O Desenvolvimento do Poder Local em África: O caso dos municípios em Moçambique
Durante bastante tempo, entendeu-se que a modernização da administração dos
países em desenvolvimento se fazia pela adoção dos modelos e valores
ocidentais. Uma vez adotados, estes funcionariam tal como nos países de origem.
Riggs (1964) veio demonstrar que a modernização não equivale a um processo
automático de transferência de modelos de organização administrativa e outros.
As estruturas ocidentais em contato com as sociedades tradicionais são
refratadas, como a luz ao atravessar um prisma. A situação prismática não é nem
tradicional, nem moderna, antes contém novos elementos que resultam da
justaposição das antigas e novas estruturas sociais. A maior parte das
sociedades mantém muitas das antigas tradições e normas culturais, enquanto
importa e aceita práticas e padrões das sociedades modernas. O resultado é uma
sociedade prismática, em que os valores e procedimentos ocidentais constituem
uma fachada, mas, na prática, não funcionam.
Será que a administração local em Moçambique é constituída por estruturas
prismáticas? Ou deve procurar-se a explicação do seu funcionamento noutros
mecanismos ou teorias? A literatura não é muito otimista sobre a situação atual
da administração local nos países africanos. Segundo Jreisat (2010), embora os
Estados africanos tenham sido governados segundo a lógica dual, com separação
das áreas urbanas (europeias) e as áreas rurais, denominadas territoriais, os
líderes africanos tenderam a reproduzir os tiques dos colonizadores, ocupando
as suas posições no aparelho administrativo. Daí que, a partir dos anos
oitenta, se tenha assistido a uma pressão das entidades doadoras no sentido de
os países africanos adotarem modelos de gestão identificados com a Nova Gestão
Pública.
Reportando-se à administração local no Senegal, Touré (2012) insiste em que o
movimento de autonomia local e de descentralização impulsionado pelas entidades
doadoras não passa de retórica, já que tem levado ao enfraquecimento das
autoridades locais e ao aumento da intervenção estatal. O mesmo tem sido
apontado para outros países africanos, designadamente o Uganda e o Gana
(Awortwi, 2011). Vamos procurar desenvolver este tema da autonomia e da
democracia local em Moçambique, usando vários contributos e a análise
comparada.
Administração local no período colonial
Os portugueses chegaram a Moçambique nos finais do século XV, a caminho da
Índia. Ao longo da costa fundaram as feitorias de comércio em Sofala (1505) e
na Ilha de Moçambique (1507), que constituíram as primeiras formas de controlar
o comércio entre o interior africano e diversos portos do Oceano Índico. A
colonização ocorreu, primeiro, como consequência da procura de metais preciosos
(ouro, prata e bronze), a que se juntou a demanda do marfim e, já no século
XVIII, o comércio de escravos (Newitt, 1997; UEM, 1988).
Durante os primeiros séculos de colonização, o território de Moçambique
integrou o Estado da Índia, com sede em Goa. No contexto das reformas
iluministas do império português, o Marquês de Pombal separou a administração
de Moçambique do governo da Índia, concedeu-lhe autonomia administrativa (1752)
e financeira (1755) e ordenou, em 1761, a instalação de câmaras municipais nas
principais povoações da colónia, elevadas a vilas na mesma altura. Desse modo,
em 1763, foram criados municípios na Ilha de Moçambique e em Quelimane; no ano
seguinte, no Ibo, Sena, Tete e Zumbo; e em data desconhecida, entre o final de
1763 e maio de 1764, em Sofala e Inhambane (Rodrigues, 1998; Teixeira, 1990).
A criação de concelhos em Moçambique, assim como a urbanização, foi um processo
lento, que esteve associado a uma ocupação colonial gradual e que só se tornou
efetiva no século XX. A Ilha de Moçambique, cidade em 1818, manteve-se como
capital até 1898, quando esta foi transferida para Lourenço Marques, atual
Maputo, cujo crescimento esteve ligado à importância do Transval. A Beira,
fundada no final do século XIX, só ganhou estatuto administrativo de cidade em
1907, depois de iniciada, em 1899, a construção do caminho-de-ferro que ligava
o seu porto à Rodésia (atual Zimbabwe). Porto Amélia, hoje Pemba, só em 1934
foi elevada a categoria de vila e em 1958 de cidade.
Em finais do século XIX, depois da Conferência de Berlim (1884-1885), a
administração colonial organizou campanhas de ocupação efetiva do território e
reorganizou a administração da colónia. O sul e o distrito de Moçambique foram
administrados de forma direta pelo governo colonial. No centro e no norte, o
território foi arrendado a grandes companhias capitalistas, algumas das quais,
a Companhia de Moçambique e a Companhia do Niassa, tinham poderes majestáticos.
Estas companhias majestáticas não exploraram apenas economicamente o
território, como asseguraram o exercício da autoridade administrativa nas áreas
concessionadas (Newitt, 1997, pp. 321-343).
As companhias sucederam aos chamados prazos, criados nos finais do século XVI e
que perduraram até ao século XX. Tratava-se de estruturas feudais importadas da
Europa e que constituíam o modo de exploração na bacia do Zambeze. Segundo
Papagno (1980), os prazos foram um modelo de administração que acabou por ser
integrado nas grandes companhias, nomeadamente a Companhia de Moçambique e a
Companhia da Zambézia. Este processo acelerou-se depois do Ultimatum(1890),
como consequência de investimentos ingleses. Neste formato de concessão, as
companhias tinham poderes sobre os habitantes africanos das áreas
concessionadas. Como afirmou Xavier (1888, p. 82), o negro habituado a viver
escravo, não acha qualquer diferença em pagar o tributo ao arrendatário em vez
de ao seu antigo enfiteuta, mas sem procurar saber qual dos dois tem direito de
exigir o tributo ou o seu trabalho manual.
Na sequência da ocupação efetiva imposta pela conferência de Berlim, o Estado
português optou por uma administração indireta, que assentava na diferenciação
entre europeus e nativos. Os primeiros estavam sujeitos ao direito e às
instituições europeias, nomeadamente as municipais; os segundos, aos direitos
costumeiros e às autoridades tradicionais, legitimadas por poder colonial.
Alguns moçambicanos, uma pequena minoria, tinham emprego na economia
capitalista e sabiam ler e escrever português, pelo que tinham o estatuto de
assimilados, mas tinham uma posição inferior à dos europeus (Newitt, 1997,
pp. 384-385).
O Código do Trabalho dos Indígenas da África Portuguesa, de 1928, e o Estatuto
Político, Civil e Criminal dos Indígenas, de 1929, na sequência da lei de
trabalho de 1899 e de outros diplomas, articulavam a relação entre colonos e
colonizados. Estes últimos eram forçados pela administração colonial a diversos
tipos de trabalho. O recrutamento de trabalhadores era feito pelos sipaios,
isto é, soldados locais, que atuavam sobretudo nas zonas rurais, mandatados
pelos colonizadores. As autoridades tradicionais serviam de intermediários
entre o poder colonial e as populações indígenas (Newitt, 1997, pp. 407-410).
Entretanto, no começo dos anos de 1960, a política colonial do Estado português
mudou, tendo sido abolido o regime do indigenato (decreto-lei nº 43893, de 6 de
setembro de 1961). Todos, num instante, passaram a cidadãos portugueses. Na
prática, porém, o dualismo manteve-se, continuando os africanos a serem
considerados cidadãos de segunda, ou cidadãos sem cidadania (Araújo, 2008).
No auge da colonização, durante o Estado Novo, acentuou-se a criação de
estruturas administrativas fortemente centralizadoras em que as estruturas
municipais eram uma extensão do poder central, tal como, de resto, acontecia na
metrópole colonial. Na sequência da reforma administrativa ultramarina de 1933,
a colónia era dirigida por um governador-geral, compondo-se de três províncias,
por sua vez divididas em distritos com um administrador. A nível local, a malha
administrativa, na sequência da estabelecida já em 1914, distinguia-se em
concelhos municipais, nos principais centros urbanos, e em circunscrições, nas
zonas rurais, em ambos os casos, administrados por autoridades nomeadas. Os
concelhos municipais eram dirigidos por autoridades civis, sendo os mais
importantes presididos por um presidente de câmara, e dividiam-se em
freguesias. As circunscrições eram governadas por administradores e
decompunham-se em postos administrativos, que podiam existir igualmente nas
áreas rurais dos concelhos, a cargo de chefes de posto. Os postos
administrativos, por sua vez, agrupavam as regedorias, chefiadas por régulos
[1], sob fiscalização dos administradores. A figura do régulo foi sendo
promovida pelas autoridades coloniais, e entre as suas funções estava o
recrutamento de trabalhadores. Mesmo depois da abolição do Estatuto dos
Indígenas, em 1961, tal manteve-se ou reforçou-se mesmo, tendo os régulos
passado a ser formalmente considerados parte da administração local. No início
da década de 1960, existiam em Moçambique 61 concelhos – centros urbanos com
500 ou mais eleitores – e 31 circunscrições. Pela nova Lei Orgânica do
Ultramar, de 1972, Moçambique passou a ser designado Estado, mas a estrutura
administrativa manteve-se semelhante à existente (Meneses, 2009; Newitt, 1997,
p. 410).
Administração local pós-independência (de 1975 ao final dos anos 90)
Declarada a independência, em 1975, sob a denominação de República Popular de
Moçambique, a administração do país foi marcada pela necessidade de reforçar a
unidade nacional, a liderança do partido único e o planeamento central. A
estrutura sociopolítica e administrativa obedecia ao centralismo democrático,
que orientou os primeiros anos do país.
Uma das primeiras medidas do novo governo foi abolir a dualidade administrativa
entre zonas predominantemente rurais (circunscrições administrativas) e urbanas
(concelhos), na sequência da orientação política saída do Conselho de
Ministros, de 9 de junho do 1975. Como argumenta Trindade (2003), a orientação
política perfilhada aquando da independência era contrária às estruturas
legadas pelo colonialismo, pelo que havia a necessidade de revolucionar o
aparelho do Estado. Esta ideia constituiu uma das principais tarefas levadas a
cabo pelo governo da Frelimo, para o qual a dualidade administrativa do modelo
colonial deveria ser abandonada, enquanto se instituía um novo conceito, as
aldeias comunais, como estratégia política de desenvolvimento rural. A
estratégia era apoiada pelas populações que a entendiam como um meio para
assegurar a melhoria das suas condições de vida. Conforme o autor, aquele
modelo de organização iria facilitar ao governo o fornecimento dos meios
materiais, técnicos e científicos aos sectores considerados prioritários no
processo de reconstrução nacional, ou seja, na educação, saúde, agricultura e
defesa (idem). Esta abordagem defendia o desenvolvimento das zonas rurais em
todos os sectores de atividade do Estado, o que implicava necessariamente, a
extinção das regedorias, que eram consideradas estruturas de natureza feudal,
colaboracionistas com o colonialismo e incompatíveis com o poder popular
(idem). Assim, após a independência, o território de Moçambique foi dividido em
províncias, distritos e localidades, não se reconhecendo o papel das
autoridades tradicionais, já que se entendia que essas autoridades haviam
colaborado com a administração colonial. Importa considerar, também, que
existia o desiderato político de construir um país homogéneo do Rovuma ao
Maputo, pelo que os localismos tinham de ser eliminados.
A lei de 5/78, de 22 de abril, substituiu as estruturas coloniais orgânicas em
quatro níveis: central, provincial, distrital e local. Note-se que as
estruturas locais eram meros recetores e executores das decisões a nível
central. A grande novidade foi a criação de assembleias do povo a nível local,
distrital e provincial (lei de 7/78, de 22 de abril). Os Conselhos Executivos
eram fortemente dependentes do poder central. Como refere Otayek (2007), logo
após a independência, a hora é de exaltação da nação, erguida em verdadeira
religião civil, e da omnipotência do partido-estado que pretende ser a sua
encarnação e o instrumento da sua criação (p. 6).
A Constituição de 1990 introduziu profundas mudanças políticas, como o
pluralismo político e a existência de autonomias locais, e também económicas,
nomeadamente pelo abandono do sistema de economia planificada e pela
consagração da economia de mercado. O novo texto constitucional estabeleceu a
separação dos órgãos do poder local, que passaram a ser dotados de
personalidade jurídica própria face ao aparelho administrativo central.
Na sequência das mudanças constitucionais, em maio de 1992, o governo aprovou o
Programa de Reforma dos Órgãos Locais (PROL), que tinha por objetivo a
reformulação do sistema de administração local do Estado e a sua transformação
em órgãos locais com personalidade jurídica própria e dotados de autonomia
administrativa e financeira. Em consequência, foi aprovada a lei 3/94, de 13 de
setembro, que estabeleceu a institucionalização dos distritos municipais e
representando o primeiro instrumento normativo de descentralização (Trindade,
2003).
O processo da descentralização política e administrativa não foi encarado de
forma igual pelo partido único da Frelimo e pelos partidos políticos emergentes
neste período, incluindo a Renamo. Estes últimos partidos entendiam que o
projeto se tratava de uma ideia saída do partido único no poder e, entretanto,
não viam com agrado o lançamento do Programa de Reformas dos Órgãos Locais.
A lei 3/94, cuja regulamentação se fazia já depois de eleições multipartidárias
de 1994, acabou por se tornar um documento da discórdia em torno da sua
constitucionalidade, pelo que se optou por fazer uma revisão da Constituição
(lei 9/96 de 22 de novembro). A emenda constitucional introduziu o título
Poder Local, que previa a existência de autarquias locais, visando a
participação dos cidadãos na solução dos problemas da sua comunidade, a
promoção do desenvolvimento local e o aprofundamento da democracia, no quadro
da unidade do Estado moçambicano (Trindade, 2003, p. 120).
Assim, em 1997, foi publicada nova lei (2/97, de 18 de fevereiro), que serviu
de quadro normativo às primeiras eleições municipais em 1998, feitas em 33
concelhos. Embora a lei fosse igualmente matéria de discórdia e de debate
político-partidário, à semelhança da lei 3/94, foi, finalmente, aprovada pela
Frelimo e pela União Democrática (UD). A Renamo e quase todos os restantes
partidos de oposição recusaram-se a participar nas primeiras eleições
autárquicas de 1998, por discordarem da forma como o processo de
descentralização estava a ser conduzido pelo governo. Essa rejeição deu origem
a uma elevada taxa de abstenção de 85,42%. Na maioria dos municípios em
disputa, o partido no poder concorreu sozinho às eleições. Ainda assim, nas
duas maiores cidades do país, Maputo e Beira, as associações de cidadãos –
Juntos pela Cidade e Grupo de Reflexão e Mudança – obtiveram resultados
relevantes, atingindo, respetivamente, 25,58% e 39,85% dos votos e elegendo, no
primeiro caso, 15 e, no segundo, 17 membros para as Assembleias Municipais
(Trindade, 2003, pp. 118-125).
A nova legislação introduziu a uma mudança significativa na filosofia
subjacente à mencionada lei 3/94, conforme o Quadro_1. Para muitos autores,
houve uma clara regressão sob o ponto de vista do aprofundamento do processo
democrático. As maiores críticas dirigem-se, por um lado, ao facto de a lei 2/
97 se aplicar a um número restrito de cidades e vilas, e, por outro lado, não
contemplar as comunidades e não promover o envolvimento das autoridades
tradicionais (Trindade, 2003, p. 120). O Quadro_1 mostra claramente as
diferenças entre as duas conceções de poder local, já que na primeira lei, a 3/
94, é manifesta a importância concedida às Autoridades Tradicionais,
consideradas um poder de facto. Existiriam, assim, poderes legitimados pelo
voto popular e poderes tradicionais, que não são eleitos.
Esta dualidade levantava um problema constitucional que a lei 2/97, de 18 de
fevereiro, tentou resolver, introduzindo o conceito de legitimação das
Autoridades Tradicionais (AT), por parte do poder central. Todavia, este
procedimento não retira às AT o seu papel de mediadores entre o poder central,
herdeiro do poder colonial, e a população. Na verdade, esta absorve a lei,
conforme ela é lida pelos líderes locais.
Quadro atual da administração local moçambicana
Em 2003, foram aprovados vários textos legislativos destinados a acelerar o
processo de consolidação dos municípios e, em 2007-2008, foram introduzidas
alterações significativas à lei 2/1997, as quais procuram designar as
autarquias como poder local, em oposição ao poder central desconcentrado.
Como foi argumentado em Zavale (2011), a designação do Poder Local pelo
legislador resulta da reimportação de leis eurocêntricas que continuam a marcar
o mapa da administração pública do país. Na verdade, a lei 1/2008 introduziu
algumas alterações, mas manteve o princípio do gradualismo, que só permitia
avançar para o estabelecimento de novos municípios se as povoações obedecessem
a determinados critérios. O princípio do gradualismo consiste num processo
lento de criação das autarquias locais em Moçambique, o que explica que, na sua
primeira fase, tenham sido implementados apenas 33 municípios, 23 nas cidades e
10 nas 68 vilas existentes no país, conforme apresentado no Quadro_2.
De acordo com Hanlon (1997), o princípio do gradualismo em Moçambique é
essencialmente explicado pela inexistência ou insuficiência de condições
económicas e sociais necessárias e indiscutíveis para a reimplementação e
funcionamento da administração autárquica nas vilas em geral (p. 13). E,
portanto, é necessário fazer previamente a consolidação e a capacitação de
agentes locais e fazer acompanhar o processo de recursos técnicos e
infraestruturas, que permitam o funcionamento da máquina da organização
municipal. Daí que o processo de instituição do poder local nas primeiras vilas
tivesse sido visto como uma ação piloto. O autor considera que a etapa
subsequente passará pela transformação de mais vilas em municípios e a
realização de eleições de harmonia com o mesmo princípio.
Assim, o poder local foi inicialmente estendido a 10% do território, sendo que
apenas 25% dos moçambicanos obtiveram o direito de eleger os seus
representantes. Em abril de 2008, foram implementados mais 10 municípios, e,
finalmente, em 15 de maio de 2013, o Conselho de Ministros propôs ao parlamento
a introdução de mais dez novos municípios: Boane (província de Maputo), Praia
do Bilene (província de Gaza), Quissico (Zavala) (província de Inhambane),
Nhamatanda (província de Sofala), Sussundenga (província de Manica), Nhamayábué
(província de Tete), Maganja da Costa (província de Zambézia), Malema
(província de Nampula), Chiure (província de Cabo Delgado) e Mandimba
(província de Niassa) (EA, 2013). Esta última proposta continua assente num dos
grandes princípios orientadores da política de progressiva descentralização
político-administrativa de Moçambique, o gradualismo. Assim, Moçambique tem um
total de 53 conselhos municipais, conforme o Quadro_2.
Segundo o Banco Mundial (2009), esse processo de implantação gradual dos
municípios subdivide-se em duas áreas, territorial e funcional. A primeira, o
gradualismo territorial, refere-se ao alargamento progressivo da governação
municipal a um número crescente de cidades em todo o território nacional. A
segunda área considerada é o gradualismo funcional, que reflete o incremento na
transferência de competências do Estado para as municipalidades, conforme
lavrado na lei 2/97 e no decreto 33/06.
As autarquias locais são providas de um órgão executivo (Presidente do Conselho
Municipal) e por um órgão representativo e deliberativo (Assembleia Municipal).
O Conselho Municipal é um órgão executivo, composto por vereadores designados
pelo Presidente para dirigir os vários pelouros da Câmara. O Presidente do
Conselho Municipal e a Assembleia Municipal são eleitos simultaneamente por
sufrágio universal, direto e secreto, ambos cumprindo mandatos de cinco anos.
Em termos de competências, embora estas formalmente sejam alargadas, as
autarquias têm de atuar como se fossem órgãos locais do Estado, porque estão
sujeitas à sua tutela administrativa e dependem financeiramente dele, já que as
suas receitas são constituídas quase globalmente por transferências do poder
central.
Ao mesmo tempo que prossegue o processo de descentralização, tem lugar o
processo de desconcentração das funções administrativas do Estado, em grande
medida decalcado da estrutura administrativa colonial (ver Quadro_3). De facto,
a nível da província, todos os oficiais são apontados pelo governo central: o
governador pelo governo central; o secretário pelo primeiro-ministro; e os
diretores provinciais pelo ministro responsável pela respetiva pasta.
No dizer dos responsáveis moçambicanos, o distrito é a base do desenvolvimento
económico, nacional e cultural. A nível distrital, a estrutura é composta pelo
administrador distrital, o secretário distrital e os serviços distritais.
O enquadramento de outros níveis administrativos inferiores ao distrito está
descrito na Figura_1.
A Constituição de 2004 avançou, de forma tímida, para uma certa reorganização
através da criação das denominadas assembleias provinciais, as quais são
compostas por membros eleitos.
A lei 5/2007, de 7 de fevereiro, veio dar competências às assembleias
municipais para aprovar propostas de plano e orçamento municipal a submeter ao
Conselho de Ministros e fiscalizar a sua execução.
Em síntese, podemos resumir o sistema administrativo local dizendo que existem
atividades centrais diretas, atividades desconcentradas, desenvolvidas pelas
províncias ou níveis inferiores destas, e atividades desenvolvidas pelo poder
local, conforme a Figura_2. Importa, ainda, analisar as autoridades
tradicionais, cujo papel foi muito tumultuoso ao longo do período colonial e
depois da independência.
Autoridades Tradicionais
Como notou Santos (2003), o tema das Autoridades Tradicionais (AT) tem
provocado um grande debate no continente africano, merecendo, por si só, uma
reflexão sociológica:
os temas da discussão são muitos e entre eles são de salientar os seguintes: as
autoridades tradicionais enquanto poder e administração local; a regulação do
acesso à terra; o direito costumeiro e a justiça tradicional; as mulheres e o
poder tradicional; a feitiçaria; a medicina tradicional; a compatibilidade
entre os direitos costumeiros e o direito oficial e, em especial, a
constituição (p. 74).
Após a independência política de Moçambique, a Frelimo encarou os régulos e,
com eles, as AT como instrumentos de opressão e exploração do povo ao serviço
do colonialismo. Por isso, os régulos bem como as AT, não só foram desprezados
como ainda foram odiados, perseguidos e presos (Mutaquinha, 1998). Em seu
lugar, foram criados os secretários das Aldeias Comunais e dos Grupos
Dinamizadores. Estas autoridades viriam a desempenhar múltiplas funções,
tomando conta de muitos dos encargos anteriormente realizados pelas autoridades
tradicionais, como a gestão de questões sociais, mediação de conflitos,
policiamento, administração e regulação (Meneses, 2009, p. 26). Além da
introdução de uma nova tipologia de funções e de uma nova nomenclatura na
administração, Mutaquinha (1998) considera que a Frelimo ignorou, igualmente, a
tradição em matéria de origem e de legitimidade do poder (p. 15). Mutaquinha
reitera essa ideia, afirmando que os secretários das aldeias eram todos
indivíduos fiéis da linha ideológica da Frelimo, uma opinião também seguida por
outros autores.
Lourenço (2007), por exemplo, destaca que as autoridades tradicionais eram
tidas como contrárias à construção do Homem Novo. A liderança da Frelimo
retratou os chefes tradicionais como oportunistas e corruptos, já que haviam
lucrado com o papel de cobradores de impostos, recrutadores de mão-de-obra e
agentes de polícia local na estrutura colonial portuguesa, além de terem
colaborado com as Forças Armadas Portuguesas. Conforme Meneses (2009), as
autoridades tradicionais foram acusadas de serem instituições obscurantistas e
vestígios do passado feudal. Subalternizadas no tempo colonial e depreciadas
pela Frelimo após a independência, as autoridades tradicionais mantinham uma
forte presença no tecido político pelo peso que gozavam junto das populações
que administravam (p. 30). De facto, com a criação do Homem Novo, as ideias
voltadas para o tradicional e tudo o que fosse considerado vestígio do passado
colonial constituíam matérias a destruir para dar lugar aos princípios
revolucionários de um país novo fundado na ideologia da Frelimo.
Esta rejeição da parte da Frelimo dos chefes tradicionais e régulos fê-los cair
na dependência da Renamo, de quem constituíram uma base social de apoio. Como
argumenta Meneses (2009),
[g]radualmente, e apoiando-se fortemente nas antigas instituições de
poder local, a Renamo foi reintroduzindo os régulos como agentes do
poder local nas áreas sob o seu controlo. O papel destas autoridades
foi fundamental na mobilização de jovens para integrar as fileiras do
exército guerrilheiro da Renamo (p. 31).
Como consequência dos Acordos de Paz (1992) e do processo eleitoral de 1994, a
Frelimo fez uma aproximação às Autoridades Tradicionais.
De facto, embora a Constituição de 1990 fosse já portadora de um clima de
abertura às lideranças tradicionais, a legislação específica só apareceu mais
tarde com a Constituição de 2004. Em consequência, a lei 11/2005, de 10 de
junho, definiu o distrito como sendo o órgão territorial da organização
(política, económica e social) e do funcionamento da administração local do
Estado, dando ênfase aos princípios de descentralização, bem como de
desburocratização e de articulação entre as várias estruturas do poder
presentes no território, nomeadamente as populações locais ou comunidades e as
respetivas lideranças, incluindo também as autarquias locais compreendidas no
respetivo território.
Meneses (2009) clarifica a questão da diversidade das autoridades locais
intervenientes no cenário da administração distrital: tal diversidade levou o
poder governamental a reelaborar o plano de cooperação com as autoridades
comunitárias. Para a autora, esse processo alargou o debate sobre as lideranças
de vários atores que se entrecruzam, como os chefes tradicionais, os
secretários de bairro ou aldeia e outros líderes legitimados pelas respectivas
comunidades (p. 32). No entanto, ela critica a posição do governo ao equiparar
as AT tradicionalmente reconhecidas aos líderes religiosos, os secretários de
grupos dinamizadores e outras personalidades locais, conforme definido pelo
diploma ministerial 80/2004. Nesta aceção ficaram estabelecidas duas categorias
dicotómicas, os chefes tradicionais e os secretários de bairro ou aldeia, aos
quais se juntam outros líderes legitimados, que desempenham algum papel de
carácter económico, social, religioso ou cultural aceite pelo grupo social
(Meneses, 2009).
A divisão entre chefes tradicionais e secretários de bairro/aldeia retoma a
ideia matriz das AT de que fala Mutaquinha (1998). Para este autor, com a
independência, a Frelimo ignorou a tradição em matéria de origem e de
legitimidade das AT substituindo-as pelos secretários de aldeia da sua criação
e, após 16 anos de guerra, recuou no sentido de corrigir o erro cometido em
relação às AT. Todavia, Meneses (2009) considera antes que o Governo Central,
pretendeu de forma encapotada e engenhosa, integrar a riqueza de instituição do
poder local no sistema de administração local, ao mesmo tempo que a Frelimo
procura capitalizar espaço político com esta manobra (p. 33). Como salienta a
autora, esse diploma estipulou que a seleção dos líderes tradicionais se
baseava nas regras das respetivas comunidades, enquanto os secretários de
bairro seriam escolhidos de acordo com critérios da comunidade local ou grupo
social. A aplicação do diploma nas zonas rurais resultou no reconhecimento dos
antigos régulos, bem como dos respetivos adjuntos, e nalguns casos dos
secretários, enquanto outros líderes apenas recentemente têm sido reconhecidos
pelo Estado, apesar do seu papel como mediadores na resolução de conflitos
sobre problemas da terra, disputas familiares, casos de feitiçaria e no
desempenho de outras competências, entretanto lavradas no decreto-lei 11/2005
(artigo 62º) (Meneses, 2009, p. 33).
Na verdade, as dificuldades do Estado moçambicano no relacionamento com as
autoridades tradicionais têm semelhanças com outros processos ocorridos nas
antigas colónias africanas. Numa primeira fase, os chefes tradicionais
(régulos) administravam, em nome do colonizador, as zonas rurais. Numa segunda
fase, a seguir à independência, foram perseguidos porque tinham colaborado com
o colonizador e tornava-se necessário construir um Estado, necessariamente
centralizado. A terceira fase corresponde à crise dos Estados africanos, o que
abriu caminho para o recurso às autoridades tradicionais como forma de redução
das despesas. Na última fase, que começa nos anos noventa, o reconhecimento das
autoridades tradicionais tem estado associado à liberalização política,
descentralização e processo de democratização (Forquilha, 2008).
Em Moçambique, a Renamo tinha conseguido o apoio das autoridades tradicionais,
pelo que a Frelimo procurou apropriar-se deste poder de facto, estabelecendo
uma relação clientelar com os líderes locais. Estes passaram a ser
intermediários entre o Estado central e os cidadãos. Mas nem sempre foi uma
prática pacífica, porque muitos viam nesta colaboração um perigo para a unidade
do Estado (Orre, 2008), além de que não se entendia como é que a democratização
com base em eleições podia harmonizar-se com a aceitação de autoridades não
eleitas e legitimadas pela tradição.
Uma primeira análise crítica do processo de descentralização e desconcentração
Depois deste quadro geral é possível, desde já, fazer algumas observações sobre
o desenvolvimento do processo de descentralização e desconcentração. Em
primeiro lugar, o programa inicial (PROL) teve por objetivo a divisão
administrativa segundo um prisma de descentralização. Porém, as primeiras
eleições multipartidárias em 1994 mostraram que a Renamo conseguiu ganhar as
eleições nos meios rurais de algumas regiões do centro e norte do país. Em
segundo lugar, os diversos pacotes legislativos foram quase integralmente
informados pela legislação e pela doutrina portuguesa. Isso é patente,
sobretudo, no caso das autarquias locais. Em terceiro lugar, numa primeira
fase, os responsáveis moçambicanos ignoraram as autoridades tradicionais, mas a
evolução dos acontecimentos obrigou-os as integrar esta administração. Só que a
forma de integração das autoridades tradicionais consistiu, em grande medida,
na reactualização do modelo de administração de indirect ruleque presidiu à
Reforma Administrativa Ultramarina, e que vigorou no país durante praticamente
todo o tempo colonial (Fernandes, 2007, p. 158), mesmo no que concerne ao
reconhecimento da legitimidade dos líderes locais.
Em conclusão, temos no mesmo território três tipos de administração, em muitos
casos sobrepondo-se e, noutros, complementando-se: administração local do
Estado (desconcentrada); administração local autárquica (descentralizada); e
administração comunitária, onde podemos encontrar chefes tradicionais,
secretários de bairro, grupos dinamizadores, grupos religiosos e não
religiosos, organizações não-governamentais e outros líderes, sendo certo que a
administração comunitária não tem autonomia, reportando ora ao município, ora à
província ou ao distrito, conforme a Figura_3.
Na prática, porém, o processo administrativo local é o resultado do embate dos
modelos administrativos importados com a cultura e lideranças locais. As
populações sempre aprendem os procedimentos administrativos pelo entendimento
das Autoridades Tradicionais (Régulos) ao longo de séculos.
A Figura_3 reproduz o reconhecimento e a regulamentação por parte do Estado das
formas de legitimação e reconhecimento das autoridades comunitárias, e dos
modos de articulação dos órgãos locais desconcentrados e descentralizados com
as demais autoridades (internas/externas e nacionais/não nacionais)
intervenientes no espaço local. Temos, assim, um Estado heterogéneo,
potencialmente gerador dum processo de fragmentação, sobretudo em municípios
controlados por partidos opostos ao poder central, se enraizados em culturas
locais dotadas de autonomia.
Finalmente, importa sublinhar que os modelos administrativos convencionais
foram importados da Europa, tendo havido uma forte pressão dos doadores
internacionais que impuseram a descentralização como condição das doações.
Estas formas administrativas importadas da metrópole colonial estavam imbuídas
da nova gestão pública que impregnava toda a administração, incluindo a
administração local.
Análise empírica a partir do caso de Inhambane
Como vimos atrás, o prisma de refração dos modelos administrativos importados é
constituído pelas autoridades tradicionais. Em ordem a medir o seu conteúdo,
bem como o seu peso no processo administrativo, escolhemos como ponto de
análise o município de Inhambane, situado entre o sul e o centro de Moçambique
e no qual a complexidade social e da cultura tradicional não foge à realidade
nacional do país, pese embora existirem diferenças de uma região para outra.
Nesse sentido, lançámos um inquérito por questionário, que foi realizado em
2005.
O processo de aplicação do inquérito baseou-se na literatura (Ghiglione &
Matalon, 1993), tendo por base o aumento da taxa de resposta e a diminuição de
erros. Em primeiro lugar, estudantes selecionados nas escolas pré-
universitárias das cidades de Inhambane e Maxixe contactaram os chefes de
bairros do concelho municipal de Inhambane sob estudo (Chalambe 1, Chalambe 2,
Liberdade 1, Liberdade 2, Liberdade 3, Muelé 1, Muelé 2, Muelé 3,
Guitembatuano, Matembuane, Mucucune, Marrambone, Chamane, Salela, Machavenga,
Siquiriva, Josina Machel, Conguina, Nhamúa, Ilha de Inhambane, Balane 1,
Balane 2, Balane), com o fito de informar a população sobre a importância deste
inquérito inserido num projeto de estudo da gestão municipal da cidade. Além
dos estudantes, a Rádio Moçambique, a pedido do coordenador do estudo, difundiu
a realização do estudo. Este contacto prévio tinha por objetivo que a tutela
sensibilizasse os munícipes a participarem no preenchimento do inquérito,
podendo funcionar como um incentivo à participação.
Posteriormente, cada chefe do bairro foi contactado por alunos, que
apresentaram os objetivos do estudo, o inquérito a preencher e a forma de
colaboração pedida. A decisão de aplicar o inquérito porta a porta nos bairros
surgiu da metodologia desenhada no projeto de investigação. A metodologia
escolhida pretendia facilitar o acesso aos munícipes e abranger todos eles,
conforme o critério da lotaria usado na seleção do número de polícia, bem como
levar ao preenchimento do inquérito por parte dos inquiridos, de forma a
aumentar a taxa de resposta. Este método permite ao investigador controlar o
grau de participação dos inquiridos ao longo de todo o processo e ter maior
facilidade no tratamento posterior dos dados.
A amostra compõe-se de 570 inquiridos na condição de residentes do concelho num
período igual ou superior a cinco anos. Consideramos, pois, as respostas
representativas não só do concelho em que os inquéritos por questionário foram
aplicados, mas do resto dos concelhos ou regiões de Moçambique apresentados no
Quadro_4. Entretanto, o resultado apresentado no quadro resulta da seguinte
questão: o que significa para si AT – Autoridades Tradicionais/Régulos?
Do total da amostra (N=570), 287 indivíduos responderam ao questionário. O
resultado do Quadro_4 fornece uma síntese do que as populações inquiridas
entendem como sendo as Autoridades Tradicionais e quais as respetivas funções.
Importa frisar que as respostas são integralmente brutas, pois na análise dos
resultados optámos por não recodificar respostas relativamente próximas para
não alterar as opiniões dos inquiridos.
Assim, o maior grupo de inquiridos, 15%, considerou que as Autoridades
Tradicionais eram intermediárias entre autoridades estatais e a comunidade
local; 10,1% dos respondentes definiu Autoridades Tradicionais como poder de
reis, poder da justiça (dos usos e costumes), administradores de terras,
poderes locais seculares que trabalham junto da comunidade local em defesa dos
seus valores e da cultura do povo e que, com a colonização, passaram a
constituir a base do poder do Estado na localidade, bem como no território. O
outro grupo de inquiridos imediatamente a seguir, formado por 9,4% de
indivíduos, definiu Autoridades Tradicionais como defensores e embaixadores da
cultura do povo. As definições que recolheram um menor número de escolhas, 0,3%
cada, consideram as AT como poder incontornável na administração da justiça e
mobilização das populações na defesa de interesses locais, defensor da
cidadania nacional, membro do governo na localidade, âncora do Estado na
sociedade, mobilizadores das populações no campo, poder do nosso passado, poder
histórico organizado, governantes do campo/localidade, estruturas herdadas do
passado, poderes antigos, conservadores da cultura nacional, delegados do povo
no poder oficial, membros da justiça na localidade, líderes escolhidos pelo
Estado para servir o povo, poder dos antigos reis, culto dos nossos
antepassados, bibliotecas vivas do povo, ditadores rurais, pessoas obedecidas
pelo povo, cobradores de impostos.
Legitimidade do poder local em Moçambique
O Quadro_5 abaixo foi elaborado com base na seguinte pergunta: diga qual a sua
opção em relação as afirmações apresentadas.
Dos 539 indivíduos que responderam ao questionário, 86,1% escolheram a
afirmação: Autoridades Tradicionais (ou Régulos) devem conservar algum poder,
mas o Presidente da Câmara Municipal deve ter maior autoridade. Porém, no mesmo
Quadro_5, pode ver-se que existe outro grupo, 1,9% dos inquiridos, que
considera que o sistema de AT deve ser completamente abolido. Desse modo, pode
concluir-se que a generalidade de cidadãos inquiridos considera as AT como
parte integrante do poder local.
Pluralidade política do poder local
Partindo da questão do pluralismo jurídico-administrativo observado em
Moçambique pediu-se aos inquiridos que escolhessem só uma das cinco afirmações
a seguir indicadas em resposta à seguinte questão: até que ponto concorda ou
discorda das seguintes afirmações abaixo?
Os Grupos Dinamizadores[2] (GD) e Autoridades Tradicionais (ou Régulos) (AT)
devem trabalhar em conjunto com a Câmara Municipal, bem como com autoridades
distritais;
Os GD devem trabalhar em conjunto com a Câmara Municipal (incluindo autoridades
distritais);
As AT devem trabalhar em conjunto com a Câmara Municipal (incluindo autoridades
distritais);
Os GD devem ser abolidos definitivamente;
As AT devem ser abolidas definitivamente.
Na análise dos resultados obtidos no Quadro_6, pode ver-se que existe um total
de 85,7% de pessoas inquiridas que concorda ou concorda muito com a articulação
entre AT, Grupos Dinamizadores (GD) e Câmara Municipal, bem como com as
autoridades distritais. Este resultado reforça as bases que deram origem à
publicação do decreto-lei n.º 80/2004, que estabelece critérios de legitimação,
no caso dos líderes tradicionais, através de seleção validada mediante as
regras da respetiva comunidade (art. 8º), enquanto os secretários de bairro ou
aldeia deverão ser escolhidos segundo mecanismos da respetiva comunidade local
ou grupo social (art. 9º) (Meneses, 2009).
O grupo de participantes que discorda ou nem quer ouvir falar dessa articulação
é apenas de 5,1%. A resposta sugere, portanto, que o número de cidadãos que
rejeita o papel das AT é diminuto, o que pode ser traduzido no interesse
crescente pelas autoridades tradicionais e a sua relação com o Estado, enquanto
tema central ao debate político no mapa do continente africano.
Em relação à articulação entre o Conselho Municipal (incluindo autoridades
distritais) e os Chefes Tradicionais, o Quadro_7 mostra que 50,8% de pessoas
discorda totalmente ou nem quer ouvir da questão, enquanto 23% concorda ou
concorda muito com essa articulação. Estas respostas parecem mostrar que é
percebido pela população um antagonismo entre as Autoridades Tradicionais e o
Conselho Municipal, considerando o papel histórico das AT quer no regime
colonial, quer a sua experiência no regime socialista do pós-independência.
Considerando o Quadro_8, verifica-se que 39,2% dos respondentes discorda
totalmente ou não quer ouvir falar da articulação entre o Conselho Municipal e
Grupos Dinamizadores, enquanto 39% concorda ou concorda muito com essa
articulação. Esses resultados sugerem uma clara divisão de opiniões entre o
grupo de inquiridos.
O Quadro_9 mostra a posição dos respondentes face à questão da abolição das
Autoridades Tradicionais: 92,6% discorda totalmente ou nem quer ouvir falar da
extinção das AT, enquanto 2,2% se manifesta a favor. Este resultado dá a ideia
de que as populações atribuem às AT um papel central na Administração Pública.
Como dissemos antes, as Autoridades Tradicionais são mediadoras e contraponto
do poder central e municipal, mesmo que este tome a forma do poder municipal na
sua forma originária na Europa.
No que diz respeito aos Grupos Dinamizadores, conforme o quadro_10, 11,88,3%
das pessoas discorda totalmente ou nem quer ouvir falar da sua abolição contra
apenas 4,4% que se manifestam a favor da extinção, pese embora o seu papel
histórico. De facto, durante a luta armada de independência de Moçambique e,
sobretudo, no pós-independência, os Grupos Dinamizadores passaram a desempenhar
o papel das AT (Autoridades Tradicionais ou Régulos), identificando-se com
estas por indicação da Frelimo, sem, no entanto, terem adquirido o mesmo peso
das Autoridades Tradicionais.
Conclusão
Do confronto da teoria prismática com a análise do desenvolvimento
administrativo em Moçambique e com a análise dos dados empíricos, verifica-se
que a cultura e a estrutura política tradicionais têm uma importância central.
Desse modo, a administração local não se esgota nas leis que traduzem modelos
importados, mas tem que ser lida nas práticas administrativas e no
comportamento dos habitantes.
A observação destas distorções ou refrações obriga, necessariamente, a um outro
tipo de estudo mais em profundidade, de confronto entre o papel das autoridades
administrativas formais e das autoridades tradicionais.
Na nossa opinião, as práticas e as rotinas administrativas não são uma
fotocópia das intenções do legislador, nem pura e simplesmente a tradução do
pensamento tradicional. A análise empírica não explica completamente a teoria
prismática, mas confirma que tal teoria constitui uma aproximação explicativa
da formação do poder local em Moçambique.