunidades num mercado globalizado e
numa economia capitalista, oportunidades que não têm nas suas terras de origem,
mesmo diante do estatuto político local (boa parte deles advêm de velhas
famílias da nobreza local), amplamente mais simbólico do que económico. Mesmo
com formação superior, trabalham na construção civil, limpezas, segurança, ou
ainda mais precariamente. Há quem esteja também a estudar língua e tradução
portuguesa, segundo Adétàyò Adénúbi. Os yorùbás de Lisboa, conhecidos em África
por pọ́rtúgérè – nota-se o continuum de nomenclatura para os yorùbás em
diáspora, como vimos para os sàró na Serra Leoa, os lukumi em Cuba e os
nàgó na Bahia, o que equivale a um referencial de alteridade intra-yorùbá –
constituem um caso diferente dos nàgó da Bahia. Enquanto estes últimos
chegaram ao Brasil através do comércio de escravos, reconfigurando a sua
identidade cultural e religiosa no meio de uma experiência traumática de
desenraizamento, os pọ́rtúgérè são recém-chegados a Portugal, oriundos de uma
Nigéria capitalista, global, pós-moderna. A experiência de desenraizamento
cultural não teve lugar, ocorrendo antes uma acomodação da sua cultura de
partida à realidade social, económica, cultural e política do espaço de
chegada. A experiência não foi traumática, havendo quem tenha chegado via
Alemanha e Espanha, depois de uma passagem pelo Porto até à fixação em Lisboa,
como é o caso de Adétàyò, já citado, natural de Ìjẹ̀bú. Apesar da relativamente
fácil acomodação a Portugal, a maioria dos yorùbás ou para o constante dos
pọ́rtúgérè, tem no seu horizonte a cosmopolita cidade de Londres, onde a
comunidade yorùbá atinge números expressivos. Tal é o caso de Taywo, que no ano
de 2009 partiu para a capital inglesa. Culturalmente, os yorùbás organizam-se,
parcamente, na Ẹgbẹ́ Ọmọ Odùduwà, associação informal fundada e dirigida por um
nativo de Ọ̀yọ́, chamado Adérẹ̀mí, e cuja denominação aporta às narrativas
tradicionais yorùbás que apontam Odùduwà como seu fundador mítico e para a
organização fundada em 1945, em Londres, por Ọbáfẹ́mi Awólọ́wọ̀ e outros
estudantes yorùbás e que iriam ter importante papel na independência da
Nigéria. Apesar desse referencial, a portuguesa Ẹgbẹ́ Ọmọ Odùduwà não tem
dinâmica cultural, constituindo-se como referencial para esta comunidade
imaginada que são os pọ́rtúgérè. Excetuando-se uma loja na Rua do Desterro,
em Lisboa, onde se vendem produtos alimentares mas acima de tudo tecidos e
vestuário importado da Nigéria, os pọ́rtúgérè têm poucos espaços de convívio
e socialização, formando melhor pequenos agrupamentos habitacionais, de 2-
3 pessoas, ao mesmo tempo que partilham pouco as suas dificuldades quotidianas,
preservando acima de tudo um sentido de ìrera, i.e., orgulho. Paralelamente, e
ao contrário do que aconteceu no Brasil, em que a alteridade foi marcada pelo
trauma da escravatura[7], a que gostaríamos de chamar também de trauma
cultural, na medida em que se constitui como um choque civilizacional, e que
levou à dissolução ou pelo menos ao atenuar das fronteiras étnico-culturais
locais, em Portugal a tensão entre identidades locais faz-se sentir, de alguma
forma, entre os pọ́rtúgérè, que mantêm o referencial como Ara-Ọ̀yọ́, Ara-
Ìjẹ̀bú, Ara-Iléṣà, etc. Finalmente, coletivamente, os pọ́rtúgérè perderam
grande parte do seu sentido coletivo com o regresso à Nigéria de M. A. Onaderu,
diplomata em missão em Portugal, até 2009. Apelidado por todos de Mr.
Onaderu, possuía status social entre os pọ́rtúgérè, estatuto esse derivado
das suas funções políticas.
Do ponto de vista religioso, o trabalho criterioso das missões cristãs e das
igrejas cristãs africanas, como a Alàdúrà (Peel, 1968), faz-se sentir entre os
nigerianos em Portugal, em grau inferior, todavia, entre os yorùbás. A Ẹ̀sin
Ìbílẹ̀ tem grande peso entre os yorùbás de Portugal, mesmo no caso de Bámidélé,
natural de Ọ̀yọ́ e com ligações ao Islão. Intrincados nos cultos locais, os
pọ́rtúgérè não celebravam culto religioso em Portugal até 2009, altura em que
o citado M. A. Onaderu estabeleceu laços informais com a Associação Portuguesa
de Cultura Afro-Brasileira (APCAB), instituição que ir-se-ia constituir na
Comunidade Portuguesa do Candomblé Yorùbá (CPCY), primeira pessoa coletiva
religiosa tradicional africana reconhecida pelo Registo Nacional de Pessoas
Coletivas, em Janeiro de 2010. Ora, os laços formados por Onaderu
reconfiguraram a experiência religiosa dos yorùbás de Lisboa. Se no Brasil os
yorùbás com o objetivo de preservação cultural e religiosa reconfiguraram as
suas tradições dando origem ao candomblé, em Portugal, através de iniciativa de
um representante informal da sua comunidade imaginada, os yorùbás acomodam os
seus princípios religiosos autóctones contemporâneos às estruturas da CPCY, uma
instituição de natureza religiosa afro-brasileira. Ou seja, acomodam o seu
imaginário yorùbá nativo ao imaginário diaspórico do candomblé de ortodoxia
nàgó (cuja constituição e formulação vimos anteriormente). Confirmam tal ideias
as palavras de Adétàyò: only wen we come to benavente thats wen we are close
to our home land(sic)[8].
Temos, pois, um curioso processo de acomodação religiosa, na qual os
pọ́rtúgérè reconhecem valor/eficácia religiosa a uma comunidade fundada com
base nos seus princípios exportados para o Brasil, criando uma nova dinâmica de
interpenetrações religiosas euro-afro-brasileiras. Ou seja, a partir do momento
em que os yorùbás de Lisboa aderem livremente ao candomblé e procedem a novas
alianças com os seus òrìṣàs, agora segundo o modelo afro-brasileiro do Ilé Ìyá
Násò Òká, a identidade pọ́rtúgérè transforma-se, reconfigura-se. Ser
pọ́rtúgérè não é apenas ser yorùbá de Portugal, ou mais correntemente de
Lisboa; ser pọ́rtúgérè é ser yorùbá de Lisboa, sim, mas também ser do
candomblé, essa religião nascida da experiência dos escravos yorùbás, fons e
bantus no Brasil e à qual aderem na busca de um pedaço da sua terra em novo
contexto cultural e geográfico. Do ponto de vista da experiência religiosa, a
transformação merece também nota. Ao passo que nas suas terras de origem
estavam dedicados aos cultos dos òrìṣàs locais e familiares – na maioria dos
casos Ògún, senhor do ferro e das atividades que requerem este metal –, em
Portugal o òrìṣà da linhagem sanguínea é secundarizado, sobressaindo o òrìṣà
individual, o qual lhes era desconhecido. Tal é o caso de Adékanmí, que em
África se dedicava ao culto de Ògún, divindade da família, e em Portugal viu-se
consagrado ao òrìṣà Ọbalúwàiyé, a que dão o nome de Ṣànpọ̀nná. Dessa forma, a
referida acomodação se apresenta como uma reconfiguração das relações entre os
sujeitos e as divindades yorùbás, agora individualizadas.
No referente à interação dos pọ́rtúgérè com outras comunidades de africanos,
esta é baixíssima. Inicialmente supôs-se que as razões residiriam (sabendo à
partida que ao contrário da ideia corrente há de facto uma interação baixa)
particularmente nas barreiras linguísticas, tendo presente que os yorùbás e
lato senso os nigerianos falam inglês para além das línguas nativas. Colocada
tal possibilidade a Adétàyò, este foi pragmático: not really, you know we have
differences in culture and beliefs[9]. Temos pois a barreira cultural e um
sentido de si bastante vincado, que impossibilita a interação com africanos de
outras nacionalidades. A experiência partilhada do desenraizamento derivado da
emigração não chega para criar laços. Ademais, porque a experiência de
desenraizamento não é absoluta, como se constata nas palavras do informante: I
feel like a normal yoruba man, mostly seeing my yoruba people around me, only
feel far away when there is no one to speak our mother tongue with[10].
Ora, o caso dos pọ́rtúgérè é contudo diferente dos casos cubano e americano.
O primeiro, analisado demorada e cuidadamente por Palmié (2007), embora baseado
na experiência religiosa como no caso brasileiro, distancia-se daquele
consideravelmente. As andanças cubanas cuja estrutura de base é Regla de
Ocha ou Santería (nome para as tradições religiosas afro-cubanas) resultam de
uma construção que acompanhou a experiência nativa yorùbá e que se baseou num
processo intelectual de alinhamento retrospetivo (nas palavras de Arthur
Danto aplicadas ao presente caso por Palmié) por parte de intelectuais afro-
cubanos, e não de uma ressignificação coletiva, como no caso brasileiro. Já o
caso americano, analisado por Capone (2004, 2011) resulta de um processo
histórico-cultural do séc. XX: o movimento negro norte-americano de feição
cultural que se inspirava na procura de uma autenticidade e de uma identidade
moderna própria[11]. O combate ideológico afro-americano e um renascimento
cultural pró-africano, nas décadas de 1950, 60 e 70, estiveram na base da
experiência yorùbá norte-americana.
Em todo o caso, nem a experiência cubana nem a norte-americana são objeto deste
trabalho, quer pelo roteiro traçado cujo pendor é, claramente, alicerçado no
eixo luso-afro-brasileiro, quer pelo espaço exíguo à sua produção. Servem,
todavia, para nos dar conta que a experiência de ressignificação identitária
opera sob plurais formas, ainda que o referencial seja homólogo.
Conclusão
A cultura e com ela a religião do espaço de influência de Ọ̀yọ́ sofreram ao
longo dos últimos séculos intensa transformação. Desde a expansão de Ọ̀yọ́ até
à sua queda, passando por uma reconquista e declínio, anexação e libertação do
Daomé, as mutações culturais e religiosas foram tremendas. Costumes e crenças
foram permanentemente renegociados ao sabor dos encontros intra-africanos, ou
mais especificamente, proto-yorùbás, e destes com elementos exógenos, como o
Islão vindo do norte e o cristianismo vindo do mar. Todas estas transformações
desembocaram na constituição de uma identidade yorùbá, baseada num ideal
político ligado a Ọ̀yọ́, num ideal mítico ligado a Ilé-Ifẹ̀, e na experiência
de alteridade dos retornados da diáspora escravocrata: os sàró da Serra Leoa,
os lukumi de Cuba e os nàgó da Bahia.
Como vimos também, essa experiência de alteridade e reconfiguração de
identidade não foi um dado de ação autóctone, exclusivamente. Na outra margem
do Atlântico, na Bahia, os vários povos de influência Ọ̀yọ́ procediam à
reconfiguração da sua identidade num contexto traumático: a escravatura. O
candomblé, experiência religiosa de intenso cariz diplomático, tornou-se
símbolo de resistência cultural ao mesmo tempo que a identidade nàgó se
configurava como guarda-chuva cultural para os diferentes povos proto-yorùbás,
sob a chancela da cidade de Kétu.
O que se passou, portanto, em ambas as margens, foi um intenso trabalho
cultural de inventar tradição e construir uma comunidade imaginada.
Fabricação essa que não esteve independente de utilidades políticas, i.e., a
reconfiguração identitária foi também um deslocar de forças e um jogo de
tensões: em África entre os imaginários abraâmicos e os valores autóctones, no
Brasil entre um contexto novo e os valores nativos. A forma como o candomblé se
definiu é, pois, prova disso mesmo, à medida que se moldaram e esbateram os
matizes rituais e cosmogónicos diversos, e se reconfigurou um discurso deste
como locus feminino, ao qual Ruth Landes haveria de dar particular impulso a
partir das narrativas orais da fundação do candomblé – oralidade a operar como
ferramenta de fabricação de tradição e comunidade.
Posterior a este intenso tráfego afro-brasileiro, ou yorùbá-bahiano,
encontramos similar mutação cultural e religiosa, mais ténue (mais acomodação
do que reconfiguração) mas não menos expressiva. Na Lisboa do séc. XXI, yorùbás
oriundos da Nigéria procuram melhores condições de vida, abandonando um estilo
de vida nobiliárquico rural por uma economia dos bens de consumo. Ao passo que
como comunidade não se verifica a constituição de uma dinâmica de
comunitarismo, religiosamente, através do impulso particular de um diplomata a
exercer funções temporárias em Lisboa, estes yorùbás, designados por
pọ́rtúgérè, são agentes de alteração de paradigma religioso, acomodando a sua
perceção da ẹ̀sìn ìbílẹ̀, i.e., da sua religião tradicional aos padrões de
uma comunidade já estabelecida, curiosamente uma comunidade de candomblé
bahiano de modelo nàgó. Sendo apenas uma pequena fatia da imigração
nigeriana, também ela significativamente inferior à imigração dos países
africanos de expressão portuguesa, estes pọ́rtúgérè interagem essencialmente
entre si, não por uma barreira linguística, mas antes pela barreira cultural,
acantonados que estão aos seus valores tradicionais e à sua forte ideia de si
enquanto identidade coletiva. Pese as diferenças entre os imaginários
religiosos autóctones e os modelos de configuração ritual e cosmogónica do
candomblé, estes pọ́rtúgérè parecem expressar-se num continuum identitário,
acomodando-se com considerável facilidade. Livres dos traumas da escravatura, o
processo de adaptação difere então dos acontecimentos brasileiros, e inclusive
cubanos e norte-americanos, os quais expressam processos de ressignificação
próprios.
Em suma, fica claro que falar em identidade yorùbá equivale a falar em
negociação com o espaço e o tempo; no fundo equivale a um diálogo mais ou menos
dramático de uma cultura com um contexto exógeno. Quer a constituição da
yorùbánidade, quer a constituição da identidade nagô-ketu e até mesmo da
identidade pọ́rtúgérè, representam a resposta de um dado conjunto de pessoas,
com uma ideia de si mesmas, a estímulos externos. Fabricar yorùbánidade,
nagôcidade e pọ́rtúgérècidade, consistiu em processos de inventar tradição e
constituir comunidades imaginadas.
Portanto, diante da nossa indagação inicial, i.e., o que é ser yorùbá?,
concluiu-se que a resposta estará sempre dependente dos contextos, pois que ser
yorùbá em África é amplamente diferente de o ser na Bahia, Cuba, Estados Unidos
ou Lisboa. Afinal, é amplamente mais fácil delimitar as fronteiras de uma
cultura extinta do que de uma cultura viva, em permanente renegociação e
reconfiguração e que simultaneamente é fruto de um processo histórico de self-
construction tendo por ferramenta a própria alteridade e a necessidade de
forjar tradição.
Opções linguísticas
A língua yorùbá possui diferentes formas de acordo com a área geográfica de
incidência. Contudo, seria com o século XIX que se iria definir uma grafia
corrente, cuja fonética esteve influenciada determinantemente pela linguística
de Ọ̀yọ́. Para nossa revisão foi usada a acentuação da página em yorùbá do
sítio wikipedia [yo.wikipedia.org – tal opção resulta do facto de se tratar de
um site feito para yorùbás, o que equivale a uma utilização coerente e correta
da grafia yorùbá (yorùbá proper e outras aceites)] e o dicionário de 1918 da
Church Missionary Society de Lagos.