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EuPTHUHu1645-37942015000200006

EuPTHUHu1645-37942015000200006

National varietyEu
Country of publicationPT
SchoolHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN1645-3794
Year2015
Issue0002
Article number00006

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Os Municípios dos Outros: Alternância do poder local em Moçambique? O caso de Angoche ARTIGO ORIGINAL Os Municípios dos Outros. Alternância do poder local em Moçambique? O caso de Angoche The municipalities of "others". Alternation of local power in Mozambique? A case study of Angoche O nosso estudo insere-se nos trabalhos que procuram reconstituir com recurso a dados empíricos a análise do processo de descentralização através de interrogações acerca do exercício da governação local. A questão que colocamos é a de saber como (e com que estratégias) se posicionam os múltiplos actores implicados na gestão do poder local. A hipótese desenvolvida é a de que as reestruturações administrativas operadas e as relações estabelecidas entre os poderes estatais e as elites e populações de Angoche, ao longo do tempo, contribuíram para o voto a favor da Renamo, que, entretanto institucionalizada, falhou a gestão local, devido não aos bloqueios financeiros e administrativos exercidos pelo poder central, mas também à reprodução de práticas clientelares na gestão pública local. Para este trabalho, para além da bibliografia de base sobre descentralização e eleições, foram consultadas actas do Conselho Municipal de Angoche, jornais de maior circulação nacional e feita uma observação directa à campanha eleitoral dos partidos Frelimo e Renamo (2003) neste município. As entrevistas semiestruturadas individuais e com grupos focais, com os candidatos às eleições municipais de 2003 em Angoche, vereadores do Conselho Municipal, elites locais e população foram também privilegiadas. A triangulação destas metodologias permitiu-nos obter respostas sobre a problemática do exercício do poder ao nível local em contexto de fragilidade institucional. Com base neste estudo concluímos que os bloqueios operados pelo Estado central e a reprodução das práticas de gestão neopatrimonialista pela Renamo exacerbaram os conflitos entre este partido, as elites locais e a população, o que permitiu à Frelimo manipular as elites locais e recuperar o poder municipal. Para uma melhor estruturação do argumento, este artigo está dividido em três partes: a primeira parte mostra de forma breve como é que a evolução política e administrativa foi determinante na estruturação das relações entre o Estado, elites e populações ao longo dos diferentes períodos da história de Angoche; a segunda discute as razões que justificaram o tipo e o modelo de descentralização e a forma como o partido Frelimo no poder ao nível central desde 1975 estruturou esta descentralização para consolidar seu poder ao nível local; e, na terceira parte, mostra-se como é que a ausência de mecanismos alternativos de gestão local contribuiu para a instrumentalização do Estado e das elites locais pela Frelimo, para esta recuperar o poder e consolidar sua hegemonia local.

Do sultanato de Angoche à Comissão Municipal de António Enes Para falar de Angoche é necessário levar em conta uma zona económica que vai para além dos limites administrativos do actual distrito de Angoche. De facto, o sultanato de Angoche, baseado no Catamoio, no interior da Ilha de Angoche, projectava sua influência desde o antigo sultanato de Sangage até ao sheikado [1] vassalo de Moma, ao sul, estendendo-se ao sultanato de Pebane, sobre o estuário de Moniga, no limite dos domínios zambezianos (Pélissier, 1984, p.

35). As relações estabelecidas entre o sultanato de Angoche e os outros sultanatos e sheikados e os chefes das terras do interior e o comércio de escravos modificaram a situação sociopolítica da região e jogaram um papel importante na natureza e no carácter heterogéneo e complexo das suas instituições sociais. O sultanato de Angoche fortificou sua posição, não somente em relação às redes do Oceano Índico, dominado pelos suaílis, mas também em relação aos povos do interior próximo e constituiu um obstáculo sério para a conquista do território, não devido ao seu proselitismo, mas também à resistência aos desígnios imperialistas dos portugueses (Albuquerque, 1899, p.

12).

Enquanto os portugueses tentavam acabar com a falta de respeito em relação á sua autoridade, o Rei elevou, a 5 de Julho de 1865, o sultanato de Angoche à categoria de governo subalterno (designado distrito de Angoche). A sede do governo colonial, instalada na Ilha de Angoche, foi transferida para o continente, porque a Ilha de Angoche se situava numa zona difícil para a navegação devido ao perigo que os indígenas representavam para as autoridades portuguesas (Ferrari, 1881, p. 6). Na nova capital, os portugueses nomearam Intide Muno Suleiman Bin Raja comosargento-mor, o mais alto posto ocupado por um indígena em Angoche (Machado, 1970, p. 444), instalaram um juiz e um município (Botelho, 1921, p. 38), que foi abolido por Mouzinho de Albuquerque, através do decreto 9, de 10 de Dezembro de 1896, por falta de pessoas competentes para exercer cargos municipais, e fundos suficientes para cobrir as despesas administrativas[2] (Sousa, 1946, p. 78). Pelo decreto 1 de 1893, a divisão administrativa da província de Moçambique foi alterada. Todos os governos subalternos da província foram suprimidos e o do distrito de Angoche foi substituído por um comando militar e, posteriormente, pela capitania-mor de Angoche, anexa ao distrito de Moçambique em 1897. Esta organização administrativa subsistiu até à conquista efectiva do território de Angoche em Junho de 1914. Pelo decreto 68, de 30 de Junho de 1921, do Alto Comissariado, as capitanias-mores foram subdivididas e o distrito de Angoche tornou-se na sede da 11a circunscrição civil de Angoche, englobando toda a superfície do antigo comando militar de Angoche e uma parte do comando de Matatane, ocupando assim os territórios dos postos administrativos de Quilua, Boila, Sangage e Larde (Machado, 1970, pp. 535-536). Em 1924, o artigo 77º da Carta Orgânica da Colónia de Moçambique determinou, no seu 2, a separação dos territórios de Larde, que faziam parte da circunscrição civil de Angoche e Mogovola, constituindo, pelo decreto provincial 68, de 30 de Junho de 1924, a nova circunscrição civil de Moma (Secretaria Civil do Distrito de Moçambique, 1924, p. 12). Do mesmo modo, o que constituía a simples circunscrição civil de Angoche, pelo decreto 24621, de 31 de Outubro 1934, foi elevado à categoria de concelho de António Enes, classificado como concelho de 3a classe e a sua sede elevada, pela portaria 2377 de 19 de Dezembro de 1934, à categoria de cidade (Sousa, 1946, p. 78).

O Governo-geral, para melhor gerir o crescimento da população branca depois da II Guerra Mundial, foi obrigado a sistematizar sua política municipal, mormente através da nova Carta Orgânica do Ultramar (1951). Foi na ocasião aprovado um diploma legislativo que criou as Comissões Municipais, sorte de pré-município em todos os concelhos onde o número de eleitores era inferior a 300[3], com excepção das sedes dos distritos. Assim, a portaria 11579, de Agosto de 1956, transformou a Comissão Administrativa do Concelho de António Enes em Comissão Municipal[4]. Uma das primeiras medidas tomadas pela Comissão Municipal, na sua tentativa de civilizar os indígenas, foi a urbanização dos bairros de Inguri e Puli.

A cooptação das elites e população locais? Na realidade, foi durante o período do administrador colonial Cristóvão dos Santos, nos inícios dos anos 1960, que a nova equipa de vereadores eleitos em António Enes começou um processo de cooptação das elites e da população. No plano económico, a administração encorajou os capitais portugueses e estrangeiros a investir na indústria de descasque de castanha de caju. Assim, foram construídas três fábricas de descasque de castanha de caju na cidade de António Enes. No plano político, enquanto para o colonialismo português a acção dos muçulmanos era, em si mesma, prejudicial e justificava a tomada de acções brutais contra eles, a perspectiva da luta anticolonial obrigou o Estado português a mudar de atitude perante os muçulmanos. A fim de evitar que os muçulmanos se associassem ao inimigo, a administração portuguesa começou a apoiar acções religiosas, sociais, políticas e jurídicas desenvolvidas pelos chefes religiosos muçulmanos, financiando viagens a Meca (Alpers, 1999), mas também os colocou em posições electivas, dando-lhes postos importantes na administração municipal de António Enes. Em 1966, a administração municipal de António Enes urbanizou quase todo o bairro de Inguri, habitado pela elite Coti.

Em 1967, cerca de 200 casas modernas, com a mesma qualidade das casas situadas na cidade principal e habitadas pela população branca, tinham sido construídas (Nogueira, 1968, p. 12). Tratava-se, sob cobertura de promoção social, de uma tentativa de controlo social e político.

É nesta condição de paz social entre as elites locais, suas populações e as autoridades municipais que o Governo de Transição, resultante dos Acordos de Lusaka, publica o decreto-lei 6/75, de 18 de Janeiro. Este decreto-lei alterava as nomenclaturas da divisão administrativa do território: antigos distritos tornaram-se províncias; os concelhos e circunscrições passaram a ser distrito e, finalmente, os postos administrativos a localidades (Pililão, 1989, p. 8). Com a lei 7, de 22 de Abril de 1978, assistimos à abolição das Câmaras Municipais, Juntas Autónomas e demais corpos administrativos e serviços de administração civil em todo o território nacional, que foram substituídos pelas assembleias do povo. Com a formação das assembleias, estavam criadas, segundo a Frelimo, as condições para a organização do Estado e abolidas as antigas estruturas do Estado colonial. Ao longo deste processo, notáveis religiosos, chefes das chefaturas locais, cuja maioria tinha habitado em Inguri, foram acusados pela Frelimo de ter colaborado com as autoridades coloniais e destituídos de seus direitos cívicos e políticos, com o objectivo de impedir, não sua entrada nos órgãos do partido, mas também de sabotarem o programa de transformação social da Frelimo (Frelimo, 1977). Com esta atitude, começou a florescer lentamente nas elites e nas populações locais uma atitude de expectativa mal administrada pelas novas autoridades. Os meios sociais urbanos, elitistas e populares de Angoche entravam em posição desfavorável nas relações com o novo Estado independente, que se queria modernizador das estruturas administrativas.

Temos aqui numa situação diferente da estudada por Geffray no caso de Érati, na Macuana, onde as populações próximas da Frelimo tinham sido as privilegiadas durante o período colonial, enquanto os marginais e rebeldes do período colonial continuavam marginais do Estado independente, antes de se tornarem opositores da Frelimo e de se submeterem à autoridade militar da Renamo (Geffray, 1990). Em Angoche, os beneficiários das políticas coloniais encontravam-se numa situação de marginalidade vis-à-vis o Estado independente.

De facto, os Cotis foram apenas favorecidos pelos portugueses no fim do período colonial. Antes tinham sido marginalizados. No longo período colonial, foram mais marginalizados do que privilegiados. O que é sobretudo diferente é que, em Érati, os meios étnico-sociais marginalizados não tinham uma elite urbana, enquanto os Cotis de Angoche, mesmo se marginalizados durante muito tempo pelo poder colonial e, depois, pelo Estado da Frelimo, permanecem, ainda assim, como uma elite urbana, que, embora parcialmente, conseguiu mudar o curso dos acontecimentos, graças ao neoliberalismo.

As reformas de descentralização, lógicas do poder local, institucionalização e gestão Renamo A abolição dos partidos políticos surgidos depois de 1974, a política de modernização autoritária implementada pelo governo da Frelimo depois de 1975 e factores de ordem histórica resultaram na guerra civil que devastou o tecido social e económico do país (Abrahamsson & Nilson, 1995, p. 66), exacerbando os conflitos sociais e políticos, nascidos durante a colonização portuguesa e mal administrados durante o período do partido único. Esta guerra contribuiu também para a configuração da estrutura política e eleitoral de Moçambique no período do multipartidarismo. As primeiras eleições gerais, presidenciais e legislativas de 1994 ganhas pela Frelimo, com 44,33% dos votos contra 37,78% da Renamo, marcaram a bipolarização, demarcaram regional e etnicamente o espaço político nacional e jogaram um papel importante na escolha do tipo de descentralização a adoptar[5].

As reformas de descentralização em Moçambique: da lei 3/94 à lei 2/97 das autarquias locais A primeira fase das reformas de descentralização, que culminou na lei 3/94, começou em 1991 com a elaboração, pelo governo, do Programa da Reforma dos Órgãos Locais (PROL). Este programa tinha como objectivo a reforma do sistema administrativo em vigor, centralizado, pouco eficiente e desequilibrado, e a sua transformação em 23 distritos municipais urbanos e 128 distritos municipais rurais (sedes distritais). Os distritos municipais seriam dirigidos por três órgãos (presidente, assembleia e conselho municipal) eleitos por sufrágio universal, directo e secreto. Estes órgãos deviam ter personalidade jurídica própria, diferente da do Estado, e ser dotados de autonomia administrativa, financeira e patrimonial (Lachartre, 2000, p. 321). A lei 3/ 94 foi aprovada por unanimidade no fim da última legislatura monopartidária, pelos deputados da Assembleia Popular, em Setembro de 1994, um mês antes das primeiras eleições gerais de 1994. Foi uma unanimidade não consensual, ainda mais porque tinha suscitado grandes debates e preocupações entre o governo e o partido do regime, sobretudo no seio da linha dura (O'Donnell & Schmitter, 1986), que não aceitava fazer concessões e queria conservar intocáveis as estruturas de poder. A forte oposição da linha dura estava ligada não à crença numa possível fragmentação do Estado, mas também a uma eventual perda de controlo sobre os rendimentos económicos, porventura decorrente da autonomia na gestão dos recursos locais, podendo, assim, intensificar-se a competição entre as estruturas do partido ao nível central e as elites do poder local.

Caminhando no sentido de reforço da unidade nacional, da democracia e da reconciliação, os objectivos desta reforma seriam alcançados através do diálogo, do consenso, da estabilidade política (Lachartre, 2000, p. 321) e económica. Do ponto de vista das finanças locais, os distritos municipais beneficiariam de um regime financeiro e patrimonial e, também, de um orçamento próprio, que seria elaborado e gerido de acordo com os princípios da gestão por objectivos. As receitas seriam provenientes dos impostos municipais, taxas e tarifas de serviços, ou de rendas de seu capital, de bens imobiliários, de participações financeiras da venda de bens patrimoniais (art. , alínea d- da lei 3/94). Este artigo é paradoxal, na medida em que, depois da guerra civil, muitas sedes distritais estavam completamente destruídas e sem nenhuma infra-estrutura. Isto mostra o carácter mimético (Darbon, 1998, p. 62) desta lei, que foi copiada da legislação municipal portuguesa, sem analisar as condições sociais do lugar onde ia ser implementada.

A segunda fase das reformas consistiu na criação das autarquias locais (lei 2/97), em Fevereiro de 1997. Mas, entre as duas leis, a composição da Assembleia da República tinha sido renovada pelas eleições gerais de 1994, pondo fim à unanimidade e ao consenso que tinham conduzido à adopção da primeira lei municipal (3/94). As eleições legislativas de 1994 permitiram ao partido Frelimo ganhar as eleições com 129 deputados (44,33%) e conservar o poder executivo e legislativo. Contudo, os 112 (37,78%) deputados eleitos pela Renamo punham em xeque a hegemonia política da Frelimo e transferiram os debates para uma arena mais institucionalizada.

Em 1996, foi proposta uma legislação complementar, que culminou com a emenda constitucional e a adopção da lei 6/96, que introduziu, no capítulo sobre os órgãos locais do Estado, 11 artigos (188-198) sobre o poder local. Segundo a lei 6/96, os novos órgãos locais autónomos (municípios) deviam completar e não substituir os órgãos locais nomeados pelo governo central. Esta dupla administração implicava que as zonas rurais seriam administradas por um administrador de distrito, nomeado pelo governo central. Este exerceria o seu poder em paralelo com os órgãos representativos e descentralizados (Soiri, 1999, p. 9) nas zonas onde fossem instalados municípios (Simango, 1999, p. 15).

A descentralização acentuava a divisão do país entre centros urbanos, activos e dispondo de uma autonomia real de administração, e uma zona rural submetida à assistência do Estado.

Revogando a primeira lei (lei 3/94) sobre os distritos municipais, a lei 2/97 das autarquias locais designava a circunscrição territorial municipal, as cidades e vilas e sedes dos postos administrativos e não mais o distrito, e excluía os territórios rurais, onde a Renamo era forte politicamente. O princípio do gradualismo foi assim introduzido[6].

Um gradualismo produtor de diferenciações sociais Por força da lei 2/97, as eleições municipais tiveram somente lugar nas 33 principais cidades e vilas que tinham adquirido o estatuto de município.

Segundo as estatísticas, cerca de 4,2 milhões de eleitores (69% dos eleitores que tinham votado em 1994) foram, nas primeiras eleições locais de 1998, impedidos de eleger seus representantes locais[7]. Este gradualismo separava cidadãos do mesmo país em duas categorias: a primeira, constituída pelos residentes das cidades e vilas (mundo da Frelimo), e a segunda, composta pelos habitantes dos distritos rurais, supostamente mais próximos da Renamo[8], que permaneciam assim impedidos de escolher seus representantes locais. Se seguirmos a análise de Brunet (1997), segundo a qual

nos países que se preparam para uma descentralização e nos quais a Reforma é ligada à democratização do regime político, a descentralização deve ser implementada em todo o território nacional, porque não será percebido pelas populações, que algumas acedam mais cedo do que as outras, a um estado superior de democracia (p. 37),

compreende-se a reivindicação de segmentos das zonas rurais, que se queixavam da sua exclusão nas eleições autárquicas de 1998 e interpretavam esse procedimento como o regresso do sistema de partido único, onde certos grupos sociais não podiam eleger nem ser eleitos.

Que descentralização? Se nos concentrarmos nas condições sobre as quais certas experiências de descentralização, como do Senegal (Piveteau, 2005), da África do Sul (Crouzel, 2004) e da Costa de Marfim (Koffi, Tere, & Mel, 2013) se produziram, podemos concluir que, em Moçambique, as condições para a implementação do processo não estavam reunidas. Tratava-se de um Estado enfraquecido pela guerra civil que cedeu às pressões das instituições de Bretton Woods para se comprometer com a descentralização (Otayek, 2007, p. 136), sem dispor de meios materiais e humanos indispensáveis para sua concretização. Esta situação é diferente da dos países ocidentais, em que a descentralização repousa sobre a existência prévia e o funcionamento consolidado das estruturas locais, independentes e em torno das quais se agrega uma lógica social particular e entidades locais com identidade própria (Gontcharoff, 1991, p. 11), sem que isso represente um risco de ruptura de fidelidade em relação ao centro político (Pérès, 1994). O processo de descentralização deve incidir sobre uma história, uma cultura, instituições e práticas próprias de modo a ser apropriado pelas populações locais (Brunet, 1997, p. 17) e não pode ser levado a cabo sem um certo número de forças internas com aspirações a ultrapassar a democracia representativa e a experimentar formas renovadas de exercício de poder local (Palard, 1993, p. 2). Em Moçambique, apesar de o processo de descentralização não se ter realizado com o impulso das autoridades locais, havia nas zonas rurais um certo número de autoridades que alimentavam aspirações de mais autonomia, em particular ao nível da gestão financeira de suas povoações (Lachartre, 2000, p. 334). Contudo, esse desejo não foi tomado em conta, o que não favoreceu a institucionalização de uma verdadeira democracia participativa (Braathen, 1998, p. 8) não tendo sido criadas instituições locais representativas e responsáveis, capazes de restituir o poder às populações (Ribot, 1999, p. 34).

As eleições autárquicas de 2003: É possível uma política municipal da Renamo num contexto de hegemonia política da Frelimo? Entre as eleições autárquicas de 1998, boicotadas pela Renamo e ganhas pela Frelimo nos 33 municípios, e as eleições municipais de 2003, realizaram-se as segundas eleições gerais, presidenciais e legislativas, em 1999. Apesar da vitória da Frelimo, com 48,54% dos votos, e do seu candidato Joaquim Chissano, com 52,29%, a Renamo, com 38,1% dos votos, foi considerada a grande vencedora, por ter conquistado mais uma província do extremo norte de Moçambique (Niassa), nas mãos da Frelimo desde 1994. Com esta subida, a Renamo seria capaz de ganhar as eleições municipais de 2003 em Angoche? Caso vencesse as eleições municipais, a Renamo seria capaz, conforme Otayek (1989), de ‘governar' de uma maneira diferente, de implementar um programa credível e de escapar à reprodução de interesses clientelares e comunitários (pp. 10-11) para preencher sua função de representação social, que lhe competia enquanto partido político? A batalha das eleições municipais de 2003 em Angoche. O regresso do Islão e da mesquita como lugar do político Com a instauração do pluralismo, os actores locais mostraram nova dinâmica na tentativa de encontrar seu lugar no novo ambiente político. Nesta dinâmica, o Islão, prática dominante no município de Angoche, e os notáveis locais jogaram um papel determinante no estabelecimento de relações entre os eleitores, candidatos e partidos políticos, sobretudo durante a campanha eleitoral. Como é que se desenrolou a campanha eleitoral? Nesse momento, assistiu-se a uma grande mobilização de recursos políticos e económicos em Angoche? De facto, as campanhas são ocasiões para medir a importância dada aos temas e argumentos nacionais/locais, quando a oferta política feita aos eleitores comporta uma boa dose de solicitações localizadas (Mabileau, 1993, p. 171). São momentos fortes da vida política, onde vemos os políticos implementar todos seus recursos na batalha (Lacam, 1988, p. 30), mesmo os que a priorinão são os mais prováveis (caso da realização dos barajanzis pela Frelimo). A campanha eleitoral não era uma novidade em Angoche, porquanto as populações deste município tinham conhecido experiências eleitorais durante a colonização (Nogueira, 1968, p. 5). Contudo, as eleições pluralistas depois de 1994 tinham acrescentado elementos democráticos muito importantes e alargado, de forma considerável, a lista das regras do jogo locais[9]. Vejamos como este processo se desenrolou no município de Angoche.

Entre o segredo (Renamo) e a abertura (Frelimo) na campanha eleitoral em Angoche Em Angoche, o intuito da obtenção da ajuda e de apoio político dos líderes religiosos muçulmanos levou os dirigentes da Frelimo a optarem por uma campanha eleitoral aberta. Aquando da abertura da campanha da Frelimo e de seu candidato, José Constantino, foi realizado pelos sheikhs[10] locais, a pedido do governador da província de Nampula, Abdul Razak, um barazanji[11]. Na ocasião, formaram-se dois grupos, um constituído por homens e outro por mulheres, pertencentes às associações islâmicas locais. Nesta cerimónia, o sheikh Muhammad Abdallah, um dos líderes mais respeitados de Angoche (Inguri), foi chamado para presidir o adhuhury(a reza do meio-dia). Durante a cerimónia, o governador foi designado de sultão Abdul Razak, e, quando lhe foi dado o ejaza (o papel de prestígio) para ler o extracto final do Kitab, o governador pediu a um outro sheikh, Omar Aria, para ler em seu lugar. No apogeu do barazanjie no círculo que tinha sido constituído pelos dois grupos para a realização do tikhiri, o sheikh Omar Aria guiou o Sultão Abdul Razak para a dança no centro do círculo, recriando um cenário de longa tradição e em voga no antigo sultanato de Angoche. Segundo a análise de Abélès,

as reuniões e as manifestações têm alguma semelhança com rituais consensuais que exigem da parte dos protagonistas uma presença física, e se decompõem numa multiplicidade de sequências, de falas, de símbolos gestuais e onde se manipulam objectos com valor simbólico numa encenação que integra acção, discurso, repetição, dramatização (1997, p. 225).

Reencontramo-nos diante de quatro ingredientes: sacralidade, território, primado de valores e símbolos colectivos (ibid.). Tal análise é susceptível de aplicação à campanha organizada pela Frelimo e pelo seu candidato nas eleições de 2003 em Angoche. Para a maior parte dos líderes muçulmanos e a população presentes nesta cerimónia organizada pela Frelimo e seu candidato, era a primeira vez, desde a queda do sultanato de Angoche, que um tal sinal de respeito era prestado ao Islão por um alto responsável e representante do governo da Frelimo. Como consequência, a maior parte dos líderes muçulmanos exprimiram a sua profunda gratidão por aquele barazanji. O sheikh Omar Aria, que tinha durante muito tempo apoiado a Renamo, dizia que desta vez a Frelimo ganharia as eleições em Angoche (entrevista com Omar Aria, Angoche, 5 de Novembro de 2003). A valorização dos conhecimentos e das tradições locais contribuía para a reabilitação dos notáveis, devido à posição de centralidade que ocupavam no sistema de relações sociais locais. De facto, muitos sheikhs, que tinham sido considerados inimigos da revolução, que tinham sido marginalizados pela Frelimo nos primeiros anos da independência e que apoiavam a Renamo, estavam visivelmente satisfeitos pela possibilidade que lhes tinha sido dada de interagir e colaborar directamente com o governador de Nampula. O recurso ao religioso que fornece, ao mesmo tempo, alternativa de reconstrução identitária foi associado, portanto, à procura de sentido e de reposição da ordem num mundo em transformação. Esta imbricação de práticas religiosas e políticas fazia passar a mensagem de reconciliação social. O candidato da Frelimo, José Constantino, declarou:

Em alguns bairros de Angoche, nomeadamente em Inguri, considerado berço da Renamo, conseguimos constatar graças à campanha eleitoral realizada, que a tendência do voto está a mudar e está sendo favorável ao partido Frelimo [ ]. Realizámos um trabalho exemplar, o que nos valeu a adesão das populações (entrevista com José Constantino, Puli, 29 de Novembro de 2003).

Por seu turno a Renamo, sem meios financeiros para conduzir uma campanha eleitoral de uma forma aberta e para organizar festas e banquetes populares, optou por uma estratégia secreta e apática. Esta apatia das populações e da Renamo levou um dos sheikhs locais a dizer que a Renamo estava desmoronada em Angoche, porque num passado muito recente, com a presença de Dhlakama, havia uma tal multidão que era até impossível circular de carro nas ruas da cidade (entrevista com sheikh Rajabo, Angoche, 7 de Novembro de 2003). Na verdade, a campanha eleitoral da Renamo era feita nas principais mesquitas de Inguri[12].

Os líderes religiosos da Renamo tinham consciência de violar o Corão, praticando actividades políticas nas mesquitas, mas diziam não ter meios para se confrontar com a Frelimo, que tinha marcado propositadamente a campanha eleitoral para o período do Ramadão (entrevista com Alberto Omar, 14 de Novembro de 2003). Os temas dominantes durante os adhuhury eram, por um lado, as críticas às promessas de reabilitação das principais infra-estruturas socioeconómicas da cidade de Angoche, que tinha motivado a convocação e a realização, no ano 2000, de um conselho de ministros em Angoche; e, por outro lado, as humilhações de que os muçulmanos e seus principais notáveis tinham sido vítimas durante a vigência do regime de partido único. A Renamo também se comprometia a dar trabalho aos residentes, sobretudo àqueles que tinham sido sempre excluídos durante a governação local da Frelimo. Os sheikhs das principais mesquitas de Inguri foram chamados para se apresentar na esquadra local de forma a explicar esse procedimento, considerado pela polícia local de ilegal.

De facto, a maioria dos líderes religiosos muçulmanos, que se autoproclamavam partidários da Frelimo, eram também da Renamo. O sinal mais evidente foi que certos notáveis locais muçulmanos das mesquitas de Inguri, que tinham participado nos barazanjis organizados pela Frelimo e seu candidato José Constantino, estavam igualmente presentes nas reuniões secretas organizadas por Afonso Dhlakama e criticavam duramente a Frelimo durante as reuniões com seus fiéis nas mesquitas. Tinham talvez recebido em troca dinheiro ou outras promessas de apoio suplementar para apelar aos seus fiéis a votarem pela Renamo (Domingo, 30 de Novembro de 2003, p. 7).

Na zona costeira, e particularmente em Angoche e em Inguri, a mobilização política nas principais mesquitas não era um procedimento novo, antes constituía uma prática comum que datava do período colonial, sobretudo nos primeiros anos depois do início da luta anticolonial (1964) (Serviços Centrais de Centralização de Informação de Moçambique, 1963, p. 2). Isto permitia aos dignitários religiosos muçulmanos locais escapar às pressões das autoridades coloniais menos tolerantes em relação ao Islão. Na ausência de meios financeiros, a Renamo recuperou práticas locais antigas para fazer sua campanha eleitoral.

As eleições municipais de 2003: quem vota por quem? Do ponto de vista político, as eleições municipais de 19 de Novembro de 2003 confirmaram, também por causa da taxa de abstenção de 75,84%[13], a hegemonia do partido Frelimo em todo o território moçambicano. Mas, em Angoche, a Renamo ganhou as eleições locais. Para a assembleia municipal, dos 31 assentos em jogo a Renamo obteve 17, contra 13 da Frelimo e 1 do Partido Independente de Moçambique (PIMO). O candidato da Renamo, Alberto Omar, obteve 52,60%, o da Frelimo, José Constantino, 41,28%, e, finalmente, o candidato independente da sociedade civil, Isidro Assane, 6,12% (STAE, 2006). Os resultados das eleições municipais mostraram que o barazanji não conseguiu garantir uma vitória eleitoral da Frelimo em Angoche, antes, premiaram a estratégia da Renamo, que, apoiada sobre práticas sociais e culturais locais, conseguiu transformar o poder simbólico que os notáveis locais de Angoche detinham num verdadeiro recurso político e, como diz Siddique (1995), integrar politicamente camadas sociais desfavorecidas e tradicionalmente excluídas do jogo político local (p.

8). Estes tinham-se aproveitado da descentralização para ajustar contas antigas com seus rivais em seus territórios de pertença. Um sheikh local dizia a propósito que o tempo da Frelimo de ‘comer' tinha terminado, e que agora era a vez deles de comer também (entrevista com sheikh Mahamudo, Muchelele, 1de Agosto de 2007). A formulação deste sheikh levanta a questão de xitique do poder, um modelo útil para compreender as flutuações da fase de transição dos regimes autoritários de partido único para a democracia, as quais persistem em muitos países africanos. A ideia, segundo Monnier (1993), é a de que o poder é um bem simbólico que permite realizar grandes coisas quando se o detém e que deve ser equitativamente redistribuído de modo a satisfazer todas as facções envolvidas (p. 122), permitindo, assim, a diferentes projectos políticos dar uma perspectiva singular ao processo de democratização em curso.

Neste sentido, a democratização implica a redistribuição do poder político e dos correspondentes recursos económicos,

uma vez que a imagem do xitique traduz o rito de circulação de chefes de facções nas posições de poder (cada um de sua vez) e refere-se à noção de equidade no acesso ao poder e, a partir daí, à riqueza que é permitido juntar, que deve ser igualmente redistribuída de modo a satisfazer todas as facções em jogo (Monnier, 1993, p.

123).

O xitique na gestão dos municípios de Angoche dizia respeito aos patrões políticos (presidentes dos conselhos municipais, condutores das políticas municipais) e seus clientes (as elites locais e as populações). Mas seria a Renamo capaz de responder à grande esperança social dos seus clientes, de cumprir com as promessas feitas durante a campanha eleitoral e de partilhar o bolo? Não seria a Renamo vítima do seu próprio discurso em municípios de penúria e, sem base fiscal ou tributária, dependentes administrativa e financeiramente de um Estado hegemónico da Frelimo, que prometera usar todos os meios à sua disposição para reconquistar os municípios sob gestão da Renamo e consolidar o poder nos municípios? (entrevista com Filipe Paunde, 29 de Outubro de 2003).

A institucionalização e gestão municipal Renamo em Angoche A Renamo instalou-se no município de Angoche. O seu objectivo era mostrar que tinha uma política municipal original, cuja implementação serviria de espelho para uma futura governação nacional. E, para fazer esquecer a governação da Frelimo caracterizada, desde 1975, pelo nepotismo, corrupção, anarquia e exclusão de certos segmentos da população do acesso ao poder político e económico, prometeu instalar uma linha telefónica aberta para receber queixas, reclamações e sugestões dos habitantes (Notícias, 6 de Janeiro de 2004, p. 3) sobre o funcionamento da administração municipal. O objectivo da Renamo era o de tornar o presidente e a assembleia municipal responsáveis perante os cidadãos. Era, de acordo com Henwood (2004), uma tentativa de promover a ‘boa governação' pela descentralização política, ou seja, promover um conjunto de boas práticas visando a prevenção da tirania, da anarquia, da corrupção, da instabilidade e da paralisia institucional (p. 13). O porta-voz da Renamo, Fernando Mazanga, afirmava:

Seremos imperdoáveis, não vamos admitir ‘brincadeiras'. Os funcionários, mesmo os Presidentes dos Conselhos Municipais que vão roubar o dinheiro público ou dos contribuintes locais colectado nos nossos municípios serão presos. Nossos municípios servirão de trampolim para uma futura governação do país (Savana, 5 de Dezembro de 2003, p. 2).

Esta promoção da descentralização releva, segundo Bako-Arifari & Laurent (1998),

de um simples slogan, ainda mais porque as instâncias descentralizadas não podem, de um dia para outro, beneficiar de uma legitimidade política e fiscal suficientes que lhes permita recolher receitas locais necessárias para assegurar a viabilidade das suas colectividades. Ademais, o funcionamento quotidiano das instituições descentralizadas é portador e produtor de oportunidades e de diferentes práticas de desvios e de corrupção (p. 2).

De facto, num contexto de municípios de penúria (Mbembe, 1996) sem nenhuma base económica nem fiscal e dependendo exclusivamente das subvenções do Estado central, a vontade e a capacidade da Renamo de produzir mudanças políticas, de desenvolver as suas próprias competências e promover a boa governação dependiam completamente dos resultados das eleições gerais, legislativas e presidenciais, de 2004, ganhas pela Frelimo (75,06%) e seu candidato Armando Emílio Guebuza (75,46%). Com as eleições de 2004, a Frelimo permaneceu no poder e continuou detentora do poder político, económico e administrativo central, decisivo para a governação local, o que fez com que o governo municipal de Angoche, da Renamo, não conseguisse satisfazer as aspirações do seu eleitorado.

Armando Guebuza, vencedor das eleições presidenciais de 2004, dizia:

A Renamo fez promessas impossíveis de realizar. [ ] Os eleitores que votaram pela Renamo nas eleições municipais de 2003 começam a arrepender-se, porque nada daquilo que lhes foi prometido durante a campanha eleitoral, como emprego, abolição de taxas de mercado, abastecimento de água potável, lhes está sendo concedido (Notícias, 15 de Janeiro de 2004, p. 3).

De facto, a partir do momento em que a Renamo não conseguiu ganhar as eleições presidenciais e legislativas de 2004, os municípios sob sua direcção foram submetidos a uma forte pressão do Estado-Frelimo, que, apesar de ter prometido uma oposição responsável (Notícias, 23 de Dezembro de 2003, p. 3), boicotava a governação municipal em Angoche porque os interesses supremos do povo não estavam a ser respeitados pela Renamo, que geria os municípios de forma lamentável (Notícias, 9 de Março de 2004, p. 4) e que obrigava à intervenção da Frelimo, que tem responsabilidade histórica de direcção da nação Moçambicana (Notícias, 23 de Agosto de 2004, p. 3). Assim, das medidas político-administrativas implementadas pelo Estado, destaquem-se as mais significativas: (i)    O encerramento das estações da rádio comunitária do município de Angoche por ela ser ilegal e por estar a servir os interesses particulares da Renamo; (ii)   A transferência do município de Angoche de toda a documentação administrativa e política da gestão municipal (Savana, 9 de Janeiro de 2004, p.

2) da Frelimo (1998-2003) para a sede local do partido Frelimo. Era o fim da administração pública neste município. O antigo director de Apoio e Controlo do Governo de Nampula dizia a este respeito:

Houve actos originados por emoção em certos municípios, como, por exemplo, discórdias. Mas agora estamos a tentar organizar os arquivos e outros documentos em todos os municípios de Nampula, de forma a garantir que os futuros gestores destes municípios encontrem toda a informação necessária para prosseguir seu trabalho (ibid.).

(iii)  Em Angoche, a delegação distrital do INAS (Instituto Nacional da Acção Social), órgão do Ministério da Acção Social, cortou as pensões alimentares a 120 idosos que tinham participado em trabalhos voluntários de reparação de ruas, no quadro da vitória eleitoral da Renamo nas eleições de 2003 (Conselho Municipal da Cidade de Angoche, 2004a, p. 2). As pensões foram cortadas porque, segundo o INAS, estes idosos tinham demonstrado possuir ainda capacidade física para trabalhar. E porque a Renamo, tendo ganho o município, lhes iria dar emprego (Conselho Municipal da Cidade de Angoche, 2005a, p. 12).

(iv)   Em violação da lei 11/99 sobre as finanças e património dos órgãos locais, o Conselho Municipal de Angoche (Frelimo) continuou a fazer despesas (a última foi em 12 de Janeiro) até alguns dias antes da investidura da Renamo (Fevereiro 2004), colocando o município de Angoche numa situação de dívida excessiva em relação aos seus fornecedores. Por exemplo, a quantia de 700 milhões de meticais, que constituía superavit, segundo o relatório balanço do primeiro mandato autárquico da Frelimo, em Fevereiro de 2004 quando a Renamo toma o poder tinha-se transformado em défice (Conselho Municipal da Cidade de Angoche, 2004b, p. 9).

Angoche: quando a tutela administrativa pesa na gestão local Em Angoche, a Renamo tentou criar postos de trabalho para satisfazer o seu eleitorado. Substituiu os directores das unidades administrativas autárquicas que tinham trabalhado com a Frelimo (Conselho Municipal da Cidade de Angoche, 2004c, p. 12); rescindiu os contratos de alguns funcionários que continuavam a trabalhar no município com contratos expirados e expulsou alguns, nomeadamente os cobradores de impostos, acusados de desvio de dinheiro das receitas cobradas nos mercados, e outros que, segundo a Renamo, confundiam a política com a administração. Estes últimos jogavam, segundo a Renamo, um duplo jogo, porque continuavam a servir de espiões para a Frelimo na administração municipal da Renamo (Conselho Municipal de Angoche, 2005b, p. 9).

As medidas aplicadas pelo Conselho Municipal de Angoche não surtiram os efeitos desejados devido à intervenção imediata do Estado-Frelimo que, através do Ministério da Administração Estatal, usou o poder de tutela administrativa e obrigou a administração municipal da Renamo a readmitir todos os funcionários que tinham sido expulsos. É verdade que o Estado-Frelimo não inventava nada, porque segundo Mabileau (1993) mesmo em países ocidentais, os actos de autonomia dos conselhos municipais são rigorosamente limitados pelo exercício da tutela administrativa, que coloca os conselhos municipais sob vigilância, rejeitando ou substituindo as decisões do presidente ou dos conselhos municipais (p. 24). Assim, a rede clientelar no município de Angoche era incapaz de integrar toda a gente. Ela tinha apenas conseguido capturar certos membros com a sua integração na estrutura do município, para ocupar postos subalternos, por exemplo de limpeza, e outros para lugares-chave, vereadores, nomeados pelo presidente, e alguns secretários de bairro, nomeados em substituição dos antigos secretários indicados pela Frelimo.

O presidente do conselho municipal de Angoche regozijava-se por estas nomeações da seguinte maneira:

Agora podemos falar de um verdadeiro poder local. [ ] As pessoas nomeadas para ocupar os postos importantes na estrutura municipal são os filhos da terra, os Cotis. uma ruptura com as antigas práticas da Frelimo. [ ] O poder está finalmente com os seus donos, pessoas com legitimidade local (Alberto Omar, Puli, 16 de Setembro de 2006).

É verdade que os Cotis tinham recuperado o poder ao nível local, mas para os outros notáveis e chefes locais, que não tinham sido integrados no município, esta situação era intolerável, ainda mais porque eles também tinham votado pela Renamo, tinham participado na jornada de limpeza de apoio à Renamo e mereciam entrar na rede em detrimento dos familiares e amigos do presidente do conselho municipal (entrevista com Hassane Hibrahimo, Inguri, 23 de Outubro de 2006).

O mesmo se passava com os membros da Renamo na assembleia municipal, nomeadamente o chefe da bancada e o presidente da assembleia[14], que reclamavam benefícios idênticos aos concedidos ao presidente do conselho municipal. A situação vivida no município de Angoche é bem descrita por L.

Monnier:

menos riqueza a adquirir e, por isso, a distribuir, porque a riqueza é principalmente consumida ou redistribuída. Ela não é criadora de nova riqueza. [ ] Face à penúria da redistribuição, assistimos a uma multiplicação de grupos e de facções que vêm exigir a sua parte do bolo. [ ] Logo que o xitique é bloqueado e as suas regras sagradas violadas pelo presidente, [ ] é a expressão da crise [ ] É por isso que a massa cada vez mais numerosa de excluídos vem ampliar o movimento que toma a forma duma autêntica revolta de cadetes sociais (1993, p. 130).

Estes revoltados sabotavam o desempenho do município, bloqueando a gestão do seu próprio partido e provocando uma espécie de paralisia institucional.

Angoche: paralisia institucional e o conflito entre a assembleia e o conselho municipal No sentido amplo do termo, a paralisia institucional é a incapacidade de o governo tomar decisões. Os três poderes com capacidade de tomar decisões eram, portanto, o lugar por excelência de confrontação entre os partidos políticos e diferentes posições políticas pela produção de normas locais. A paralisia institucional é, de acordo com Santos (1986), o resultado da confrontação política quando existe uma dispersão de recursos de poder entre actores radicalizados nas suas posições (p. 10). Em Angoche existiam três actores políticos em oposição radicalizada no tocante à gestão municipal da Renamo: (i) O governo da Frelimo, que era detentor do poder político ao nível das unidades desconcentradas (administração do distrito de Angoche) e que exercia deliberadamente uma espécie de administração paralela, por usurpação das competências atribuídas às unidades descentralizadas (municípios), tais como a colecta de impostos e a gestão das fontes de água existentes no território municipal (Conselho Municipal da Cidade de Angoche, 2004d); (ii) a Renamo 1, constituída pelo conselho municipal, representado pelo presidente e seus vereadores; (iii) a Renamo 2[15], representada pelo presidente da assembleia municipal, o chefe da bancada e o secretário da assembleia, em aliança com os membros da assembleia da bancada da Frelimo. Apesar de a Renamo ter maioria na assembleia municipal (17 membros), o que era suficiente para fazer passar todos os projectos de gestão municipal, a ruptura de equilíbrio entre as instâncias do partido e a bancada da Renamo (com 4 membros dissidentes) constituiu um problema. Todos os projectos submetidos pelo conselho municipal à assembleia, durante os primeiros quatro meses, foram rejeitados pela oposição (Frelimo), que se aproveitou do conflito no interior da Renamo para provocar a paralisia institucional. A carta escrita pelo presidente do conselho municipal ao presidente do partido, A. Dhlakama, e ao delegado provincial da Renamo em Nampula é demonstrativa:

Desde a tomada de posse em Fevereiro de 2004, a mesa da Assembleia Municipal impede o cumprimento do programa do governo municipal da Renamo [ ]. Eles são os responsáveis pelas más relações existentes entre a Assembleia Municipal, o Conselho Municipal e o partido [ ] Estão sempre em desacordo com outros membros da Assembleia Municipal do lado da Renamo e não cooperam com o Conselho Municipal [ ] Este conflito é utilizado pela oposição (Frelimo) para nos humilhar e rejeitar todos os nossos projectos de governação (Conselho Municipal da Cidade de Angoche, 2004e, p. 2).

O conflito entre a assembleia e o conselho municipal da Renamo em Angoche foi, sem dúvida, um dos grandes obstáculos à gestão municipal durante a primeira fase do processo. Mas não podemos esquecer a acção dos membros da assembleia pela Frelimo, que, no decurso das dezasseis sessões ordinárias da assembleia municipal que tiveram lugar até Fevereiro de 2007, votaram sempre contra todas as propostas da Renamo, com a excepção de uma resolução sobre os benefícios acordados aos membros da assembleia municipal[16] (Ames, Connerley, Rosário, Nguenha, & Francisco, 2010, p. 17).

A Renamo queixou-se também da transferência tardia das subvenções do governo central para o município, o que dificultava a implementação de seus programas e projectos, nomeadamente a construção de escolas e hospitais, a criação de emprego e a reabilitação de estradas. Também se queixava das sucessivas e repetidas inspecções administrativas e financeiras sem pré-aviso a que o município era sujeito (Savana, 6 de Maio de 2005, p. 12). A contestação da Renamo não era dirigida às inspecções em si, mas ao procedimento dos ministérios das Finanças e da Administração Estatal. O regulamento das inspecções previa entre quatro a cinco inspecções por mandato de cinco anos, mas o município de Angoche recebia inspectores trimestralmente, contrariamente aos municípios sob gestão da Frelimo na mesma província (Monapo e Nampula), onde as inspecções eram realizadas de acordo com o regulamento (entrevista com Estevão Abudo, Muchelele, 14 de Julho de 2006).

A acção do governo distrital, que sabotava, pelo menos nos primeiros quatro anos, todas as tentativas de implementação de políticas locais de desenvolvimento, foi outro factor adverso à gestão da Renamo. Em primeiro lugar, cobrava impostos e taxas no território municipal (Noticias, 31 de Março de 2004, p. 6), o que colocava os residentes na área municipal numa situação de dupla imposição. Eram taxados ao nível nacional e local (Conselho Municipal de Angoche, 2004e, p. 3). Em segundo lugar, o bloqueio era feito através dos secretários de bairro que geriam os fontenários, cobravam e usavam de forma descontrolada o dinheiro da venda de água potável (Conselho Municipal da Cidade de Angoche, 2005b, p. 8).

Em Angoche, a problemática da gestão das fontes de água não pode ser dissociada de outro conflito, que opunha a Renamo e o governo do distrito quanto ao controlo das autoridades comunitárias. De facto, durante o primeiro mandato municipal (1998-2003), o Estado-Frelimo, que detinha o poder nas unidades descentralizadas e desconcentradas, tinha, por intermédio do decreto 15/ 2000, legitimado todas as autoridades comunitárias existentes no distrito, incluindo as do município. Ao usar um decreto para legislar sobre uma matéria tão importante como o papel do poder tradicional na governação, o governo queria contornar a Renamo, que não estava em peso na Assembleia da República como também tinha grande interesse nesse assunto (Buur & Kyed, 2005; Forquilha, 2006). Ora, a vitória eleitoral da Renamo em 2003 tinha criado condições para o exercício do poder executivo numa situação de legitimidade eleitoral, e a aprovação do diploma ministerial 80/2004, sobre a articulação dos órgãos dos governos locais com as autoridades comunitárias, deu à Renamo a possibilidade de reconhecer e legitimar as autoridades comunitárias que lhe eram favoráveis dentro do território municipal. A administração municipal da Renamo, com o objectivo de fortificar o seu controlo social e político sobre as populações e de forma a devolver o poder à estrutura local tradicional muçulmana, marginalizada durante a era do partido único, indicou e legitimou, ela também, as suas autoridades tradicionais. É por isso que existiam, não somente em Angoche, mas também na Ilha de Moçambique e Nacala Porto, municípios sob gestão da Renamo, até antes das eleições autárquicas de 2008, autoridades comunitárias da Renamo com símbolos (bandeira) do município e autoridades comunitárias da Frelimo com uniforme e a bandeira da República de Moçambique em suas casas particulares (Rosário, 2009, p. 515)[17]. Isto instituía a dupla administração no território municipal de Angoche, um problema que tornava a gestão da Renamo impraticável e impossível. Os secretários da Frelimo, para além de desinformar a população, continuavam a cobrar impostos e a gerir os bens dos municípios, nomeadamente as fontes de água (entrevista com Alberto Omar, Puli, 19 de Outubro de 2006).

Numa situação em que a água potável é um recurso escasso, a posse e a gestão dos fontenários públicos constituíam um recurso político capital. De facto, durante a primeira gestão municipal, as autoridades comunitárias da Frelimo e a empresa de Águas de Angoche tinham assinado um contrato de gestão dos fontenários de água. Segundo os termos desse contrato, os secretários deviam depositar cerca de 80 mil meticais na empresa, resultantes da venda de água aos residentes. Essa cláusula tinha levantado muita polémica, uma vez que os secretários de bairro não dispunham dessa competência e existiam muitos interessados privados para fazer essa gestão (Conselho Municipal da Cidade de Angoche, 2001, p. 2), porquanto a gestão dos fontenários era muito rentável. De facto, os secretários de bairro da Frelimo, que faziam trabalho voluntário e gratuito de mobilização e de angariação de simpatizantes, tinham encontrado uma forma de sobreviver e de ganhar dinheiro facilmente. Durante quase toda a vigência do contrato, nenhuma soma foi depositada na Empresa de Águas. Cada vez que a empresa ameaçava tomar medidas administrativas, ou seja, rescindir os contratos, encontrava barreiras no seio das instâncias administrativas locais.

Daí resultou que os fontenários nunca eram reparados, o que provocava avarias grossas, nem eram renovados, o que colocava o município num dilema, ainda maior porque a independência dos secretários de bairro (gestores) em relação ao conselho municipal não permitia nenhum acompanhamento e agravava a incapacidade do município de satisfazer uma das suas obrigações básicas o abastecimento de água potável (Conselho Municipal da Cidade de Angoche, 2006, p. 4).

O fornecimento de água constitui uma das atribuições dos governos municipais (art. 25º da lei 11/97, de 31 de Maio). Mas, apesar disso e da gestão municipal da Renamo, a vontade do Estado-Frelimo em manter o status quo e as suas autoridades comunitárias prevalecia, conforme o expressou o chefe da bancada da Frelimo na assembleia municipal, Saide U. Passo:

As fontenárias foram construídas pelo governo do distrito (Frelimo) antes da municipalização, portanto, elas não pertencem ao município.

Se o município quiser gerir fontenárias, deve construir as suas e lhes atribuir a seus secretários de bairro [ ]. As fontenárias que existem foram atribuídas aos secretários do partido Frelimo, por isso eles continuarão a fazer sua gestão (ibid., p. 3).

A reacção deste membro sénior da Frelimo ao nível local é surpreendente, ainda mais porque os secretários de bairro com quem tinham sido assinados os contratos não eram da Frelimo. Em Moçambique, oficialmente os secretários de bairro constituem o escalão mais baixo da administração pública. Isto mostra bem a ausência de separação entre o Estado e o partido e a vontade da Frelimo de querer controlar o poder a todos os níveis e continuar hegemónica. A forma de agir do partido Frelimo em Moçambique assemelha-se à estratégia adoptada pelo Congresso para a Democracia e Progresso (CDP) do Burquina Faso. Segundo Otayek (2007), o CDP, que goza de uma posição privilegiada (todos os recursos políticos, administrativos, financeiros e mediáticos do aparelho estatal) usa estes recursos para controlar o jogo eleitoral e assegurar o seu domínio sobre a arena local, aniquilando totalmente seus adversários (p. 141).

Angoche: O regresso do partido único Os resultados das terceiras eleições municipais de Novembro de 2008 testemunham a vontade do Estado-Frelimo de acabar com a oposição em todos os escalões do Estado. Com uma taxa de participação de 46%, mais alta que a das eleições locais de 2003 (28%) e das eleições legislativas e presidenciais de 2004 (43%), a Frelimo ganhou as eleições em quarenta e dois dos quarenta e três municípios em disputa. Obteve maioria em quase todas as assembleias municipais e elegeu na primeira volta quarenta e um presidentes dos conselhos municipais.

No que diz respeito ao município de Angoche, a Frelimo e seu candidato Américo Assane Adamuji ganharam o escrutínio com 66,12% e 65,64 % dos votos, respectivamente, contra 32,35% da Renamo e 34,36% do antigo presidente do conselho municipal, indicado pela Renamo, Alberto Omar. O pimo obteve 1,53% dos votos, perdendo o direito de estar representado na assembleia municipal (Conselho Constitucional, 2009). Mas o que explica a derrota eleitoral da Renamo neste município? Para explicar as causas deste cataclismo eleitoral seria necessário um estudo aprofundado, que não constitui o objectivo deste texto. Contudo, a partir do material recolhido durante a pesquisa de campo e do material disponível em jornais, algumas respostas podem ser esboçadas.

Em Angoche, três eventos podem explicar a recuperação do poder pela Frelimo: (i)    a ruptura com as antigas práticas de imposição de candidatos exteriores ao meio social local pelas instâncias provinciais e centrais do partido. De facto, se nas eleições municipais de 1998 e 2003 a Frelimo tinha indicado José Constantino contra a vontade das estruturas locais do partido (Domingo, 23 de Novembro de 2003, p. 5), para as eleições de 2008 a Frelimo organizou bem o processo de designação interna que resultou na escolha de Américo Assane Adamuji, coti, filho da terra, proveniente das Ilhas Catamoio. Adamuji era uma figura consensual, não somente no seio do partido a nível provincial e central, mas também a nível local e entre os notáveis da terra. O discurso do porta-voz do comité distrital da Frelimo é revelador da mudança de estratégia: Escolhemos um candidato que reúne o consenso, não somente dos membros e simpatizantes do partido, mas também dos diferentes segmentos da sociedade civil. [ ] Não queremos correr os mesmos riscos do passado, onde tivemos resultados desastrosos nas eleições municipais aqui em Angoche (Notícias, 4 de Junho de 2008, p. 4).

Como diz Otayek (2007),

em contexto autoritário, como em contexto democratizado, a descentralização surge assim como uma ferramenta particularmente funcional em matéria de circulação, cooptação e reciclagem das elites no poder, cuja instrumentalização permite ao centro assegurar a sua hegemonia, actuando como árbitro entre os múltiplos pretendentes aos troféus electivos locais e neutralizando as tensões internas que o fragilizam pela imposição, em nome da democracia, da renovação de grupos e de facções que se organizam no seu seio (p. 142).

(ii)   O conflito, opondo, de um lado, o presidente do executivo, e do outro, o presidente da assembleia municipal e os notáveis locais, em relação ao cumprimento das promessas eleitorais e à distribuição das prendas, tinha-se exacerbado durante a gestão política da Renamo do município em 2003 (Notícias, 1 de Setembro de 2008, p. 3). Um dos representantes da Renamo 2 dizia:

A Renamo nos devolveu a liberdade de rezar, mas a religião não enche a barriga vazia [ ]. A Renamo escolheu um candidato que era chefe na Angocaju que recebeu muito dinheiro de indemnização pelo despedimento. Quando chegou ao poder, deu emprego a seus antigos colegas e família e se esqueceu das pessoas que trabalharam para a Renamo para esta vitória. Demos nossos votos a essa gente. Agora eles têm salários altos e se tornaram mais ricos e nós mais pobres. [ ] O plano que temos agora é de lhes fazer perder o poder nas próximas eleições municipais [ ]. Temos em nossa posse 600 cartões de membros da Renamo descontentes com esta situação. Se a Frelimo negociar connosco, se nos dar dinheiro, iremos-lhe dar a vitória nas próximas eleições municipais [ ] A Renamo nos mostrou que os partidos não servem para ajudar a população, mas para ajudar suas famílias. Então neste contexto, o partido que vai melhor pagar, terá a vitória (entrevista com Hassane Hibrahimo, Inguri, 2007).

A mudança de orientação destes notáveis enfraqueceu politicamente a Renamo, que, ao mostrar total desprezo por este grupo, considerava tratar-se de um pequeno grupo, sem nenhuma expressão política e que era instrumentalizado pela Frelimo para desestabilizá-la politicamente (Zambeze, 25 de Maio de 2006, p.

32). Ao se sentir roubado e desprezado, este grupo de notáveis não hesitou em reafirmar seu apoio ao partido Frelimo em troca de vantagens materiais. A mudança de orientação política das elites de Angoche e de suas populações a favor da Frelimo não pode ser interpretada como uma mudança de natureza ideológica, mas como uma táctica política com o objectivo de conservar o poder local. Abandonaram uma Renamo inapta para servir de instrumento de manutenção do poder para se aliar à Frelimo em posição de dominação. Fruto desta estratégia, em 2009 a votação da Frelimo em Angoche subiu cerca de 10  mil votos em relação a 2004 (Nuvunga, 2013, p. 46). Isto mostra que os esforços de descentralização operados não contribuíram para o desenvolvimento em Moçambique, antes permitiram a grupos influentes apropriar-se das vantagens provenientes das iniciativas de descentralização (Hyden, 1983, p. 68), criando novas elites políticas locais sem nenhuma noção de responsabilidade pública, menos competentes, mais corrompidas, que reforçaram igualmente o desenvolvimento de relações clientelares ao nível local (Mullard, 1987, p.

123).

(iii)  A Renamo, mal organizada e abalada por conflitos entre os seus membros motivados pela partilha dos recursos do município onde exerciam o poder desde 2003, ao que acrescia a sua estrutura sempre militarizada, ainda não civilizada, com um claro corte entre a direcção central e as bases, encontrava dificuldades para apresentar uma alternativa credível, capaz de fazer frente ao Estado-Frelimo, mormente no respeitante à gestão municipal. O período da campanha para as eleições municipais de Novembro de 2008 confirmou esta fraqueza. Enquanto a Frelimo conduzia sua campanha eleitoral, com inúmeras iniciativas locais, os candidatos da Renamo em Angoche esperavam simplesmente a chegada de material proveniente da sua direcção central, instalada na capital, Maputo.

Conclusão A hipótese desenvolvida neste artigo é a de que, tendo a Renamo chegado ao poder no município de Angoche, a Frelimo mobilizou e implementou todos os recursos à sua disposição, incluindo a fraude (Awepa, 2008, p. 2), para: (a) recuperar o poder neste município; (b) consolidar o poder que detinha noutros municípios; (c) alargar seu poder a outras localidades, que, em função da aplicação do gradualismo, tinham atingido a categoria de municípios. A Renamo, na sua gestão municipal, entrou em contradição com ela mesma. A ideia de bem governar, evocada pelo partido na tomada de posse no município de Angoche, não foi implementada. A Renamo reproduziu as práticas institucionais do Estado com esquemas de clientelismo, práticas de funcionamento da administração pública directamente ligadas à influência e à trajectória do Estado neopatrimonial (Médard, 1991) na gestão local. Este modelo neopatrimonial na gestão local vem do Estado-Frelimo. A resistência da Renamo a este modelo consistiu em desenvolver seu próprio sistema, mas, nesse contexto, perdedor, ainda mais porque era um neopatrimonialismo pobre. Ele não apresentava nenhuma alternativa, como por exemplo a mobilização democrática dos habitantes para a eleição de secretários de bairros e para a formação de cooperativas urbanas locais para a produção de sal ou para retomar a produção de castanha de caju, duas potencialidades locais. O bloqueio administrativo e financeiro com o envio tardio das subvenções, a dupla administração manifesta na nomeação de autoridades comunitárias para exercerem sua influência no território municipal, a cobrança de impostos no território municipal mostravam que a Frelimo (urbana, assimilada e sulista) não queria ver consolidadas outras legitimidades, ligadas à Renamo (conotadas com as zonas rurais e oriundas do centro e norte). Graças ao controlo sobre o aparelho estatal, a Frelimo colocou todos os recursos à sua disposição para bloquear a institucionalização e a gestão local da Renamo, de forma a recuperar e conservar o poder em todos os escalões do Estado, de tal forma que qualquer ideia de alternância, possível em teoria, se torna inviável na prática. As sucessivas eleições, que se realizam em Moçambique desde 1994, confirmam a rotinização dos procedimentos eleitorais. Contudo, as eleições legitimaram sempre a dominação política da elite sulista da Frelimo e confirmaram o carácter problemático da alternância política.


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