Dimensão Sociopolítica do Município de Luanda Durante o Século XVII
Em 1666, a gente da governança da cidade de Luanda manobrou habilmente as
forças no terreno e conseguiu expulsar o governador nomeado por Lisboa, quando
iam passados apenas seis meses da sua chefia em Angola. Durante os três anos
seguintes, foi o Senado Municipal a assegurar o poder executivo de toda a
colónia e, divulgada a notícia de que não tardaria a desembarcar um novo
governador, esteve iminente um levantamento para manter o status quo.
Estes episódios parecem demonstrar um papel central da câmara de Luanda na vida
política angolana, o qual, seja assim ou não, está ainda hoje muito mal
estudado. Apesar de, nas últimas décadas, a historiografia sobre Angola ter
tido um crescimento notável, em quantidade e em qualidade, continuamos a saber
pouco acerca do município luandense, sobretudo no seu primeiro século de
existência. Nos trabalhos clássicos de Felner (1933) e de Ralph Delgado
(Delgado, 1973-1978), o município é quase ignorado e só o pioneirismo e a
persistência de Charles Boxer (Boxer, 1965) permitiram carrear informação e
trazer alguma luz sobre o assunto. Beatrix Heintze, a quem se devem estudos
fundamentais sobre o século XVII angolano (Heintze, 2007), orientou a sua
investigação para direcções em que a questão da criação e da manutenção do
concelho pelos colonizadores é mais que lateral[1]. Entretanto, dois trabalhos
académicos em que o tema era central (E. Silva, 1996 e Tomás, 2007),
independentemente da sua qualidade, ajudaram-nos menos do que gostaríamos a
avançar no conhecimento do município, sobretudo porque se centraram nos
aspectos administrativos e, a esse propósito, partiram do princípio que estava
intacto, em Angola, o modelo matricial que a legislação portuguesa criara para
a Europa, ainda na Idade Média, e alargara depois ao conjunto do império. No
entanto, não é aconselhável confundir a norma jurídica com a sua aplicação no
terreno. Se uma das características mais notáveis da instituição municipal foi,
de facto, a sua universalidade no espaço português, e Romero de Magalhães pôde
dizer que se tratava da instituição fundamental da administração portuguesa
(Magalhães, 1988, p. 25), a outra característica medular consistiu na sua
plasticidade, na capacidade de adaptação a circunstâncias muito diversas,
moldando-se, na componente social e no tipo de intervenção, às condições
específicas dos vários locais onde se domiciliou. Luanda não é excepção, como o
não foram os municípios brasileiros, Goa ou Macau (Bicalho, 1998 e 2001; Boxer,
1965; Fragoso & Sampaio, 2012).
Uma questão que reputamos essencial e que continua a ter, em nosso entender,
respostas muito insuficientes, tem a ver com a composição e a reprodução social
da elite que suportava a instituição concelhia em Luanda. A outra questão que
pretendemos desenvolver decorre da primeira e retrata o grupo em acção: quais
são as metas que mobilizavam o senado camarário e a gente da governança?
O município
A criação do município de Luanda é contemporânea da instalação do regime
colonial e está associada à necessidade de estabelecer, na retaguarda, uma base
estável de apoio à guerra de conquista. Não sabemos, porém, a data dessa
criação, desconhecemos a existência ou não de foral, ignora-se quando a
povoação de Luanda recebeu o estatuto de cidade. E também temos dúvidas, entre
muitas outras, sobre a própria composição do Senado Municipal.
Todas essas hesitações, nomeadamente sobre os momentos fundadores, devem-se ao
facto de a documentação camarária desse tempo ter desaparecido na quase
totalidade. Da anterior a 1641, pouca escapou à ocupação holandesa,
nomeadamente à fuga dos portugueses de Luanda para os presídios do interior,
após a tomada da cidade. Cadornega descreveu a forma como os holandeses
atacaram as lanchas que subiam o rio Bengo e, além de degolarem alguns doentes
que nelas iam, botaram ao rio os cartórios dos tabeliães e os livros e mais
papéis do Senado da Câmara, em que se perderam muitas notícias das cousas
destes reinos (Cadornega, 1972, I, p. 272).
Quanto à documentação posterior a 1641, essa soçobrou a outro tipo de maus
tratos e desapareceu vítima da humidade, das térmitas, das traças e da incúria
dos homens. Apesar de tudo, sobreviveram no Arquivo Histórico da Câmara
Municipal de Luanda (anexo à Biblioteca Municipal) uma dezena de códices e
alguns documentos avulsos correspondentes ao século XVII[2]. Infelizmente, a
maioria dessa documentação estava, no início da década de 1970, em muito mau
estado de conservação (Milheiros, 1969-1972) e a sua situação não melhorou
posteriormente (R. Silva, 1995, pp. 485-486). De qualquer forma, não nos foi
possível consultar essas fontes, a não ser as já publicadas, pelo que nos
baseamos, essencialmente, na documentação enviada para Lisboa, que, em alguns
casos, duplica a que ficou em Luanda, sobretudo a correspondência dos
governadores, dos oficiais de justiça e da própria câmara com o poder central,
e as respectivas respostas, documentação maioritariamente disponível no Arquivo
Histórico Ultramarino, em Lisboa, além de registos dispersos na Torre do Tombo,
na secção de reservados da Biblioteca Nacional e na Biblioteca da Ajuda.
A criação da instituição concelhia em Luanda pode ter coincidido com a fundação
da própria povoação, que remonta a 1575 ou 1576, quando Paulo Dias de Novais e
a sua comitiva de militares e gente de ofícios resolveram deixar a ilha de
Luanda, onde tinham chegado, e instalar-se no fronteiro morro-promontório de
São Paulo[3]. No mesmo ano, ou em data próxima, é natural que o governador
tenha querido deixar estabelecida alguma forma de governo na novíssima po-
voação, antes de se embrenhar terra dentro, na guerra de conquista.
Paulo Dias de Novais estava mandatado para isso na carta de doação (poderá per
si e seu ouvidor estar à eleição dos juízes e oficiais das vilas e povoações
que se fizerem na dita terra[4]) e, segundo uma fonte ligeiramente mais
tardia, tê-lo-á concretizado: passou da ilha Luanda à terra firme, fez uma
povoação, deu ordem de governo com vereadores e mais oficiais de justiça[5].
Como já foi dito, não temos certezas sobre a composição exacta da câmara, e
isso tanto se aplica aos primeiros tempos da fundação como às décadas
posteriores. O padrão normalmente evocado é o mais corrente: dois juízes
ordinários, três vereadores e um procurador do concelho. A verdade, porém, é
que nos elencos que conhecemos até 1665, com excepção de um único ano (1659),
apenas aparece referido um juiz e só depois daquela data se fixa a magistratura
dupla (ver Anexo_1). Aparentemente não estavam presentes no senado camarário
representantes dos mesteres, ao contrário do que era corrente em muitos
concelhos portugueses. No entanto, em 1611, são referidos, nessa qualidade, ao
lado do juiz e dos vereadores, Gaspar de Frias e Luís Dias (Felner, 1933, pp.
434-435).
Também não resulta claro, na estrutura da câmara, o papel do ouvidor-geral,
agente do poder régio com alçada de corregedor. Apesar de, pelas funções
oficiais do seu cargo, previstas na legislação geral e nos seus regimentos[6],
ser responsável pela preparação e fiscalização das eleições para o executivo
camarário, não se percebe que surja referido, em diferentes momentos (por
exemplo 1659, 1661 ou 1667) como Presidente da Câmara ou Presidente do
Senado da Câmara[7].
Quanto às eleições propriamente ditas, parece que não deixou de cumprir-se o
que era habitual nos outros concelhos. O ouvidor (assessorado ou não por
cidadãos eleitores) escolhia os nomes que eram introduzidos nos pelouros,
correspondentes a três anos, para evitar repetições de nomes em anos
sucessivos, e, a partir deles, realizava-se a eleição anual[8]. Embora não
conheçamos os elencos camarários de todos os anos (ver Anexo_1), a repetição de
nomes, em anos sucessivos, só raramente deve ter ocorrido. Ainda assim, casos
houve, se as informações disponíveis não nos enganam: João Marques de Almeida,
que tinha sido vereador em 1658, surge em 1659 como juiz ordinário e em 1661 de
novo como vereador; Francisco de Vilória Pinto terá sido vereador em 1625 e
1626; Gaspar de Almeida (talvez parente do primeiro) desempenhou essas funções
em 1665 e 1666; António de Araújo de Azevedo foi vereador em 1666 e juiz em
1667. Já quanto ao que as Ordenações estabeleciam de que não fossem eleitos
familiares próximos em anos sucessivos[9], isso foi quase sempre letra morta,
uma vez que eram estreitas as relações de parentesco no núcleo central dos
elegíveis (ver Anexo_2), o que parece ter sido aceite como inevitável pelos
representantes do poder central, nomeadamente pelos ouvidores.
Em 1662, a pedido dos oficiais da câmara e do povo da cidade, que argumentavam
com as suas fidelidade e obediência durante a ocupação dos holandeses, foram
atribuídos aos cidadãos de Luanda, os mesmos privilégios, honras e liberdades
concedidos em 1490 à cidade do Porto, que incluíam, nomeadamente, a imunidade
jurídica e o direito a andar armado de dia ou de noite[10]. O suficiente para
tornar ainda mais atractivo o desempenho dos cargos camarários, pois o facto de
pertencer à câmara dava aos seus oficiais um grau de diferenciação social que
equivalia a um primeiro escalão de nobreza.
Dois anos depois, de novo a pedido da câmara, houve outro reforço nos
privilégios aos moradores, tendo-lhes sido concedida prioridade no provimento
dos cargos de guerra e nos ofícios da Justiça e Fazenda, velha ambição, com a
condição de os interessados requererem esse provimento por intermédio dos seus
procuradores porque vindo pessoalmente não lhes serão admitidas petições[11].
Havia, no entanto, privilégios com maiores consequências políticas. Um deles
era o facto de o Senado Municipal se poder corresponder directamente com o
monarca, o que permitia aos camaristas fazer reivindicações e queixas, sem
intervenção dos governadores e de outros altos funcionários régios, dispondo
assim de um importante mecanismo de pressão, que lhe permitia, como noutros
municípios, falar invocando El-Rei (Magalhães, 1988, p. 26). Outra
prerrogativa importante, decorrente do facto de se tratar do órgão político
mais estável da colónia, era a de promover a escolha de um governador
provisório ou até de substituir interinamente o governador, por morte ou
ausência prolongada deste, uma vez que não era aplicado em Angola o sistema de
vias de sucessão utilizado, por exemplo, no Estado da Índia.
A câmara terá exercido essa prerrogativa por cinco vezes entre 1593 (data em
que o primeiro governador, D. Francisco de Almeida, abandonou Angola
incompatibilizado com os jesuítas e com os moradores mais privilegiados) e
1646, quando, já em Massangano, morreu o governador Francisco de Souto Maior
[12]. Conhecemos com algum pormenor a forma como se desenrolou o processo após
a morte do governador D. Manuel Pereira, em 15 de Abril de 1611. Logo no dia
seguinte, a câmara convocou para a igreja matriz, os oficiais do município, os
moradores (gente do governo) e os capitães da conquista presentes em
Luanda, tendo convidado o bispo da diocese para presidir à reunião. Através de
voto secreto, foi escolhido (por 45 votos dos 77 possíveis) o capitão-mor Bento
Banha Cardoso[13].
Em 1667, numa situação mais complexa, de que trataremos mais adiante, o próprio
executivo camarário assumiu a chefia do governo, o que era uma novidade em
Angola, embora não noutros espaços atlânticos, como Cabo Verde ou São Tomé
(Caldeira, 2012).
No campo eminentemente político como no económico-financeiro, como veremos mais
tarde, o senado luandense revelava uma vocação de autonomia, uma tendência
para o auto-governo, que Fernanda Bicalho (1998) também encontrou, durante o
século XVII, e só no século XVII, noutras câmaras municipais ultramarinas.
A composição social
O padre capuchinho Antonio Zucchelli da Gradisca chegou a Luanda, vindo da
Baía, em Março de 1698. Na descrição que fez da cidade em que desembarcara,
calculou em 50 mil habitantes a população total, dos quais 40 mil seriam
africanos, seis mil mestiços e quatro mil brancos (Zucchelli, 1702, p. 102).
São números claramente inflacionados. Mais ou menos pela mesma data, Cadornega,
melhor conhecedor do terreno, estimava em 20 mil o número de negros, metade
portanto (1972, III, p. 28). A hipótese (Caldeira, 2013, p. 75) de que seria
possível aproveitar, das observações de Zucchelli, pelo menos a proporção (para
cada dez negros, um branco e um ou dois mestiços) é provável que continue a
sobrestimar o número de mestiços e de brancos.
Uma relação de 1620 dizia haver em Luanda cerca de 400 habitantes brancos[14],
enquanto que, em 1665, o procurador da câmara de Luanda apontava para um número
mais preciso: 132[15]. Será que em cerca de cinquenta anos se tinha dado uma
quebra tão acentuada da população de origem europeia? É certo que, pelo meio,
tinha havido os sete difíceis anos da ocupação holandesa, mas, apesar disso,
não deve ser de quebra que se trata. De facto, o procurador não fala de
habitantes mas sim de moradores, isto é dos chefes de família casados na
cidade, o que interessa particularmente para o nosso trabalho pois eles são,
grosso modo, a gente da governança. Aliás, o número apresentado não se afasta
muito dos cem casais de cidadões principais e moradores antigos de que
Cadornega fala, cerca de 1680 (1972, III, p. 28).
Outros dados apontam para valores da mesma ordem. Em 1611, na reunião para
eleger um governador interino e em que participaram os moradores do governo e
os oficiais da conquista presentes nesse momento em Luanda, embora faltassem
algumas pessoas, seguramente menos de trinta[16], o total de votantes foi de 77
(Felner, 1933, p. 435). E, em 1680, o número de irmãos da Casa da Misericórdia,
que deve ser quase sobreponível ao da gente da governança, era próximo dos 70
(Cadornega, 1972, III, p. 21).
Não devemos andar longe da realidade se dissermos que, ao longo do século XVII,
o número de moradores, eleitores e elegíveis para o executivo camarário,
oscilou entre as sete dezenas e a centena de chefes de família (todos homens,
claro).
Numericamente reduzida, essa elite social era, globalmente, um produto da
conquista. Em 1633, o governador D. Manuel Pereira Coutinho lembrava ao rei que
a mor parte dos moradores desta terra têm sido capitães[17]. Eram, aliás, os
feitos militares na guerra do sertão e, complementarmente, na resistência à
ocupação holandesa, que funcionavam como a fórmula mais usada de legitimação da
sua posição social.
Num documento de 1653, os moradores retomam esse discurso identitário, falando
de si próprios como estes pobres vassalos, relíquias dos muitos que, com tanta
constância e valor, depois da fazenda, perderam a vida ao serviço de V.
Majestade[18].
Cadornega também recorda o passado militar dos moradores de Luanda,
caracterizando-os como os capitães reformados, soldados velhos e
conquistadores ( ) que nesse tempo [cerca de 1660] reputavam por moradores por
serem casados (1972, II, p. 148). Por ser casado não se deve entender apenas
a sua situação matrimonial mas o ser casado com, isto é, era preciso ter
casado no grupo dos moradores para se tornar um deles. Não é por acaso que essa
era praticamente a única exigência para se pertencer à gente da governança,
sendo o equivalente aos homens bons dos concelhos portugueses, mesmo que,
nestes, talvez não fossem reconhecidos como tais.
Com Paulo Dias de Novais, foi para Angola um número muito limitado de casais.
Posteriormente, a imensa maioria dos recém-chegados vinha na comitiva dos
governadores: familiares próximos, alguns criados, soldados e degredados, sendo
quase sempre estes últimos os que perfaziam o conjunto mais numeroso. Com
excepção de algumas, relativamente raras, degredadas, o resto eram homens
solteiros, quase todos jovens. A maioria tombava, ao fim de pouco tempo, vítima
das doenças tropicais e da violência da guerra que se travava no sertão. Os
sobreviventes amancebavam-se, quase sem excepção, com mulheres negras com quem,
no entanto, raramente casavam. Para o sacramento religioso, procuravam mulheres
europeias ou, pelo menos, filhas de europeus.
A coroa tentou, tanto quanto podia, responder a essas urgências. Provenientes
de instituições assistenciais de Lisboa e destinadas a casar com pessoas
beneméritas, foram enviadas para Luanda, entre 1594 e 1657, pelo menos 57
mulheres[19]. Com o governador João Furtado de Mendonça (1594-1602) tinham ido
doze convertidas da Casa Pia, que terão sido, se esquecermos as que
acompanharam Paulo Dias de Novais, as primeiras mulheres brancas que de
Portugal passaram a este reino [de Angola] e todas casaram no seu governo[20].
Não é arriscado dizer que algumas destas mulheres estiveram na origem da
maioria das casas de moradores de Luanda. Nas gerações seguintes, essas
famílias consolidaram-se e procuraram casar os filhos entre si, no âmbito de
uma política de alianças familiares com que tentavam, a todo o custo, que os
seus descendentes continuassem a ser brancos como eles. Uma vez que o domínio
do colonizador se identificava pela cor da pele, o escurecimento de filhos ou
netos, aproximando esses indivíduos do fenótipo demograficamente maioritário,
era visto como uma descida irreversível na escala social.
Foi assim que se formou, progressivamente, o grupo de luso-africanos[21], um
grupo relativamente fechado, com um acentuado grau de endogamia (um exemplo são
as relações familiares de Tomás Borges de Madureira, Anexo_2). Mas esta elite
também tinha capacidade de renovação interna. Por necessidade de diversificação
de alianças e como forma de branqueamento das linhagens, o grupo mostrava
capacidade de abertura a recém-chegados, sobretudo aos provenientes de Portugal
[22]. O governador Gonçalo de Alcáçova e Menezes (1691-1694), em carta para o
rei, conta o caso de Domingos Luís [de Sá?] que teria casado sete filhas com
sete homens desse Reino, dando origem a importantes famílias da cidade, que
se conservam com algum cuidado[23].
Essa estratégia de integração podia ter contornos inesperados, estendendo-se a
estrangeiros e a cristãos-novos, cuja elegibilidade seria impensável noutros
municípios[24]. O número de moradores espanhóis que desempenharam cargos no
executivo camarário foi elevado e pode ser explicado pela união dinástica entre
Portugal e Espanha (1580-1640). Entre eles, há figuras que tiveram um papel
importante na sociedade luandense e cuja herança se prolongou através de
alianças familiares, como foi o caso de João de Vilória Pinto ou de Roque de
São Miguel (ver Anexo_2). Mas surgem também, nos elencos camarários,
estrangeiros de outras proveniências, como o flamengo Tomás Figueira Bultão ou
o alemão Baltasar Vandunen[25]. Uma lei de 1655 proibira os estrangeiros de
morarem nas conquistas[26], mas, em 1660, ainda o governador de Angola insistia
para que não se consentissem na colónia estrangeiros de nenhuma nação[27], o
que significava que por lá continuavam, e Baltasar Vandunen e Tomás Bultão
foram eleitos vereadores, respectivamente, em 1663 e 1669 (ver Anexo_1).
A situação era semelhante com os cristãos-novos. Apesar de não conhecermos
todos os elencos camarários e de nem sempre ser fácil identificar quem é ou não
cristão-novo, não temos dúvidas, por exemplo, sobre ser essa a condição de Lopo
da Fonseca Henriques, de António de Oliveira Cadornega ou de António Henriques
da Fonseca (ver, em Anexo_1, as datas em que passaram pela câmara de Luanda). O
curioso é que são os oficiais camarários quem pede, em 1655, que se observe uma
provisão de Filipe III que ordenava que nenhum homem de nação servisse cargo
algum de república ou justiça[28]. No entanto, tomar à letra reivindicações
deste tipo é ignorar que muitas vezes se trata de questões pontuais, destinadas
a afastar concorrentes ou a vingar um conflito. Em 1664, em carta para o rei D.
Afonso VI, o tenente-general do reino de Angola, Francisco Marinho de Eça,
chegava a acusar os oficiais da Câmara de Luanda de serem todos gente de
nação[29].
Qual a base económica da oligarquia de moradores?
Primeiro que tudo, todos, sem excepção, estavam envolvidos no tráfico de
escravos, quer no tráfico interno (trazendo africanos escravizados do interior
para o litoral por meio dos seus escravos pumbeiros[30] ou dos escravos de
guerra) quer no negócio de exportação (comprando e transportando para as
Américas levas de cativos), este último, porém, só acessível aos mais abonados
[31].
Além da comercialização de escravizados, raro era o morador que não possuía um
grande plantel de cativos, sendo dono não só de escravos pumbeiros mas também
de um grande número de outros escravizados, incluindo escravos de ganho. Os
moradores constituíam, no entanto, na sua generalidade, um grupo relativamente
descapitalizado, sempre com dívidas aos comerciantes de mar em fora, de quem
dependiam para a venda dos escravos e importação das mercadorias com que os
compravam.
Um elemento de diferenciação e prestígio (e importante estímulo à fixação) era
o facto de serem os moradores (sobretudo os de assentamento mais antigo) o
único grupo possuidor de propriedades fundiárias, recebidas quase todas em
sesmaria pelos primeiros conquistadores nos férteis vales dos rios Bengo, Dande
e Kuanza (Heintze, 1988, II, pp. 364-376) e transmitidas depois
hereditariamente. Foi na região do Bengo que essas concessões foram melhor
aproveitadas, mas nunca se instalou aí um sistema de plantação para a produção
de bens agrícolas de exportação mas sim um regime de policultura de
mantimentos, assente no milho, na mandioca e nas plantas hortícolas,
destinados sobretudo à alimentação dos escravos, quer os residentes quer os
embarcados para fora[32].
Na sua generalidade, os moradores não desdenhavam, bem pelo contrário, ocupar,
como proprietários ou, à falta disso, como serventuários, algum cargo na
justiça ou na fazenda, que lhes assegurasse, a si e eventualmente aos seus
descendentes, um rendimento fixo. O tentar garantir, aos moradores, a
prioridade na nomeação nesses cargos será, aliás, como veremos noutro momento
deste trabalho, um dos cavalos de batalha dos executivos camarários. Com
maiores probabilidades de sucesso, podiam também candidatar-se ao posto de
capitão-mor de uma das companhias pagas ou de uma fortaleza, o que não
dispensava, no entanto, a nomeação régia como, aliás, nos cargos civis de
provimento definitivo.
Relações com o poder central
As relações da câmara com as autoridades de Lisboa não foram, de uma forma
geral, muito conturbadas. Compreende-se porquê. Para os moradores, ter um
diálogo amigável com a corte permitia-lhes ganhar espaço de manobra e não ficar
à mercê das arbitrariedades dos governadores e de outros altos funcionários de
nomeação régia. Para a corte, não só lhe agradava o equilíbrio que a existência
de dois poderes em tensão proporcionava, como não queria, de forma nenhuma, uma
situação de ruptura que pusesse em risco o papel, verdadeiramente estratégico,
que Luanda e Angola desempenhavam no Atlântico Sul. E os governadores podiam
substituir-se com facilidade, os moradores não.
Ao longo do século XVII, a câmara de Luanda travou com o poder central várias
batalhas, de que saiu, quase sempre, vencedora ou meio-vencedora. Destacaremos
a resistência a novos tributos, a participação dos moradores no arrendamento do
contrato dos escravos, a introdução da moeda de cobre em substituição da moeda
de palha e a luta pelo fim da proibição de entrada em Angola da aguardente
brasileira (geribita). Desenvolveremos apenas os dois primeiros aspectos, por
nos parecerem mais significativos da acção da câmara e das expectativas da sua
componente social.
A questão financeira
A câmara e os moradores de Luanda reagiram sempre com muita veemência a
qualquer aumento da carga tributária. Trata-se, claro, de uma atitude colectiva
comum a todos os tempos e latitudes, mas que era ampliada, na capital angolana,
pela maior autonomia e maior capacidade de afirmação da instituição municipal,
mercê do carácter periférico do território, da presença da guerra (ou da sua
ameaça) durante a maior parte do século e da ausência quase completa da
componente nobiliárquica.
Em 1626, o governador Fernão de Sousa (1624-1630) procurou, de acordo com as
ordens recebidas de Lisboa, estabelecer um imposto sobre os vinhos entrados na
cidade de Luanda, a exemplo do que já tinha sido feito em Pernambuco, com o fim
de fortificar a cidade para defesa contra os holandeses. Reuniram-se nas casas
da câmara, todos os da governança e armadores e, conta o governador, que,
apesar do fim, aparentemente consensual, a que se destinava o rendimento do
tributo, não deixou de haver resistências e só com muita diplomacia e uma vez
declarado o carácter temporário da medida, conseguiu Fernão de Sousa que fosse
aceite pelos presentes na reunião, tendo ficado acordado o pagamento, em moeda
da terra, de uma macuta (dois mil réis em panos) por cada pipa de vinho[33].
Meia dúzia de anos depois, a reacção foi mais radical a propósito do imposto
régio chamado das meias anatas, que incidia sobre o provimento dos ofícios
(incluindo os da milícia), altura em que o beneficiado devia pagar metade do
rendimento anual do cargo ou da sua avaliação. Criado pelo Conde-duque de
Olivares, em 1631, e introduzido em Portugal por alvará de 12 de Setembro desse
ano, coube ao governador Manuel Pereira Coutinho (1630-1635) dar-lhe execução
em Angola. Caiu o Carmo e a Trindade. Os oficiais da câmara promoveram uma
reunião dos moradores e quando o ouvidor apresentou formalmente o conteúdo do
alvará, não só a recusa foi generalizada, como houve mesmo a ameaça de um
motim, de tal forma que, dizia o governador em carta para Filipe III, ele e o
ouvidor desistiram da execução por não poder menos ser e se não perder este
Reino como esteve arriscado a suceder[34].
Em 1633, nova ordem régia para outra imposição. Desta vez, mandava-se que fosse
lançada pelo município uma espécie de derrama sobre o povo da cidade, de modo
a atingir uma determinada importância, que não conhecemos, destinada, de novo,
às fortificações da mesma cidade (o perigo neerlandês adensava-se). Feita
reunião alargada na câmara, depois das reticências habituais, concordaram em
disponibilizar um donativo de quarenta mil cruzados (na moeda corrente na
terra), o que, tanto quanto se pode deduzir, era muito menos do que se lhes
exigira.
Sentindo necessidade de se justificar, por juntarem, a uma recusa total à
tributação, outra parcial, os oficiais da câmara pediram ao superior da
Companhia de Jesus em Angola, Gonçalo de Sousa, que fosse ele a escrever ao
monarca. A escolha não foi por acaso. Salvo casos pontuais de dissensão, os
jesuítas estiveram sempre ao lado dos oficiais da câmara, uma vez que os seus
interesses económicos coincidiam perfeitamente com os dos moradores (Caldeira,
2007). Os argumentos desenvolvidos pelo superior são os esperados: o povo
achava-se cansado e pobre; o trato de escravos estava muito enfraquecido; já
tinham feito grandes gastos para o serviço régio, nas fortificações e no apoio
às naus da Índia; já existiam em Luanda duas imposições: uma nos vinhos, outra
nos escravos; eram poucos os homens que possuíam alguma coisa de seu (a maioria
eram soldados e degredados) e mesmo esses poucos estavam endividados[35].
Após a expulsão dos holandeses de Angola, o governador e capitão general
Salvador Correia de Sá introduziu uma imposição de 3$000 (o direito novo) a
somar aos 4$000 (o direito velho) que já se pagavam sobre cada escravo
vendido para o Brasil. Procurava-se, dessa forma, obter meios financeiros para
pagar o empréstimo concedido pelos moradores do Rio de Janeiro para as despesas
de reconquista de Angola e também para sustentar os militares que ficavam a
guarnecer a praça de Luanda (Esteves, 1991, pp. 84-85). Porém, os moradores de
Luanda não ficaram prejudicados. Por um lado, enquanto o direito velho era
arrendado a contratadores, o novo direito era cobrado e administrado pela
própria câmara. Por outro lado, camaristas, povo e governador chegaram, em 23
de Maio de 1650, a um acerto, pelo qual o preço fixo pago pelos exportadores,
por cada escravo, passava de 22$000 para 25$000, o que fazia com que o novo
tributo não afectasse os vendedores e acabasse por ser transferido para os
compradores finais.
Conciliar os interesses entre a Fazenda Real e os moradores de Luanda foi mais
difícil quando foi lançada a imposição de carácter extraordinário conhecida
como donativo para a paz com a Holanda e dote [ou jóia] da rainha da Grã-
Bretanha D. Catarina de Bragança. Tendo em conta as elevadas verbas implicadas
e considerando a coroa que o reforço da aliança com a Inglaterra e a paz com os
neerlandeses beneficiavam sobretudo as conquistas, o contributo, tido como
voluntário, foi também alargado aos territórios ultramarinos.
Quando, em 1662, o governador André Vidal de Negreiros (1661-1666) comunicou à
câmara de Luanda o teor do encargo, a reacção foi de clara recusa, mas, para
ganharem tempo, os camaristas enviaram um procurador a Lisboa, expor as
dificuldades de cabedal em que viviam[36].
Uma provisão régia de 1663 tentou a conciliação, estabelecendo que o direito
novo sobre os escravos (administrado pela câmara), além da obrigação de
sustento de mil infantes, incluísse também o contributo de Luanda para o
donativo, no valor de 22.500 cruzados[37]. Não foi aceite. Em 1664, tanto o
governador como o feitor da Fazenda Real avisavam Lisboa que continuava a não
haver tributo, porque os oficiais da câmara tinham feito requerimento a
contestar o propósito de o donativo sair dos direitos novos[38].
Em Abril de 1665, a câmara tinha já três procuradores em Lisboa[39] e
continuava a defender a administração do direito novo livre e sem nenhum
empenho[40].
Quando, no ano seguinte, o governador Tristão da Cunha (1666-1667) tentou impor
o pagamento do donativo, por meio de uma finta sobre os moradores, esse seria
um dos factores que esteve na origem da insurreição que levou à expulsão do
governante, como veremos mais adiante.
Só durante o governo directo da câmara (1667-1669), numa situação politicamente
muito complicada para os camaristas, os moradores aceitaram começar a pagar uma
parte do contributo extraordinário a que se tinham oposto durante mais de meia
década.
O contrato dos escravos
No século XVII, a exportação de mão-de-obra escrava era a principal actividade
económica de Luanda. O mais importante negócio proporcionado pela coroa era,
por sua vez, o arrendamento da cobrança dos direitos reais (chamados, depois, o
direito velho), arrendamento conhecido, por razões óbvias, como contrato dos
escravos.
Os contratadores não se limitavam, porém, a cobrar direitos alfandegários,
eram, eles próprios, mercê dos privilégios de que dispunham, os principais
exportadores de escravizados, além de importadores de muitos dos artigos
europeus, asiáticos ou brasileiros essenciais para o tráfico interno.
Uma das lutas da câmara, junto das autoridades de Lisboa, vai ser no sentido de
o contrato ser arrematado em Luanda e arrendado apenas a residentes na cidade.
Para o conjunto dos moradores havia todas as vantagens nessa mudança: quase sem
excepção dispunham de escravos para vender e esperavam facilidades (legais ou
não) se estivessem mais próximos daqueles que controlavam a exportação. Da
mesma forma, muitos deles eram produtores de mantimentos que queriam vender aos
navios negreiros e, finalmente, todos procuravam acesso mais fácil às
mercadorias vindas do exterior, para consumo ou para os negócios no sertão.
Imediatamente a seguir à expulsão dos holandeses de Angola, Salvador Correia de
Sá arrematou, pela primeira vez, o contrato dos direitos dos escravos, para o
período de 1649-1651, a um morador em Luanda, cristão-novo com muitos anos de
Angola, onde casara e onde era, em 1650, vereador da câmara: Lopo da Fonseca
Henriques[41]. E, apesar das reservas de Lisboa, o governador Rodrigo de
Miranda Henriques repetiu a proeza no triénio seguinte (1652-1654), entregando
o contrato a uma sociedade de três estrangeiros moradores em Luanda: o flamengo
Tomás Figueira Bultão, o catalão Diogo Sanches Caroço (ou Charroso) e o alemão
Baltasar Vandunen[42].
No sexénio seguinte (1655-1660), sob protesto da câmara de Luanda, que alegava
que procuradores dos moradores tinham feito lanços maiores, o contrato foi
arrematado em Lisboa, aparentemente por mercadores da metrópole, embora fosse
público que o próprio governador de Angola (Luís Martins Chichorro) metera
capital no negócio[43].
Depois de 1661 e até ao fim do século, todos os contratos foram arrematados a
residentes em Angola, a maioria deles cristãos-novos. Embora sejam moradores de
Luanda quem aparece à frente do contrato (resta saber se como investidores
efectivos ou apenas como testas-de-ferro), a câmara nunca conseguiu vencimento
para a sua pretensão de que o próprio acto de arrematação do contrato tivesse
lugar na capital angolana. Obteve, porém, uma meia-vitória: por carta régia de
13 de Outubro de 1660, deu-se aos moradores de Angola a possibilidade de
fazerem antecipadamente os seus lanços no contrato, que deveriam encaminhar
para o Conselho da Fazenda (depois para o Conselho Ultramarino) através dos
seus procuradores. Como, pelo menos num caso[44], houve a suspeita de que
lanços mais elevados não teriam sido entregues a tempo, o Conselho Ultramarino
propôs em 1663, e tornou-se depois prática comum, pôr, em Luanda, o novo
contrato em pregão, mediante a afixação de editais, dois anos antes de acabar o
anterior, em vez de um só ano, como era habitual, para haver tempo de chegarem
a Lisboa as propostas dos lançadores de Angola. Simultaneamente, aceitava-se
que as fianças respectivas se pudessem tomar na colónia[45], passo importante
que permitia assegurar o acesso ao negócio de um número mais alargado de
moradores.
Conflitos com os governadores
As relações da câmara e dos moradores com os governadores de Angola foram
normalmente tensas. Por várias razões. Todos, ou quase todos, os governadores
eram militares de carreira, a maior parte deles provenientes de famílias
fidalgas ou mesmo da primeira nobreza de corte (Cunha & Monteiro, 2005, p.
246), com um corpo de valores que tinham pouco a ver com o dos soldados-
traficantes de escravos que os moradores eram maioritariamente. À dominação
hierarquizada que os primeiros procuravam impor, contrapunham os camaristas o
desejo de autonomia da instituição que representavam e o que julgavam ser a sua
superioridade em experiência no terreno. Havia, além disso, outro aspecto: os
moradores estavam há muito afastados da metrópole ou nunca a tinham conhecido e
o governador era visto como um estranho que chegava apenas para os perturbar na
sua forma de ganhar a vida.
Jurisdição e favorecimentos
Na competição que se desenvolvia entre os governadores e a câmara, cada uma das
partes tentava enfraquecer a outra, apropriando-se das respectivas
competências.
Num dos momentos mais conflituosos desse relacionamento, o governador e capitão
geral Luís Chichorro (1654-1658), sentindo-se diminuído nas suas prerrogativas
de chefe militar, queixava-se ao rei que parecem pouco lembrados os oficiais
da Câmara, que me querem governar sendo sua obrigação obedecer.
Correspondendo-se também com o monarca, os camaristas ripostavam, recordando os
rigores que tinham padecido e, reiterando a sua forte ligação a Angola,
denunciavam: Somos descompostos e molestados doendo-nos da terra em que somos
moradores como vassalos de Sua Majestade que bem pouco sentem os extravagantes
de três anos[46]. Os extravagantes eram, obviamente, os governadores, tidos
como estranhos, vindos de outro mundo, pelo limitado tempo de um triénio.
Tentando diminuir-lhes a margem de autonomia, alguns governadores intrometiam-
se na eleição dos executivos camarários. O caso mais flagrante terá sido o do
governador João Correia de Sousa (1621-1623). Manipulava as eleições da câmara,
de modo a escolher oficiais da sua feição, o que não impediu que terminasse em
conflito aberto com eles, ameaçando mesmo mandar executar alguns vereadores
[47].
Em 1684, as queixas da câmara de Luanda contra os governadores chegaram ao
Conselho Ultramarino. Pretendiam os camaristas, através da petição de um seu
procurador enviado a Lisboa, que se separassem com clareza as competências que
pertenciam à autarquia e as que deviam caber ao governo da colónia, devendo
proibir-se, por provisão régia, que o governador se intrometesse em impedir a
execução das determinações da Câmara.
O Conselho Ultramarino concordou com os moradores, desde que se pudesse
conservar a jurisdição da Câmara sem diminuir a autoridade do governo. E o
conselheiro Bento Teixeira de Saldanha, que tinha estado oito anos em Angola,
concretizou:
Têm ido àquele Reino [de Angola] muitos governadores que souberam
conservar a soberania do governo sem ofender a jurisdição da Câmara e
foram outros tão miúdos que até no exercício da almotaçaria se
intrometiam. E neste sentido se queixam os suplicantes e se lhe deve
deferir. Sem dependência dos governadores use a Câmara da jurisdição
que lhe toca ( ) porque se se confundirem as jurisdições dos ofícios
que o Príncipe tem repartidas, logo se hão-de seguir queixas e
desacertos.
Na mesma sessão do Conselho Ultramarino, discutiu-se outra questão que já era,
há décadas, um dos pomos da discórdia com os governadores e que o procurador da
câmara veio trazer a Lisboa, não esquecendo o argumento legitimador:
Quando vagam naquele Reino [de Angola] ofícios da justiça e fazenda,
os provêem os governadores em criados seus [ ] que, de mais de não
serem muitas vezes capazes para os seruir, obram neles como querem
( ); V. Majestade se sirva mandar proibir semelhantes provimentos, e
que os ditos ofícios se provejam nos moradores beneméritos, que há na
cidade de São Paulo [de Luanda], pelo bem que têm servido a V.
Magestade nas guerras daquele Reino[48].
O Conselho Ultramarino considerou o requerimento muito conveniente ao serviço
de Deus e de S. Majestade e será neste contexto que o monarca, por provisão de
22 de Setembro de 1664, já atrás referida, concedeu aos moradores prioridade
no provimento dos cargos de guerra e nos ofícios da Justiça e Fazenda[49]. A
partir da administração local, abria-se, assim, o caminho para o acesso aos
cargos da administração central.
A guerra do sertão
Outro dos motivos da tensão entre a câmara e os governadores tinha a ver com a
declaração de guerra aos reinos africanos do interior.
Muitos governadores, uma vez tomada posse, consideravam prioritárias
intervenções militares de grande dimensão. Por questões de honra (esperando
obter aí sucessos e vantagens para a sua carreira) mas também de proveito
imediato, de que a venda dos prisioneiros de guerra como escravos não era a
menor parte (Heintze, 2007, pp. 491-492). Não que a câmara se opusesse a
qualquer situação de guerra: não foram raros os casos em que esteve de acordo
com essas intervenções e outras em que lhe pertenceu mesmo a iniciativa. A sua
preocupação era a da oportunidade, defendendo apenas a guerra conveniente.
O que os camaristas receavam era que os governadores, por desconhecimento das
condições no terreno ou por ambição pessoal, empreendessem acções militares
lesivas dos interesses dos moradores, fosse por lhes prejudicarem o negócio do
tráfico de escravos, fosse por lhes exigirem um esforço em que não estavam
dispostos a participar.
Por isso as suas exigências iam em dois sentidos: que as guerras, salvo
situações excepcionais, fossem defensivas e não se iniciassem sem primeiro ser
ouvida uma junta em que estivesse presente o senado camarário; que os moradores
não fossem obrigados a participar nas campanhas no sertão, que deviam ser
deixadas à tropa paga.
Estas exigências, formuladas à coroa pelo menos desde o início do século XVII,
tiveram os seus frutos. No regimento passado a D. Manuel de Pereira Forjaz, em
26 de Março de 1607, foi tratada, pela primeira vez, a questão das guerras
injustificadas, considerando-se que alguns governadores, contra justiça e
razão, por seus [interesses] particulares, obrigam os mercadores e moradores e
oficiais mecânicos da terra a ir às guerras pela terra dentro e estabelecendo-
se que os sobreditos só fossem obrigados a participar na defesa da cidade[50].
Isso não impediu que o governador João Correia de Sousa (1621-1623) fizesse,
por iniciativa própria, guerra ao rei do Congo, pondo a ferro e fogo o sobado
de Cassange, perto da cidade, apesar da oposição da câmara que considerava que
tapando-se aquela porta pereceriam os moradores da Luanda, visto o reino de
Angola estar já isolado com guerras e não haver as antigas feiras de escravos,
que eram as que sustentavam aquela conquista[51].
Talvez por isso, na instrução secreta do rei a Fernão de Sousa, datada de 19 de
Março de 1624, o monarca volta a referir alguns governadores de Angola que
introduziram fazer guerra aos negros por respeitos próprios e manda que não se
empreenda guerra naquele reino se não for defensiva ou em caso de levantamento
que se não possa remediar por outros meios. E, no regimento propriamente dito
(20 de Março de 1624), recomenda ao governador que, antes de fazer guerra,
reúna uma junta com o bispo, o ouvidor, o provedor da Fazenda e outros
ministros (Heintze, 1985, I, pp. 137 e 151). E com esta ou com uma formulação
aproximada, os regimentos de todos os governadores seguintes passaram a conter
idênticas prescrições. O seu cumprimento é que deixou por vezes a desejar.
Mesmo com Salvador Correia de Sá, com quem é suposto terem sido boas as
relações com a autarquia, não foi consensual a questão da guerra. Quando, em
Maio de 1650, o governador reuniu uma junta para decidir da oportunidade de
fazer guerra no sertão, os representantes camarários opuseram-se, com o
argumento de que a iniciativa apenas era legítima contra algum grande inimigo
que maquine guerra contra nós. E desfiaram um rol de inconveniências que tinha
sobretudo a ver com os prejuízos que uma ofensiva armada acarretava ao normal
tráfico de escravos: Em saindo a guerra fora, se tapam os caminhos do reino
[de Angola] e fica tudo fechado ao comércio sem haver parte certa nem segura
[52].
Essa posição anti-belicista não tardaria a inverter-se. A partir de 1656, será
a câmara a propor ao governador Luís Chichorro (1654-1658) que fizesse guerra
ao rei do Congo por, alegadamente, promover a fuga de escravos e acolhê-los no
seu reino, recusando-se a devolvê-los. Desta vez, é o governador que não quer
avançar por se tratar de um reino cristão e ter instruções régias para não
promover guerra ofensiva[53].
Finalmente, o governador decidiu-se por uma grande investida militar na
província da Quissama, com que os moradores concordaram e onde aceitaram mesmo
participar. No entanto as operações não correram como se esperava e a campanha
ameaçava prolongar-se. Nessa altura levantou-se um conflito grave com
Chichorro, ao insistirem os moradores que recolhesse à cidade, argumentando com
uma informação, provavelmente inventada, de ataque iminente de uma armada
holandesa e da ilegalidade com que teriam sido mobilizados para a guerra.
Provavelmente o governador, que acabou por retirar sem glória, tinha razão ao
dizer que os moradores de mim se queixam que os obrigo para aquilo que eles
mesmo requerem[54]. Nitidamente não coincidiam as duas concepções de guerra
que, no caso dos moradores, visavam vantagens comerciais, que se alteravam
facilmente com a conjuntura.
Em Setembro de 1658, com a situação militar a agravar-se, prejudicando o
comércio, é a câmara que volta a insistir na necessidade de passar à ofensiva.
O governador João Fernandes Vieira, chegado havia pouco a Luanda, reuniu a
junta de guerra com os oficiais da câmara e outras autoridades da colónia
para decidir se se devia atacar o reino do Congo, onde havia muitos sobas
rebelados, e, levantada a questão, todos uniformemente [votaram] para que se
torne [a] recuperar a reputação das armas[55], o que foi reforçado em Março de
1659, em nova junta em que se destacou, mais uma vez, o apoio incondicional da
câmara[56].
No entanto, ao mesmo tempo que faziam rufar os tambores de guerra, os moradores
continuavam a esquivar-se a ser envolvidos na participação directa e, pela
provisão de 23 de Outubro de 1660, viram reiterada, a seu pedido, a isenção de
irem às guerras do sertão, salvo as defensivas, pois andavam pelo interior
constrangidos pelos governadores a lá permanecer sendo a maioria casados e
homens de negócio (citado por Couto, 1972, pp. 265-266).
Esta posição dúplice dos moradores seria, neste campo, um dos factores
principais do conflito com os governadores, que, como dissemos, consideravam,
também, ser uma intromissão inadmissível, na sua área de competência, a
pretensão da câmara de decidir quais os alvos a atingir e quando se deviam
iniciar ou concluir as campanhas militares consideradas necessárias.
O conflito aberto
Tristão da Cunha, fidalgo da Casa Real, tinha sido, antes da sua nomeação como
governador de Angola em 1666, capitão de cavalos e mestre de campo de um terço
de Infantaria nas campanhas no Alentejo da guerra da Restauração, mas não
possuía qualquer experiência de liderança nos trópicos. Talvez isso explique as
dificuldades que iria ter em cumprir o seu mandato.
Um dos problemas que herdou do seu sucessor foi o atraso nos pagamentos à
tropa. Os soldados pagos (a chamada infantaria) não recebiam soldo há dois
anos, tinham os fardamentos em farrapos, muitos andavam descalços e só a
alimentação lhes era garantida através da distribuição mensal de farinha e de
alguns libongos (a moeda de palha).
Não vai ser difícil às forças interessadas no confronto com o governador
aproveitar o descontentamento dos militares e manobrá-los através de algumas
promessas. Foi aí que os camaristas desempenharam o principal papel, embora
fingindo manter-se fiéis a Tristão da Cunha. Quase todos os testemunhos
denunciam essa autoria, incluindo os do ofendido principal, que culpou do que
lhe sucedeu os oficiais da Câmara e algumas pessoas particulares e principais
da terra[57]. E um dos membros do Conselho Ultramarino sintetizou assim: O
segredo está descoberto de ser este motim fabricado e tratado pelos oficiais da
Câmara e seus aliados que fomentaram o incêndio valendo-se do motim dos
soldados. [...] Lançaram os oficiais a pedra e esconderam a mão[58].
No dia 29 de Janeiro de 1667, a maior parte da infantaria concentrou-se no
reduto de Santa Cruz de Encombota e, a partir daí, passou a fazer as suas
exigências.
O governador parece ter sido apanhado de surpresa. Quando quis reagir não tinha
manifestamente meios para o fazer nem alternativa à solução que lhe foi
proposta: o embarque imediato para o Brasil. Mais, as ordens iniciais que
vinham, aparentemente, dos revoltosos e que chegaram a ser cumpridas, mandavam
embarcar com ele o tenente-general, o sargento-mor, o ouvidor-geral, o provedor
da fazenda, o feitor régio e outros funcionários. Tratava-se de uma espécie de
declaração de independência, uma vez que eram expulsos todos os representantes
directos da coroa. Só devido à intervenção dos jesuítas (embora também
envolvidos na intentona) houve um recuo e todos, com excepção do governador e
dos seus criados, foram autorizados a desembarcar.
Ainda mal a nau que levava Tristão da Cunha tinha deixado a baía de Luanda,
reuniram no Colégio da Companhia de Jesus todos os ministros dos conventos e
pessoas principais e a Câmara da cidade[59]. O resultado foi mais ou menos o
esperado: os oficiais camarários foram escolhidos para assumirem,
colectivamente, o governo em substituição do governador. Desta forma, a câmara
da cidade de Luanda concretizava uma velha ambição e chamava a si a direcção
política e militar de todo o território de Angola sob domínio português.
Que razões teriam estado na origem do conflito entre a câmara e o governador
demitido? Para os defensores de Tristão da Cunha, tudo teria a ver com o facto
de o comportamento deste ser diametralmente oposto aos ruins costumes em que
estavam aqueles moradores e às ladroíces que os oficiais da Câmara intentavam
fazer com a administração dos novos direitos[60]. Talvez isso seja verdade,
mas é possível alinhar uma série de factores que azedaram as relações entre as
duas instituições e malquistaram o governador com os moradores[61].
O primeiro, de significado essencialmente simbólico, terá sido o facto de o
governador ao desembarcar em Luanda, não ter ido à câmara apresentar-se e fazer
o registo das patentes e do regimento, como era habitual[62]. Para lá disso,
foi acusado de, nos poucos meses em que esteve no poder, mandar homens brancos
aos pumbos com fazendas (fazendo concorrência desleal aos pumbeiros dos
moradores); substituir de forma abrupta e por vezes injustificada alguns dos
capitães das companhias quer em Luanda quer nos presídios do interior; promover
guerras no sertão, nomeadamente na província do Libolo, consideradas
inoportunas; e de ter ficado com uma parte das presas que deviam ser divididas
(prejudicando assim os moradores que, pela participação dos seus escravos de
guerra, tinham lucro directo nessa divisão). Por fim, e não era pouco, tentara
impor, como já se disse, o donativo para a paz da Holanda e o dote de D.
Catarina de Bragança, cuja aplicação os procuradores da câmara ainda negociavam
em Lisboa[63].
Desafiara, em suma, de forma excessiva, os interesses instalados,
particularmente os da câmara e da gente da governança. Isso e a falta de
habilidade para negociar custaram-lhe o poder.
A chegada a Lisboa, por um navio vindo de Pernambuco, das primeiras, e ainda
vagas, notícias da ejecção do governador provocaram o pânico na capital, não só
pela gravidade do atentado à autoridade régia na pessoa de um seu
representante, como pelo receio de que se tratasse de uma iniciativa espanhola
secundada pelos habitantes e provocada pela variedade de que se compõem os
moradores de Angola[64]. Essa evocação de variedade não sabemos se tinha a
ver com presença de estrangeiros, de cristãos-novos ou de ambos.
Quando a situação ficou esclarecida, as formas de a coroa evitar um mal maior
foram a de reconhecer a situação de facto, aceitando a continuação do governo
da câmara até à nomeação de um novo governador, e a de não ter urgência em
proceder a essa nomeação, no receio de que os moradores do Reino de Angola
pudessem cometer outro maior excesso[65]. E assim se passaram quase três anos,
tendo-se sucedido os executivos camarários, ao ritmo anual que era de norma, e
praticamente sem oposição, salvo o desgaste de algumas divisões internas[66].
Uma vez no poder, os camaristas de Luanda, cientes de que as despesas do reino
de Angola eram superiores às receitas disponíveis, procuraram diminuir o número
de soldados pagos, de modo a conseguirem pagar os soldos da infantaria,
obrigação de que faziam ponto de honra. Outras medidas importantes foram o
restabelecimento de boas relações com o reino do Congo, decisão fundamental
para manter activo o comércio de escravos a norte do rio Dande.
Investiram ainda na reedificação de fortalezas e, para não deteriorar mais as
relações com Lisboa, começaram a pôr em execução o donativo, reduzido a 15 mil
cruzados, para a paz da Holanda e dote da rainha da Grã-Bretanha.
Apenas em Janeiro de 1668 se iniciaram, em Lisboa, as diligências para a
escolha de um novo governador de Angola, decisão delicada, atendendo às
circunstâncias em que se ia fazer a sucessão. Nomeado, em 21 de Março de 1668,
Francisco de Távora, só em 28 de Agosto de 1669 chegaria a Luanda. Não parecia
haver pressa. Uma das razões tinha, provavelmente, a ver com o facto de a
situação não estar completamente pacificada. Quando se soube em Angola que um
novo governador tinha sido nomeado, ainda se exaltaram os ânimos dos mais fiéis
apoiantes dos camaristas, manifestando-se dispostos a levantar-se em armas e a
impedir o desembarque do governante ido de Lisboa (Milheiros, 1972, p. 24).
Receavam, talvez, que, com ele, chegasse o braço da justiça, apontado a todos
os que tinham participado no golpe de Estado que apeara Tristão da Cunha.
Houve, no entanto, um esforço de contemporização de parte a parte. Por um lado,
deixou-se que o novo governador iniciasse em paz o seu mandato. Quanto à
responsabilização judicial dos que o tinham antecedido, a devassa realizada
provou a responsabilidade dos oficiais da câmara e de alguns militares e ecle-
siásticos, mas procurou não ser muito rigorosa nos castigos propostos,
preferindo passar uma esponja de prudência sobre o assunto[67].
No que se referia à acção político-administrativa da câmara no período em que
desempenhara funções de governo (anos de 1667, 1668 e 1669), o sindicante,
desembargador Sebastião Cardoso de Sampaio, encarregado de tirar a respectiva
residência, concluiu, ouvidas as testemunhas, haverem procedido com toda a
satisfação, tendo mostrado zelo e desejo de acertar no serviço de Vossa
Alteza e bem da república. É verdade que se descobriram alguns descaminhos em
direitos, entretanto repostos, e algumas actuações menos felizes (como deixar
fugir Francisco Rodrigues Cigano, que teria sido um dos cabeças de motim)
mas, quando o relatório foi visto em Lisboa pelo Conselho Ultramarino, este foi
de opinião que visto o estado em que se acham os moradores de Angola, seja
Vossa Alteza servido mandar perdoar alguma omissão[68].
Sarado o caso Tristão da Cunha, a disputa com os governadores não terminou. Uma
das questões principais era a da concorrência que esses governantes faziam aos
mercadores de escravos (e todos os moradores o eram), uma vez que se
aproveitavam quer da facilidade com que, por intermédio dos comandantes dos
presídios, obtinham escravos junto das autoridades tradicionais[69], quer da
prioridade que, servindo-se das prerrogativas do seu cargo, conseguiam na
respectiva exportação.
Face aos protestos dos homens de negócio de Luanda, representados pela câmara,
a coroa pôs, desde 1688, a hipótese de proibir o comércio aos governadores,
compensando-os, porém, com a subida no seu vencimento. O valor foi
progressivamente crescendo e, em 1691, o rei propôs acrescentar dez mil
cruzados ao soldo dos governadores, proibindo-lhes, em troca, todas as formas
de negócio. Havia, no entanto, um problema: onde ir buscar, em Angola, essa
importância? Consultada a câmara de Luanda, esta reuniu muitos moradores e
mercadores. Embora, no geral, concordassem com a medida, foi unânime o
reconhecimento da impossibilidade de a satisfazer financeiramente. E, em carta
para o Conselho Ultramarino, Gonçalo da Costa e Meneses, o governador, também
não se mostrava interessado na alteração, talvez por achar que podia ser
prejudicado. Dessa forma, atendendo à dificuldade na obtenção da referida verba
sem vexação dos moradores, o Conselho deu o parecer e o rei concordou em 4 de
Março de 1693: Por ora não se inove[70].
Conclusões
Em 1653, o ouvidor-geral de Angola, desembargador Bento Teixeira de Saldanha,
mais tarde membro do Conselho Ultramarino, formulava juízos de valor muito
negativos sobre o grupo social dos luso-africanos, que conhecera ao longo da
sua estadia em Luanda:
O comum dos moradores deste Povo é gente de muito má casta, pedem
justiça a V. Majestade, mas não querem justiça, não se queixam do que
os governadores obram, queixam-se do que os governadores lhes não
deixam obrar a eles; ( ) seja embora o governador ladrão, e os deixe
furtar a eles que todos estarão contentes. O negócio está em que se
todos os governadores que cá têm vindo tratam de seus interesses, não
tratam deles como é razão, mas atropelam a Deus, a justiça e o
serviço de V. Majestade. E porque a ambição é de qualidade que querem
comer tudo, queixam-se os moradores porque os não deixam comer também
[71].
É certo que o ouvidor não era insuspeito pois, quando pronunciava este libelo,
acabava de ver preterida, pela gente da governança, a sua candidatura a
governador interino[72], mas a sua crítica traduz, a traço muito grosso, dois
aspectos que são fundamentais em Angola, e em Luanda em particular, durante o
século XVII: por um lado a competição, de carácter quase estrutural, entre
governadores e moradores; por outro, as características de uma sociedade em que
há ainda um clima de fronteira, com uma hierarquização social e um sistema de
valores pouco consolidados, devido à guerra e à colonização recente.
A elite social que governava a cidade era um grupo numericamente modesto,
produto do processo de conquista, constituído, em grande parte, por antigos
combatentes endurecidos na guerra do sertão ou na resistência à ocupação
holandesa. A genealogia guerreira tornou-se, aliás, o elemento dominante da
argumentação identitária do grupo, que se auto-legitimava pelo passado recente,
o único que tinha.
Economicamente, essa elite dependia do tráfico atlântico de escravos
(participando a maioria dos moradores apenas no tráfico interno, por falta de
capitais e de navios para a exportação) a que se juntava, como importante
elemento diferenciador, a posse de propriedades agrícolas e, em alguns casos, o
exercício de cargos públicos, sobretudo militares.
Tratava-se de um grupo de vocação endogâmica, mas que aceitava a renovação
através do casamento das filhas com europeus recém-chegados, o que podia dar
origem a autênticas alianças económico-matrimoniais, embora, outras vezes, os
pais das noivas tivessem de aceitar genros mais modestos e que apenas tinham
para dar, como moeda de troca, a cor clara da pele.
Em Luanda, como noutros pontos do império português, o município era o espaço
privilegiado de intervenção detido por essa elite local. Além das funções de
carácter administrativo e de defesa, por exemplo, no sustento da infantaria e
na conservação das fortalezas, o senado camarário disputou, ao longo do século,
algumas das competências políticas aos governadores, cuja actuação procurava
sempre marcar de perto, ultrapassando mesmo, algumas vezes, os limites dos seus
poderes e da própria legalidade. A par disso, travou com o poder central, lutas
nem sempre bem-sucedidas mas em que mostrou uma enorme persistência, como foram
os casos da questão tributária e do contrato dos escravos.
De uma forma geral, a coroa, num pacto só aparentemente inesperado, favoreceu
as pretensões da câmara e manifestou uma razoável tolerância perante alguns dos
seus excessos, procurando manter o equilíbrio dos poderes (não deixando que se
confundissem, como diz um documento já citado, as jurisdições que o Príncipe
tem repartidas) e garantir, ao mesmo tempo, a fidelidade dos seus vassalos dos
trópicos. Angola ganhara, no contexto do Atlântico Sul, um papel estratégico
tão importante, fornecendo mão-de-obra à agricultura de plantação e às minas do
continente americano, que a manutenção do município de Luanda com um relativo
grau de autonomia, mesmo que algumas vezes incómodo, acabava por ser um factor
de estabilidade e podia ser também (era, pelo menos, o que se pretendia) um
pólo de atracção para povoadores idos de Portugal ou do Brasil.