Em torno das Práticas Desportivas em África
Em torno das Práticas Desportivas em África
Nuno Domingos* e Augusto Nascimento**
*Instituto de Ciências Sociais - Universidade de Lisboa, 1600-189 Lisboa,
Portugal, nuno.domingos@ics.ul.pt
**Instituto de Investigação Científica Tropical, Centro de História, 1349-007
Lisboa, Portugal, anascimento2000@yahoo.com
Os artigos presentes neste número dos Cadernos de Estudos Africanos sobre as
práticas desportivas em África resultam de comunicações apresentadas na II
Conferência Internacional O desporto e o lazer no continente africano: Práticas
e identidades, organizada pelo CEA do ISCTE-IUL, e de uma chamada para
contribuições lançada a 8 de Agosto e encerrada a 15 de Novembro de 2012.
Na esteira do trabalho que, desde há anos, investigadores de diversas
nacionalidades vêm dedicando ao desporto em África, a organização de um número
dos Cadernos de Estudos Africanos devotado a esta temática, tanto à sua
história quanto às suas dinâmicas contemporâneas, revela a evolução das
investigações sobre um dos fenómenos mais presentes no contexto das práticas do
lazer e da evolução da cultura popular no continente africano. O interesse por
temas até há pouco tempo considerados marginais reflete o reconhecimento da sua
importância, não apenas enquanto objetos autónomos e merecedores de um olhar
específico, mas também como instrumentos que facultam ao investigador um acesso
singular a outras esferas do conhecimento, oferecendo perspetivas novas sobre
debates que há muito acompanham as pesquisas sobre a história da África
colonial e pós-colonial. Este volume dos Cadernos de Estudos Africanos
pretende, deste modo, não apenas acrescentar conhecimento sobre um conjunto de
realidades até aqui pouco exploradas, mas igualmente discutir, a partir destes
estudos, processos constitutivos da história de diversos países e regiões.
Desta forma, apresenta-se também como um convite a novos estudos.
Os artigos aqui presentes dialogam com alguns dos temas que têm vindo a pautar
o incremento dos estudos sobre África. A história colonial do continente
africano será talvez o mais significativo. O estudo do desporto é um meio
privilegiado para examinar as sociedades coloniais, as relações entre
colonizadores e colonizados, as formas de poder, a formação de grupos sociais,
os processos de exclusão e incorporação social, também traduzidos nas formas de
acesso ou nos mecanismos de interdição ao lazer. O enfoque no desporto permite
também aceder às vivências de grupos sociais menos estudados, acerca dos quais
há menos fontes e informação disponível. Parte dos artigos aqui publicados fala
de experiências sociais em colónias portuguesas, concretamente Moçambique e São
Tomé e Príncipe. Estes artigos acrescentam algo a trabalhos desenvolvidos
recentemente sobre a história do desporto nos vários contextos do colonialismo
português, como se disse, durante anos um tema largamente negligenciado[1].
Parte da evolução do desporto na segunda maior cidade de Moçambique, a Beira, é
explorada por Eduardo Medeiros. O autor mostra-nos como o desporto foi uma
prática importante da comunidade de ascendência chinesa radicada na Beira. Com
escassas possibilidades de protagonismo local, encontravam no desporto formas
de consolidação dos laços no seio do seu grupo e de afirmação social numa
cidade que pretendiam tomar como terra de acolhimento. De alguma forma, um
claro vínculo étnico ou cultural perpassou as práticas desportivas dos
descendentes dos chineses na Beira, revelando, por um lado, apetências
decorrentes do lastro cultural que transportavam consigo e, por outro, abertura
ao mundo, amiúde maior do que a dos colonos. Ocasionalmente, os moldes de
inserção na terra, a capacidade de interiorização do cosmopolitismo e o
desempenho desportivo suscitaram velados debates sobre a autenticidade da sua
representação de uma terra que os colonos insistiam em querer só para si e sua,
dela excluindo quer os africanos, quer descendentes de imigrantes chineses cujo
enraizamento se desdobrava em desempenhos simbólicos como os desportivos.
No seu texto, Todd Cleveland estende ao mundo do desporto os seus interesses de
investigação sobre o universo laboral no contexto colonial português. As
trajetórias dos jogadores de futebol moçambicanos entre os seus locais de
origem e os clubes de futebol na metrópole possibilitam interrogar o modo como
eles encontraram nas possibilidades concedidas pelo campo desportivo um meio de
mobilidade social. Este percurso laboral, que levou à metrópole alguns dos
talentosos jogadores de futebol que representaram a seleção nacional
portuguesa, apresenta características únicas no quadro colonial português, já
que foram poucos os trabalhadores africanos que conseguiram um percurso
equivalente a estes desportistas. Todd Cleveland procura perceber não apenas os
percursos destes homens até saírem de Moçambique, e como se relacionam com os
dispositivos de controlo colonial, mas também todo o seu processo de adaptação
à realidade urbana e desportiva da metrópole. Este texto, para além de oferecer
uma análise do sistema de relações coloniais em Moçambique, nomeadamente nas
suas principais cidades em mutação apesar da aparência de imobilismo devida ao
colonialismo, permite também interrogar a sociedade metropolitana que acolheu
estes atletas.
Ainda a propósito de Moçambique, Nuno Domingos entrevista um dos jogadores
moçambicanos que mais se destacou no futebol português. Hilário Rosário da
Conceição nasceu no bairro da Mafalala em 1939. A sua aprendizagem do futebol
nos terrenos vazios do subúrbio de Lourenço Marques vincou-lhe o talento
necessário para que, aproveitando o contexto de semiprofissionalização do
futebol em Lourenço Marques, suficientemente forte para desafiar o bloqueio
racial que caracterizava a organização do campo desportivo, Hilário viesse a
jogar no campeonato da baixa da cidade e, depois, a transferir-se para o
Sporting Clube de Portugal, de Lisboa. A partir da sua condição de mulato de
segunda, como se autodenominou, iniciou um percurso raro de mobilidade
profissional. Hilário relatou todo um conjunto de experiências pessoais que são
importantes para interpretar não apenas as lógicas dominantes no processo de
formação de práticas e consumos desportivos, em Moçambique como na metrópole,
mas também os significados de uma época política e social.
No caso de São Tomé e Príncipe, elegem-se os campos de futebol como objeto
original para interrogar na história das ilhas, desde o período colonial até à
actualidade. A partir das narrativas proporcionadas pelas estórias de diversos
campos de futebol, construídos em momentos diferentes e usados por pessoas e
grupos distintos, conseguimos aceder a um conjunto de dinâmicas históricas e
sociais por que passou São Tomé e Príncipe nos últimos cem anos. Neste trabalho
sobre o arquipélago, o percurso histórico e a análise social são acompanhadas
por um extenso acervo fotográfico, que permite oferecer à interpretação novas
camadas de significados, como que desafiando a ver como as diversas morfologias
dos campos de futebol indiciam diferentes movimentações e mudanças sociais.
Ainda sobre o período colonial, mas já fora dos territórios portugueses, Sílvio
Correa analisa os usos e funções das associações desportivas que promoviam
corridas de cavalos na colónia alemã do sudoeste africano (atual Namíbia). As
corridas de cavalos, argumenta o autor, vincavam a reprodução das diferenças
políticas e sociais no mundo colonial. O colonialismo alemão perseguia uma
inequívoca separação racial, na circunstância, materializada numa das mais
elitistas manifestações desportivas. Mas não haveria fissuras nesta quase
intocada separação de europeus e africanos? Se as corridas de mulas serviam
para rebaixar os africanos, a verdade é que acabaram por ser admitidos jóqueis
africanos nas corridas de cavalos, porventura por o desejo de ganhar se
sobrepor ao da separação racial. Isto sucedeu no sudoeste africano alemão como
em muitas outras regiões africanas, onde o desporto tomou muitas vezes a
vanguarda no processo de rompimento de barreiras raciais.
O contexto pós-colonial, já presente no texto de Augusto Nascimento e na
entrevista a Hilário da Conceição, ocupa os restantes textos. Questões como a
segregação racial, a construção de sociabilidades juvenis e a transição para a
vida adulta e, ainda, o poder de construção identitária revelado pelo desporto
são abordadas noutros artigos. Hoje, no continente africano, como noutros
contextos, as práticas e os consumos desportivos constituem-se como linguagens
por intermédio das quais se expressam projetos e aspirações.
Antoine Marsac analisa os usos sociais da canoa na Zâmbia. Para o fazer
reconstrói a história da canoagem e, fundamentalmente, do seu significado
durante o período colonial. Este trabalho inicial serve-lhe para interrogar os
usos contemporâneos e o modo como se relacionam com a negociação da identidade
nacional. Em torno das práticas da canoagem, ecos de visões passadistas –
ligadas, concretamente, a arquétipos coloniais – conflituam com a visão
emancipada dos locais, ainda assim sujeitos à mudança dos seus modos de vida e
dos seus valores em função das pressões comerciais ancoradas na prática
desportiva. A lembrar a oportunidade de abordagens interdisciplinares –
implicando, por exemplo, uma etnografia dos canoístas e a sociologia das
práticas desportivas –, o autor aborda a diferenciação social, a
heterogeneidade cultural, as clivagens entre indivíduos e grupos de alguma
forma envolvidos no que, sendo uma prática desportiva para uns, é, para outros,
uma reminiscência das agressões e da sobranceria do colonialismo. A este
propósito, a globalização seria uma continuidade do colonialismo e as
disciplinas desportivas veios de insinuação da ideologia liberal e de uma
transformação social forçada.
Bernard Cros apresenta um artigo sobre o râguebi na África do Sul. Mais
concretamente, o autor procura analisar a continuidade de lógicas de segregação
racial nesta prática desportiva mesmo após o fim do regime racista do
apartheid. O râguebi, como explica Cros, foi desde sempre o desporto conotado
com o nacionalismo boer, e nomeadamente com as políticas de apartheid. Em
contraste o críquete afirmou-se fundamentalmente como o desporto vinculado à
herança colonial britânica e o futebol à grande maioria negra. Após o fim do
apartheid, a vitória sul-africana no Mundial de râguebi de 1995, que organizou,
foi considerada uma forma de negociar o lugar deste jogo de brancos na nova
África do Sul. Cros argumenta, no entanto, que o fim de uma discriminação
formal, que afastava os jogadores não brancos dos campos e das bancadas,
permanece sob outras modalidades. Neste seu texto, o autor centra-se na análise
da distribuição dos jogadores pelas várias posições do jogo. Este exame
permite-lhe considerar que existe na África do Sul uma segregação posicional
que afasta os jogadores negros dos lugares considerados mais relevantes para a
decisão do jogo, remetendo-os a posições periféricas. Esta descoberta, baseada
numa completa análise das equipas que atuam em diversas ligas sul-africanas,
permite-lhe afirmar que as lógicas de segregação racial se continuam a
reproduzir. Perguntar-se-á, por quanto tempo resistirá esta inércia às mudanças
na sociedade sul-africana e aos ditames da competição desportiva?
O artigo da antropóloga Holly Collison resulta do trabalho de campo realizado
na Libéria. A análise é relevante para a compreensão da centralidade do futebol
nas práticas de lazer em inúmeras cidades africanas. O seu foco é a importância
da prática do futebol para a juventude masculina liberiana no contexto
posterior à guerra civil. O futebol, sugere a autora, é o meio mais evidente da
participação dos rapazes e homens numa sociedade urbana e massificada. Ao
acompanhar uma equipa de futebol jovem de um centro comunitário em Matadi, nos
subúrbios da capital Monróvia, a autora apercebeu-se das funções do jogo no
quadro da transição destes jovens para a vida adulta. Segundo Collison, o jogo
de futebol proporciona a criação de uma meta-sociedade e de uma comunidade de
jogo onde os jovens atletas encontram uma arena de negociação desse processo
de transição. Afastados de lugares de decisão e estatutariamente marginais,
estes jovens criam uma sociedade do campo de futebol onde definem papéis e
recompensas, onde podem, beneficiando das funções permitidas pelo jogo,
reconfigurar por alguns momentos o seu lugar social.
Este conjunto de textos evidencia a pluralidade de significados culturais,
sociais, económicos e políticos associados às práticas desportivas em África.
Indicia igualmente as possibilidades de investigação acerca das eventuais
implicações das práticas desportivas na recomposição social que, sob várias
formas, está em curso no continente africano.