Editorial
Editorial
1. O projecto de desenvolvimento encetado após a Segunda Guerra Mundial teve no
Estado-nação o seu espaço privilegiado. Esse projecto, onde a modernização era
assumida como ideal universal, oferecia uma perspectiva optimista para o
desenvolvimento económico nacional, assentando em programas de assistência, de
carácter bi ou multilateral, normalmente conduzidos pelas organizações
internacionais entretanto criadas. Nessa perspectiva, as iniciativas de
desenvolvimento resultavam de um processo onde, apesar dos planos nacional e
internacional se apresentarem interligados, era o espaço nacional que
constituía a unidade política fundamental para a mobilização das populações e
para se atingir o ideal da modernização.
Contraditoriamente, esse projecto de desenvolvimento nacional conduziu a uma
integração económica global, que fez deslocar os termos do desenvolvimento de
uma questão dominantemente nacional para uma questão progressivamente global. O
desenvolvimento deixa de ser um projecto capaz de ser conduzido no quadro do
Estado-nação, na base dos tradicionais estímulos ao mercado nacional, para
depender cada vez mais do mercado mundial, sob a condução de um
gerencialismoglobal(global managerialism) que tem no chamado consenso de
Washington os seus dez mandamentos: disciplina fiscal, prioridades na despesa
pública, reforma fiscal, liberalização financeira, taxas de câmbio,
liberalização do comércio, investimento estrangeiro directo, privatização,
desregulação e direitos de propriedade.
Esse projecto de desenvolvimento global a globalização, na expressão
consagrada pode ser entendido como algo mais do que a mera continuação do
sistema mundial, como defende Giddens, ou apenas como o acelerar da idade de
transição, como advoga Wallerstein. Entendido num ou noutro sentido, esse novo
projecto de desenvolvimento tem todavia como pilares fundamentais, por um lado,
uma estratégia de liberalização e, por outro, a afirmação do axioma das
vantagens competitivas, tendo subjacente uma nova concepção de desenvolvimento,
adjectivado de sustentável, que acaba por trazer novamente para primeiro plano
a teoria neoclássica do capital humano.
Não admira então que Roger Dale argumente que os mais claros efeitos da
globalização nas políticas educacionais sejam consequência da reorganização das
prioridades dos Estados em se tornarem mais competitivos, nomeadamente de forma
a atraírem os investimentos das corporações transnacionais para os seus
territórios, pelo que é possível distinguir os efeitos da globalização nas
políticas de educação dos decorrentes das tradicionais formas de intervenção
das organizações internacionais no quadro do anterior modelo
desenvolvimentista.
No projecto desenvolvimentista, a assistência técnica das organizações era (é)
activamente procurada pelas autoridades nacionais, sobretudo como forma de
legitimação de opções internas; por outro lado, os múltiplos e variados
relatórios produzidos pelas organizações internacionais constituíam(em) uma
forma de mandato, mais ou menos explícito de acordo com a centralidade dos
países. No projecto de globalização ' tenho-o defendido em várias ocasiões, a
agenda globalmente estruturada faz-se sobretudo tendo como centro nevrálgico
osgrandes projectos estatísticos internacionais. E, nesses projectos
estatísticos, a escolha dos indicadores constitui, seguramente, a questão
determinante na fixação dessa agenda global.
Pelo seu impacte nas políticas de educação dos países centrais (e em muitos
países situados na semiperiferia dos espaços centrais), o projecto centrado em
torno da construção e recolha dos indicadores nacionais de ensino assume uma
particular relevância, tendo como expressão pública mais conhecida a publicação
Educationat a Glance. A esse relatório anual somam-se constantes estudos sobre
a competitividade dos países, podendo-se afirmar que os rankingsaí divulgados
se tornam uma espécie de classificação de Jogos Olímpicos (ou de Campeonatos)
dos sistemas educativos a nível mundial ou de uma dada região.
Mas esses rankings são igualmente procurados no interior dos países e dos
respectivos sistemas educativos. Em Portugal, nos últimos anos, os principais
meios de comunicação social estabelecem rankingsde escolas secundárias a partir
dos resultados dos seus alunos nos exames nacionais. Muitas análises se têm
realizado, todas elas em geral conduzidas no sentido de questionar a qualidade
da educação pública e conduzindo sistematicamente à responsabilização dos
professores e dos modos de gestão das escolas. Compreender as razões dessa
agenda mediática, com os seus fortes impactes na agenda política, deve ser um
elemento importante a tomar em consideração na formulação da agenda de
investigação em políticas da educação. O Observatório de Políticas de Educação
e de Contextos Educativos, editor desta Revista, já assumiu esta prioridade.
Agora, com satisfação, se constata que, no âmbito do Fórum que a Associação
Internacional de Sociologia realiza em Barcelona, de 5 a 8 de Setembro de 2008,
o RC 04 ' Sociologia da Educação adoptou o seguinte tema central de debate:
Accountability, standards, testing, and inequality: Critiques, collaboration,
and future research. Um exemplo que talvez devesse ser seguido em Portugal
pelas associações científicas que têm a Educação como objecto de estudo, como
parte da responsabilidade social dos cientistas sociais.
2.O presente número da Revista Lusófona de Educação dedica uma particular
atenção às tendências nas políticas de educação, e aos respectivos modos de
análise, num esforço continuado para tornar intelegível os processos e os modos
de regulação dominantes.
O primeiro artigo, A Educação em Tempos de Globalização. Modernização e
hibridismo nas políticas educativas em Portugal, de António Teodoro e Graça
Aníbal, constitui um produto da investigação realizada no âmbito do projecto
Educatingthe Global Citizen: Globalization, Educational Reform and the Politics
of Equity and Inclusion. The Portuguese case, financiado em Portugal pela FCT e
que se insere numa rede envolvendo dezasseis outros países. Os autores
apresentam uma reflexão sobre as políticas educativas e os discursos que as
justificam, num tempo de procura de integração de Portugal no espaço europeu
após os anos de 1960 e especialmente no quadro democrático do pós revolução de
1974. Teodoro e Aníbal defendem, a partir de uma análise empírica das palavras-
chave nos discursos dos responsáveis políticos, a existência de um carácter
híbrido que associa uma orientação construtivista numa perspectiva crítica com
a apologia da eficácia do sistema entendida como necessária à produtividade
económica, especialmente a partir dos anos de 1980. O artigo sublinha a
importância do contexto nacional e do sentido que as suas características
conferem ao modelo globalizado de modernização para explicar por que a
tendência homogeneizante da regulação internacional é mitigada por preocupações
de cariz emancipatório.
No segundo artigo, Pesquisa Histórica da Educação do Tempo Presente, Afonso
Celso Scocuglia expõe e defende a relevância da história da educação do tempo
presente para a pesquisa histórico-educacional. O autor apresenta os avanços e
os desafios enfrentados pelos pesquisadores desse campo, argumentando que as
fontes disponíveis para a pesquisa da história da educação do tempo presente
sendo abundantes e próximas do pesquisador não facilitam a pesquisa, nem, muito
menos, diminuem a sua necessária rigorosidade. No plano metodológico, Scocuglia
reforça a ideia de que a educação, como uma prática social, exige de seus
pesquisadores a consecução dos depoimentos orais, das informações e de todos os
tipos de documentação oriundas dos sujeitos que a fizeram/fazem.
O terceiro artigo, Aprendendo a ler o mundo. Adaptação do método de Paulo
Freire na alfabetização de crianças, de Olívia Leite e José B. Duarte, resulta
de uma investigação realizada no âmbito do mestrado em Ciências da Educação da
Universidade Lusófona pela primeira autora, sob a direcção científica do
segundo. O ponto de partida foi a constatação de que as aulas de recuperação em
alfabetização eram uma continuidade das aulas regulares e, numa tentativa para
procurar soluções para alfabetizar as crianças analfabetas, planificou-se uma
investigação-acção fundamentada na pedagogia crítica de Paulo Freire. A
pesquisa realizou-se numa escola pública de um município próximo de Curitiba,
no sul do Brasil, e envolveu 12 jovens analfabetos ou semi-analfabetos. O
artigo apresenta a metodologia seguida pela pesquisadora e os resultados
obtidos. Os autores, na discussão dos resultados, sublinham que a concretização
da alfabetização é mais eficiente quando o professor explora o universo
vocabular do aluno, ou seja, a sua leitura de mundo. Quanto à hipótese da
metodologia utilizada pela escola influenciar diretamente na aquisição da
leitura e da escrita, independentemente da leitura de mundo de cada sujeito,
confirmam que a história de vida de cada educando foi indiscutivelmente
facilitadora de estímulos para a aprendizagem significativa.
No quarto artigo, Apontamentos sobre a investigação sociológica. Possibilidades
e caminhos de pesquisa, Alberto Albuquerque Gomes apresenta uma proposta de
análise das questões fundamentais do método de pesquisa nas ciências sociais.
Sublinhando que este assunto foi objeto de discussões incontáveis e de produção
de vários textos no sentido de explicar a sua relevância em geral e no contexto
acadêmico, o autor insiste que o problema está em como validar a pesquisa, por
outras palavras, quais os padrões e ferramentas deveriam ser usadas para
aumentar a precisão e o grau de confiança desses resultados. Gomes, a partir de
uma analogia com a arte, propõe uma estrada que assegure a rigidez necessária a
qualquer investigação científica.
O quinto artigo, Em busca do conceito de cultura escolar. Uma contribuição para
as discussões actuais, de Milan Pol, Lenka Hlouková, Petr Novotný e Jiří
Zounek, apresenta o conceito de cultura escolar a partir de uma análise de
artigos relevantes escritos em inglês, alemão, checo e eslovaco. Reconhecendo
que foram as inúmeras definições e a evidente ausência de delimitação do
conceito de cultura escolar que serviram de impulso para o estudo, os autores
mobilizam as várias definições de cultura escolar documentadas fora da
Pedagogia por três ciências tradicionais - Gestão, Antropologia e Sociologia,
para concluirem que o conceito de cultura escolar é um conceito fronteiriço da
Pedagogia. A abordagem integrativa apresenta-se, segundo os autores, mais perto
do campo da pedagogia ou, mais especificamente, da possibilidade de ser
considerada como uma abordagem que trata o conceito de cultura escolar como um
conceito pedagógico.
No sexto artigo, A formação do professor investigador na escola e as
possibilidades da pesquisa colaborativa: um retrato sem retoques, Josefa A. G.
Grígoli, Leny R. M. Teixeira, Claudia Maria de Lima, Adriana Rodrigues da Silva
& Mônica Vasconcellos focalizam a sua pesquisa na construção do saber
docente,buscando aprofundar a compreensão dos fatores reguladores da acção
docente que atuam no sentido da manutenção da prática do professor ou da sua
transformação. Para investigar as formas mediante as quais os professores
aprendem e as razões que os levam a mudar ou a resistir às mudanças da prática,
as autoras realizaram um trabalho de formação, nos moldes de uma pesquisa
colaborativa, envolvendo dez professoras da primeira etapa do ensino
fundamental (correspondente, em Portugal, ao 1º ciclo do ensino básico) e três
gestoras. A intervenção realizou-se mediante a participação prolongada das
pesquisadoras na vida da escola, norteada pela convicção de que capacitação e
desenvolvimento dos professores devem ser decididos pelo próprio grupo e
realizados na unidade escolar, a partir das necessidades por eles expressas e
visando a construção da sua autonomia. O artigo apresenta os resultados
preliminares dessa intervenção.
O sétimo artigo, Literacia Científica e Educação de Ciência. Dois objectivos
para a mesma aula, de Nuno Vieira, apresenta uma perspectiva histórica do
ensino de ciência, desde os finais do século XIX até à actualidade. Sublinhando
algumas datas importantes no modo de encarar o ensino das ciências, o autor
defende que, actualmente, a orientação dominante vai no sentido de se pretender
formar cidadãos informados, capazes de participar em debates científicos,
atentos às causas e às consequências inerentes ao conhecimento, bem como à sua
aplicação no quotidiano. Numa segunda parte, Vieira equaciona as finalidades
para o futuro do ensino de ciência, defendendo que se devem minimizar a
importância de testes e classificações internacionais, por estas acabarem por
conduzir a uma deterioração do sistema de ensino. Como afirma o autor, tomam-
se decisões políticas para melhorar a classificação, destroem-se os pilares
essenciais para a construção de uma sociedade cientificamente literata, e
descura-se a especificidade de cada comunidade, não se dando atenção aos
interesses dos alunos e dos professores o que poderá conduzir a uma inibição da
criatividade e inovação nas actividades escolares.
O oitavo, e último artigo, Sintomas de stress em Professores Brasileiros, de
Maria das Graças Teles Martins, apresenta os resultados de uma pesquisa
realizada no âmbito do Mestrado em Ciências da Educação da Universidade
Lusófona. A autora pretende refletir e destacar os principais sintomas físicos
e psicológicos de stress encontrados em professores das primeiras séries do
ensino fundamental (1º ciclo do ensino básico, em Portugal) em escolas públicas
estaduais de uma cidade brasileira. A análise dos resultados obtidos por
Martins indica que os sintomas de stress estão presentes na maioria dos
professores, prevalecendo o stress na fase de resistência. A sintomatologia
predominante foram os sintomas psicológicos, na qual se apresentam como mais
significativos a irritabilidade excessiva, o pensar constantemente em um só
assunto e uma sensibilidade emotiva excessiva. Na área física, os sintomas mais
presentes foram o cansaço constante, a sensação de desgaste físico constante e
os problemas com a memória.
Na secção Diálogos, Manuel Tavares conduz uma entrevista com Boaventura de
Sousa Santos, seguramente o cientista social português mais premiado e
publicado em Portugal e no estrangeiro, Director do Centro de Estudos Sociais
da Universidade de Coimbra, um Laboratório Associado com o qual a UI&D
Observatório de Políticas de Educação e Contextos Educativos acaba de assinar
um protocolo de cooperação científica (notícia mais detalhada será apresentada
no próximo nº 11 da RLE). Nesta entrevista, Boaventura de Sousa Santos percorre
alguns dos seus últimos trabalhos e explicita as suas teses nos campos da
epistemologia, da sociologia do direito, da teoria pós-colonial, da democracia,
da interculturalidade, da globalização, dos movimentos sociais (em particular
do Fórum Social Mundial) e dos direitos humanos. Não exageramos ao afirmar que
esta é uma das principais entrevistas de Boaventura de Sousa Santos, dialogada
por e-mail entre Lisboa e Madison. De leitura obrigatória para se conhecer o
pensamento de um dos mais brilhantes cientistas sociais contemporâneos.
Na secção Documentos, recuperamos o programa de acção do Ministério da Educação
e Investigação Científica (MEIC) do IV Governo provisório, discutido e aprovado
em sucessivas reuniões do Conselho de Directores-Gerais, entre Abril e Maio de
1975. Produzido num período onde o objectivo da construção de uma sociedade
socialista se colocara como o rumo da revolução portuguesa, o Programa de Acção
constitui um documento fundamental para a compreensão dos projectos e
propósitos da revolução portuguesa no campo da educação nesse seu período
crítico entre o 11 de Março e o Verão quente de 1975.
Na secção Em Debate, Isabel Sanches assina um texto significativamente
intitulado Saudosismo dos anos setenta ou a arrogância da ignorância?, a
propósito do projecto de Decreto-Lei sobre a Educação Especial. Realizando uma
violenta (e certeira) crítica a tal intenção legislativa, Sanches termina
sugerindo que a decisão política ganharia em se fundamentar em investigação
pertinente, um objectivo que a União Europeia tem vindo a insistir ultimamente
mas que continua, pelo menos em Portugal no campo educativo, a constituir uma
declaração retórica.
Em Recensão, Isabel Brites apresenta uma detalhada análise do livro de Michel
Foucault Vigiar e Punir. Trata-se de uma leitura pormenorizada e rigorosa de
uma obra de leitura obrigatória para todos os educadores e que constitui, no
campo da investigação em educação, uma referência teórica para muitos
trabalhos.
A Revista Lusófona de Educação prossegue a secção Sítios Digitais, iniciada no
número anterior. Agora, Vasco B. Graça apresenta um conjunto de indicações de
grande utilidade, particularmente para todos aqueles que desenvolvem
investigação qualitativa em ciências sociais e humanas.
Por último, duas das habituais secções da Revista. Em Notícias, apresentam-se
breves referências à actividade científica da área de Ciências da Educação
(futuro Instituto) da Universidade Lusófona. Em Dissertações, apresentam-se os
resumos das dissertações defendidas em 2006 no âmbito do Mestrado em Ciências
da Educação da Universidade Lusófona, valorizando, deste modo, o trabalho
científico desenvolvido pelos nossos estudantes, hoje mestres.
Aracaju, Novembro de 2007
AntónioTeodoro
Revista Lusófona de Educação
Centro de Estudos e Intervenção em Educação e Formação (CeiEF)
Avenida do Campo Grande, nº 376
1749-024 Lisboa
revista.lusofona@gmail.com